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Stylus (Rio de Janeiro)
Print version ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.33 Rio de Janeiro Nov. 2016
ESPAÇO ESCOLA
Ensino e saber
Education and knowledge
Dominique Fingermann*
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil
RESUMO
Tanto Freud quanto Lacan, embora com metodologias e estilos bem diferentes, mostraram entusiasmo e rigor incansáveis para sustentar com suas elaborações a questão de Lacan, em 1957: "O que a psicanálise nos ensina, como ensiná-lo?" Devemos às suas insistências e ousadias o que chamamos habitualmente de "a obra freudiana" e "o ensino lacaniano". Este último propõe progressivamente, no entanto, uma descontinuidade em relação à sua releitura de Freud ao introduzir, para sua leitura do inconsciente, uma prática da letra segundo os dois eixos que seguirão até o final de seu ensino, a formalização e a via da ressonância poética: o matemático e o maternal, o matema e o poema. No intuito de esclarecer algumas mudanças da posição de Lacan em relação ao ensino da psicanálise, o texto desdobra três aspectos da questão: a posição ética do ensinante; a sensível diferença entre conceito, formalização e saber; e o antagonismo entre ensino e saber.
Palavras-chave: Ensino, Saber, Inconsciente, Conceito, Formalização.
ABSTRACT
Although using different methodologies and styles, both Freud and Lacan have shown us great enthusiasm and rigor in order to sustain with their elaborations Lacan's questioning, raised in 1957: "What does psychoanalysis teach us and how to teach it?" We owe to their braveness and insistence what we habitually call "the Freudian work" and "the Lacanian teaching". The latter proposes a progressive, however, a sort of discontinuity in relation to his reinterpretation of Freud as, for a reading of the unconscious, he introduces a practice of the letter according to the two axes which will remain until the end of his teaching, formalization and the way of poetic resonance: the mathematical and the maternal, mathem and poem. In order to clarify some changes in Lacan's position in relation to the teaching of psychoanalysis, this text approaches three aspects of the questioning: the ethic position of the one who teaches, the sensible difference between concept, formalization, and knowledge; and the antagonism between teaching and knowledge.
Keywords: Teaching, Knowledge, Unconscious concept, Formalization.
É, no entanto, indispensável que o analista seja, no mínimo, dois: o analista para ter efeitos e o analista que teoriza esses efeitos.
(LACAN, Jacques. Le séminaire, livre 22: RSI, inédito, Aula de 10/12/1974).
Tanto Freud quanto Lacan, embora com metodologias e estilos bem diferentes, mostraram entusiasmo e rigor incansáveis para sustentar com suas elaborações a questão que Lacan, em 1957, formula tão simplesmente: "O que a psicanálise nos ensina, como ensiná-lo?" (LACAN, 1957a/1998, pp. 438-439). Devemos às suas insistências e ousadias o que chamamos habitualmente de "a obra freudiana" e "o ensino lacaniano". Cada um, ao longo de seu percurso teimoso, contando com inúmeras parcerias e driblando seus percalços e "acidentes" das épocas que atravessaram, perseguiu a indagação: "qual é… esse algo que a psicanálise nos ensina ser-lhe próprio, ou o mais próprio, o verdadeiramente próprio, verdadeiramente o máximo, o mais verdadeiramente?" (Ibid., p. 441).
Alguns dizem: Freud explica, Lacan complica.
Freud inaugurou não somente o campo de experiência inédito dessa Outra Cena, o inconsciente, até então desconhecido, mas também a prática do conceito que possibilita, até hoje, rastrear, organizar, balizar o campo da experiência, se for constantemente reavaliado à medida da experiência da clínica. Impossível esquecermos a formidável aula de epistemologia freudiana, à altura do rigor e do estilo da psicanálise, que abre o seu ensaio metapsicológico sobre o conceito de pulsão:
Tais ideias, que depois se tornarão os conceitos básicos da ciência, são ainda mais indispensáveis à medida que o material se torna mais elaborado. Elas são da natureza das convenções, embora tudo dependa de não serem arbitrariamente escolhidas, mas determinadas por terem relações significativas com o material empírico, relações que parecemos sentir antes de podermos reconhecê-las e determiná-las claramente. Só depois de uma investigação mais completa do campo de observação, somos capazes de formular seus conceitos científicos básicos com exatidão progressivamente maior, modificando-os de forma a se tornarem úteis e coerentes numa vasta área (FREUD, 1915/s.d.).
