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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.33 Rio de Janeiro Nov. 2016

 

ATUALIDADE E SEXO

 

Ditadura e homossexualidades: discurso e sintoma1

 

Dictatorship and homosexualities: discourse and symptom

 

 

Raul Albino Pacheco Filho*

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL – Brasil)
Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano (Fórum de São Paulo)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O tema "Ditadura e homossexualidades" convoca a um diálogo entre diferentes campos do saber. E a psicanálise tem sua contribuição a oferecer, já que, nela, desde a sua origem, o sexual, o social e o político mostram-se articulados. Observe-se que totalitarismo político e moralismo conservador caminham juntos. O modus operandi das ditaduras é a dominação dos gozos por meio da padronização de valores e condutas, tentando suprimir as singularidades dos sujeitos. Em contraste com isto, a psicanálise é uma práxis que sustenta a relevância dessa singularidade, da escuta dos conflitos e dos sintomas. O sintoma é o que vem do real, em subversão ao discurso do amo. A sexualidade é da ordem de uma ética que considera o desejo, o inconsciente e o real do gozo, implicando uma tarefa de construção permanente, na vida (um devir), a partir de uma "escolha", no sentido freudiano do termo. Decorre daí a inconciliabilidade da concepção psicanalítica da sexualidade tanto com a propugnada pelos regimes políticos totalitários, quanto com a defendida pelo moralismo religioso conservador e reacionário das igrejas-empresas contemporâneas, articuladas ao discurso capitalista.

Palavras-chave: Psicanálise, Homossexualidade, Ditadura, Sexualidade, Discurso, Sintoma.


ABSTRACT

"Dictatorship and homossexualities" is an issue that fosters a dialogue among different fields of knowledge. And psychoanalysis is has its contribution to offer, once since its origins the sexual, the social, and the political have been articulated in it. It is important to notice that political totalitarianism and conservative moralism have always walked hand in hand. The modis operandi of dictatorships is the control of juissances through the standardization of values and behaviors, attempting to suffocate an individual's singularities. In contrast to this, psychoanalysis is a praxis that sustains the relevance of this singularity, of the attention to conflicts and symptoms. Symptom is what comes from the real, subverting the master's discourse. Sexuality is related to an ethics that considers the desire, the unconscious, and the real of juissances, implying a task of permanent construction, in life (a wish to become), departing from a "choice", within the Freudian meaning of the term. From that comes their reconcilability of the psychoanalytical conception of sexuality, both with the one sustained by the totalitarian political regimes and the conservative religious and reactionary moralism of the contemporary churches-enterprises, articulated with the capitalist discourse.

Keywords: Psychoanalysis, Homosexuality, Dictatorship, Sexuality, Discourse, Symptom.


 

 

Nosso tema implica pensar a conexão entre o âmbito do sexual e o do social e político. E diferentes campos de saber têm sido convocados a trazer suas contribuições em um diálogo importante e instigante que traz a marca da diversidade2.

A psicanálise viu-se às voltas com esses dois âmbitos desde a origem. O sexual está na sua mira desde o começo, trazendo surpresas e escandalizando a moral social e as normas estabelecidas, como no caso da sexualidade infantil na sociedade vitoriana. E o mesmo em relação à sociedade. Aí estão os textos sociais de Freud, para nos lembrar disso, com reflexões sobre as massas, as religiões, os exércitos, a moral sexual civilizada, o mal-estar na civilização, a guerra etc.

No momento histórico brasileiro atual, em que escutamos vozes clamando novamente a volta da ditadura, como regime de governo capaz de impor a ordem – no que é proposto por estas mesmas vozes como caos econômico, político e social –, eu começo lembrando que a psicanálise, assim como o marxismo, é um campo de prática e de teoria que pressupõe o conflto e não a harmonia. Vamos esclarecer: não é que o psicanalista prefira que as coisas sejam desse modo: que ele seja um advogado do conflito. Ele simplesmente se recusa a esconder essa verdade, em nome de uma concepção falsificada de harmonia e de pacificação absoluta do que é humano e social.

