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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.33 Rio de Janeiro Nov. 2016

 

ATUALIDADE E SEXO

 

Homofobias psicanalíticas na psicologização do Édipo

 

Psychoanalytical homophobias in the 'psychologization' of Oedipus

 

 

Antonio Quinet*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - EPFCL
Universidade Veiga de Almeida. Psicanálise, Saúde e Sociedade
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Psiquiatria
Cia. Inconsciente em Cena - Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho faz parte de uma pesquisa de crítica assídua do movimento psicanalítico proposto por Lacan. Abordando o tema laços sociais e as parcerias amorosas, foi a ocasião para alguns psicanalistas na Europa entre o final do século passado e o início deste exporem suas concepções psicanalíticas nos jornais e na mídia a respeito do complexo de Édipo, da homossexualidade e suas preocupações com a sanidade mental de uma criança adotada por casais do mesmo sexo biológico. Mostraremos como essas declarações, eivadas de preconceito de cunho homofóbico que apontam para uma psicologização pequeno-burguesa do Édipo freudiano, desviam da psicanálise apontada por Lacan desde 1967.

Palavras-chave: Édipo, Homossexualidade, Homofobia, Homoparentalidade, Heteridade, Sinthoma.


ABSTRACT

This paper is part of an on-going critical research project on the psychoanalytical movement proposed by Lacan. The theme social bonds and love partnerships served as the occasion for some psychoanalysts in Europe, at the turn of this century, to expose their psychoanalytical conceptions in papers and on the media about Oedipus Complex, homosexuality, and their concern with the mental health of a child adopted by parents of the same biological sex. We will show how these declarations are impregnated with homophobic prejudice which points to a petty-bourgeois 'psychologization' of the aforementioned complex, a fatal detour of psychoanalysis pointed out by Lacan as of 1967.

Keywords: Oedipus, Homosexuality, Homophobia, Homoparentality, Heterity, Sinthome.


 

 

Este trabalho faz parte de uma pesquisa de crítica assídua do movimento psicanalítico proposto por Lacan. Abordando o tema laços sociais e as parcerias amorosas, foi a ocasião para alguns psicanalistas na Europa entre o final do século passado e o início deste exporem suas concepções psicanalíticas nos jornais e na mídia a respeito do complexo de Édipo, da homossexualidade e suas preocupações com a sanidade mental de uma criança adotada por casais do mesmo sexo biológico. Isso vem sendo objeto de vários estudos acadêmicos e psicanalíticos no mundo. Por exemplo, a tese de doutoramento de Acyr Corrêa Leite Maya Homossexualidade: Saber e homofobia,1 e a de Anderson Schimer sobre Homofobia: véu do real.2 Na França, o conjunto dessas declarações públicas – algumas das quais podem ser encontradas na internet – foi considerado "Homofobia psicanalítica" por um psicanalista conhecido e por outro, também historiador, "um desastre de tal ordem para a psicanálise que só uma próxima geração de analistas poderá eventualmente retificar" (ROUDINESCO, 2013, p. 117). Nosso interesse é o debate de ideias e a reflexão, daí preferirmos não citar os nomes dos autores psicanalistas cujas declarações públicas apresentaremos aqui.

A regulação dos gozos que asseguram os discursos é frequentemente utilizada pela "moral sexual civilizada" para determinar e discriminar os laços amorosos adequados ou inadequados a uma dada sociedade. Os laços sociais que tentam, em vão, regular as parcerias amorosas entre os sexos são tentativas também vãs de suprir o real da relação sexual que não pode ser escrita. Em nossa pesquisa verificamos que ao longo da história essa regulação vem sendo sustentada por alguns psicanalistas em nome de Freud e Lacan que apregoam a boa e normal sexualidade em contraposição a uma sexualidade desviante, imatura, patológica ou perversa. E, a partir daí, pontificam sobre os laços sociais e a direção do tratamento analítico de acordo com sua concepção das práticas sexuais e vínculos amorosos. É o que vem acontecendo na história da psicanálise em relação à homossexualidade.

Essa posição dos analistas nada mais faz do que incrementar o repúdio à própria psicanálise, a segregação que já existe na sociedade, o tabu da homossexualidade e a discriminação de gays e lésbicas acabam assim alinhando-se aos que promovem o discurso de incitação ao ódio – discurso este que, como outros, sustenta os atos homoterroristas como o que aconteceu em Orlando, onde um homoterrorista fundamentalista assassinou brutalmente 50 pessoas numa boate gay deixando mais 50 feridas.