Em continuidade com o "conceito" freudiano e as construções que ele possibilita, propomos "a prática da letra" (LACAN, 1965/2003, p. 200) que Lacan persegue ao longo de seu ensino, de acordo com as diversas interpretações/leituras da letra que incidem sobre e inflexionam sua abordagem "do texto psicanalítico" e o que se pode transmitir a partir daí.
De fato, "A instância da letra no inconsciente e a razão desde Freud" (LACAN, 1957b/2003) explicita, a partir dos recursos da linguística, uma continuidade com relação aos conceitos freudianos, quando desdobra, como metáfora e metonímia, a instância da letra freudiana que A interpretação dos sonhos explicava como condensação e deslocamento das representações inconscientes. É, no entanto, uma descontinuidade em relação à sua releitura de Freud que o ensino lacaniano propõe progressivamente ao introduzir, para sua leitura do inconsciente, uma prática da letra segundo os dois eixos que seguirão até o final de seu ensino, a formalização e a via da ressonância poética: o matemático e o maternal (LACAN, 1971-72/2001, Aula de 04/05/1972), o matema e o poema.
A persistência e a coragem, tanto de Freud quanto de Lacan, não lhes impediram de apreender a dificuldade, para não dizer a aporia, que o ensino da psicanálise encontra forçosamente. Para Freud, a transmissão da experiência combinava dois "impossíveis": educar e psicanalisar. Por outro lado, em 1926, em "A questão da análise leiga" ele desdobra, com bastante humor e lucidez, o paradoxo da transmissão: como alcançar com palavras alguém que não passou pela experiência?
Sei que não posso convencê-lo. Isto está além de qualquer possibilidade e, por esse motivo, além de minha ffinalidade. Quando ministramos aos nossos alunos instrução teórica em psicanálise, podemos ver quão pouca impressão lhes estamos causando, para começar. Eles absorvem as teorias da análise tão friamente quanto outras abstrações com as quais são alimentados. Poucos deles talvez desejam ficar convencidos, mas não há qualquer vestígio de que estejam. Mas também exigimos que todo aquele que quiser praticar a análise em outras pessoas se submeta ele próprio a uma análise. É somente no curso dessa 'autoanálise' (como é confusamente denominada), quando eles realmente têm a experiência de que sua própria pessoa é afetada – ou antes, sua própria mente – pelos processos afirmados pela análise, que adquirem as convicções pelas quais são ulteriormente orientados como analistas. Como então poderia esperar convencê-lo, a Pessoa Imparcial, da correção das nossas teorias, quando só posso pôr diante do senhor um relato abreviado e, portanto, ininteligível das mesmas, sem confirmá-las pelas próprias experiências do senhor? (FREUD, 1926/sd).
Lacan menciona igualmente esse impasse, embora seu ensino, em um primeiro tempo, tentará forçar esse obstáculo – apostando nos efeitos de formação como "indução mesma que meu ensino visa" (LACAN, 1964/2003), até que conclui e constata o fracasso do que chamou de sua "missão", e finalmente extrai da letra outras vias de transmissão do saber inconsciente –, concluindo, nos anos 1970, com um antagonismo entre o ensino e o saber.
