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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.27 Rio de Janeiro Oct. 2013

 

ENSAIOS

 

Deixar cair para poder dizer (e silenciar)

 

To let it fall to be able to speak (and silence)

 

 

Lucília Maria Sousa Romão*,I; Glaucia Nagem de Souza**,II

I Universidade de São Paulo
II Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano Fórum SP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste escrito é produzir a partir do vazio e do silêncio, contornando, tanto quanto possível, uma reflexão sobre ambos em suas instâncias fundadoras do humano, do ser falante e do trabalho artístico (FREUD; LACAN). Pensar a relação desse intervalo faltante – que a linguagem não toca – com o silêncio constitutivo de toda possibilidade de significação (ORLANDI) é o que me move. Da gravidez do vazio e do silêncio, nasce toda fala e todo ato de linguagem, os quais depois de materializados, indiciam algo do início, um resto ou certo efeito de vazio e silêncio dados pela incompletude e imperfeição de todo dito. Analisaremos a performance de Tatiana Blass, denominada "Metade da fala no chão – piano surdo", refletindo sobre a relação do sujeito com a linguagem e com a arte.

Palavras-chave: Sujeito, Psicanálise, Arte.


ABSTRACT

The purpose of this writing is to produce from the emptiness and silence, bypassing as much as possible, to reflect on both their bodies in founding the human being's speaker and artistic work (FREUD, LACAN). Thinking about missing that range – that language does not ring – with silence constitute any possibility of meaning (ORLANDI) is what moves me. Pregnancy emptiness and silence, all born every act of speech and language, which indicate something materialized after the start, a rest or some effect of emptiness and silence by data incompleteness and imperfection of all told. We will analyze the performance of Tatiana Blass, denominada "Half speech on the floor – deaf piano", reflecting on the subject's relation to language and art.

Keywords: Subject, Psychoanalysis, Art.


 

 

Ensaio: um escrito entre o vazio e o silêncio

Por cativa em seu destinozinho de chão,
é que árvore abre tantos braços. Guimarães Rosa

O objetivo deste escrito é produzir a partir do vazio e do silêncio, contornando, tanto quanto possível, uma reflexão sobre ambos em suas instâncias fundadoras do humano, do ser falante e do trabalho artístico (FREUD; LACAN). Pensar a relação desse intervalo faltante – que a linguagem não toca – com o silêncio constitutivo de toda possibilidade de significação (ORLANDI) é o que me move. Da gravidez do vazio e do silêncio, nasce toda fala e todo ato de linguagem, os quais depois de materializados indiciam algo do início, um resto ou certo efeito de vazio e silêncio dados pela incompletude e imperfeição de todo dito. Do e com o espaço esburacado, o sujeito entretece seus (bem)ditos, faz trajetos de dizer com intensas manobras de retornos, assim, para encontrar, de novo e mais uma vez, aquilo que o fundou. O que não pode ser preenchido, tampouco tocado no seu núcleo, ou seja, ao escrever sinto-me dando voltas em redor, espiralando um em-torno, bordando às voltas-de e produzindo uma artesania-puro-bordejo de um nada.

Um nada – absoluta ausência – que a instalação "Metade da fala no chão – Piano surdo", de Tatiana Blass, tateou e fez falar, e que produziu efeitos em mim. Diante do piano sendo engessado pela parafina tive um assombramento atônito, como quando se vê um precipício e o olhar não alcança a profundeza. A fenda abismal na montanha, a altura da possível queda, o buraco na linguagem, a petrificação do piano, o dizer das teclas e o impedimento de o (outro) nocturno continuar: uma rede de deslocamentos que ficou a ressoar em mim desde o primeiro momento em que visitei o Instituto Ferraz Figueredo,1 onde a obra está em exposição. O piano parte de um estado de imobilidade e mudez, é apenas o nada de som e de composição em um dos espaços da 29ª Bienal de Artes de São Paulo. O músico então executa Chopin, e com a carne das notas e os poros abertos da partitura em movimento, com os dedos tocando os brancos e pretos do piano, o vazio se instala. A arte diz de um vazio e um silêncio (mais do que tudo, ambos) bordados pelo impossível dizer/tocar de outro modo, pela impossibilidade de outras composições estarem ali, de outros músicos tatearem as teclas, de outro movimento estar em curso; e no avesso, disso também diz de um possível ao sujeito em dada posição, sujeito entendido aqui como "um ponto. Um ponto de referência. Nunca um ser" (CABAS, 2009, p. 150). É na negativa (no que não pôde, no vazio instalado pela inscrição da linguagem) e na afirmativa (ser feito com certo dizer, estilo, marca de origem) do que se ouve que está em causa aquilo que cava a arte, a música e a linguagem (e este estudo), deixando-a materialidade do possível e prova inconteste do esburacado, espiral em torno de vazio e silêncio.