A Escola de Psicanálise é nosso instrumento político para transmitir a psicanálise, fazendo com que ela cumpra a sua função no mundo. Trata-se de um lugar onde os "trabalhadores decididos" não estão a serviço do discurso do mestre, do universitário ou do capitalista nem tampouco a serviço do gozo de um que acredita ser o UM, e sim a serviço do discurso do analista. Trata-se de um organismo que tem por função política: "restaurar o gume cortante de sua verdade; que reconduza a práxis original que ele instituiu sob o nome de psicanálise ao dever que lhe compete em nosso mundo; que, por uma crítica assídua, denuncie os desvios e concessões que amortecem seu progresso, degradando seu emprego'' (LACAN, 1964/2003, p. 229).

A psicanálise é subversiva, mas os analistas são conservadores e reprodutores da ordem vigente, por demais condescendentes com a "civilização". Mas não todos. A civilização está cada vez mais contaminada pela barbárie em vários níveis: barbárie da espoliação capitalista, da segregação, das guerras e da destruição do meio ambiente. A história da psicanálise nos mostra a "engenharia humana" na qual ela se transformou com a sua psicologização e foraclusão do inconsciente, a participação e condescendência de analistas nas ditaduras militares, a homofobia nas instituições psicanalíticas e suas teorias, até a discriminação homoterrorista de alguns psicanalistas na Europa contra as leis do casamento gay e da homoparentalidade. Daí a necessidade de uma crítica assídua para que a psicanálise não seja degradada e engolida pela religião, ciência ou discurso capitalista. Não foram os psicanalistas, por exemplo, que promoveram as mudanças na sociedade contra a patologização e a discriminação derivadas do racismo sexual, e sim os movimentos sociais e os estudos da teoria de gênero. E, no entanto, a psicanálise de Freud a Lacan fornece todas as armas para isso. Até quando nós, analistas, ficaremos a reboque das mudanças contemporâneas de subjetividade e transformações dos sinthomas?

Na terceira parte da "Proposição sobre o analista da Escola", Lacan se refere ao que ele chama de "nossas relações com o exterior". Aí fica mais clara a questão política, ou mais precisamente, "a extraterritorialidade da psicanálise" (LACAN, 1967/2003, p. 262), onde ele situa as famosas três linhas de facticidade, que são de fato três orientações políticas para a psicanálise, a partir de três fatos históricos: a ideologia reinante, nazismo e o campo de concentração. São três aspectos da civilização, que Lacan reparte em simbólico, imaginário e real, contra os quais o psicanalista deve se opor.

No registro do Simbólico trata-se da "ideologia edipiana da família pequeno-burguesa" (Ibid.), segundo as palavras de Lacan que, na verdade, é a filha do casamento do capitalismo com a ciência no templo da religião. Muitos analistas ainda confundem o complexo de Édipo com o edipismo da família tradicional pai, mãe e filho biológico, batizado na igreja e com registro civil no cartório. E daí falam barbaridades, conduzem análises e escrevem teorias nas quais abundam o preconceito, a discriminação e a patologização de tudo o que sai de uma suposta norma edipiana. Judith Butler criticou o Édipo freudiano de heteronormativo e dominado pela ideologia machista em que a mulher está em segundo lugar entre os sexos, certamente porque os analistas não fizeram uma re-visão das leituras equivocadas a partir do Édipo normativo descrito por Lacan no Seminário 5: As formações do inconsciente. Vale lembrar que no escrito de 1958, em que nos traz a fórmula da metáfora paterna, Lacan não se refere a nenhuma normatividade nem fala de papai e de mamãe e sim das funções do Nome-do-Pai e do desejo da mãe deslocando assim o Édipo da família para uma função da fala no campo significante do desejo. Os analistas lacanianos que se ativeram a uma concepção normativa do Édipo, e hierarquizada da sexualidade em que o normal é a hetero e a homossexualidade é perverso, não foram mais adiante na reformulação constante do Édipo de Freud em Lacan, que o situa como o quarto elo do nó borromeano que liga os três registros do ser-para-o-sexo. O Sinthoma é um Nome-do-pai para o neurótico que se expressa como letra na singularidade de cada um. O Édipo, na psicanálise, merece ser re-visto. Sempre.