Podemos ler nessa provocação do seminário sobre O ato psicanalítico uma posição sensivelmente diferente da observação de Freud em "A questão da análise leiga": com efeito, Lacan, depois de ter escrito na lousa a frase "l'homme est un animal, à moins qu'il ne se n'homme", (LACAN, 1967-68/inédito, Aula de 20/03/1968) adverte, de uma certa forma, o público sobre esse antagonismo, dizendo que provavelmente eles não vão compreender nada; no entanto, o jogo que evidencia o equívoco da linguagem vai produzir suas ressonâncias, pelo deslize das palavras, pelo devaneio: "le côté rêverie" que fisga mais além da compreensão e do pensar.
Essa pequena fórmula não tem a pretensão de ser um pensamento. Pode ser que, apesar de tudo, sirva de ponto de engate, de pivô para um certo número de vocês que não compreenderão nada, por exemplo, do que direi hoje, não é impensável. Não compreenderão nada, o que, mesmo assim, não lhes impedirá de sonhar com outra coisa [...]. O lado de devaneio daquilo que sempre se produz em todo tipo de enunciado com pretensão 'pensatória', ou que se acredita como tal, deve ser sempre levado em conta, e, por que não, dar-lhe seu pequeno ponto de engate? (Ibid.).
No intuito de esclarecer algumas mudanças da posição de Lacan em relação ao ensino da psicanálise, vamos agora desdobrar três aspectos da questão:
– A posição ética do ensinante;
– A sensível diferença entre conceito, formalização e saber;
– O antagonimo entre ensino e saber.
Ensinar: uma posição ética
Inúmeras vezes, Lacan menciona o início da sua "missão" com relação ao ensino da psicanálise que ele mesmo inaugura desde 1951. A situação da psicanálise na França no anos 1950 (no pós-guerra e depois da morte de Freud), a falta de orientação, de rigor, as derivas e as leituras equivocadas da obra freudiana engajaram essa guerra contra o obscurantismo que ele travou incessantemente durante trinta anos.
O que podemos extrair de seu percurso que sirva para nossa orientação da prática da psicanálise? Antes de tudo, o fato de que o ensino da psicanálise procede de uma "posição", posicionamento e responsabilidade – ética, portanto.
Recorto três pistas que até hoje participam da implicação e do engajamento no ensino da psicanálise:
– a responsabilidade em relação à psicanálise;
– a responsabilidade em relação ao psicanalista;
– e, consequentemente, uma necessidade do analista de se pôr à prova na provação insistente da transmissão do intransmissível em que consiste o desafio ético próprio à psicanálise na sua relação com o Real.
A responsabilidade em relação à psicanálise
No início, parece que o objetivo de Lacan ("mon dessein") foi a urgência de uma retificação "no campo aberto por Freud, restaurar a sega cortante da sua verdade" (LACAN, 1964/2003, p. 235) para que o ensino da psicanálise tivesse efeito de formação para com os futuros operadores, e que sua extensão espaço-temporal prolongasse a manutenção de sua via original.
[...] Fui chamado, pelas condições difíceis com que se deparou o desenvolvimento dessa prática na França, a assumir nela uma posição que é uma posição de ensino (LACAN, 1966a/2003, p. 226).
Em seus Escritos e seminários dos anos 1950, a empreitada de leitura dos textos freudianos e o retorno a Freud estão constantemente entremeados com longos desdobramentos criticando os mal-entendidos e contrassensos que circulam na literatura psicanalítica e nos congressos de então. Sessenta anos depois, podemos indagar se essas polêmicas interessam ainda para nossa formação analítica e se fazem parte do corpus do ensino de Lacan, da mesma forma que a construção dos tão valiosos operadores conceituais da clínica. Todavia, essa "crítica assídua" (LACAN, 1964/2003, p. 235) interessa mesmo e tem um efeito didático inegável, na medida em que oferece o exemplo de um analista extremamente atento e curioso das elaborações de seus contemporâneos, extraindo dos desvios expostos, indicações precisas para a manutenção do procedimento freudiano e do seu tratamento tão preciso das consequências do inconsciente e das suas "formações".
Além disso, muitas dessas críticas e observações estão, infelizmente, bem atuais, e gostaríamos de ter a mesma ousadia que Lacan para colocar nossas diferenças à altura de um debate conceitual.