 

Primeira cena: Saussure, Freud e Lacan – de vazio em vazio

Tudo está escrito nos espaços brancos que ficam
entre uma palavra e a seguinte. Inês Pedrosa

No Cours, atribuído a Saussure ([1916]/1970), está posto não apenas o algoritmo do signo linguístico, mas algumas leis que estruturam e regulam o sistema de qualquer língua. A segunda delas é a linearidade do significante que diz respeito à condição de que há um impossível na base acústica de toda palavra: dizer dois sons ao mesmo tempo. Cada unidade discreta precisa ser pronunciada de modo isolado, o que impede ao falante dizer dois sons simultaneamente e o que obriga o falante a tecer um fio no tempo, uma linha em que um som segue atrás (ou na frente) de outro. "O significante, sendo de natureza auditiva, desenvolve-se no tempo, unicamente, e tem as características que toma do tempo: a) representa uma extensão; e b) essa extensão é mensurável numa só dimensão: é uma linha" (SAUSSURE, op. cit., p. 84).

Esse batimento significante é, assim, intervalar e marcado por certa pausa necessária, um entre-sons que materializa um espaço de não preenchimento, ou seja, uma falta. Há um buraco entre um som e outro, um vazio que sustenta a fala.2 Se assim não fosse, estaríamos diante do insuportável de poder empilhar todos os sons a um só tempo, dizendo tudo de uma só vez. No entre-sons, essa hiância é estruturante; no salto de um som a outro, algo de um impossível se configura essencial em uma linha que constrói uma sequência ordenada por uma série de cuja cadência o falante não pode escapar. "(...) os significantes acústicos dispõem apenas da linha do tempo; seus elementos se apresentam um após outro; forma uma cadeia. Esse caráter aparece imediatamente quando os representamos pela escrita e substituímos a sucessão do tempo pela linha espacial dos signos gráficos." (Ibid., p. 84).

Dito de outro modo, para o funcionamento da língua, há a necessidade de uma lacuna presentificada no entremeio dos sons, condição que também se dá a ver na linha espacial dos signos gráficos, posto que eles não podem ser escritos simultaneamente. O sistema conta, então, com algo de ausente que está no centro de toda a estrutura, um buraco que só pode ser condição pelo que não permite o todo. No Escritos de Linguística Geral, o próprio Saussure (2004, p. 33) escreve que: "Acontece a mesma coisa, por outro lado, com qualquer entidade acústica, porque ela é submetida ao tempo; 1o leva um tempo para se realizar e 2o cai no nada depois desse tempo".

Assim, o genebrino tateia o que designa como "a marcha da língua no tempo", propondo o enlace de conceitos como continuidade e transformação para refletir sobre os fatos linguísticos e o funcionamento da linguagem. Não vou me alongar nisso, apenas registro aqui meu interesse em considerar, a partir dessa lei do sistema linguístico, o ausente como constitutivo do fonema materializado e das palavras manifestas. Isto é, os pontos de intervalo impossível de tamponar que espaçam um fonema de outro, o pontilhado do presente/ausente no significante e a materialidade da voz marcada por algo do vazio sempre a recorrer, reinstalar-se. É no significante, mais especificamente na linearidade dele, que está o furo necessário a toda possibilidade de falar e dizer; a fenda do nada ancora-se justamente na propriedade a latejar a palavra por vir.

Tal compreensão do vazio fundante (do qual toda palavra se ergue e se cria...) não está presente apenas nos estudos saussureanos de/sobre língua; com ela também Freud ([1895]1950/1977) se ocupou. Percebeu, ainda no texto Projeto para uma Psicologia Científica, "a lógica da origem" e também certo "polo excluído do aparelho psíquico", algo que ficava fora dele – o vazio – e que, estando fora, fazia todo o circuito funcionar. Afirma a existência de duas partes no aparelho psíquico: "a primeira, que geralmente se mantém constante, é o neurônio a; e a segunda, habitualmente variável, é o neurônio b" (op. cit., p. 434); e sustenta que à primeira corresponde "o núcleo do ego e a parte constante do complexo perceptivo", também definido como "neurônio a como a coisa". Tal neurônio apresenta-se constante, irredutível, sempre em atividade, constitutivo do eu, ou seja, é estrutural do próprio aparelho.

