Services on Demand
article
Indicators
Share
Avaliação Psicológica
Print version ISSN 1677-0471
Aval. psicol. vol.13 no.2 Itatiba Aug. 2014
Instrumentos de avaliação de componentes da leitura: investigação de seus parâmetros psicométricos
Assessment tests of reading components: investigation of theirs psychometric parameters
Instrumentos para la evaluación de los componentes de la lectura: la investigación de sus parámetros psicométricos
Natália Martins Dias1, I;Alessandra Gotuzo SeabraII; José Maria MontielI
ICentro Universitário FIEO – Unifieo
IIUniversidade Presbiteriana Mackenzie
RESUMO
De acordo com o modelo cognitivo da leitura, diversas habilidades contribuem para a compreensão de leitura, como reconhecimento de palavras (logográfico, alfabético e ortográfico); compreensão linguística; fluência. Assim, é importante dispor de instrumentos para a mensuração destas habilidades. Este estudo investigou as características psicométricas de instrumentos de avaliação destes distintos componentes da leitura. Participaram 443 estudantes da 1ª à 4ª série do Ensino Fundamental avaliados no Teste de Competência de Leitura de Palavras e Pseudopalavras (TCLPP), Teste Contrastivo de Compreensão Auditiva e de Leitura (TCCAL), Teste de Processamento Ortográfico Computadorizado e Teste de Velocidade de Leitura Computadorizado. Anova revelou efeito significativo da série sobre o desempenho em todos os instrumentos; o TCLPP e o TCCAL mostraram-se mais discriminativos. Para todos os instrumentos, os coeficientes Alpha de Cronbach figuraram satisfatórios. O estudo proveu evidências de validade e dados de fidedignidade aos diversos instrumentos.
Palavras-chave: psicometria; avaliação; leitura.
ABSTRACT
According to the cognitive model of reading, several abilities contribute to reading comprehension, such as word recognition, including logographic, alphabetic and orthographic strategies; linguistic comprehension; and fluency. Therefore it is important to have instruments for evaluation of these abilities. This study investigated the psychometric characteristics of instruments to assess these different reading components. Four hundred forty-three students of 1st to the 4th grades of the elementary school were evaluated in the Words and Non-words Reading Competence Test (TCLPP), Auditory and Reading Comprehension Contrastive Test (TCCAL), Computadorized Orthographic Processing Test and Reading Speed Test. Anova revealed significant effect of grade in the performance in all instruments; TCLPP and TCCAL were the most discriminative. The Alpha of Cronbach coefficients figured satisfactory for all tests. The study supplied validity evidences and reliability data to the diverse instruments.
Keywords: psychometrics; assessment; reading.
RESUMEN
En acuerdo con el modelo cognitivo de lectura, diversas habilidades contribuyen a la comprensión en lectura, tales como el reconocimiento de palabras, incluyendo estrategias logográfica, alfabética y ortográfica, la comprensión lingüística y fluidez. Por lo tanto, es importante disponer de instrumentos para la evaluación de estas capacidades. El estudio investigó las características psicométricas de los instrumentos para evaluar estos componentes de lectura. Los participantes fueron 443 estudiantes de primero a cuarto grados de la escuela primaria, evaluados en la Prueba de Competencia de Lectura de Palabras e non-palabras (TCLPP), Prueba Contrastiva de Comprensión Auditiva e de Lectura (TCCAL), Prueba del Procesamiento ortográfico y Prueba de Velocidad de Lectura Computadorizada. ANOVA reveló un efecto significativo del grado en el desempeño de todos los instrumentos; TCLPP y TCCAL fueron los más discriminativos. En todos los instrumentos el alfa de Cronbach calculado apresentó coeficientes satisfactorios. El estudio proporciona evidencias de validez y datos de la confiabilidad de los diversos instrumentos.
Palabras-clave: psicometría; evaluación; lectura.