No imaginário é a estrutura do grupo constituído a partir do Um, como Freud dissecou em Psicologia das massas: o S1 encarnado por uma pessoa que se torna assim líder, guru, ideal de eu de um grupo submisso e hipnotizado. A representação paradigmática desse S1 é o bigode de Hitler, como o seu mais-de-gozar que provocava nos nazistas um efeito de identificação, cristalizando-os (LACAN, 1970-71/2009, p. 28). Trata-se, com Lacan, da repercussão no coletivo da política do Um, do Todo Fálico, da lógica do Uni-verso onde todos são iguais e castrados, impotentes diante do Um do poder. Em oposição a isso há a lógica da Heteridade, de não fazer universo, do conjunto aberto de dispersos disparatados (LACAN, 1976/2003, p. 569), do enxame de S1, do modo de funcionamento em rede, do somatório de singularidades que não se fecha e nem cabe em uma panela de pressão.

No registro do Real é o processo de segregação e racismo, cujo pior exemplo nos é dado pelo campo de concentração nazista. Trata-se do efeito do rechaço do real que pode se expressar como um mal radical que cada um leva dentro de si e projeta no outro. Daí o outro se transforma em inimigo a ser eliminado. Trata-se, a partir da lógica do Um, do rechaço da heteridade, do outro como radicalmente outro, como Diferente. Todo aquele que não é "Mesmo" é, gradualmente, discriminado, isolado, perseguido e eliminado. O racismo é a tentativa de situar no Outro o nosso gozo descaminhado, na medida em que estamos dele separado.

Vejamos algumas declarações públicas de psicanalistas europeus diante do debate sobre o casamento gay e a homoparentalidade. A maioria dessas referências se encontra na tese de doutorado de Acyr Corrêa Leite Maya, supracitado. Um conhecido analista francês declarou: "Estou convencido de que a criança se constrói pensando que ela é o resultado de um encontro entre um homem e uma mulher. A realidade sexual é a realidade da diferença dos sexos". Para outro, que também é psiquiatra, adotar a lei do casamento gay é "suprimir a diferença dos sexos como elemento da divisão do sujeito e a proibição do incesto – o que é uma armadilha literalmente perversa". Outro ainda interpreta que a reivindicação da homoparentalidade é devida ao fato de "a vida sexual deles não ser potencialmente procriadora". Trata-se, como vemos da ideologia "teológico-psicanalítica", segundo as palavras de um colega discordante. Outro lacaniano afirmou que "(...) é necessário que esse significante Nome-do-Pai seja, explicitamente, e sem ambiguidades, referido à existência de um terceiro, marcado em sua diferença sexual em relação à protagonista que se apresenta como mãe". Ainda outro analista francês se pergunta: "como esses filhos vão se confrontar com a diferença, se doravante, a mesmice dos lugares do pai e da mãe poupa o futuro sujeito de fazer o seu aprendizado nessa confrontação?". Vemos aqui sistematicamente a diferença sexual ser referida por esses analistas lacanianos à diferença anatômica dos sexos, como o fazem os estudiosos de gênero. Da mesma forma para um analista italiano os filhos de casais que não veem diferença sexual dos pais não poderiam passar pela "crise edipiana". No texto sobre a jovem homossexual, Freud afirma ser três os determinantes da sexualidade: a anatomia, a posição subjetiva (masculina ou feminina) e a escolha sexual (homo ou hetero) – esses três elementos podendo se misturar e variar de acordo com cada caso. E com Lacan aprendemos que a sexualidade é desnaturalizada pela linguagem e pelo inconsciente, e que a diferença sexual se repercute nas posições subjetivas de gozo e na diferença de posição entre o todo e o não todo fálico independentemente de qualquer genitália.

Outro que se diz psicanalista exprime uma preocupação fofa: "vai ser um problema para a criança superar a falta de modelo de um homem que ama uma mulher e de uma mulher que ama um homem. Uma criança necessita ver sua mãe amando seu pai". O amor é lindo... mas só entre um pai XY e uma mãe XX. Mas o pior é que: "No casal homossexual, é muito provável que eles tratem a criança como o centro de toda a casa. E isso não é bom. Porque uma criança de casal homossexual se converteu em algo excepcional, em um fenômeno único, uma espécie de bem inestimável do casal. O rei da casa". Parece que ele esqueceu de ler a Introdução ao Narcisismo, de Freud, e a posição de todo filho de ser "Sua majestade, o bebê". Mas outros analistas também batem na mesma tecla: Sr. X alerta para "o homossexual não fazer de seu narcisismo uma armadilha em defesa do direito de ser homossexual". Esse preconceito não é novo, encontramos desde Hanna Segal a afirmação de que "A heterossexualidade pode ser mais ou menos, narcisista, pode ser muito perturbada ou não. Na homossexualidade, isso é inerente" (SEGAL, 1990, p. 212). Ora, o narcisismo localizado por Lacan como o investimento na imagem é uma característica de todo corpo falante – é o que caracteriza todo ser humano como homo sexualis, ou seja, aquele que tem amor pelo mesmo, a sua imagem no outro, independentemente do sexo.