Será com o mote de Freud – das Ding, Coisa, Isso – que Lacan (1959-60/2008) passará todo o Seminário 7 implicado. Esse das Ding "encontra-se do lado do sujeito" (Ibid., p. 129); trata-se do buraco cavado na experiência primeva de desencontro que data da introdução do sujeito na linguagem, e que está sempre presente como fenda, hiância, irrealizado, inencontrável. Assim, "esse Ding, essa causa" (Ibid., p. 120) faz o sujeito retornar sempre ao mesmo lugar vazio, buscando um achado que jamais se concretiza, mas que sustenta toda possibilidade de desejar "esse apelo da segurança do retorno" (Ibid., p. 94). Pela "sua própria presença no âmago da tramoia humana", presença da Coisa, o sujeito pode "ir vivendo no meio da floresta dos desejos, e dos compromissos que tais desejos estabelecem com uma certa realidade (...)" (Ibid.., p. 129). Desse modo, Lacan trabalha com a noção de um campo dado e constituído por uma causa, que sempre insiste em alicerçar e estruturar os movimentos subjetivos, os deslocamentos significantes, as bordas de dizer e desejar dos sujeitos. Esse é o "campo da Coisa, onde se projeta algo para além, na origem da cadeia significante, lugar onde tudo o que é lugar do ser é posto em causa (...)" (Ibid., p. 257).

Com Ding, Lacan (Ibid.) também irá desenhar a alegoria do vaso que marca a função estruturante do furo, vazio e borda em presença constante. Eis o mote.

[...] a Coisa, esse vazio, tal como ele se apresenta na representação, apresenta-se, efetivamente, como um nihil, como nada. E é por isso que o oleiro, assim como vocês para quem eu falo, cria o vaso em torno desse vazio com sua mão, o cria assim (...) ex nihilo, a partir do furo. (Ibid., p. 148).

O oleiro, ao dar forma ao barro, cria a partir de um bloco compacto que só pode ser modelado em torno de um furo ao redor do qual o barro desliza, corre, espirala-se e ganha beirada. Essa borda maleável é tecida com dedo e torno que cavam um buraco inicial, o qual jamais será fechado. Trata-se do ponto inicial de rasgo, umbigo de criação, marca de ausência do próprio barro e de qualquer outro elemento, que se constitui fundadora do nascimento do próprio vaso, rodela de nada que estrutura o vaso como tal, deixando-o (inclusive e principalmente) aberto à entrada e saída de corpos, líquidos e gases.

Esse nada de particular que o caracteriza em sua função significante é justamente, em sua forma encarnada, aquilo que caracteriza o vaso como tal. É justamente o vazio que ele cria, introduzindo assim a própria perspectiva de preenchê-lo. O vazio e o pleno são introduzidos pelo vaso num mundo que, por si mesmo, não conhece semelhante. [...] se o vaso pode estar pleno é na medida em que, primeiro, em essência, ele é vazio (LACAN, op. cit., p. 147).

Com o vazio, arquiteta-se uma possibilidade de passagem para que o vaso possa estar cheio e depois esvaziado, para encher-se novamente e se deixar desocupar de novo. Assim, o vaso prestar-se à tarefa que lhe cabe: o trânsito. Com o sujeito, o mesmo ocorre. Para o ser fal(h)ante, o furo de Ding abre as pétalas de dizer com a passagem de significantes que lhe conferem certa posição no mundo, certo lugar e modo de ser-linguagem. Na teimosia em buscar o reencontro com o que lhe é próprio, não por outra matéria se não pelo buraco cavado em seu próprio barro, a fenda do ser fal(h)ante insiste e consiste em continuar desabrochada.

Essa Coisa [...] será sempre representada por um vazio, precisamente pelo fato de ela não poder ser representada por outra coisa. [...] Toda arte se caracteriza por um certo modo de organização em torno desse vazio [...] De qualquer maneira, o vazio permanece no centro [...] (LACAN, op. cit., p. 158).