No âmbito das investigações neuropsicológica e psicoeducacional, a linguagem escrita, sobretudo a leitura, destaca-se como objeto de grande interesse (Alves, Pinheiro, Reis, & Capellini, 2009; Escorcia, 2010; Flórez- Romero, Restrepo, & Schwanenflugel, 2009; Harley, 2004; Montiel, 2008; Salles & Parente, 2002; Seabra, Dias, & Capovilla, 2013; Suehiro, 2008). Uma justificativa pode ser o fato de que os problemas de leitura e de escrita são relativamente comuns no contexto escolar. Segundo Shaywitz, Morris, e Shawitz (2008), tais dificuldades são altamente prevalentes, com estatísticas que chegam a 17,5% dos estudantes do Ensino Fundamental desempenhando abaixo do esperado para seu nível de escolaridade. Fletcher, Lyons, Fuchs, e Barnes (2009) apontam que cerca de 80% dos diagnósticos de transtornos de aprendizagem incluem comprometimentos na leitura. Dados nacionais de prevalência de dificuldades ou de transtorno de leitura são escassos. Um dos poucos estudos nacionais sobre o tema, conduzido na cidade de Porto Alegre, encontrou prevalência de transtorno de leitura em 12,1% entre estudantes de 3ª série do Ensino Fundamental. Outro dado que pode ser relevante se refere às avaliações educacionais, a exemplo da Prova Brasil, realizada bianualmente, que tem evidenciado a baixa performance dos estudantes brasileiros. Na disciplina de Língua Portuguesa, estudantes da 4ª série (5º ano) do Ensino Fundamental atingiram desempenho médio de 172 na prova (variação de 0 a 500), muito abaixo do mínimo esperado, 250 pontos (Brasil, 2005).
A identificação e a remediação de tais problemas implicam dois aspectos fundamentais: o primeiro se refere à compreensão dos processos cognitivos subjacentes à habilidade de leitura; o segundo, à sua adequada avaliação. No que tange ao primeiro aspecto, a leitura pode ser considerada uma competência complexa, resultante da interação de diversos processos cognitivos. Diferentes modelos têm buscado explicitar tais processos. Um desses modelos é o de Gough e Tunmer (1986), segundo o qual a compreensão de leitura pode ser entendida como o produto da interação entre processos de decodificação e de compreensão linguística. Este modelo é conhecido como Simple View of Reading (SVR). Ele oferece uma estrutura geral para o entendimento dos processos de compreensão de leitura, embora se aceite que seus componentes possam ser decompostos e possam envolver outras habilidades. O SVR é considerado o modelo de compreensão de leitura mais compreensivo e mais utilizado internacionalmente. Tem sido corroborado por diversos estudos (para uma revisão, consultar Kirby & Savage, 2008), embora algumas críticas e sugestões de alterações e acréscimos tenham sido feitas. A seguir, são descritos os principais componentes do modelo e os apontamentos acerca de cada um deles.
Componentes da leitura
O primeiro componente da leitura, conforme a equação de Gough e Tunmer (1986), é a decodificação, que pode ser compreendida como a conversão de símbolos gráficos em sons, seja na leitura em voz alta ou na silenciosa. Porém, de modo mais amplo, decodificação pode ser compreendida como reconhecimento de palavras, o que confere ao modelo maior poder explicativo (Aaron, Joshi, Gooden, & Bentum, 2008; Aaron, Joshi, & Williams, 1999; Kirby & Savage, 2008).
Nesta visão mais ampla, o reconhecimento de palavras ocorreria por meio de processos distintos. Kirby e Savage (2008), a partir do modelo de dupla rota (Ellis & Young, 1988), sugerem que o reconhecimento de palavras se dá por decodificação grafofonêmica, na rota fonológica, ou por acesso direto ao léxico, na rota lexical. Este modelo, no entanto, não inclui a leitura logográfica, que, para alguns autores, é uma fase essencial para a aquisição da leitura e cuja ocorrência é suportada empiricamente (Bastien-Toniazzo & Jullien, 2001).
