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Avaliação Psicológica
Print version ISSN 1677-0471
Aval. psicol. vol.13 no.2 Itatiba Aug. 2014
Prejuízos de funções executivas em usuários de cocaína e crack1
Executive Function Impairments in crack/cocaine abusers: case studies
Las alteraciones en las funciones ejecutivas de los usuarios de crack: estudios de caso
Vinícius Renato Thomé FerreiraI,2; Bruna Tolotti CologneseII
IIMED/Faculdade Meridional
IIConsultório Particular
RESUMO
O uso abusivo de substâncias é comportamento que causa danos significativos à saúde, sendo um dos principais problemas de saúde pública. A compreensão dos prejuízos ocasionados é fundamental para traçar estratégias mais eficazes de tratamento. A presente pesquisa propôs-se a investigar alterações neuropsicológicas em usuários cocaína e crack, identificando prejuízos nas funções executivas. Cinco pacientes, usuários de cocaína e/ou crack, participaram do estudo, por meio de aplicação de uma entrevista semiestruturada, do Instrumento de Avaliação Neuropsicológica Breve (Neupsilin), Teste Wisconsin de Classificação de Cartas (WCST) e Teste não verbal de inteligência geral – BETA III. Os resultados da avaliação demonstraram prejuízos na velocidade de processamento cognitivo, dificuldade no raciocínio geral e dificuldades em tarefas envolvendo atenção e memória na maioria dos sujeitos. Sendo estas funções necessárias ao funcionamento executivo, pode-se estimar que estes prejuízos na cognição e comportamento dos pacientes prejudiquem a aderência ao tratamento e manutenção da abstinência.
Palavras-chave: neuropsicologia; funções executivas; cocaína; crack.
ABSTRACT
Abusive drugs use is one of the most important problems in public health for causing many health damages. Proper understanding of these impairments is central to organize better treatment strategies. This paper objectived to investigate changes in neuropsychological crack/cocaine users, identifying changes in the executive functions and comparing the executive functioning of study participants. Five cocaine/crack users were evaluated by application of a semi-structured interview, Brief Neuropsychological Assessment Instrument (NEUPSILIN), Wisconsin Card Sorting Test (WCST) and nonverbal test BETA III. The results had showed impairments in processing speed and difficulty in cognitive processing and general difficulties in tasks involving attention and memory in most subjects. As these executive functions are highly necessary to organize and maintain behavior control, disadvantage may difficult treatment adherence and abstinence behavior.
Keywords: neuropsychology; executive functions; cocaine; crack.
RESUMEN
El abuso de sustancias es un comportamiento que causa un daño significativo a la salud y se considera uno de los principales problemas de salud pública. Comprender el daño es esencial para los profesionales de salud mental. El presente estudio tuvo como objetivo investigar los cambios neuropsicológicos em el uso de la cocaína y/o de crack. Cinco pacientes usuarios participaron a través de la aplicación de una entrevista semi-estructurada, el Instrumento de Evaluación Neuropsicológica Breve (NEUPSILIN) Prueba de cartas de Wisconsin (WCST) y el test de inteligencia BETA III. Los resultados mostraron alteraciones en la velocidad de procesamiento cognitivo, dificultad para pensar y dificultades generales en tareas que implican la atención y la memoria. Siendo las funciones necesarias para el funcionamiento ejecutivo, se puede estimar que estas alteraciones en la cognición y el comportamiento de los pacientes afectan la adherencia al tratamiento y el mantenimiento de la abstinencia.
Palabras-clave: neuropsicología; funciones ejecutivas; cocaína; crack.
O uso abusivo de substâncias é problema de saúde que atinge proporções cada vez maiores, ano a ano. Neste contexto, uma compreensão mais eficiente dos prejuízos gerados por este comportamento nocivo é fundamental para se poder estabelecer estratégias de tratamento e combate mais eficientes. A neuropsicologia tem se posicionado como área de conhecimento e intervenção que pode contribuir muito, pois oferece a possibilidade de conhecer os efeitos provocados pelas drogas nas funções executivas (FE) e consequentemente sobre o comportamento do usuário (Sohhlberg & Mateer, 2009).