Fazendo uma costura com o pensamento saussureano, o vazio do entre-sons permite a entrada de qualquer fonema na cadeia e impulsiona o falante a "escolher" um som e mais outro, e outro ainda. Em sequência. Nesse entre, a metáfora do torno furando o barro tem validade. O ponto de ausência está presente criando espaço para a margem dos significantes, emoldurando o som dito. A forma do barro e do som é possível ao sujeito apenas como movimento em torno do vazio; em ambos, o nada da Coisa é que orienta a presença da linguagem e da arte. O vazio no significante, na linguagem e no sujeito: o centro fundador. Está aqui um ponto que entremeia Saussure, Freud e Lacan, colocando os três autores a dizer de ciência a partir de um ponto de impossível, buraco, ausência, fenda, que se dá a ver na língua e no ser falante. Isso implica um espaço de nunca completar e, por isso mesmo, tão necessário para que o entorno se estruture, se construa, se mova, fazendo o sujeito girar.

 

Segunda cena: Orlandi – do (e ao) silêncio

O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente
mesmo, demais. João Guimarães Rosa

Orlandi (1997), em um pioneiro trabalho sobre o tema, afirma que o silêncio tem "significância própria", "é garantia do movimento dos sentidos" (Ibid., p. 23) e "dá espaço de recuo significante, produzindo as condições para significar" (Ibid., p. 24). Mobilizando a metáfora do mar, cujos traços são "incalculável, disperso, profundo, imóvel em seu movimento monótono, do qual as ondas são as frestas, que o tornam visível. Imagem" (Ibid., p. 35), ela o compara ao silêncio que: "não está disponível à visibilidade, não é diretamente observável. Ele passa pelas palavras. Não dura. Só é possível vislumbrá-lo, de modo fugaz" (Ibid., p. 34). A autora descarta a ideia de silêncio como vazio, falta, não presença sonora, ausência, tampouco o considera espaço intervalar entre as palavras, mas como condição irrepresentável da linguagem; entende-o como "própria condição da produção de sentido (...) 'lugar' que permite à linguagem significar" (Ibid., p. 70). Assim, há um traço fundante no silêncio que sustenta a possibilidade de a palavra vir a irromper, ganhar um sentido ou outro, inscrever-se no fluxo do discurso. Está traçada a política da cesura que, segundo Baldini (2012, p. 108) implica "Falar, falar ao outro, falar ao Outro, supõe a ilusão da comunicação, o recorte no continuum do silêncio, o surgimento do verbo e seus trejeitos, sua sedução e seu poder de nos fazer imaginar que há algo mais além da linguagem, viagem sempre buscada".

À reflexão desses dois autores me filio. É refinada e conserva a possibilidade de dobraduras, atrevo-me a uma a partir das seguintes questões: qual a relação do silêncio fundador com a Coisa? Se a linguagem é atravessada pelo silêncio, onde fica o buraco do torno que marca o início do vaso? Haveria um modo de pensar o silêncio em uma esfera de impossível tal que apontaria Ding? De saída e em consonância com Orlandi (1997), o silêncio inscreve a emergência da palavra; e, de certo modo, ele também sustenta a palavra depois de dita. Há silêncio nas duas pontas da significação no antes e depois do dito, no que não foi dito, no que ficou apagado, no que se manteve presente como sombra da palavra, ali onde ela é, sem ser ou estar falado, presente no ausente. Há uma borda de silêncio que, ao cavar a palavra, espirala-se em torno da Coisa, contornando esse nada, fazendo a palavra irromper como promessa e como silêncio. Há silêncio-Coisa no humano. Há silêncio no sujeito também. Vejamos.

De dentro da imensidão oceânica do silêncio, o infans encorpa grito3 sem palavra, gemido de ser que não é silêncio, mas efeito dele, grunhido de rasgadura do seu nada ainda não inscrito em linguagem, sonoridade bruta sem-palavra. A resposta do interpretante disso inscreve movimento de transformação em explicação, em enunciado capaz de acomodar o desamparo, tecer um corpo de linguagem feito com os significantes que cairão como chuva sobre o bebê para acompanhar o ser solto no espaço sideral ainda sem as bordas do simbólico. Tal tentativa trabalha apenas com a suposição, pelo que é sempre incompleta e furada, sempre no prejuízo de não atingir no alvo, sempre um giro sem garantia. No grito sem língua, o silêncio berra como impossível para o infans (e depois jorrará como fecho para o sujeito ao final de uma análise). Escoa sem rima, nem rumo certo, apenas materializa-se qual um grunhido que poderia ser de outro modo, e mais outro, e outro ainda. O bebê navalha a beirada do silêncio-Coisa, a borda tão somente, pelo absoluto não estar na linguagem ainda. Berra efeitos que apontam um impossível, a Coisa.