A psicanálise, pelo menos a de Freud e Lacan, não é como o positivismo, que acredita que a ordem vem do progresso. Decididamente, a psicanálise não é positivista! Vamos lembrar que o lema "Ordem e Progresso", da bandeira brasileira, vem do positivista Benjamin Constant, ministro da guerra da Primeira República brasileira, e a seguir ministro da instrução pública (educação). A "Doutrina de Segurança Nacional", elaborada na Escola Superior de Guerra das forças armadas brasileiras, que norteou as instituições da ditadura militar de 1964 a 1985, funda-se no positivismo das forças armadas. Mas também na doutrina de segurança nacional norte-americana, exportada após a Segunda Guerra Mundial para o Brasil e demais países latino-americanos durante a guerra fria, via militares brasileiros que passaram a frequentar sistematicamente cursos de preparação militar nos Estados Unidos.3

Aqui já vemos claramente uma importante conexão histórica entre o totalitarismo político das ditaduras latino-americanas e uma posição conservadora no plano moral. O presidente norte-americano do pós-Segunda Guerra Mundial (1945-1953), Harry Truman, ameaçou que, para conter o avanço comunista no mundo, os Estados Unidos interviriam militarmente nos países onde houvesse focos de perturbação contra os regimes simpatizantes.4 E John Foster Dulles, o inflexível secretário de defesa do governo seguinte – general Eisenhower (1953-1961) –, completou essa ameaça com a declaração de que a neutralidade política diante do avanço comunista era "um inequívoco traço de degradação moral". 5

O vexatório episódio da visita de Eisenhower ao Brasil, quando o deputado da União Democrática Nacional (UDN) Otávio Mangabeira beijou suas mãos em um gesto de submissão só comparável aos da vassalagem feudal, é significativo.6 Mas que ilustra bem como a posição de submissão subjetiva (submissão do sujeito) é o gesto que se soma (e completa) a subordinação política, militar e econômica da oligarquia brasileira à nação norte-americana.

 

 

Acho importante lembrar o nome escolhido para a convocação às manifestações públicas, usadas pelos articuladores da ditadura militar para criar uma base de apoio social ao golpe: "Marcha da Família com Deus pela Liberdade". O que mostra o uso do apelo a uma moral religiosa e conservadora com propósitos políticos totalitários. Encontramos uma das cenas emblemáticas dessa conexão entre moralismo conservador e totalitarismo no episódio da prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil, pela ditadura militar, em 1968: tirados da cela, foram levados ao pátio do quartel em que estavam presos e os seus cabelos longos (um símbolo de independência e liberdade dos jovens, nesses anos 60) foram raspados na frente de soldados e oficiais, em um ritual de humilhação que recorda as punições públicas da Inquisição.

Fatos históricos como estes nos lembram que o moralismo conservador em todos os planos, aí incluído, obviamente, o sexual, anda junto com uma dominação política de aspecto totalitário. Digamos que o moralismo conservador e intolerante é o complemento ideológico do totalitarismo político, com vistas à dominação econômica. Ele visa à dominação do sujeito, como meio de assegurar o poder na sociedade.

A consideração desses dois episódios considerados emblemáticos ilustra o duplo sentido do exercício da submissão do sujeito, que opera tanto sobre o eu quanto sobre o outro, segundo o modo de funcionamento pulsional ilustrado por Freud.7

Embora a posição autoritária e moralmente conservadora na política brasileira não se restrinja a uma época histórica nem seja prerrogativa de apenas um partido, a ação da UDN, de 1945 a 1965, pode ser apontada como exemplo paradigmático da conjunção ambígua e paradoxal entre moralismo conservador e liberalismo econômico na política brasileira.8

Em "A UDN e o udenismo: ambiguidades do liberalismo brasileiro (1945-1965)", Maria Victoria de Benevides (1981) demonstra como o liberalismo udenista sempre esteve marcado por um profundo elitismo, cuja tese maior é a crença na presciência das elites e a convicção da incapacidade do povo para a decisão política:

Em termos de prática política esse elitismo, assumido de maneira ostensiva, se revela em duas constantes da trajetória udenista: a identificação de reivindicações sociais e, especificamente, trabalhistas, com a desordem, "o caos", e um solene desprezo pelo povo –"as massas"– refletido na permanente revolta com a derrota nas urnas, considerada "fruto da ignorância popular". A soma desses dois elementos constituiria um sólido argumento para a defesa da intervenção militar e da repressão ao movimento operário (a "anarquia e a subversão") por um lado, e do golpismo e da contestação dos resultados eleitorais, por outro (BENEVIDES, 1981, p. 194).

Compreende-se o título e subtítulo de uma matéria sobre as manifestações de 15 de março de 2015, pedindo o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, eleita com mais de 54,5 milhões de votos: "O fantasma da UDN – Espalha-se o cheiro de um retorno ao passado, como se o objetivo final fosse entregar o Brasil a Tio Sam".9

É claro que o conservadorismo moral não tem nada a ver com a psicanálise: é suficiente lembrar o comentário de Freud a Jung, no porto de Nova Iorque, por ocasião das conferências na Clark University: "Eles não sabem que lhes estamos trazendo a peste!" (LACAN, 1955/1998, p. 404). Mas a praga do conservadorismo também se infiltrou na psicanálise,10 e sabemos como. Nos Estados Unidos, desenvolveu-se uma psicanálise (psicanálise do ego) contraditoriamente associada ao positivismo, cujo ideal de cura era adaptar os analisantes aos padrões sociais e convencionais da sociedade capitalista norte-americana: o american way of life. Conhecemos, porém, a crítica enérgica que essa versão distorcida da psicanálise recebeu de Lacan, em sua convocação ao "retorno a Freud".

A psicanálise não nega o conflito, à maneira dos avestruzes, que escondem a cabeça num buraco para se esconder do que acontece. Ela trabalha com o conflito, em vez de considerá-lo uma sujeira a ser escondida debaixo do tapete.

Ela não acredita, e muito menos tem simpatia por essas imposições de ordem à força; como se os sujeitos pudessem ser programados como robôs ou tratados como escravos pelos que se arrogam a donos absolutos do saber e do poder; e que saberiam e poderiam ditar, a todos os demais, as normas e as ordens perfeitas: os ditadores.

Tudo isso sempre fracassa. Fracassa no plano da clínica: e os pseudogurus terminam desmascarados. Nós, psicanalistas, constatamos isso no cotidiano da nossa clínica. E sempre fracassa também no plano social: e as populações derrubam e des/moralizam os ditadores. Basta olhar a história.

Na clínica, o conflito aparece na forma de sintoma. E a psicanálise não é uma prática que se dirige pela pressa na eliminação do sintoma: ela acolhe o sintoma; acolhe o conflito. Ela o escuta e o faz trabalhar. É do conflito, e não da ordem, que advém o progresso! Se formos falar numa política da psicanálise, podemos dizer que ela é uma política do conflito: uma política do sintoma.

E o que é o sintoma? Já dizia Freud: o sintoma é resultado de um conflito entre forças em luta. É uma formação de compromisso, um acordo; entre desejo e defesa; entre o recalcado e as forças recalcantes; um "preço" pago pelo sujeito para não saber de algo; uma tentativa de delimitar um gozo e ao mesmo tempo de gozar; aquilo que, "não cessando de se escrever, supre o que não cessa de não se escrever, isto é, a impossibilidade da relação sexual" (DIAS, 2006, p. 98); a "irrupção dessa anomalia em que consiste o gozo fálico, na medida em que aí se desenvolve plenamente essa falta fundamental que eu qualifico de 'não relação' sexual (non-rapport sexuel)." (LACAN, 1975 [1974], p. 13).