Neste sentido, pode-se compreender o reconhecimento de palavras com o modelo de Frith (1985, 1997). Nele, a primeira estratégia é a logográfica, em que o leitor trata a palavra como um desenho, realizando uma leitura por reconhecimento visual global, com uso de pistas contextuais. A segunda estratégia, a alfabética, implica conhecimento das correspondências entre letras e fonemas. Utiliza também processos de decodificação na leitura e de codificação na escrita. Com o recurso a esta estratégia, o leitor é capaz de converter o som em escrita e, assim, ler e escrever palavras novas e pseudopalavras. Na terceira estratégia, denominada ortográfica, em virtude de suas experiências de leitura, o leitor constitui um léxico mental ortográfico, tornando-se capaz de ler palavras familiares por meio de reconhecimento direto, sem necessidade de recorrer à conversão fonológica. O desenvolvimento desta estratégia possibilita o reconhecimento de itens que seriam incorretamente lidos pela aplicação dos processos de decodificação, como as palavras irregulares. Apesar de Frith originalmente ter desenvolvido esse modelo delimitando etapas ou fases na aquisição da leitura, outros autores, como Morais, Leite e Kolinsky (2013), observam que o termo "etapa" já não é tão usado, visto que o tipo de leitura depende do material a ser lido, além dos processos envolvidos nessa leitura. Portanto, podemos falar de processos ou estratégias logográfica, alfabética ou ortográfica, que podem surgir em momentos diferentes ou coocorrer em um leitor.
Outro modelo de reconhecimento de palavras é o de Ehri (2013), que se sobrepõe ao de Frith (1985, 1997). Para Ehri, há quatro fases no desenvolvimento da habilidade de reconhecimento de palavras. Na fase pré- -alfabética, a leitura ainda não envolve as relações letra- -som e o reconhecimento é baseado em pistas visuais. Na fase alfabética parcial, algumas relações letra-som já são conhecidas, mas o leitor ainda não é hábil no processo de decodificação. O leitor usa algumas letras (usualmente primeira e última) para, com seus sons, chegar ao reconhecimento da palavra – o mapeamento é parcial e ele pode ainda utilizar pistas visuais. A fase alfabética plena se caracteriza pelo desenvolvimento efetivo da habilidade de decodificação. Por fim, na fase alfabética consolidada, o leitor consegue realizar a leitura com padrões ortográficos.
A fase pré-alfabética de Ehri (alfabética plena e alfabética consolidada) supera a estratégia logográfica de Frith (alfabética e ortográfica). A fase alfabética parcial de Ehri pode ser compreendida como uma transição entre um processamento mais logográfico para o alfabético, pois, apesar de alguma segmentação, esta segmentação é incompleta e ainda há processamento logográfico. O modelo de Frith foi usado como base do presente estudo, visto que, no modelo de Ehri, a fase pré-alfabética não é considerada uma estratégia propriamente de leitura, mas, sim, uma etapa anterior a ela.
Retomando o modelo de Gough e Tunmer (1986), o segundo componente da leitura é a compreensão linguística, que se refere a uma habilidade geral, ou seja, inespecífica à linguagem escrita, e alude mais especificamente ao entendimento da linguagem oral (Kershaw & Schatschneider, 2010; Rotta & Pedroso, 2006). A compreensão linguística inclui, por exemplo, vocabulário, sintaxe, morfologia, semântica, habilidade de gerar inferências e de construir esquemas mentais, dentre outras habilidades verbais (Kirby & Savage, 2008), além de habilidades não-verbais que também cooperam no reconhecimento de palavras, tais como atenção, memória de trabalho e raciocínio (Morais et al., 2013). Essas habilidades permitem a compreensão auditiva de um estímulo auditivo e participam também do processo de compreensão de texto durante a sua leitura.
Além desses dois componentes, reconhecimento de palavras e compreensão linguística, investigações têm sugerido que a velocidade de processamento (Aaron et al., 1999; Aaron et al., 2008) ou, de modo mais específico, a fluência de leitura (Oakhill, Cain, & Bryant, 2003; Tilstra, McMaster, Broek, Kendeou, & Rapp, 2009) deve também integrar os processos componentes da compreensão de leitura. Kirby e Savage (2008), inclusive, destacam que a ausência de referência à fluência de leitura é uma das limitações do modelo de Gough e Tunmer. Segundo eles, a fluência é fundamental, pois um leitor, mesmo com uma decodificação precisa, poderá ter dificuldades na compreensão de leitura caso a velocidade seja muito baixa. Portanto, para Kirby e Savage, há necessidade de pesquisas acerca da importância da fluência no modelo de Gough e Tunmer.