É desse modo que o sujeito falante inscreve-se como dizer de um desejo outro, do Outro, e passa a marcar-se com os significantes que lhe foram emprestados por ele e pelos outros que também arriscaram explicar-lhe algo do nada. Passa a dizer, exercício também dolorido como o de sair do casulo de chumbo de um silêncio-Coisa; e, depois, tenta sair dos dizeres de outros, destecendo o aprisionamento às palavras que explicaram-no ser de um modo, desautorizando certos enunciados tidos como evidentes pela força da repetição e da captura ideológica (PÊCHEUX, 1975). Dizer por si mesmo, dizer em si: o sujeito inicia seu percurso de dizer e, em dado tempo, esbarra em significantes que lhe são atribuições, formas de acreditar ser, palavras que o sustentam, repete-as muitas vezes.

Repete-as, até ficarem diferentes. Repetir e mais uma vez tornar àquelas mesmas e velhas palavras já ouvidas, tornadas corpo, tomadas como próprias e faladas na correnteza da obviedade que custa a ser fraturada. Aos poucos, uma análise abre pequenas fendas nessas vigas de sustentação para que o sujeito possa observá-las por outros ângulos. Algumas caem, deixadas pelo chão da análise; ao longo de retornos e deslocamentos, continuam ali a sustentar o edifício simbólico, mas sem a consistência de antes. Sem o mesmo peso, noutra medida. Palavras quedantes e menos preciosas, desviadas de lugar, revisitadas apenas com uma língua que se chama saudade. Algumas se tornam marcas de um risível que já não é; palavras – lembrança opaca de um tempo outro que se presentifica de outro modo. Há aquelas que caem como folhas secas, em algumas estações; caem e, ao mesmo tempo, ficam. Ficam justamente por terem sofrido queda. São palavras que, caindo, agigantam o silêncio do que poderia ser dito ali que não foi, do que é impossível dizer, do que nunca será passível de palavra. Elas imprimem uma marca de sombra, um círculo a mais, um fio de contorno de um silêncio-Coisa em construção, palavras de não dizer.

Em um percurso de análise, o sujeito desconfia das palavras que o fundaram, fissura-as, afasta-se do que supunha ser quem eram tais palavras (ou quem fosse, ou quem teria sido) e movimenta-se a colocar outros significantes em fluxo. O sujeito rasga-se de dizer e de silêncio (ORLANDI, 1997) em quedas de significantes, e aos poucos, devagarinho e penosamente constrói o seu caminho em análise. Esse percurso – entre palavras alheias, estrangeiras e próximas, e silêncios – já dura quase uma vida, mas há outro nascimento, outra espécie de silêncio no qual é possível tropeçar ao longo de uma análise (ou de uma obra de arte, como a performance que será tateada na próxima parte desse escrito). O sujeito, de tanto dizer e repetir, passa a silenciar com as palavras, silenciar nelas, silenciar por elas o que nunca será possível dizer, Ding, a Coisa, Silêncio-Coisa. É preciso fazer cair para, no-depois, poder silenciar sabendo que o simbólico tem seus limites diante do vazio inscrito pelo furo inicial. Depois de muito falar, o sujeito percebe que algo não cabe no simbólico, há um impossível dizer que nunca será revestido de palavra e também não será silêncio-grávido de falas, silêncio-Coisa. É oco, ausência de um centro incontornável pela linguagem; a hiância aberta pela entrada do sujeito na linguagem não terá nunca instância de dizível.

O silêncio de certos momentos de/em análise instala justamente esse impossível chegar ao centro do vazio, a não-coincidência entre o retorno e o encontro, a busca e outro giro em torno do que não pôde ser encontrado. Silêncio-Coisa: é o que se encontra nesse momento. Silêncio apontando para a cava onde não entra nem cabe linguagem. Com isso, sustento que, da mesma maneira que o silêncio é fundante (ORLANDI), é também silêncio restante ao final de um processo de análise. Partimos do silêncio e a ele retornamos, é o que nos aponta a nossa condição de fal(h)ante: bebê em grito e o sujeito em fenda, calado diante do espetáculo do vazio. A Coisa resta sempre no centro porque estava lá desde o início, funda-se como eixo que estrutura todo o entorno e que jamais poderá ser dito ou silenciado; silêncio-Coisa de sujeito. Em algumas obras de arte, algo dessa ordem se dá a movimentar, despejar, e sobretudo a silenciar. Vejamos.