No Brasil, o cenário do uso de drogas ilícitas aponta que, na população geral, há uma prevalência de uso de cerca de 22,8 por cento, o que equivale a mais de dez milhões e meio de pessoas. O uso de cocaína atinge 2,9 por cento da população e o uso de crack, 0,7 por cento. A faixa etária predominante para o uso de cocaína e crack é de 25 a 34 anos. O percentual de homens usuários em relação ao percentual de mulheres é maior em todas as faixas etárias e substâncias, e o percentual de pessoas que já receberam algum tipo de tratamento para o uso de álcool e outras drogas é de 2,9 por cento (Brasil, 2007). A adequada compreensão dos fatores implicados é fundamental para o estabelecimento de estratégias e políticas públicas eficazes de tratamento (APA, 2002; Barrio-Cantalejo & cols., 2011; Bogstrand, Gierde, Normann, Rossow, & Ekeberg, 2012; Degenhardt et al., 2008; Macintyre, 2011; Mccambridge, Mcalaney, & Rowe, 2012; Patel & Thornicroft, 2009; Ribeiro, Sanchez, & Nappo, 2010).
A necessidade de tratamento se manifesta quando o uso de substâncias se torna prejudicial ao indivíduo. Segundo o DSM-IV-TR (APA, 2002), o uso prejudicial é aquele que se constitui num padrão de uso repetitivo, de uma única substância ou várias delas, que provoca consequências adversas, como fracasso em cumprir obrigações importantes, envolvimento em situações que representem perigo para a integridade física, múltiplos problemas legais e problemas sociais e interpessoais recorrentes. A Classificação Internacional de Doenças (OMS, 1993) considera o uso nocivo de substância aquele que está causando dano físico ou mental ao paciente. A dependência de substância é um agravamento do quadro, incluindo forte desejo ou compulsão para o consumo da substância, dificuldades para controlar o comportamento em relação ao início, quantidade ou término do consumo, a presença de abstinência quando da redução ou parada do consumo, eventual ocorrência de tolerância, redução do repertório comportamental e persistência no uso da substância.
A neuropsicologia trata das relações entre cérebro e o comportamento, objetivando compreender como estão relacionadas as funções cognitivas humanas e o substrato neural (Fonseca, Salles, & Parente, 2009). Uma das atividades principais do processo de avaliação neuropsicológica é determinar quais FE estão comprometidas para então intervir na redução dos sintomas para minimizar este comprometimento. As FE podem ser definidas como operações que visam ao controle e à regulação do processamento da informação no cérebro. São elas que permitem ao indivíduo interagir com o mundo de maneira intencional, formulando planos de ação baseados em experiências prévias, sendo essas ações flexíveis e adaptativas, monitoradas pelos indivíduos ao longo do processo de execução (Dias, 2009).
As FE mais comumente avaliadas são linguagem, atenção e concentração, percepção visoespacial, habilidade visoconstrutiva, memória e aprendizagem verbal, auditiva e visual. Os sistemas sensoperceptivo e motor (praxias) são usualmente incluídos na avaliação. Os testes neuropsicológicos, que são medidas de processos psíquicos e os comportamentos deles decorrentes, constituem- -se excelente forma de averiguar a qualidade do funcionamento cerebral. Ao avaliar as FE busca-se delinear o perfil cognitivo do paciente, identificando a extensão e a gravidade do déficit, estabelecendo os comprometimentos e os recursos preservados. Este delineamento é feito a partir da integração dos dados obtidos por meio de testes e provas padronizadas que aferem as funções corticais superiores com dados adicionais sobre o estado de saúde física e mental, personalidade, história de vida e condição socioeconômica. Ao lançar hipóteses sobre a qualidade e a extensão do prejuízo, pode-se igualmente inferir possibilidades de reabilitação, estimando o diagnóstico, o prognóstico, o planejamento dos procedimentos de reabilitação e o acompanhamento da evolução do quadro (Dias, 2009; Pawlowski, 2011; Silveira & Doering- Silveira, 2010).