A fluência de leitura tem sido avaliada de diferentes formas na literatura, tais como velocidade na leitura de palavras isoladas, velocidade de leitura textual e mesmo com medidas de prosódia e entonação (Aaron et al., 1999; Alves et al., 2009; Kershaw & Schatschneider, 2010; Sales & Parente, 2002). Para Fletcher et al. (2009), esta habilidade se refere à velocidade ou à rapidez na leitura de palavras ou de textos. Algumas evidências sugerem que problemas de fluência podem estar associados a uma dificuldade de automatização. Ou seja, apesar da decodificação acurada, estes indivíduos não conseguem automatizar a leitura. tampouco conseguem processar unidades sublexicais de palavras cada vez maiores. Sem automatização, esses indivíduos demandam muitos recursos cognitivos para a leitura, o que faz com que ela seja dispendiosa e lenta e, por conseguinte, dificilmente compreendida.
A fluência de leitura parece ser especialmente relevante na discriminação de maus leitores em ortografias transparentes, ou seja, nas ortografias em que as relações entre letras e sons tendem a ser regulares. Assim, enquanto em ortografias irregulares a decodificação é um fator bastante importante para identificar maus leitores, nas regulares, visto que a decodificação é facilitada pela biunivocidade das relações letra-som, a fluência surge como fator discriminante especialmente em leitores mais velhos (Aaron et al., 1999; Florit & Cain, 2011).
Na tentativa de delimitar seu construto, o presente estudo se pautou na investigação de Aaron et al. (1999) e em apontamentos de Fletcher et al. (2009). Aqui, considera- se o componente 'fluência' como velocidade na leitura de palavras isoladas, visto que a fluência textual e prosódia na leitura são habilidades mais complexas, para as quais outros processos cognitivos podem contribuir.
Avaliação dos componentes da leitura
A abordagem cognitiva da avaliação foca na busca pelos processos subjacentes ao desempenho do indivíduo. Diante do anteriormente exposto, sugere-se que a avaliação da leitura contempla reconhecimento de palavras, compreensão linguística e fluência. Tal abordagem da avaliação possibilita uma explanação abrangente da dificuldade do indivíduo e oferece, também, informações úteis a um programa de intervenção. Evidências têm sido encontradas acerca de problemas de leitura resultantes de deficiências em diferentes processos. Assim, embora várias pesquisas sugiram déficits na decodificação como subjacentes aos problemas de leitura (Aaron, Joshi, & Quatroche, 2008; Capovilla, 2008; Capovilla & Dias, 2008; Fletcher et al., 2009), tais dificuldades também podem se originar em déficits na compreensão linguística, em inabilidades no processamento ortográfico ou em lentidão no processamento de informações (Aaron et al., 1999; Fletcher et al., 2009).
No tocante à avaliação destes processos, pesquisas no contexto brasileiro têm abordado o desenvolvimento das estratégias de reconhecimento de palavras e da compreensão de leitura ao longo da progressão do Ensino Fundamental (Montiel, 2008; Salles & Parente, 2002; Suehiro, 2008). Estudos sobre a avaliação da fluência ou da velocidade de leitura têm surgido mais recentemente (Kawano, Kida, Carvalho, & Ávila, 2011; Pontes, Diniz, & Martins-Reis, 2013). De fato, a mensuração desta habilidade é igualmente importante na delimitação das dificuldades específicas de uma criança. Estes estudos apontam que estudantes com dificuldades de leitura apresentam, além de menor acurácia, menor velocidade de leitura em relação a pares sem dificuldades (Capellini & Cavalheiro, 2000; Kawano et al., 2011).