A responsabilidade em relação ao psicanalista
Logo mais, no entanto, Lacan apreendeu que a questão dos desvios e mal-entendidos não era somente uma questão de explicações claras e precisas, mas que o que estava em jogo era a formação analítica do analista enquanto agente da operação. Nada surpreendente, já que ele retoma novamente a insistência e a exigência freudianas a respeito da análise pessoal.
O seu ensino, então, comportou uma meta explícita de ter efeitos de formação, podendo induzir a uma mudança de posição em quem estava ouvindo com incidências para a prática da psicanálise, articulando, desde então, a estrutura do sujeito com a lógica da cura, e abrindo o capítulo da psicanálise pura e mais além da articulação da intensão (o mais próprio da psicanálise) com a sua extensão, que o dispositivo do passe almejava "resolver".
Vejamos como ele expõe esse objetivo explícito de seu ensino:
[...] Foi preciso que a insuficiência do ensino psicanalítico eclodisse na luz para que nos empenhássemos na tarefa de exercê-lo [...]. O que quer dizer isso, senão que nunca estivemos interessados senão na formação de sujeitos capazes de entrar numa certa experiência que aprendemos a centralizar onde ela existe? Onde ela existe – como constituída pela verdadeira estrutura do sujeito, que, como tal, não é inteira, mas dividida, deixando cair um resíduo irredutível, cuja análise lógica está em andamento (LACAN, 1966b/2003, p. 222).
Sabemos que este vetor do seu ensino não passou desapercebido, foi interpretado como abuso (passar recados "selvagens" para seus analisantes durante seus seminários!) e foi incluído no extenso processo que resultou na sua exclusão da posição de didata e, portanto, assinou a sua "excomunhão".
Sabemos igualmente que o impacto e a ressonância das palavras entre fala-seres é singular, incalculável e contingente, é feito de transferência e – muito além de seus efeitos simbólicos e imaginários – de sua repercussão do real em jogo e do mistério do corpo falante que ela encaminha. Sabemos, por experiência, como a leitura dos textos de Freud e Lacan impactou e orientou nossa relação com a psicanálise.
Necessidade do analista de se pôr à prova na provação insistente da transmissão do intransmissível, em que consiste o desa"o ético próprio à psicanálise na sua relação com o Real
Muito cedo, Lacan precisa que a prática do ensino, "a práxis da teoria", tem um valor ético inegável: "a ética da psicanálise que é a práxis de sua teoria" (LACAN, 1964/2003, p. 238).
Os trinta anos de seu ensino assíduo só confirmarão e precisarão essa orientação.
Se no início a "missão" parecia se endereçar aos outros psicanalistas, o tempo, a experiência e a sensação de um fracasso em relação à missão fazem com que ele insista nos últimos anos em precisar que o ensino tem efeito de formação para ele próprio. É por isso que Lacan aponta insistentemente a posição de ensinante como uma posição analisante:
[...] O que realmente me cabe acentuar é que, ao se oferecer ao ensino, o discurso psicanalítico leva o psicanalista à posição do psicanalisante, isto é, não produzir nada que se possa dominar, malgrado a aparência, a não ser a título de sintoma (LACAN, 1970/2003, p. 310).
No Seminário 22: RSI, ele não hesita em aproximar sua posição de ensinante à supervisão:
[...] Que eu testemunho de uma experiência que especifiquei como sendo analítica e minha, é suposto como verídico.
Ver até onde essa experiência me conduz pelo seu enunciado, tem valor de supervisão/controle (sei as palavras que utilizo) (LACAN, 1974-75/inédito, Anexo I).
O analista, para funcionar enquanto tal, precisa ser pelo menos dois: um atento e firme na condução do tratamento, e o outro para teorizar essa condução e esse tratamento.