Os prejuízos neuropsicológicos provocados pelo uso de SPAs indicam lentificação no processamento de informações, prejuízos na capacidade visioconstrutiva e de percepção visioespacial, na organização e capacidade de planejamento de tarefas, formação de conceito, aprendizagem, funções executivas, tempo de reação, memória episódica, memória operacional e atenção concentrada. Ao comparar dependentes de cocaína com população geral, foram constatadas, em tarefas de avaliação das funções executivas, dificuldades em planejamento, controle de impulsos e capacidade de abstração (Cazenave, 2010; Hyman, 2008; Lee et al., 2008; Seibel, 2010; Silveira & Doering-Silveira, 2010). Usuários de cocaína e crack em comparação com controles sem histórico de uso de substâncias tendem a apresentar maior impulsividade, comprometimento da atenção sustentada e retenção verbal em tarefas que exigem maior tempo de elaboração, que podem determinar dificuldades de aprendizagem. Há também evidências de prejuízos em testes de atenção, fluência verbal, memória visual, memória verbal, capacidade de aprendizagem e funções executivas (Formigoni & Abrahão, 2010). Sujeitos com alterações neuropsicológicas devido ao uso de álcool apresentaram, em pesquisas, desmotivação para mudança de comportamento. As alterações constatadas nas capacidades de planejamento e flexibilidade mental estavam diretamente relacionadas com a dificuldade de fazer escolhas assertivas com relação à manutenção da abstinência e afetando a aderência ao tratamento (Rigoni, 2009).
Objetivou-se investigar alterações neuropsicológicas em usuários de cocaína e/ou crack, de forma a apresentar um perfil das funções neuropsicológicas prejudicadas com o uso destas substâncias. Para tanto, participaram deste estudo cinco usuários de SPA que realizaram o Teste não verbal de inteligência geral – BETA III, Instrumento de Avaliação Neuropsicológica Breve (Neupsilin) e Teste Wisconsin de Classificação de Cartas (WCST), para avaliar FE. As informações foram comparadas, buscando identificar se há FE prejudicadas e qual este nível de prejuízo.
Método
Participantes
Os participantes foram cinco indivíduos adultos jovens, com idades entre 22 e 31 anos, todos do sexo masculino, com diagnóstico de uso abusivo de cocaína e/ou crack, atestado em laudo psiquiátrico no prontuário do paciente, por um período mínimo de 12 meses. A escolaridade mínima de ensino fundamental completo, variando entre 8 e 16 anos de estudo. Não houve restrição quanto à classe sócio econômica, havendo participantes pertencentes da classe A a D. A frequência referida de uso de cocaína e/ou crack pré-internação foi de diária a semanal. Todos os pacientes faziam uso de medicação no momento da avaliação, tendo em vista que estavam internados.
Instrumentos
A avaliação neuropsicológica foi realizada a partir da aplicação dos seguintes instrumentos:
a) Entrevista semiestruturada: levantou dados sócio- -demográficos, passado mórbido familiar, histórico de uso de substâncias, prejuízos no funcionamento após o uso de SPAs e histórico de tratamentos;
b) Instrumento de Avaliação Neuropsicológica Breve – Neupsilin: bateria neuropsicológica para avaliar o estado cognitivo, detectando funções preservadas e deficitárias. Consiste em 32 subtestes que avaliam oito funções neuropsicológicas (Orientação têmporo-espacial, atenção, percepção, memória, habilidades aritméticas, linguagem, praxias e funções executivas), com tempo de aplicação entre 30 e 50 minutos (Fonseca, Salles, & Parente, 2009);
c) Teste Wisconsin de Classificação de Cartas (WCST): tarefa de solução de problemas abstratos que requer a habilidade para formar conceitos abstratos, classificar e manter uma série, inibir respostas prepotentes estabelecidas e utilizar feedback. O WCST foi formulado para investigar lesões cerebrais e comprometimento de funções cognitivas. Como teste de resolução de problemas, seus critérios de resolução mudam conforme as tarefas, exigindo do respondente uma compreensão dos princípios lógicos do problema (Cunha et al., 2005; Silva-Filho, Pasian, & Humberto, 2011).
d) Teste não verbal de inteligência geral – BETA III: consiste na padronização brasileira dos subtestes Raciocínio Matricial e Códigos do WAIS, e possui por objetivo a avaliação do raciocínio geral e velocidade de processamento em adolescentes e adultos. Avalia a capacidade de resolver problemas novos, relacionar ideias, induzir conceitos abstratos e compreender implicações (Rabelo, Pacanaro, Leme, Ambiel, & Alves, 2011).