Não foi à toa que Lacan disse que Marx inventou o sintoma. Para Lacan, o sintoma é "o que atrapalha a bela ordem do amo (do senhor)",11 numa referência ao que ele chamou de "discurso do amo" (ou "discurso do mestre" ou "discurso do senhor"), em sua teoria dos discursos. Discursos concebidos como estruturas de ordenação (de aparelhamento, de dominação) do gozo, a partir da linguagem.

Obviamente, falo do lugar de psicanalista. E quero lembrar o que particulariza esse lugar em relação aos outros saberes, qualquer que seja o assunto que, a partir dele, se possa abordar. Em primeiro lugar, a convicção da importância do inconsciente, é claro. Mas, além disso, o fato de que tudo o que nós, psicanalistas, possamos dizer, sempre tem como fonte de inspiração fundamental o que se recolhe da escuta dos sujeitos singulares na clínica.12 Mesmo quando nos arriscamos a nos estendermos por assuntos que vão 'mais além' de nossa atuação na clínica:13 como o tema de que me ocupo aqui.

No discurso do amo, inspirado pela "dialética do senhor e do escravo", de Hegel, o amo (senhor) é aquele que busca ordenar (enquadrar, aparelhar) todo o gozo humano. Mas que sempre topa com o impossível de conseguir realizá-lo por completo, pois se defronta com o sintoma. E a psicanálise surgiu para se colocar à escuta do dizer do sintoma; do seu real, em sua rebeldia e subversão a essa ordem do amo: a essa ordenação/dominação absoluta do gozo do sujeito.

E o que ela escutou? Que gozo, sexo e discurso articulam-se intimamente, mas não se superpõem e nem se harmonizam completamente. E também que a pulsão sexual dos humanos não é um instinto. Ao descobrir isto, ainda antes da virada para o século XX, Freud pariu a psicanálise e articulou o enigma do sexual ao mito de Édipo.

O que Freud mostrou é que a sexualidade humana é des/naturalizada por condições que devemos chamar de estruturais. Tudo que está nesse âmbito da sexualidade humana não pode ser colocado em uma categoria que se pudesse chamar de 'natureza humana'. A sexualidade dos humanos não é biologicamente determinada. É claro que os seres humanos têm o que a biologia chama de órgãos sexuais: de cromossomos X e Y ligados à reprodução; têm testosterona e progesterona (biologicamente chamados de hormônios sexuais); têm fenótipos chamados de sexuais e assim por diante. Tudo isso existe: é inegável.

Mas o que a psicanálise aprendeu, ao escutar os sujeitos em sua clínica, é que não é isso que dá a direção da vida sexual dos humanos: de como nós nos sentimos e nos concebemos, sexualmente; da condição masculina ou feminina com a qual queremos nos apresentar aos outros, no laço social; da identidade sexual que declaramos; da posição masculina ou feminina, que assumimos na cama, com nosso parceiro (ou parceiros) sexual(is); do modo como gozamos; das fantasias que alimentam nosso gozo sexual; da condição masculina ou feminina, ou ambígua, ou mutante, daqueles que escolhemos para nossos parceiros sexuais ou para aliança conjugal.

Diante dessa diversidade, falar de heterossexualidade ou homossexualidade, ou mesmo de bissexualidade humana, no singular, é desconhecer completamente o que se passa. Trata-se de homossexualidades: assim mesmo, no plural! Do mesmo modo que heterossexualidades e bissexualidades, sempre no plural.

No Seminário 11, Lacan afirmou que a pulsão sexual humana é uma "montagem" singular. E para dar uma ideia dela a partir dos quatro elementos freudianos que caracterizam a pulsão (seu impulso, fonte, objeto e alvo), usou a imagem alegórica de uma montagem (de uma colagem) do tipo das que encontramos na arte dos surrealistas: por exemplo, "um dínamo acoplado na tomada de gás, de onde sai uma pena de pavão, que vem fazer cócegas no ventre de uma bela mulher" (LACAN, 1964/1988, p. 161). Por que não? Na intimidade de cada quarto, cada um tem seu jeito próprio e singular de gozar. Seja ele mais ou menos extravagante, se não for reprimido e inibido, é sempre criativo. Pretender governar (dominar) isso, impondo uma modalidade padronizada e única de gozo, é optar por uma empreitada fadada ao fracasso. E pretender fornecer o fundamento científico dessa modalidade padronizada de gozo sexual é participar de uma mistificação: é colaborar com uma ideologia pseudocientífica voltada à tentativa de domesticação da vida pulsional.