A proposta do dispositivo do cartel leva em conta essa função didática da sua "práxis da teoria" para o próprio analista. A "Alocução sobre o ensino" precisa, mais uma vez, essa evidência do impacto do ensino sobre o ensinante que se dispõe a ser analisante da psicanálise: "Só posso ser ensinado à medida de meu saber, e ensinante, já faz um tempão que todos sabem que isso é para eu me instruir" (LACAN, 1970/2003, p. 304).
O que se ensina? Conceito, formalização, matema, saber
CONCEITO
O ponto de partida do ensino de Lacan foram os textos freudianos. Sua empreitada de leitura e retorno a Freud consistiu essencialmente em extrair desse testemunho imenso, de uma prática exigente na sua elucidação e explicitação constante, os conceitos que daí se distinguiram como fundamentais.
A estrutura da análise pode ser "formalizada de maneira inteiramente acessível à comunidade científica, por pouco que se recorra a Freud, que propriamente a constituiu" (LACAN, 1957c/1998, p. 439).
Com efeito, será na precisão e no rigor dos conceitos tão cuidadosamente lapidados por Freud que se reencontrará a direção da cura e os princípios de seu poder para se contrapor à desorientação geral dos anos 1950: "Não há limite para o desgaste da técnica por sua desconceituação" (LACAN, 1958/1998, p. 618).
Lembramos que ao se separar da Associação Internacional de Psicanálise (IPA), ele prossegue no seu ensino no mesmo ano com um seminário intitulado Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, fazendo um recorte pessoal do arcabouço conceitual freudiano (o inconsciente, a repetição, a pulsão e a transferência), que marca não somente a ruptura com a IPA, como também, de certa forma, anuncia um caminho diferente daquele do suposto mero "retorno a Freud".
O seminário de 1964 conclui provisoriamente os anos de garimpagem e formalização que fizeram, até o final, Lacan declarar "sou freudiano", pois ele se dedicou a fazer dos termos com os quais Freud definiu a experiência conceitos e não preceitos.
Com os pós-freudianos em primeiro lugar, e depois com o próprio Freud, a formalização lacaniana se esforçou para elucidar "a flagrante incerteza da leitura dos grandes conceitos freudianos", como ele diz em 1957.
Desde os primeiros escritos e seminários, e de acordo com seus estudos de matemática e o rigor que ele almeja, Lacan nomeia esse esforço e orientação como "formalização". Recorrendo aos avanços da linguística para este primeiro lance, ele não hesita em reconhecer em Freud um mestre nessa tentativa, considerando que a Traumdeutung antecipava-se em muito às "formalizações da linguística" (LACAN, 1957b/2003, p. 516).
DA FORMALIZAÇÃO AO MATEMA
Preocupado inicialmente em "assegurar à nossa disciplina seu lugar nas ciências" (LACAN, 1953/1998, p. 285), Lacan localiza o problema como "problema de formalização, na verdade muito mal introduzido" (Ibid.), e não hesita em se apropriar do exemplo da matemática, com sua extensão lógica e topológica como anuncia no texto "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise":
Vê-se por esse exemplo como a formalização matemática que inspirou a lógica de Boole, ou a teoria dos conjuntos, pode trazer à ciência da ação humana a estrutura do tempo intersubjetivo da qual a conjectura psicanalítica necessita para se garantir em seu rigor (Ibid., p. 288).
Lacan nunca desistirá do esforço, sempre renovado, para fundar a prática da psicanálise no rigor da matemática:
Ela só dará fundamentos científicos à sua teoria e à sua técnica ao formalizar adequadamente as dimensões essenciais de sua experiência, que são, juntamente com a teoria histórica do símbolo, a lógica intersubjetiva e a temporalidade do sujeito (Ibid., p. 290).
No entanto, por volta dos anos 1970, Lacan realiza um salto notável em relação à sua referência à formalização: esta não é mais descritiva de um recurso, a referência do que se transmite na psicanálise, no que diz respeito à estrutura da linguagem, é a lógica formal: "A lógica matemática não é, como só nos pode ser imputado de má-fé, uma oportunidade de rejuvenescer um sujeito cunhado por nós" (LACAN, 1969/2003, p. 373).