 

Terceira cena: em mim, o piano de Tatiana

Somos feitos de silêncio e som/ Tem certas coisas
que eu não sei dizer...Lulu Santos e Nelson Motta

A obra "Metade da fala no chão – piano surdo"4 está em exposição em Ribeirão Preto, no Instituto Figueiredo Ferraz, juntamente com o vídeo da performance que o gerou, em 2010. Tatiana Blass criou uma série de trabalhos-intervenções em instrumentos musicais que, tomados pela cera/vaselina derretida, perdem a propriedade de produzir som. Trompete, bateria, dentre outros, passam a ser emudecidos pela artista; no caso em questão, trata-se de um piano de cauda com o qual um pianista executa cinco peças de Frederic Chopin. "Enquanto ele toca, dois homens derramam uma mistura de cera e vaselina quente e líquida dentro do piano. Conforme mais cera é jogada, endurecendo aos poucos, o pianista tem mais dificuldade de executar as peças, até as teclas pararem de funcionar e não ser mais possível tocar",5 é a proposta da artista. O que chamou minha atenção na performance foi o início e o fim enlaçaram-se em continuidade: do/ao silêncio; o piano aponta uma instância de dizer e de não mais ser possível fazê-lo. É com o som que o vazio comparece como se a música lascasse uma borda possível de dizer, um fio de arte em torno do quê não será jamais tocado. No piano, como já proposto por Lacan com a metáfora do vaso, o som marca um enquanto, um durante, um intervalo de ausência entre uma nota e outra. Nesse ínterim, a arte esteira a função do olhar, essencialmente bela e poética, sua razão de ser. É também neste espaço de evanescência que o sujeito emerge.

O piano, no início da apresentação, resta mudo (e no fim também restará desse modo); falta-se o músico para inscrever-lhe corpo de movimento sonoro. É bloco de argila à espera da mão do oleiro: o dedo a cavar, a sulcar, a fendar o sólido para, como composição, dar-se em música (e em falta de outras músicas, e em falta de qualquer música no final). A imobilidade é compasso de espera e anuncia a gravidez de um dizer: é preciso um silêncio e um sujeito, o trilhamento de movências de um sujeito para que a Coisa seja e produza efeitos. Só há Ding em relação a um sujeito em torno de silêncios e palavras.

Do silêncio inicial, um afinador prepara o piano para ser tocado. Ajuste necessário, sons sem contorno, grito do infans diante da dor da entrada do ar. Ding, que esburaca e permanece ressoando para que o som faça música em direção a esse próximo que escuta e ressignifica, Ding está. Entra o músico, cumprimenta o vazio. Pois não há plateia, puro vazio a quem ele se dirige como se ali houvesse alguém. Metáfora do que, na constituição, marca a relação do sujeito ao Outro. Se uma resposta vem desse próximo/outro, logo se constitui a ilusão de haja um Outro que deseja e que possibilita que haja o desejo. Mas no lugar desse Outro, plateia vazia. O silêncio.

Há ali apenas a presença de um piano a apontar a falta do pianista, da partitura em execução e do que o próprio piano poderia fazer falar; piano que se talha, sobretudo, pelo que não pode ser. Estranho caminho este de ser justamente onde não se é!

 

 

Em silêncio, há o vazio entre piano e sonata, o que sustenta a possibilidade de o pianista entrar em cena, de Chopin ser atualizado, de Tatiana produzir um trabalho com todos estes elementos, de o vazio se instalar. Cria-se um silêncio para além da falta de sons, é um Silêncio-Coisa que se estende ao longo de todo esse trabalho artístico, que se derrama pelo chão e que se sustenta no fim. São cinco sonatas executadas sem intervalos, emendadas; são dois funcionários que se revezam na tarefa de carregar baldes de cera e vaselina quente, derretida em tambores, e despejar dentro do piano de cauda. O som e a barreira que se instala com ele fazem o vazio girar em espiral. De modo delicado e contundente, a performance monta o que podemos dizer da divisão do sujeito, pois o pianista e o piano são um enquanto são dois. Não há um sujeito que não se vire a seu modo com essa verdade, ser um e dois, ser um e múltiplo. Ser palavra e silêncio, silêncio e som.