Mas se a psicanálise vê com bons olhos a desconstrução da concepção biologizante do sexual e a colocação em evidência do que existe de social e histórico nos valores, recomendações e proibições que dizem respeito às práticas sexuais, ela não endossa o ponto de vista de algumas das "teorias de gênero", que limitam o sexual a uma construção social. O masculino e o feminino não são apenas representações sociais de gênero. Eles são isso, mas são também posições de gozo, sem que uma coisa esteja necessariamente ligada à outra.

Digamos assim: o sexual é influenciado pelos valores, saberes e pelos discursos hegemônicos em cada cultura e época histórica (discursos, entendidos aqui nos dois sentidos: como enunciados sobre o sexual e como estruturas de ordenação de gozo no laço social). "O inconsciente não é todo individual. Embora não haja enunciação coletiva, ele está prenhe do discurso que rege uma comunidade" (SOLER, 2013, p. 125). Mas, além disso, há também um real do sexo, rebelde a todos os discursos e saberes.

Sexo é uma escolha, mas não no sentido usual de opção consciente ou decisão por meio da vontade ou da racionalidade do pensamento consciente. O sexual é da ordem de uma ética que considera o desejo, o real do gozo e o inconsciente. Sobre essa ética, vamos dizer que se trata de decidir se queremos o que inconscientemente desejamos.

O único sentido cabível e não absurdo de se falar que a sexualidade humana é heterossexual é o de que, para haver prática sexual, é preciso haver sujeitos em "posições sexuadas" distintas, nos termos do que Lacan chamou "fórmulas quânticas da sexuação". Ou seja, que para haver prática sexual se requer um sujeito que tenha seu gozo inteiramente regido pela função fálica e um outro sujeito que esteja "não todo" regido por essa função (que algo escape à ordenação do gozo pelo falo) (QUINET, 2013, p. 99). Mas isso não tem nada a ver com a condição biológica masculina ou feminina dessas pessoas; nem com a identidade sexual que elas apreciem ter ou declarem socialmente; nem com a identidade sexual das pessoas que elas busquem como parceiros sexuais; nem com a maneira delas se vestirem, ou com o sexo com que se identifiquem, ou pelo qual sejam apontadas pelos outros; nem com o sexo civil, que consta nas suas carteiras de identidade.

A sexualidade humana está inexoravelmente ligada ao desejo humano e, por isso mesmo, recebe dele sua marca essencial. E aqui cabe lembrar o que Hegel e Kojève falaram sobre o desejo14. O Eu do desejo é um vazio que só recebe um conteúdo positivo pela ação dirigida ao objeto. E, para atingir o estatuto que lhe deve caber, o desejo deve mirar algo que ultrapasse o natural (a natureza, a realidade dada). Portanto, é só o desejo que mira um outro desejo – o desejo de um desejo humano –, que pode criar um Eu não natural: um ser que possa ser chamado de "ser humano". Esse Eu será sua própria obra e será, no futuro, aquilo em que vier a se tornar: aquilo que ele vier a ser por sua ação, no presente, de transformar aquilo que ele foi, no passado. Esse ser humano será, portanto, necessariamente, um "devir".

Como pensa Lacan, esse diálogo com Hegel e Kojève é relevante enquanto fonte de inspiração. E não como marco essencial de referência para a psicanálise, que não é uma fiosofia, pois nunca desprende suas formulações teóricas do confronto incessante com a prática cotidiana de escuta de cada sujeito singular (de seu inconsciente), na clínica.