Procedimentos
Após submissão e aprovação do projeto de pesquisa por comitê de ética em pesquisa reconhecido pelo Conselho Nacional de Saúde (protocolo de pesquisa CAAE 04154412.8.0000.5319), foi iniciada a investigação. Os participantes do estudo estavam internados em instituição de atendimento psiquiátrico para tratamento de uso abusivo de substâncias, e foram selecionados mediante indicação da psicóloga do local e autorização do médico responsável pelo estabelecimento. Foram critérios de inclusão: (a) histórico de uso de substâncias psicoativas por período mínimo de 12 meses, comprovado pela documentação do serviço no qual contém o arquivo clínico de cada paciente; (b) escolaridade mínima de ensino fundamental completo; e (c) idade mínima igual ou superior a 18 anos. Foram excluídos da amostra participantes que não concordaram em participar da pesquisa (ou sua participação não foi autorizada por seus responsáveis legais), apresentar suspeita de retardo mental, alterações comportamentais características de síndrome de abstinência, confusão mental (delírio, alucinação ou delirium) que pudesse interferir no processo da avaliação, bem como pacientes com idade inferior a 18 anos. Após a seleção inicial, foi também contatada a família do participante para explicação dos objetivos da pesquisa e solicitada assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Aos participantes foi garantido sigilo quanto à identidade, tanto quanto o caráter voluntário da participação no estudo.
A avaliação dos participantes foi realizada individualmente, em encontro de aproximadamente uma hora e quarenta minutos de duração, sem intervalo, em sala cedida pela própria instituição onde estavam internados, observando-se o critério de abstinência por um período de no mínimo duas semanas, para evitar o período crítico da desintoxicação aguda (Silveira & Doering-Silveira, 2010). Após a aplicação dos instrumentos, procedeu-se a análise das informações, no sentido de identificar quais e em que extensão houve prejuízo nas FE de usuários de cocaína e crack.
Resultados
Os instrumentos aplicados forneceram dados sobre o funcionamento neuropsicológico, através do Neupsilin, funcionamento executivo, por meio do WCST, e estimativas de inteligência através de dados sobre velocidade de processamento de informações de raciocínio geral, avaliados pelo BETA III.
As principais funções que apresentaram prejuízos pelo Neupsilin foram repetição e sequência de dígitos (sugestivo de prejuízos para S1 e S2), evocação tardia (sugestivo de prejuízos para S1, S3, S4 e na média geral da subtarefa), e praxia reflexiva (sugestivo de prejuízos para todos os participantes e na média geral da subtarefa). Escores z menores que -1,0 desvios-padrão são sugestivos de alerta para déficit, e considera-se sugestivo de déficit moderado a severo um escore z≤-1,5 (Fonseca et al., 2009).
O WCST apontou indícios de respostas perseverativas, erros perseverativos e erros não-perseverativos para os participantes S3 e S4, sugerindo prejuízos leves a moderados nestas tarefas (Silva-Filho et al., 2011).
O BETA III apontou a ocorrência de percentis inferiores em raciocínio matricial para S1 (percentil inferior) e S5 (percentil médio inferior) e média total da tarefa na classificação médio inferior, sugerindo prejuízos. Também foi identificado que na tarefa códigos todos os participantes obtiveram uma classificação em percentil inferior, ficando apenas S4 com classificação médio-inferior, o que também aponta para a ocorrência de prejuízos importantes (Rabelo et al., 2011).
Discussão
A tarefa de repetição de sequência de dígitos avalia atenção seletiva, que permite selecionar um estímulo dentre outros, como nessa tarefa, em que o testando deve prestar atenção na fala do aplicador ignorando os estímulos do ambiente, como ruídos, e estímulos internos, como pensamentos e sensações que possam distrair sua atenção. A atenção seletiva é fundamental para o desempenho de tarefas orientadas a um objetivo. Dessa forma, dificuldades em tarefas de atenção podem indicar prejuízos no funcionamento executivo. Quando as tarefas de avaliação da atenção tiverem escores prejudicados, é preciso considerá-lo ao se avaliar os escores de outras tarefas, pois os resultados de atenção podem influenciar o desempenho em outras tarefas de uma bateria (Dias, 2009; Fonseca et al., 2009).
A avaliação da memória no Neupsilin revelou prejuízos severos na tarefa de evocação tardia. A tarefa de evocação tardia pertence à avaliação da memória verbal episódico-semântica, que se refere ao armazenamento de informações relacionadas a eventos experimentados e fatos aprendidos (Fonseca et al., 2009). Quando o resultado de uma avaliação indica prejuízos nessa tarefa, fica a dúvida se a dificuldade do testando encontra-se na evocação da memória anteriormente armazenada ou se houve uma falha inicial, exatamente no momento do armazenamento. É possível inferir que a dificuldade de atenção tenha prejudicado o processo de armazenamento da informação.
