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Stylus (Rio de Janeiro)
Print version ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.29 Rio de Janeiro Nov. 2014
DIREÇÃO DO TRATAMENTO
A letra do desejo um relato de sonho
The letter of the desire – a narrative of a dream
Maria Vitória Bittencourt*
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Formações Clínicas do Campo Lacaniano – Rio de Janeiro
RESUMO
Com seu texto "O sonho do unicórnio", Serge Leclaire elaborou sua concepção do desejo inconsciente articulado à letra. O trabalho em torno de significantes do sonho demonstra como a psicanálise se revela como uma prática da letra, onde lalíngua tem uma posição primordial. Podemos considerar que esse texto teve valor de passe pelo fato de se tratar do relato de um sonho em análise, cujo autor se faz analista de sua própria experiência – o que mais tarde Lacan chamou, em 1976, de hystoricização de análise. Trata-de de uma teorização de sua própria experiência de analisante, um testemunho da função da letra no inconsciente, ilustrando a passagem do analisante a analista, objetivo fundamental da Proposição do Passe, de Lacan.
Palavras-chave: Sonho, Desejo, Letra, Inconsciente, Passe.
ABSTRACT
With his text " The dream of the unicorn", Serge Leclaire elaborates his conception of the desire of the inconscious articulated with the letter. The work with the signifiers of the dream demonstrates how psychoanalysis reveals as a practice of the letter, where lalangue has a most important place. We can regard this text as having a value of passe by the fact that it discuss a work of a dream in his own analysis. Becoming the analyst of his own experience, he illustrates the hystorisation of an analysis, as Lacan define it in 1976. Making a theory of his experience as an analysand, he testifies the foncion of the letter in the inconscious and the passing to analyst, the fundamental objective of the Lacan's Proposition of the passe.
Keywords: Dream, Desire, Letter, Inconscient, Passe.
Foi com seu texto O sonho do unicórnio que Serge Leclaire elaborou sua concepção do desejo inconsciente como ordem da letra, numa demonstração da psicanálise como uma prática da letra. Esse texto teve várias versões e foi debatido no Seminário de 1965, Problemas cruciais para a psicanálise (LACAN, 1964-65). A grande novidade introduzida por Leclaire, ao apresentar o caso de Phillipe para defender sua tese, não traz o relato de uma análise, nem uma biografia do paciente, mas um sonho em que a cifra do inconsciente é desvelada a partir de uma interpretação do analista, prova da primazia do significante. Isso pode ilustrar a ideia de Freud de que um sonho pode englobar toda uma análise, pois equivaleria a todo o conteúdo da neurose, e que "a interpretação completa deste sonho coincidirá com o término de toda a análise" (FREUD, 1912/1969, p. 123).
Outro ponto inédito nesse texto é o fato de o próprio analisante efetuar o trabalho de deciframento do sonho, pois ficou demonstrado que se tratava da análise de Leclaire com Lacan, concluída sete anos antes (ROUDINESCO, 1986, p. 321). Talvez seja o único caso clínico que temos de Lacan como analista, estabelecendo-o como um paradigma da análise lacaniana. Assim, é como analista de sua própria experiência que Leclaire escreveu esse texto e podemos considerá-lo que teve um valor de passe, no sentido da hystoricização de sua análise com Lacan. Segundo Michel Bousseyroux, essa dimensão de passe é particularmente notável nas três lições do Seminário 12, Problemas cruciais para a psicanálise, em que Lacan convida Leclaire a retomar o caso Phillipe e pede aos membros de sua escola que deem sua opinião sobre o caso (BOUSSEYROUX, 2009, p. 82). A resposta de Leclaire a todas as questões debatidas nesse seminário se encontra no texto publicado em 1966, considerado sua última versão (LECLAIRE, 1966, p. 106).
Esse trabalho foi apresentado no Colóquio de Bonneval, de 1960, consagrado ao Inconsciente, organizado por Henri Ey, cuja proposa era abrir um debate com os filósofos, psiquiatras e psicanalistas das duas tendências na época: Lacan e IPA. O que estava em jogo era o ensino de Lacan e seu retorno a Freud nas relações do inconsciente e da linguagem. Desta maneira, esse sonho vem demonstrar a prevalência do significante sobre todo o metabolismo das imagens, a partir de um estudo detalhado da função da letra. Propomos a leitura da versão publicada em 1968, no primeiro livro de Leclaire intitulado Psicanalisar (LECLAIRE, 1968, p. 99).