A sexualidade humana talvez possa ser mais bem caracterizada como um devir. A sexualidade de cada um é uma tarefa de vida. Tarefa a ser empreendida a partir de uma escolha... a ser cuidadosamente trabalhada...e a fazer evoluir no decorrer de uma vida: a única vida, com começo, meio e fim, que cada um de nós tem para viver. E pobre daquele que a desperdiçar!

O Édipo que o progresso da psicanálise veio a demonstrar não é o Édipo da família pequeno-burguesa, transitoriamente instalado em uma fase histórica do capitalismo: família, essa, em veloz mutação nos dias de hoje. Esse Édipo do papai, da mamãe e da criança, em harmonia familiar manifesta, mas apoiado sobre um cadinho turbulento de agressividade e desejo latentes, é passageiro: é produto das ordenações de gozo hegemônicas em uma época histórica determinada.

Mas existe um Édipo estrutural que atravessa a história (um Édipo transistórico), que, para ser esclarecido, requereu o esforço da psicanálise, da antropologia (Lévi-Strauss, em particular) e da linguística estrutural (notadamente, Saussure e Jakobson). Falo do Édipo de quatro termos e não triangular (que inclui o falo), que tem em sua origem a entrada do ser humano na linguagem, e que regula a articulação das relações de aliança e parentesco. Esse Édipo busca ordenar o social por meio das prescrições do sexual, impondo normas universalizantes, como tentativas de padronização e homogeneização da sociedade e da sexualidade humanas. Mas ele esbarra com o impossível de enquadrar a totalidade de gozo de qualquer ser humano em uma norma universal absoluta, que é o que produz o sintoma e o "mal-estar na civilização". Problema esse, para o qual todo ser humano tem que encontrar sua solução única e diferenciada: um tratamento singular.

O psicanalista é aquele que se oferece para acompanhar, nessa trajetória, o ser humano cuja energia de vida e independência sejam fortes o suficiente para que ele não consiga abafar o ruído desse "mal-estar" com os analgésicos usuais que as sociedades sempre têm para prescrever: incluo aqui as drogas lícitas e ilícitas, mas não apenas elas.

E se, além disso, esse ser humano conseguir reunir a coragem requerida para buscar sair da miséria de sua neurose, perversão ou psicose.

Como o psicanalista opera nessa tarefa? Escutando e acolhendo o singular do sintoma que se rebela e recusa as soluções universais.

É por isso que a heterossexualidade, mas também a homossexualidade, quando tomadas como categorias universalizantes que visam homogeneizar e padronizar as sexualidades dos sujeitos (sempre singulares), são imposições sociais destinadas ao fracasso. As heterossexualidades, homossexualidades ou bissexualidades são tão plurais e numerosas quantos são os sujeitos.

Em todas as sociedades existem aqueles que se dedicam a ocupar o lugar, no laço social, de duas das atribuições que Freud designou como "impossíveis": governar e ensinar. A nossa sociedade, por obra de Freud, agregou a eles os que se dedicam a um terceiro impossível: o analisar. Trata-se de impossíveis, mas não porque não se governe, não se ensine e não se analise: mas sim porque esses empreendimentos não são realizáveis de um modo absoluto e ilimitado.

Contudo, existem os que têm essa pretensão vã e que, exatamente por isso, são fonte de sofrimento para os que, com eles, compartilham a vida na mesma sociedade. São os governantes arrogantes e totalitários; são os mestres, os religiosos e os cientistas presunçosos; são os psicoterapeutas gurus. São aqueles que acreditam tudo poder enquadrar, de modo completo e absoluto, nos saberes e poderes em que se fundamentam, que constroem ou ministram.

Antes de encerrar minha fala quero ainda lembrar que o problema da intolerância em relação à sexualidade, em relação aos valores e aos modos de vida, não se limita aos regimes totalitários: às ditaduras. Há uma conexão importante, sim, entre essas duas coisas, e não pretendo de modo algum minimizar isto. Mas sublinho que a intolerância não se limita a isto.