Na tarefa de praxia reflexiva, todos os sujeitos demonstraram funcionamento abaixo da média, com indicativo de prejuízo leve por todos os sujeitos, à exceção do sujeito 2. O uso crônico de cocaína pode levar a alteração nas habilidades psicomotoras (Silveira & Doering- Silveira, 2010). No entanto, nessa pesquisa, os escores dos testandos nas outras tarefas referentes às praxias mantiveram-se na média ou muito próximo a média, indicando que a dificuldade pode estar relacionada com a dificuldade de atenção e memória apresentada, ou eventualmente ao efeito da medicação na ocasião do processo de avaliação.
O WCST avalia FE (Cunha et al., 2005). As médias de escore padrão do WCST não apontaram prejuízos; no entanto, ao se avaliar os resultados individuais, os sujeitos apresentam diversos graus de prejuízos, variando entre comprometimento leve, moderado e moderado a grave, estando presente em todos os itens avaliados. Escores baixos nesses itens indicam dificuldade de planejamento de uma estratégia apropriada de solução de problemas e mudanças de contextos cognitivos a partir de feedbacks ambientais. Quando um sujeito persevera, tanto em uma resposta, quanto em erros, significa que existe dificuldade de modificar uma estratégia a partir de um feedback. Em termos comportamentais, é possível considerar que o indivíduo terá dificuldade de modificar um comportamento já estabelecido, mesmo quando as contingências ambientais oferecem evidências de que tal comportamento pode não ser o mais apropriado. A memória de trabalho está integrada com a atenção seletiva ao selecionar informações relevantes para serem armazenadas. Ao discriminar e evocar memórias necessárias ao comportamento orientado a um objetivo se faz presente nos processos de planejamento e monitoramento da ação, e relaciona-se também com o controle inibitório, pois pretere algumas informações em relação a outras (Dias, 2009). Usuários de SPAs apresentam lentificação no processamento de informações, prejuízos na organização e capacidade de planejamento de tarefas, raciocínio abstrato e capacidade de monitoramento do comportamento. Há evidências de que o uso crônico de cocaína e crack provoca comprometimento na habilidade de abstração e solução de problemas. Foram encontradas como características dos usuários a maior impulsividade, o comprometimento da atenção sustentada e a retenção verbal em tarefas que exijam maior tempo de elaboração (Silveira & Doering-Silveira, 2010).
Na avaliação da inteligência obtida pelo teste BETA III, o subteste raciocínio matricial requer capacidade para resolver problemas novos, implicando a criação de estratégias a partir da organização das informações disponíveis (Rabelo et al., 2011). Em raciocínio matricial, a média do desempenho dos participantes está no percentil 34, que é classificado como médio inferior. A média dos participantes no subteste códigos foi classificada como inferior, com percentil médio 15. Este subteste é uma medida de velocidade de processamento, avaliando a capacidade de manter a atenção em uma determinada tarefa por um período de tempo estabelecido. Esses achados são corroborados pelos resultados encontrados no estudo de validação do instrumento com a participação de uma amostra de usuários de SPA. Ao ser comparado com o grupo controle, o grupo de usuários apresentou desempenho inferior no subteste raciocínio matricial, no entanto, tal diferença não foi estatisticamente significativa. Já no subteste códigos, a diferença foi significativa, indicando que o resultado dos dependentes químicos tende a ser mais prejudicado do que os controles (Rabelo et al., 2011).
Os prejuízos no funcionamento neuropsicológico de usuários abusivos de substâncias constatados neste estudo afetaram memória, e parecem gerar perda de flexibilidade do pensamento afetando a praxia. Dificuldades em atenção e memória significam dificuldades no funcionamento executivo, e quando o funcionamento executivo encontra-se prejudicado, o usuário abusivo de substância terá mais dificuldade de aderir ao tratamento e manter a abstinência. Se for considerado que as funções prejudicadas nos usuários abusivos de álcool da pesquisa são semelhantes às encontradas em usuários de cocaína/crack, podemos dizer que estes também enfrentarão a mesma dificuldade com relação à abstinência (Carvalho, Brusamarello, Guimarães, Paes, & Maftum, 2011; Feldens, Silva, & Oliveira, 2011; Rigoni, 2009; Silveira & Doering-Silveira, 2010; Viola et al., 2012).