Eis o relato do sonho:
A praça deserta de uma aldeia, é insólito. Eu procuro alguma coisa. Aparece, pés nus, Liliane, que eu não conheço, que me diz: faz muito tempo que não vejo uma areia tão fina. Estamos numa floresta e as árvores parecem curiosamente coloridas, com tons vivos e simples. Penso que tem muitos animais nessa floresta e, quando me apresso a dizer isso, um unicórnio cruza nosso caminho. Andamos os três em direção de uma clareira que se supõe abaixo (Ibid. p. 99).
Eis o texto manifesto do sonho que, pela via das associações, Leclaire vai extrair aquilo que insiste em seu dizer: o texto inconsciente.
A partir desse relato, um deciframento de grande riqueza de detalhes vai se efetuar em torno de associações do paciente, das quais vamos retomar alguns pontos. O trabalho em torno do sonho traz várias lembranças. Primeiramente, a praça deserta remete à fonte do unicórnio que se situava na aldeia onde, muito pequeno, passava as férias com a família. Fonte essa em que o pequeno Serge gostava de beber água com um gesto de juntar as mãos como uma concha. Beber a água da fonte o leva à lembrança de Lili, uma prima de sua mãe que o havia apelidado de "Philippe tenho sede", pois a criança não parava de repetir: "tenho sede".1 Cada vez que se encontravam, ela o chamava de "Philippe-tenho-sede", uma fórmula que se tornou um signo de reconhecimento, uma espécie de pacto que diz, sobretudo, o jogo de sedução entre os dois e da espera de uma satisfação garantida.
Segundo Leclaire, no sonho, o paciente realiza seu desejo de beber, remetendo a um evento da véspera, que fornece ao sujeito o meio de apaziguar um desejo de beber diferente da necessidade real. O desejo de beber estaria ligado a essa mulher, Lili, que testemunha que sua queixa é entendida como um apelo ao desejo, portanto desejo de Lili.
A evocação da sede pelo analista permite a abertura de lembranças de infância, quando tinha de três a quatro anos de idade. Lembra então da sua relação com a praia e de sua fobia pelo contato com a areia no seu corpo, como também com migalhas, fobia que se manifestava à noite na cama, fato que suscitava uma grande angústia.
Outro tema do sonho, o pé, remete a essa manifestação quanto ao corpo: esforçava-se para tornar a sola do pé bem dura, como um chifre,2 para andar sem risco de se ferir na praia e assim ser admirado por seus amigos, graças à sua proeza. Uma maneira de realizar sua fantasia obsessiva de manter seu corpo protegido pelo revestimento de couro invulnerável (Ibid. p. 103).
Surge o significante chifre, que remete à cicatriz de Philippe, no mesmo lugar onde está implantado o chifre do unicórnio.3 Uma marca sobre o corpo onde comemora um valor fálico e seu traço. Para Philippe, essa cicatriz que atinge a integridade de seu corpo é, antes de tudo, um signo de reparação, de sutura, de preenchimento. Tudo isso se articula aos cuidados atenciosos de uma mãe impaciente de satisfazer às necessidades de seu corpo. Esse amor materno excessivo, que trazia muita satisfação a Philippe, não impedia sua eterna sede, marca do destino do obsessivo. Vemos que o falo aparece nessa cicatriz, falo desejado por Lili, efetuando um remanejamento da organização libidinal do sujeito.
Assim, a partir desses elementos do sonho, Leclaire isola uma série de significantes que se repetem no dizer de seu paciente, significantes que vêm desvelar a cadeia metonímica do desejo do sujeito. São eles: "Lili-sede-praia-vestígio-pele-pé-chifre".4 Então, o autor nos convida a deixar de lado toda tentativa do que chama de reconstrução e tomar essa cadeia significante inconsciente na sua literalidade, aproximando os termos das extremidades, fazendo surgir o significante Li-corne. A atenção se fixa na estrutura literal de Li-corne, para se despreender do valor altamente significativo de uma representação da linguagem, para se ater ao jogo de letras que indica a via para o inconsciente. (Ibid. p. 110). Pois Li-corne condensa Lili, e corne que o sujeito deseja ter, dois extremos da cadeia onde o falo vai se situar na cicatriz, marca do objeto de desejo de sua mãe. Li-corne também remete a "belo corpo de Lili"5 e ao objeto mitológico – o unicórnio – evitando assim que esses elementos se fixem numa imagem. Desta maneira, decompondo a estátua do unicórnio em um jogo de letras – Li-corne – o analista permite a redução do relato à cadeia significante.