O matema configura, então, o que se ensina, "o ensinável": o que pode se ensinar daquilo que interessa precisamente Lacan é sua orientação ética da prática analítica pelo real. O matema é o único acesso para transmitir o que está fora do sentido, "ensinar" o impasse, o impossível, o real, sem recurso a qualquer experiência: "É nisso que os matemas com que se formula em impasses o matematizável, ele mesmo a ser definido como o que de real se ensina de real, são adequados para se coordenar com essa ausência tomada do real" (LACAN, 1972/2003, p. 480).
O MATEMA E O SABER
A invenção, elaboração do conceito de alíngua, em 1972 em O saber do psicanalista, modifica a concepção do saber inconsciente, modifica a lógica da cura e também a transmissão da experiência: o saber-alíngua não se transmite pela via do matema, mas sim pelo saber-fazer com alíngua – o poema.
Lembramos aqui a apresentação do conceito de alíngua no Seminário 20: Mais, ainda:
A linguagem, sem dúvida, é feita de alíngua. É uma elucubração de saber sobre alíngua. Mas o inconsciente é um saber, um saber-fazer com alíngua. E o que se sabe fazer com alíngua ultrapassa de muito o de que podemos dar conta a título de linguagem. Alíngua nos afeta primeiro por tudo que ela comporta como efeitos que são afetos. Se se pode dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, é no que os efeitos de alíngua, que já estão lá como saber, vão bem além de tudo o que o ser que fala é suscetível de enunciar (LACAN, 1972-73/1985, p. 190).
Ensino e saber
Há uma continuidade no longo percurso do ensino de Lacan, procedente de sua posição ética (não ceder na sua responsabilidade do dizer) e do rigor lógico que dela decorre. No entanto, podemos marcar três tempos na sua concepção do que é um ensino da psicanálise que "não a dissolve naquilo que ela propaga", ou seja, que possibilita que novas gerações "reencontrem a mensagem da experiência freudiana e seu motor".
– o retorno a Freud;
– o "nosso" ensino;
– o fracasso do ensino incompatível com o saber.
O RETORNO A FREUD
O ponto de partida foi o "retorno a Freud" e a leitura cuidadosa dos textos e dos conceitos que a obra freudiana legou. O formidável testemunho da descoberta do inconsciente e da invenção da psicanálise é lido, citado, rastreado e mapeado em torno de seus conceitos fundamentais no decorrer de uma apaixonante "prática do comentário" compartilhada pela geração que inaugurou, desde os anos 1950, o estilo próprio da "psicanálise francesa".
Embora os recortes, o mapeamento e a interpretação do legado freudiano marquem desde já o estilo próprio e a perspectiva de Lacan, este faz questão de demonstrar que a psicanálise que ele pratica e ensina é coerente com a letra freudiana e suas formalizações.
O recado está dado: ser psicanalista, de acordo com a orientação e os conceitos próprios da sua invenção subversiva, só pode valer se for atravessado pelo estilo de cada um que adentra esta aventura:
Qualquer retorno a Freud que dê ensejo a um ensino digno desse nome só se produzirá pela via mediante a qual a verdade mais oculta manifesta-se nas revoluções da cultura. Essa via é a única formação que podemos pretender transmitir àqueles que nos seguem. Ela se chama: um estilo (LACAN, 1957a/2003, p. 460).
O "NOSSO" ENSINO
Rapidamente topamos nos Escritos e seminários com uma referência constante ao que aparece insistentemente designado como "meu ensino", "nosso ensino".
Mais além da leitura e do comentário do texto freudiano, fica patente que o que está em jogo na construção desse arcabouço teórico fenomenal é a explicitação de um cuidado e uma relação ímpar com a clínica psicanalítica e as tentativas teimosas de abrir as vias possíveis de sua formalização.