As FE estão diretamente envolvidas no processo de adesão ao tratamento do uso abusivo de substâncias, o que justifica a necessidade de se levar em conta a avaliação neuropsicológica dos usuários de substâncias psicoativas. Os componentes preservados são capazes de minimizar os déficits. Não foi possível efetuar uma análise mais apurada entre a intensidade dos prejuízos do uso de crack apenas, de cocaína apenas e de uso combinado de crack e cocaína. Esta limitação deveu-se à escassez de sujeitos, não permitindo um estudo estatístico mais aprofundado.
A avaliação neuropsicológica mostrou-se eficiente para avaliar prejuízos nas FE de usuários abusivos de substâncias, o que já vem sendo indicado por vários estudos que apontam alterações de vários tipos no funcionamento cerebral, desde alterações morfológicas em estruturas cerebrais até o funcionamento diferenciado da barreira hematoencefálica (Hanlon & Canterberry, 2012; Kousik, Napier, & Carvey, 2012; McCarthy, Brown, & Bhide, 2012; Murray, Belin, & Everitt, 2012; Rawas et al., 2012; Roussotte et al., 2012).
Apesar da identificação de alterações em FE, este trabalho possui limitações. Estudos de caso são relevantes para apontar "situações-modelo", mas são insuficientes para indicar tendências ou características consistentes, que somente podem ser identificadas com uma amostra mais numerosa. Pesquisas que utilizem um número maior de instrumentos podem permitir uma confirmação de testes equivalentes, constituindo uma maior solidez na avaliação das FE prejudicadas. Ainda assim, os resultados levantados estão de acordo com a literatura, que aponta que usuários de SPAs apresentam dificuldades na utilização das FE, interferindo na aderência ao tratamento e manutenção da abstinência por não conseguir planejar uma ação, executá-la e monitorar o comportamento com eficiência.
O uso de medicação pelos avaliados também é um fator que pode ter influenciado no resultado da avaliação, visto que medicamentos podem alterar as FE e outras funções executivas. Apesar disso, tem-se em perspectiva que os resultados da avaliação apresentada pode ser indicadora de aspectos que precisam ser avaliados, do ponto de vista da neuropsicologia, em pacientes usuários abusivos de substâncias.
Os usuários de SPAs que participaram deste estudo apresentam rebaixamento no funcionamento da atenção e memória. Devido às características destes prejuízos conclui-se que os danos na atenção possivelmente interferiram nos processos de memória de trabalho, influenciando o desempenho nas tarefas de avaliação da inteligência e do funcionamento executivo. Sendo a memória de trabalho um subcomponente das FE, é possível afirmar que o seu funcionamento prejudicado influencia todo o desempenho executivo.
Em termos de considerações finais afirma-se que o grande prejuízo que o uso abusivo de substâncias está tomando nas últimas décadas exige esforços de intervenção que sejam eficientes e eficazes. Sem um posicionamento sério dos órgãos governamentais e ações de outras entidades não governamentais, corre-se o risco de que o problema fique cada vez mais fora de controle.
O uso abusivo de substâncias causa prejuízos importantes sobre o comportamento, afetando também funções executivas. Quando se reduzem as funções responsáveis pelo planejamento e controle do comportamento, as chances de modificação do comportamento acabam reduzindo. Assim, conhecer os efeitos do uso das substâncias sobre as FE, uma das metas da avaliação neuropsicológica, é importante para traçar estratégias interventivas assertivas que proporcionem a aderência ao tratamento e manutenção da abstinência.
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Recebido em junho de 2013
Reformulado em setembro de 2013
2ª reformulação em novembro de 2013
Aprovado em janeiro de 2014
Sobre os autores
Vinícius Renato Thomé Ferreira: é Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. É professor da Faculdade Meridional.
Bruna Tolotti Colognese: é Psicóloga pela Faculdade Meridional. Psicóloga Clínica.
1Os autores agradecem o apoio institucional da IMED/Faculdade Meridional para a realização desta pesquisa.
2Endereço para correspondência: IMED/Faculdade Meridional, R. Senador Pinheiro, 304, Bairro Rodrigues, 99070-220, Passo Fundo-RS. Tel.: (54) 9935-8189. E-mail: vthome2@gmail.com