Tais estudos corroboram, conforme discutido por Salles e Parente (2008), a necessidade de investigação de diferentes habilidades relacionadas à leitura, de modo a auxiliar no direcionamento da intervenção. Nesse sentido, um estudo brasileiro que buscou uma avaliação abrangente da leitura foi o de Seabra, Dias, e Montiel (2012). Conforme esperado, os diferentes construtos avaliados se agruparam em fatores distintos, corroborando a estrutura componencial da leitura. Foram observados quatro agrupamentos: (1) compreensão auditiva e de leitura; (2) reconhecimento de palavras pelas estratégias logográfica e alfabética; (3) processamento ortográfico; (4) fluência ou velocidade de leitura, corroborando uma estrutura componencial da leitura.
Pela conceituação mais detalhada dos componentes envolvidos na leitura, pode-se discutir o segundo aspecto fundamental elencado no início deste artigo, a adequada avaliação dos processos envolvidos na leitura. É importante destrinchar o processamento cognitivo subjacente, investigando as habilidades que podem estar envolvidas em tais processos e prejudicadas em um leitor. Tomando o Brasil como exemplo, atualmente são escassos os instrumentos avaliadores da habilidade de leitura aprovados pelo Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (SATEPSI) e disponíveis para profissionais (CFP, 2013). O Teste de Desempenho Escolar (TDE), instrumento psicopedagócio, é uma rara excessão. Ele contempla a avaliação da leitura, da escrita e da aritmética (Stein, 1994). Mas não possibilita uma interpretação em termos de que estratégias de leitura estão comprometidas ou preservadas. Tampouco aborda os distintos componentes da leitura aqui apresentados.
Outra alternativa à avaliação, especificamente da compreensão de leitura, é a técnica de Cloze. Instrumentos com essa técnica são constituídos por um texto, em geral com 300 palavras e com a omissão de todo quinto vocábulo. As omissões são substituídas por lacunas a serem preenchidas com uma palavra que dê sentido à frase. O instrumento tem sido foco de pesquisas em uma ampla faixa etária, do Ensino Fundamental a estudantes universitários (Santos, Boruchovitch, & Oliveira, 2009). Algumas baterias de avaliação atualmente em estudo e em processo de validação no Brasil, como a Nepsy (Argollo et al., 2009) ou a forma padrão (bateria de habilidades cognitivas) da Woodcock-Johnson (Wechsler & Schelini, 2006; Wechsler, Vendramini, & Schelini, 2007), não possuem testes específicos para avaliação da leitura. Cabe lembrar que a Bateria Woodcock-Johnson possui outra versão direcionada à avaliação do rendimento acadêmico, com testes específicos à avaliação da leitura. Mas não há ainda estudos publicados com esta versão da bateria no Brasil.
Assim, há uma carência de instrumentos válidos para avaliar os componentes da linguagem escrita no âmbito nacional, apesar de alguns esforços importantes nesta direção (Alves et al., 2009; Santos et al., 2009; Santos & Oliveira, 2010; Seabra & Capovilla, 2010). O presente trabalho visa a contribuir com os estudos sobre qualidade de instrumentos de avaliação. Seu objetivo foi investigar
evidências de validade por meio da relação com outras variáveis (especificamente, a observação de mudança com o desenvolvimento - no caso, o nível escolar), além de investigar evidências de fidedignidade, pelo método de consistência interna, de testes selecionados pelo modelo de leitura anteriormente descrito. Desta forma, os testes usados permitem a avaliação dos seguintes componentes: reconhecimento de palavras, incluindo as habilidades de processamento logográfico, alfabético e ortográfico; compreensão linguística, fluência e compreensão de leitura.
Método
Participantes
Participaram deste estudo 443 crianças de ambos os sexos da 1ª à 4ª série do Ensino Fundamental (no sistema de 8 anos; correspondentes ao período entre o 2º e o 5º no sistema de 9 anos), com 104 crianças da 1ª série (M=6,7 anos; DP=0,6), 147 da 2ª série (M=8,2 anos; DP=1,1), 83 da 3ª série (M=8,8 anos; DP=0,8) e 109 da 4ª série (M=9,9 anos; DP=0,9) de uma escola pública do estado de São Paulo. Participaram todos os estudantes da escola cujos pais autorizaram (o que correspondeu a 91,2% dos termos entregues). Não foi adotado, a priori, qualquer critério de exclusão, tal como histórico de repetência escolar (na amostra havia 7,9% de alunos com histórico de repetência). Isso porque, com ou sem repetência, os alunos estavam nas séries correspondentes ao seu nível de aprendizagem. Não havia na amostra estudantes com deficiência mental ou sensorial conhecida não corrigida. A escola participante estava em bairro de nível socioeconômico médio-baixo a baixo.