O que Lacan nomeia "nosso ensino" consiste em um caminho em espiral que se arrisca, ousa, lança mão de tantas referências surpreendentes e volta iterativamente sobre as mesmas questões estruturais e clínicas, com os mesmos termos, mas deslocando a cada vez um pouco a perspectiva, abrindo assim o horizonte e as vias de acesso ao real da clínica, "necessárias à inteligência do texto de nossa experiência".
Desvios, atalhos, piruetas, aforismos, demonstrações, lapidações, ingressos na literatura, filosofia, teologia, linguística, poesia, chinês, amplificações, reduções, matemática, construções, formalizações, neologismos: "nosso ensino" deposita conceitos, trilha e sedimenta campos e caminhos. Talvez, mais do que qualquer coisa, produz excepcionalmente a orientação e a intranquilidade juntamente imprescindíveis para suportar "o real em jogo na formação do analista" (LACAN, 1967/2003, p. 249).
O FRACASSO DO ENSINO: INCOMPATÍVEL COM O SABER
Sabemos que por volta dos anos 1970, Lacan passa a colocar o seu ensino de cabeça para baixo. Ele faz isso com os conceitos, as referências, reformulando a sua concepção do inconsciente com as devidas consequências para a direção da cura e a concepção do final de análise e, portanto, do passe e da formação do psicanalista. Na esteira dessa reviravolta, é também a sua concepção de ensino que está na berlinda.
Desde 1967, com sua "Proposição sobre o psicanalista de Escola" e seu seminário contemporâneo sobre O ato do psicanalista, Lacan confessava o "fracasso" de seu ensino, embora tanto a "Proposição..." quanto a formalização do que vem a ser um "ato" subvertessem o impasse próprio à via do significante, em "passe".
Em 1970, por ocasião do encerramento de um congresso sobre o ensino, Lacan pronuncia a sua "Alocução sobre o ensino".
Esse texto eleva a questão para um nível além de simples lamento ou ressentimento, como salto condizente com suas reformulações conceituais.
Lacan se mostra severo e radical: "há um antagonismo entre ensino e saber" (LACAN, 1970/2003, p. 308), e ele adverte mesmo que "nosso discurso não se sustentaria se o saber exigisse a intermediação do ensino" (Ibid.).
O saber do inconsciente real, inconsciente sem sujeito, o saber d'alíngua que não se encadeia e não faz sentido, esse saber é antagônico, incompatível com o que passa no ensino, esse saber passa em ato, na "monstração" e não na demonstração.
Quando lemos, na mesma época, que é na via do matema que consiste o que é propriamente "ensinável", que a transmissão que possibilita é uma transmissão integral, podemos ficar perplexos com essa incoerência aparente.
De fato, há duas vias de "acesso" ao real, próprio à estrutura, intangível, impossível, de alcançar: demonstrar o real na medida em que é o limite intangível das vias significantes, e isto é o que "ensina" a via do matema, e possibilitar, em ato, uma caixa de ressonância para o real que ex-siste.
"A verdade pode não convencer, o saber passa em ato" (Ibid.), já dizia Lacan. "O que me salva do ensino é o ato" (Ibid., p. 309), precisa ele no final desta alocução.
A prática do ensino de Freud e Lacan foi suficientemente subversiva para transmitir os eixos teóricos que asseguram a persistência da psicanálise no mundo de hoje e, sobretudo, a responsabilidade própria do analista por estar à altura do real, a responsabilidade de invenção para tangenciar suas bordas e a-bordar seus efeitos e outros afetos: "Mas tal direção só se manterá através de um ensino verdadeiro, isto é, que não pare de se submeter ao que se chama novação" (LACAN, 1955/1998, p. 437).
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail: dfingermann@gmail.com
Recebido: 25/08/2016
Aprovado: 12/09/2016
* Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Autora do livro Por causa do pior (Iluminuras, 2005), em coautoria com Mauro Mendes Dias, organizadora do livro Os paradoxos da repetição (Annablume, 2014) e autora de A (de)formação do psicanalista (Escuta, 2016).