 

 

É interessante registrar a semelhança do material barro com a cera/vaselina, há plasticidade em ambos, algo de liquidificação do núcleo sólido, de escorregadio deslizar que permite ser incorporado à dureza do torno, no caso do vaso, da estrutura física de teclas e cordas também duras no caso do piano. Algo fluido, despejante que se esparrama por entre espaços, promovendo um suposto preenchimento dos vazados, dos desvãos. Esse derrame é rio quente a congelar aos poucos até tornar-se branco de ausências que virá-a-ser. Mas, se com o vaso as mãos contornam um vazio, a vaselina que é derramada no piano preenche o vazio, satura de presença os furos, entope de substância cada fresta e, aos poucos e com isso, emudesse o som.

Essa corredeira comparece como a cadeia significante do sujeito com seus escorridos movimentos de repetir, retornar, tornar a derramar(-se) e deixar-se aberto (e depois fechado) em certos pontos para que outros sons possam aparecer. O que corre e congela o piano vem de outros, sem nome, sem rosto, que preenchem o vazio que fazia música. O preenchimento aparenta amor, diz-se de um tipo de amar. Poros e peles de palavras derramam-se mesmo no encontro com o outro; eis o encontro. O piano de Tatiana Blass possibilita ser um campo fecundo desses movimentos de entrada e saída de muitos: o pianista, a música de Chopin, os homens da cera, o material derramado, o público, o piano-vela cristalizado em silêncio. O pianista e seu piano seguem sua empreitada sonora alienados do que ocorre, da cera que preenche e emudece. Mas não é um emudecimento rápido, dura um tempo, inicia apenas um desafino. Mas o desafinado segue tocando, pois o desafino ainda é música.

Aos poucos, o piano perde certas notas, não apenas desafina. Ainda assim o pianista se esforça, já não se ouve mais Chopin, apenas os sons ocos, socos dos martelos do piano querendo se soltar da cera para seguirem sua música, força da respiração do pianista que só para quando a cera finalmente atinde o teclado e começa a queimar seus dedos. Aí para. Levanta-se solenemente, cumprimenta mais uma vez o nada de plateia e sai de cena com seus dedos queimados. Surdo. Mudo.

Se podemos ler essa performance como uma metáfora, seria ela uma mostração daquilo que se passa na constituição do sujeito em relação ao próximo, em relação ao Outro. Se o sujeito em sua divisão se aliena da demanda de preenchimento e se assujeita a isto, as consequências são emudecedoras. Cada um chega à análise em diferentes tempos de cera, diferentes tempos de surdez-emudecimento. Poderíamos dizer que a análise é isso que, no dizer, esquenta a cera para que ela escorra e solte as teclas? Esse exercício de amolecer o enrijecido pela força da repetição ou do colamento, e deixar o piano livre para a sonata advir. O dizer movimenta o fluxo o que a cera embalsamou, imobilizou.

 

 

A estrutura do piano vai sendo calada a cada novo espaço preenchido em uma articulação na qual a presença cera aponta o calamento das teclas, o impossível da mão do pianista, o derrame da fala no chão. Organiza-se um silêncio nascido do interior da performance; de muito ser dito pelo outro, fez-se o estado de impossível continuar. Nesse ponto, acredito que a performance aponta algo de Ding, ou seja, um ponto de linguagem em que se esbarra no silêncio, um ponto de arte que toca o núcleo duro de não-dizer. Silêncio-Coisa restante como pontuamos anteriormente. Silêncio de não caber mais palavra ou nota, sem texto ou partitura; piano que não comporta mais partitura ou dedo, pianista que cai como desnecessário.

 

 

Nesse ponto o que presenciamos é a mortificação, o embalsamamento do sujeito e seu desejo. O pianista sai, não há mais como tocar, pois os dedos queimaram, a cera quente impossibilitou, a cera fria cristalizou o impossível. Essa mortificação faz do sujeito um joguete sem palavra, sem lugar, sem som. A possibilidade que uma análise aponta é que o sujeito retome seu lugar, de piano e de pianista, e quiçá seja a sonata de si mesmo. O analista não pode mudar o que se lhe apresenta, mas pode ajudar a tirar algum som, algum feito. Seja retomando o piano, as sua formas e seu som, seja que ele queime como vela, e vele o desejo daquele que em algum momento resolve retomar o curso de sua vida, a direção de seu desejo.