Instrumentos
Teste de Competência de Leitura de Palavras e Pseudopalavras – TCLPP (Seabra & Capovilla, 2010), que avalia a habilidade de reconhecimento de palavras. Possui 70 itens de teste, cada item com um par composto por uma figura e por um item escrito. Os pares podem ser de sete tipos: 1) palavras corretas regulares; 2) palavras corretas irregulares; 3) palavras com incorreções ou trocas semânticas; 4) pseudopalavras com trocas visuais; 5) pseudopalavras com trocas fonológicas; 6) pseudopalavras homófonas; 7) pseudopalavras estranhas. A Figura 1 apresenta exemplos de cada item. Os pares figura-escrita de palavras corretas regulares e irregulares devem ser aceitos, enquanto que os com incorreção semântica ou pseudopalavras devem ser rejeitados. O padrão de distribuição dos tipos de erros é ainda capaz de indicar as estratégias de leitura usadas. Por exemplo, itens do tipo palavras corretas regulares (CR), trocas semânticas (TS) e pseudopalavras estranhas (PE) podem ser lidos corretamente mesmo com recurso à estratégia logográfica. Já as trocas visuais (TV) e as trocas fonológicas (TF) não podem ser lidas logograficamente, mas somente pelas estratégias alfabética e ortográfica. As palavras corretas irregulares (CI) podem ser lidas por similaridade visual, com recurso à estratégia logográfica ou à ortográfica, mas não à alfabética. As pseudopalavras homófonas (PH) podem somente ser lidas corretamente pela estratégia ortográfica. Desta forma, o padrão de resposta ao teste pode auxiliar na identificação da dificuldade de leitura de uma determinada criança.
Teste Contrastivo de Compreensão Auditiva e de Leitura – TCCAL (Capovilla & Seabra, 2013), que avalia as habilidades de compreensão linguística (ou auditiva) e de leitura. Possui duas partes, aplicadas separadamente: o Subteste de Compreensão de Sentenças Faladas (SCSF) e o Subteste de Compreensão de Sentenças Escritas (SCSE), que avaliam compreensão auditiva e de leitura, respectivamente. Cada subteste possui 40 itens de teste, arranjados em ordem crescente de dificuldade. A Figura 2 apresenta exemplos de itens de cada subteste. Em cada item, é apresentada uma frase (pronunciada pelo aplicador, no caso do SCSF, ou escrita para que a criança leia, no caso do SCSE) e cinco figuras alternativas. A criança deve escolher, dentre as figuras, aquela que corresponde à sentença ouvida, no caso do SCSF, ou à sentença lida, no caso do SCSE. A comparação entre ambos os subtestes permite delimitar se a dificuldade de uma criança é específica à compreensão de leitura ou se inclui também a compreensão auditiva.
Teste de Processamento Ortográfico Computadorizado – TPOC (Montiel & Capovilla, 2008a), que avalia as habilidades de reconhecimento ortográfico que não dependem de estratégias de conversão grafema-fonema. O instrumento é computadorizado, o que permite análise de seus escores em termos de acerto/erro e tempo de reação (TR). Possui 15 itens de teste. O teste apresenta a instrução inicial "Você ouvirá algumas palavras. Escolha a palavra escrita corretamente". Cada item é constituído por uma palavra falada pelo programa (digitalizada) e três alternativas de resposta, com apenas uma alternativa correta. As outras duas alternativas são palavras escritas incorretamente, mas com a mesma forma fonológica da palavra escrita corretamente. A tarefa do sujeito consiste em selecionar, com o mouse, dentre as opções, a palavra escrita corretamente. Por exemplo, diante da palavra ouvida faça, as opções apresentadas por escrito serão faça, fasa e fassa. Dados sobre a construção do instrumento, incluindo seleção das palavras estímulo, estão publicados em Montiel (2008).