Max Weber mostrou que a ética protestante alimentou e foi alimentada pelo capitalismo.15 E previu que a progressão do capitalismo o libertaria da sua base religiosa, tornando-o autônomo e capaz de ditar sua própria ética, baseada no atrelamento do desejo ao consumo de mercadorias. Disse que o capitalismo "impõe de forma coercitiva suas leis e sua dinâmica a todos os indivíduos das sociedades industriais".16 E "a onipotência dos mercados aprisiona os povos na jaula de aço do cálculo egoísta".17

Embora a hegemonia do capitalismo tenha substituído a hegemonia do discurso do amo pela do discurso capitalista,18 não houve uma dessacralização do mundo. Ressurgiu um fundamentalismo religioso fanático e radical, tanto no interior quanto no exterior dos centros capitalistas economicamente mais ricos, com as tragédias que conhecemos.

Além disso, assistimos ao florescimento desse fenômeno das igrejas-empresas, com indivíduos politicamente espertos aproveitando-se dessa circunstância para enriquecer pessoalmente. Segundo a revista Forbes, quatro fundadores dessas novas igrejas no Brasil têm patrimônio pessoal superior a 65 milhões de dólares.19

E muitos políticos e líderes religiosos (nem sempre escrupulosos) vinculados a igrejas e seitas, novas ou tradicionais, têm fomentado um fanatismo preconceituoso e intolerante em relação à diversidade sexual. É uma forma de seduzir seus prosélitos mais conservadores. O deputado Eduardo Cunha, ligado a uma igreja evangélica, atualmente réu perante o STF em processo por corrupção e lavagem de dinheiro, é um dos piores exemplos. É autor de projeto de lei que institui o Dia do Orgulho Hétero, em um evidente protesto contra o Dia Internacional do Orgulho Gay. E costumeiramente posta mensagens segregacionistas e preconceituosas em seu Twitter, como: "Chega desse espetáculo deprimente, que envergonha a todos nós. Não à república gay".20 "Bando de sodomitas, parece que são alunos da sodoministra das mulheres, aquela abortista. Tudo isso é um plano do inimigo e vamos lutar".21

Construir nossa sexualidade é tarefa cuidadosa para toda uma vida: a única que temos. Mais uma vez, na história, existe por aí gente atrapalhando a vida dos outros e provocando sofrimento, em nome da ordem e de Deus... tentando impor aos demais seu padrão rígido e moralista de viver, de sexualidade, ou de repressão à sexualidade...e querendo impedir, até com violência, que os outros busquem a forma de encontro sexual em que melhor se realizem.22 Devido a isto, concluo esta apresentação com uma bênção. Benção é uma palavra que, etimologicamente, se origina do latim benedictio: bene (bem) e dictio, dicere (dizer). Bem dizer: algo muito caro à psicanálise, que é uma prática do dizer: do bem dizer. E a bênção que eu escolhi para concluir é uma estrofe do "Samba da bênção", de Vinicius de Moraes e Baden Powell:

Essa gente que anda por aí,
brincando com a vida.
Cuidado, companheiro!
A vida é pra valer.
E não se engane não, tem uma só.
Duas mesmo, que é bom,
ninguém vai me dizer que tem,
sem provar muito bem provado.
Com certidão passada, em cartório do céu,
e assinado embaixo: Deus.
E com firma reconhecida!
A vida, não é brincadeira, amigo.
A vida é arte do encontro,
embora haja tanto desencontro pela vida!