 

 

Retroagindo aos teóricos aqui mobilizados, é possível recuperar o embate com o qual travaram longas jornadas: Saussure a refletir sobre o significante atravessado pela escansão de um espaço lacunar entre-sons, um vazio tão necessário quanto insubstituível. Talvez o mesmo possa ser percebido à medida que o piano da performance vai falhando, entrecortado por notas de ausência e pelo vazio que se derrama até chegar à mudez. Freud e Lacan tatearam de perto o abismo ao perceber, no dizer do sujeito, a existência de um núcleo presente justamente por estar excluído, o sustento de toda condição falante pelo nada. E, de certa maneira, propuseram o sujeito e a criação artística como um giro a mais (e mais outro) em torno Disso. Os espaços da arte e da poesia fazem enfrentamento direto com o vazio, pois tropeçam na tecla faltante, na nota surda, na sonata dissolvida, na peça inencontrável... Enfim, no piano-escultura de cera e vaselina que materializa o impossível ser tocado, um impossível fundante e restante. No Silêncio-Coisa, guarda apenas isso, o impossível. Diante do impossível a contingência se coloca como a faísca necessária para fazer com que o intervalo se reaqueça, e o som do desejo se presentifique.

O trabalho de Tatiana nos traz a delicadeza de apontar para os efeitos devastadores do emudecimento de um sujeito. Emudecer mais que silenciar. Afinal, o silêncio estava na música, nos intervalos, no entreteclas. Silêncio que se recupera ao abrir-se mão do emudecimento para fazer música, fazer poesia, vida, arte. Uma vez mais Tatiana nos mostra que a "há mais verdade no dizer da arte que não importa qual blablablá"6 (LACAN, 1976-77/inédito, p. 64).

 

Referências

CABAS, A. G. O sujeito na psicanálise de Freud a Lacan – da questão do sujeito ao sujeito em questão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2009.

FREUD, S. ([1895]1950). Projeto para uma psicologia científica. Rio de Janeiro: Imago, 1977. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1977. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 1).         [ Links ]

LACAN, J. (1959-60). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução Antônio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.         [ Links ]

__________. (1976-77). O Seminário, livro 24: l'insu que sait de l'une-bévue s'aile a mourre. Inédito.         [ Links ]

ORLANDI, E. As formas do silêncio – no movimento dos sentidos. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.

PÊCHEUX, M. Semântica e discurso – uma crítica à afirmação do óbvio. (1975). Campinas: Editora da Unicamp, 1997.

SAUSSURE, F. [1916]. Curso de Linguística Geral. Tradução brasileira de A. Chelini; J. P. Paes e I. Blinkstein. 2ª edição. São Paulo: Cultrix, 1970. Cours de Linguistique general. Charles Bally e Albert Seschhaye (orgs.), com colaboração de Albert Riedlinger.         [ Links ]

SAUSSURE, F. Escritos de Linguística Geral. Organizados e editados por Simon Bouquet e Rudolf Engler. São Paulo: Cultrix, 2004.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: luciliamsr@uol.com.br
E-mail: glaucia.nagen@uol.com.br

Recebido: 29/01/13
Aprovado: 20/03/13

 

 

* Formada em Letras (UniMauá- 1989), doutora em Psicologia (USP- 2002) e Livre-Docência pela mesma instituição (2010). Coordena o grupo de pesquisa "Discurso e memória: nos movimentos do sujeito" (CNPq) e o "Laboratório Discursivo: sujeito, rede eletrônica e sentidos em movimento (E-L@DIS)". Participante das atividades da Escola de Psicanálise do Fórum do Campo Lacaniano – Fórum São Paulo.
** Glaucia Nagem de Souza, psicanalista, membro da IF-EPFCL Fórum SP; artista plástica, responsável pelo ateliê 702 e monitora no ateliê de gravura do Museu Lasar Segall.
1 Localizado em Ribeirão Preto, interior de São Paulo.
2 Agradecemos à Profª. Drª. Bethania Mariani com quem conversamos sobre este tema do vazio na linearidade do significante saussureano.
3 Agradecemos ao Prof. Dr. Lauro José Siqueira Baldini a sugestão de inserir algo sobre o grito aqui.
4 A performance completa está disponível no endereço https://vimeo.com/53090078.
5 Esse recorte, bem como todas as fotografias deste artigo, estão no site da artista, que autorizou a reprodução aqui. Endereço eletrônico http://www.tatianablass.com.br/, acesso em 21 de dez de 2012.
6 Tradução nossa.