No final dos anos 1990, uma escola de psicanálise na França fez uma jornada com um título muito "última moda", chamado "Gays em análise". E isto uma jornada de psicanálise de orientação lacaniana – não era de estudos de gênero nem de sociologia – desses mesmos lacanianos que aprenderam com Lacan que só se faz análise do sujeito do inconsciente. Nessa jornada o chefe de escola diz não ter nada contra o casamento gay, apesar de eles, diferentemente dos heteros, "não respeitarem a fidelidade conjugal". E lamenta que os homossexuais ao reivindicarem o direito de cidadania "tendem a apagar um certo número de traços fundamentais à perversão". Eles perderiam, portanto, o charme da clandestinidade e o glamour da transgressão. Ainda por cima, os analistas dessa escola, ao constatarem que o Inconsciente é falocêntrico e foraclui o Gozo Outro concluíram que o inconsciente é... homossexual. Como se o sexo entre pessoas do mesmo sexo biológico excluísse a heteridade e que homens e mulheres dotados de inconsciente e pulsões não se distribuíssem na partilha da sexuação independentemente de sua genitália. Mais recentemente, diante dos movimentos que tomaram a rua pró e contra os projetos de lei, esse mesmo chefe lançou uma palavra de ordem de virginal pudor, como um "não me toques": "Por favor, não instrumentalizem a psicanálise para fins sociais". O cinismo psicanalítico pode ir às raias do ridículo. Outro chefe de escola perguntou para a jornalista que o entrevistava: "Se algo lhe acontecesse, você concordaria que seus filhos fossem entregues a um casal homossexual?". E fez uma profecia: "Em 15 anos teremos processos judiciários de filhos de homossexuais contra o Estado".

A questão da homofobia na psicanálise não é uma novidade, ela vem sendo tema de pesquisa de vários trabalhos e teses de doutorado no Brasil e no mundo. Freud sempre lutou e militou contra ela dentro e fora da psicanálise. Na instituição foi contra Jones e sua filha Anna que queriam barrar a entrada de analistas gays para a formação analítica. E publicamente assinou uma petição contra a criminalização da homossexualidade (só descriminalizada em 1981 na França, e em 1994 na Alemanha). Freud fez também declarações públicas ao jornal Die Zeit dizendo que a homossexualidade não deveria ser uma questão de tribunal e que não era doença. Sua posição não prevaleceu nos institutos de formação na IPA nem na psiquiatria, que a interditaram aos homossexuais. Só em 1992 a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade como patologia do Manual de Classificação Internacional da Doenças (CID-10). Em 1997, o Congresso Internacional de Barcelona foi marcado pelo trabalho de Ralph Roughton que trouxe à luz publicamente a homofobia dos institutos de formação tendo que pleitear pela despatologização dos analistas gays (QUINET; JORGE, 2013). Só a partir de então que começou a ser franqueada aos homossexuais na formação analítica. Lacan nunca barrou a formação de nenhum analista por causa de sua escolha sexual em sua Escola. Se nos anos 1950 encontramos alguns trechos em seu ensino associando a homossexualidade à perversão, nessa época Lacan ainda não se diferenciava do ponto de vista da IPA sobre o assunto. Posição esta que não se manteve posteriormente em seu ensino quando abandonará a relação da perversão com a castração e nem mais se referirá aos homossexuais como perversos. A partir dos anos 1970 revolucionará esse tema com as fórmulas da sexuação, o Édipo borromeano e com os termos de homo sexualis e heteridade.

Para finalizar, podemos citar dois depoimentos ainda mais segregativos eivados de incitação à discriminação e ao ódio, na medida em que situa os homossexuais como uma ameaça ao laço social. Curioso que isso venha de pessoas que se alinham com Freud que dizia que a ligação homossexual é o cimento social. Pois bem, um analista francês de formação jurídica declarou que "instituir a homossexualidade com status familiar é colocar o princípio democrático a serviço da fantasia, na medida em que o direito é fundado no princípio ideológico, isso abre espaço para uma lógica hedonista, herdeira do nazismo". E um psicanalista italiano afirmou que, se o casamento homossexual for reconhecido "ele tende a ameaçar de destruição o reconhecimento e apoio social aos laços humanos, os quais levam em conta a diferença e o futuro, como são os laços familiares originais. Prevalecerá o instinto de morte. O ISIS (Estado Islâmico) não é muito diverso disso". E acrescenta que negar a diferença sexual anatômica é "negar a realidade e medi-la com uma régua abstrata com a mesma lógica do campo de concentração". Depois de Orlando, em que um homem matou 50 pessoas numa boate gay se reivindicando do ISIS, fica ainda mais bizarra esta declaração invertendo monstruosamente a realidade. Talvez o termo homofobia seja inadequado para designar tais discursos e atos. Não seria melhor dizer homoterrorismo? Ou até mesmo homofascismo? Não obstante todas essas ameaças malignas, tanto na França quanto na Itália o projeto de lei do casamento gay e da homoparentalidade foi aprovado.