Teste de Velocidade de Leitura Computadorizado – TVLC (Montiel & Capovilla, 2008b), que avalia a velocidade de leitura ou fluência. O teste requer que o sujeito leia o mais rápido possível as palavras apresentadas na parte central da tela do computador. Para este estudo, foram utilizados o tempo de reação (TR), tempo de locução (TLoc – tempo total da verbalização da resposta do sujeito) e a frequência de erros, que equivale à média de erros cometidos por palavra. O TVL consta de 60 itens divididos em quatro partes (de P1 a P4), com 15 palavras irregulares (P1, em que a relação entre letras e sons não pode ser predita por regras de biunivocidade ou de contexto), 15 pseudopalavras (P2, sequências de letras às quais não correspondem significados), 15 palavras relacionadas a conteúdo (P3, substantivos) e 15 palavras relacionadas à função (P4, três conjunções, três adjetivos, seis pronomes, dois advérbios e um numeral), apresentadas nesta ordem. Todas as palavras possuem entre três e quatro letras, de modo a manter um padrão relacionado ao tamanho da palavra. As palavras são apresentadas em letra maiúscula, Times New Roman, tamanho 72, em tinta preta. Cada palavra fica exposta por tempo indeterminado na tela. O instrumento é computadorizado e o software, operado pelo aplicador. Dados sobre a construção do instrumento estão publicados em Montiel (2008).
Procedimento
O estudo recebeu aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa. Após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos responsáveis pelas crianças participantes, iniciaram-se as avaliações. A ordem de aplicação dos testes foi por conveniência, porém apenas um instrumento foi administrado em cada sessão, de modo a evitar fadiga. Inicialmente, foram aplicados os testes coletivos, TCLPP e TCCAL, na própria sala de aula, cada um numa sessão de aproximadamente 30 minutos. No caso do TCCAL, primeiro foi administrado o SCSE e, após intervalo de uma semana, o SCSF. O TVLC e TPOC foram aplicados individualmente em sala disponibilizada pela escola, com recurso a um notebook, em duas sessões de aproximadamente 20 minutos.
Análise de Dados
Em cada teste, foram conduzidas análises estatísticas descritivas e análises de variância do efeito da série escolar sobre os escores. Apesar dos dados não se adequarem ao pressuposto da normalidade, segundo Hair, Black, Babin, Anderson, e Tatham (2008), em amostras superiores a 200 observações os efeitos da violação dos pressupostos são negligenciáveis. A precisão de cada instrumento (e dos subtestes, quando existentes) foi verificada por meio do alfa de Cronbach.
Resultados
A Tabela 1 apresenta as estatísticas descritivas dos escores totais e nos subtestes do TCLPP, TCCAL, TPOC e TVLC. A Tabela 2 apresenta as estatísticas inferenciais para os mesmos instrumentos.
Considerando inicialmente o TCLPP, a Anova evidenciou efeito significativo da série escolar em todos os desempenhos. A análise de Bonferroni revelou um aumento dos escores na progressão das séries escolares. Revelou também que apenas as 3ª e 4ª séries não se distinguiram entre si nos escores total e nos subtestes CR, CI e TF. Somente a 1ª série desempenhou-se de modo significativamente pior que as demais em TS, TV e PE. A 1ª e 2ª série apresentaram pior desempenho em relação à 3ª e à 4ª séries em PH. Estes resultados ilustram diferenças de desempenho no uso das estratégias de reconhecimento de palavras em função da progressão escolar. A precisão no TCLPP foi verificada por meio do alfa de Cronbach, obtendo-se um valor de 0,89. Calculou-se também o coeficiente de fidedignidade para cada subteste do TCLPP, obtendo-se α=0,71 para CR; α=0,65 para TS; α=0,76 para PE; α=0,77 para CI; α=0,75 para TV; α=0,74 para TF e α=0,72 para PH.
Novamente, no TCCAL, a Anova revelou efeito significativo da série escolar sobre os desempenhos. A análise de Bonferroni revelou aumento sistemático dos escores nas séries sucessivas (exceto da 3ª para 4ª série) em ambos os subtestes do TCCAL. O coeficiente de fidedignidade para o subteste SCSE foi 0,97 e, para o SCSF, foi 0,87.