Lembramos que o unicórnio é um animal mitológico, emblema da pureza e força, cuja lenda diz que o único ser capaz de domá-lo é uma donzela pura. Assim, para capturá-lo é preciso deixar uma virgem na solidão de uma floresta, como oferta ao unicórnio, que desta maneira viria colocar seu chifre no seu interior, cujo efeito seria de adormecê-lo.
Nesse momento, Leclaire evoca a estratégia do analista e sua interpretação, descrita como aquela de uma "reverberação" onde, "deixa se desdobrar e se esgotar a intensidade do eco significativo, até que se imponha o traço literal (…) deixando ressoar como o apelo da sereia, som que o paciente produzia quando soprava nas mãos em concha". Vemos como essa intervenção do analista anula o sentido, não se situando na dimensão da significação. Podemos considerar um exemplo de interpretação lacaniana.
O efeito dessa interpretação se encontra na rememoração de brincadeiras infantis, em que o menino fazia piruetas e saltos, movimentos sempre carregados de muita jubilação, e acompanhados pela emissão de um significante "Poor(d) j'e-li" (Ibid. p. 112). Lacan retoma esse exemplo no Seminário 11 para ilustrar que "a interpretação não visa ao sentido, mas a reduzir os significantes no seu não-senso significante (...)" e que, o mais importante não é essa significação para o sujeito, mas o essencial é que ele veja, para além dessa significação, a qual significante – não-senso, irredutível, traumático – ele está, como sujeito, assujeitado (LACAN, 1964/1979, p. 237).
Poordjeli é fabricado pelo sujeito e só surge como efeito da interpretação do analista. Pelo fato de ser produto da lalíngua, não podemos dizer que é um significante fora do sentido, pois está carregado de um sentido opaco que concerne o sujeito e, segundo Lacan, fixa a cadeia de seu desejo, sustentado pela fantasia. Trata-se de um significante fabricado a partir da voz entendida de mãe que o chamava de "coitadinho do tesouro",6 seu preferido, objeto de suas carícias noturnas (LECLAIRE, 1968, p. 114).
Assim vemos, como a partir do trabalho de um sonho, surge um significante que ilustra a noção introduzida por Lacan em 1975: o moterialismo da lalíngua: "É a maneira pela qual a lalíngua foi falada e também entendida na sua particularidade que algo aparece nos sonhos, nos tropeços, no modo de dizer" (LACAN, 1975/1985, p. 12).
Poderíamos fazer outras considerações sobre a letra nesse trabalho de Leclaire, onde ele apresenta todo um desenvolvimento sobre as letras do nome próprio do sujeito, propondo uma articulação com a fantasia fundamental. Pois Poordjeli faz função de nome secreto do sujeito, nome de seu gozo onde o sujeito comemora a letra fálica. Não deixa de ser supreendente da parte de Leclaire esse trabalho sobre a letra, pois lembramos que seu sobrenome foi modificado em 1950, por insistência de seu pai, para evitar problemas ocorridos com a família judia na segunda guerra mundial. Seu sobrenome era Liebschutz, sobrenome alemão que quer dizer amor e proteção (ROUDINESCO, 1986, p. 292).
Nesse texto dos anos 1960, a noção de letra não tinha a mesma função que vai adquirir no ensino de Lacan, pois até então não havia distinguido letra e significante. O mesmo para a lalíngua, que será introduzida somente a partir do Seminário Mais ainda. Porém, não podemos deixar de ressaltar como, a partir de um traço literal, Leclaire demonstra como, na história libidinal infantil de Phillipe, seu corpo foi investido com a letra do desejo materno. Leclaire nos apresenta que, ao seguir a via do real na experiência analítica, letra por letra, o inconsciente pode ser elucidado na sua moterialidade. Talvez por isso, nesse mesmo seminário, Lacan observa que nesse texto de Leclaire, "as coisas vão mesmo muito mais longe" (LACAN, 1964-65).