Em nossa pesquisa verificamos um número significativamente maior de declarações de psicanalistas contra o casamento gay e contra a homoparentalidade do que os outros com posição distinta. O silêncio de uns não foi mais eloquente do que o preconceito dos outros. Lavar as mãos não tirou a mancha jogada na psicanálise. A história da psicanálise nos mostra: a "engenharia humana" na qual ela se transformou nos EUA com a sua psicologização e foraclusão do inconsciente, a Psicologia do Ego. E agora, como podemos chamar esses desvios da psicanálise na atualidade? Psicologização (pequeno-burguesa) do Édipo? Teologia psicanalítica? Psicanálise cínica? Lembremos que são os discursos que dão sustentação aos atos homoterroristas, como o que aconteceu recentemente em Orlando e acontece cotidianamente no Brasil, onde um homossexual é assassinado a cada 27 horas e onde a extrema-direita e os políticos evangélicos apregoam a cura de homossexuais e incitam a homofobia. Daí a necessidade de uma crítica assídua para que a psicanálise não seja degradada e engolida pela religião, ciência ou discurso capitalista.

Lacan nos deixou a pergunta: "E quando a psicanálise houver deposto as suas armas diante dos impasses crescentes de nossa civilização que serão retomadas por quem?" (LACAN, 1967/2003, p. 341). Não esperemos chegar a esse ponto, temos as nossas armas – as que nos fornecem a teoria e a clínica psicanalíticas. "A intensão no político só pode ser feita ao se reconhecer que é só do gozo que há discurso" (LACAN, 1970-71/1998). A política é uma forma de tratamento do gozo: modalidade de dominar e regular o gozo. A política determinada pelo Estado a serviço da sociedade e de suas instituições é um campo minado de interesses e de forças de movimentos sociais e partidários. Ela pode contaminar o discurso do analista que não esteja prevenido e advertido de não se deixar guiar por tudo o que não seja o próprio do desejo do analista: o de levar cada sujeito à sua pura diferença. O que a psicanálise nos ensina é que tem algo do gozo que não é coletivizável, na medida em que é aquilo que cada sujeito tem de mais singular. E que tampouco entra no discurso, como as coisas do amor e do sexo que não se encaixam em nenhum discurso previamente estabelecido. É o que não faz plural, mas não deixa de fazer parceria. E isto é uma questão a ser levada em conta na política. A singularidade é o modo como cada um goza de seu inconsciente, ou seja, seu sinthoma. A política da psicanálise é a política do sinthoma. E ao levá-la para o mundo e poder se defrontar com a "civilização", os analistas se situam politicamente contra os discursos que fazem obstáculo ao sinthoma de cada um, que hierarquizam formas de parcerias sexuais, que discriminam determinadas maneiras de gozar, que excluem fala-a-seres por suas opções, cor, credos, classe social e suas aspirações e sinthomas. O psicanalista não pode ser preconceituoso e deixar-se contaminar pela moral, religião ou o discurso da ciência que foraclui o sujeito.3 A psicanálise é antirracista, pois admite que o estrangeiro habita o âmago de cada um e o diferente (heteros) é parte de si. Cabe ao analista fazer entrar a consideração pelo gozo do sinthoma, com sua singularidade, no discurso de sua polis. E no espaço público e no privado, trazer a política que sua prática ensina.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: quinet@openlink.com.br

Recebido: 15/08/2016
Aprovado: 12/09/2016

 

 

* Psicanalista, doutor em filosofia Université de Paris 8. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Professor do Mestrado e do Doutorado de Psicanálise, Saúde e Sociedade (UVA). Pesquisador convidado do Instituto de Psiquiatria (UFRJ). Dramaturgo e Diretor da Cia. Inconsciente em Cena (RJ).
1 Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008.
2 PUC-São Paulo, 2016.
3 "Deixar a esse Outro seu modo de gozo, eis o que só se poderia fazer não impondo o nosso", diz Lacan em "Televisão" (1973/2003).

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