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: raulpachecofilho@uol.com.br

Recebido: 25/08/2016
Aprovado: 12/09/2016

 

 

* Professor Titular da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), atuando no Curso de Psicologia e no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, onde coordena o Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade (inscrito no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil – CNPq). Psicólogo com graduação pela PUC-SP e Mestrado e Doutorado pelo Instituto de Psicologia da USP. Psicanalista AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL – Brasil) e da Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano (Fórum de São Paulo). Coordena a Rede de Pesquisa Psicanálise e Saúde Pública do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo.
1 Texto elaborado com base na apresentação na mesa "Ditadura e homossexualidades", compartilhada com Renan Quinalha, Welson Barbato e Patrizia Corsetto (mediadora), promovida por Diálogos do Lacaneando, em 20 de agosto de 2016, na Livraria da Vila – Batel (auditório), Curitiba (PR).
2 Veja-se, p. ex., GREEN e QUINALHA (2014) "Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade".
3 A Escola das Américas, do Departamento de Defesa dos EUA, que treinou várias gerações de militares latino-americanos (notadamente os das ditaduras militares do século XX), incluía técnicas de tortura em seu currículo. Veja-se: 1) CASSEN (2012) "Uma escola de torturadores nas Américas"; 2) TRUCCHI (2012) "Escola das Américas traduz política externa dos EUA, diz fundador do SOA Watch"; 3) "La Escuela de las Americas" (vídeo) (2013).
4 Ou seja, uma posição inversa à de Carl Von Clausewitz – autor comentado por Lacan – para quem "a guerra é a continuação da política por outros meios" (CLAUSEWITZ , 1832/1996, p. 29).
5 Veja-se SCHIESINGER JR. (1966) Os mil dias: JK Kennedy na Casa Branca. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, p. 513. Também SCHILLING (s/d) "EUA, a doutrina da segurança nacional – Guerra fria".
6 Veja-se SCHILLING (s/d) op. cit. Foto disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/fotos/img35.htm>[Acesso em 25/8/2016].
7 A pulsão tanto pode ser defletida para um objeto exterior, quanto retroagir sobre o próprio eu.
8 "Na raiz daquela visão moralizante da política, com a preocupação dos princípios e do 'julgamento da história', estaria, talvez, a in#uência positivista (Benjamin Constant, por exemplo, 'tinha nojo da política' e considerava que 'os políticos não prestavam para nada, fossem liberais ou conservadores')" (BENEVIDES, 1981, p. 213).
9 Publicado em 21/03/2015, em Carta capital. Disponível em <http://www.cartacapital.com.br/revista/842/o-fantasma-da-udn-1308.html> [acessado em 22/08/2016].
10 Sobre isto, veja-se BARBERO, Graciela Haydée (2005) Homossexualidade e perversão na Psicanálise: uma resposta aos Gay & Lesbian Studies. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2005. Veja-se também DRESCHER, Jack (2013) A história da homossexualidade e a Psicanálise organizada.
11 "O sentido do sintoma é o real; o real enquanto ele se atravessa aí para impedir que as coisas andem (funcionem), no sentido de que elas deem conta delas mesmas de maneira satisfatória; satisfatória ao menos para o mestre" (LACAN, 1975 [1974]), p. 4.
12 O contexto da psicanálise em intensão.
13 O contexto da psicanálise em extensão.
14 Ver KOJÈVE, Alexandre (1947 [1933-1939]/2002). À guisa de introdução. In: Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro, Contraponto / EDUERJ, 2002.
15 (1904-1905/1974). A ética protestante e o espírito do capitalismo. In: Weber. São Paulo, Abril Cultural, 1974 (Col. "Os Pensadores", v. XXXVII), p. 181-237.
16 Veja-se entrevista especial com Michael Löwy "O marxismo weberiano: uma das múltiplas expressões no campo intelectual brasileiro", publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos.
17 Ver orelha do livro de LÖWY, Michael (2014).A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano. São Paulo, Boitempo, 2014.
18 Além de ter alterado profundamente as relações entre religião e Estado.
19 Veja-se a matéria "Forbes lista os pastores mais ricos do Brasil", em Época Negócios, 18/01/2013.
20 CUNHA (2011) Disponível em <https://twitter.com/depeduardocunha/staus/70700601712967680>. [Acesso em 25/08/2016].
21 CUNHA (2012) E-mail: deputadoeduardocunha@depeduardocunha, em 29 de maio de 2012.
22 Sobre isto, veja-se SCHIRMER, Anderson (2015). Homofobia, véu do real. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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