Esse trabalho sobre o sonho de Leclaire teve origem na minha constatação de que, nos diversos testemunhos no Cartel do passe, o sonho, ou os sonhos, eram sempre apresentados para descrever um momento de virada da análise, um momento de passe. Essa experiência teve como efeito produzir alguns textos sobre o sonho – "Sonho: via régia?", "O inconsciente: trabalhador ideal", "Uma via da satisfação" (BITTENCOURT, 2007, 2009, 2010).
É verdade que, nos testemunhos dos passadores, se tratava antes, de sonhos em que a presença do analista, com sua interpretação, trazia uma outra dimensão – aquela de um despertar, que nunca se dá sem evocar uma certa relação com o real. Num deles, a partir de uma interpretação do analista, o efeito foi o surgimento de uma fórmula da lalíngua, carregada de gozo. Portanto, um sonho pode tocar, se aproximar do real do inconsciente, não porém sem a presença do analista. Foi isso que um passante nos mostrou – um sonho que fez surgir um significante da lalíngua, língua esquecida que permitiu aceder ao sentido do sintoma. A dimensão do gozo pôde ser atingida graças à lalíngua, tocando o real do sintoma reduzido a uma letra – via mais curta – onde se revela o modo pelo qual o sujeito goza de seu inconsciente – singularmente e realmente.
Vemos nesse sonho de Leclaire, não somente uma demonstração da função da letra no inconsciente, como também podemos considerar como uma ilustração da passagem do analisante ao analista, objetivo central da Proposição do Passe, de Lacan. Ao teorizar o processo que produziu efeito em sua análise, tornando-se analista de sua própria experiência, deixa um testemunho da marca de seu desejo e do seu entusiasmo pela causa analítica.
Referências
BITTENCOURT, M. V. Le rêve: voie royale? In. La part de l'inconscient dans la clinique. Cahier du Collège Clinique de Paris, volume IX, Paris: CCP, 2007, pp. 8-12. [ Links ]
__________. O inconsciente: trabalhador ideal. In: Heteridade: Revista de Psicanálise, n. 7. EPFCL-Brasil. 2009. Disponível em: http://www.campolacaniano.com.br.
__________. Une voie de la satisfaction. In: Mensuel. EPFCL-France, n. 54, Paris, 2010, pp. 44-52. [ Links ]
BOUSSEYROUX, M. Philippe le Clair, le parlêtre au clair de la lettre. In: L'en-je lacanien, n. 11. Le parlêtre. Paris: Editions Erès, 2009, pp. 81-96. [ Links ]
FREUD, S. (1912). O manejo da interpretação de sonhos na psicanálise. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Volume XII. Rio de Janeiro: Imago, 1969. [ Links ]
LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. [ Links ]
__________. (1964-65). Le Séminaire, livre XII: problèmes cruciaux de la psychanalyse. Inédito. [ Links ]
__________. (1975). Conférence à Genève sur le symptôme. In: Bloc-Notes de la psychanalyse, n. 5, Genebra: Le Parnasse, 1985. [ Links ]
LECLAIRE, S. L'inconscient; une étude psychanalytique. In: L'inconscient VIème Colloque de Bonneval. Paris: Desclée de Brouwer, 1966. [ Links ]
__________. Psychanalyser. Paris: Editions du Seuil, 1968. [ Links ]
ROUDINESCO, E. Histoire de la psychanalyse en France, vol. 2. Paris: Seuil, 1986. [ Links ]
Endereço para correspondência
Maria Vitória Bittencourt
Rua Marquês de São Vicente, 230, bl. 2 ap. 801-C – Gávea
CEP 22451-040 – Rio de Janeiro
E-mail: mariavitoriabittencourt@gmail.com
Recebido: 15/02/2014
Aprovado: 21/07/2014
* AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo lacaniano; Mestre em Psicanálise da Universidade de Paris VIII; Docente de Formações Clínicas do Campo Lacaniano – Rio de Janeiro. Endereço: Rua Marquês de São Vicente, 230, bl. 2 ap. 801-C – Gávea – CEP 22451-040 – Rio de Janeiro. Telefone: (21) 3486-4111
1 Em francês, "Philippe j'ai soif".
2 Em francês, "corne".
3 Em francês "licorne". Importante ressaltar a semelhança entre "corne" e "Licorne".
4 Em francês "Lili-soif-plage-trace-peau-pied-corne".
5 Em francês, "joli corps de Lili". Destacamos a semelhança na sonoridade de "corps" e "corne".
6 Em francês "pauvre trésor".