Para o TPOC, observou-se aumento dos escores e diminuição do TR paralelo à progressão da série escolar. Anova revelou que tais diferenças foram significativas em ambos os casos – escore e TR. A análise de Bonferroni evidenciou diferenças significativas entre todas as séries escolares, com aumento sistemático do desempenho, em termos de escore, em função da progressão da 1ª à 4ª série, exceto entre a 1ª e a 2ª séries. Com relação ao TR, a análise discriminou apenas 1ª e 2ª séries das 3ª e 4ª séries, e estas últimas apresentaram menor TR. Para o desempenho em termos de escore no TPOC, foi obtido coeficiente de fidedignidade igual a 0,71. Para o TR, obteve-se α=0,90.
No TVLC, em praticamente todas as condições (P1 a P4), observou-se um declínio no cometimento de erros e nos TR e TLoc paralelos à progressão da série escolar. A Anova revelou efeito significativo da série em todos os casos. Na análise de comparação de pares, verificou- -se, com relação à frequência de erros, que, de modo geral, apenas a 1ª série diferenciou-se das demais, com maior cometimento de erros que as séries subsequentes. O mesmo padrão foi observado com relação ao TR, ou seja, a análise de Bonferroni apenas diferenciou a 1ª série, que apresentou maior TR em relação às demais. Considerando o TLoc, a análise revelou diferenças significativas apenas entre a 1ª série e a 3ª e 4ª séries, que, em comparação à 1ª, apresentaram menor tempo médio de locução na leitura de palavras. De fato, em todas as partes do instrumento e no TLoc total, apenas a 1ª série apresentou tempo de locução significativamente mais longo do que a 3ª e a 4ª séries. Para os desempenhos totais em frequência de erros, TR e TLoc, os coeficientes de fidedignidade foram, respectivamente, 0,98, 0,94 e 0,98. Em cada uma das partes do teste, obteu-se: P1 – 0,94 (freq. erros), 0,64 (TR), 0,93 (TLoc); P2 – 0,95 (erros), 0,95 (TL), 0,90 (TLoc); P3 – 0,95 (erros), 0,94 (TR), 0,95 (TLoc); P4 – 0,96 (erros), 0,95 (TR), 0,97 (TLoc).
Discussão
O artigo traz importantes dados acerca das características psicométricas de instrumentos de avaliação da leitura, contribuindo para minimizar a carência de investigações nacionais nesta área. Os resultados obtidos revelaram o efeito da série escolar sobre os desempenhos em todos os testes. Deste modo, os instrumentos de forma geral discriminaram entre as séries sucessivas, permitindo avaliar o desempenho em habilidades de leitura de itens isolados, compreensão auditiva e de leitura, processamento ortográfico e velocidade de leitura em turmas da 1ª à 4ª série do Ensino Fundamental.
De modo mais específico, o TCLPP e TCCAL se mostraram efetivos ao discriminar entre estudantes da 1ª à 3ª série do Ensino Fundamental – achado similar ao de Suehiro (2008). Em seu estudo, a autora também evidenciou que a habilidade de compreensão de leitura progrediu com a série escolar e, de forma análoga ao que também foi observado aqui, Suehiro encontrou que as crianças com mais de 10 anos não tinham desempenho melhor que as mais jovens. A autora concluiu que isso se devia à existência de alunos com defasagem idade-série em sua amostra, ou seja, à existência de alunos possivelmente repetentes. Isso também pode explicar a ausência de diferenças entre a 3ª e a 4ª série, como constatado neste estudo – afinal, não se utilizou nenhum critério para a exclusão de alunos com defasagem idade-série.
Contudo, outra forma de entendimento possibilitaria sugerir que as habilidades de leitura de itens isolados e a compreensão de leitura, tal como medida pelos instrumentos aqui usados, se desenvolvem não só, mas principalmente, da 1ª à 3ª série, praticamente se estabilizando da 3ª à 4ª série, o que denota a importância das primeiras séries de alfabetização no fomento destas habilidades. É possível que, por ser uma ortografia transparente, no português, as habilidades de reconhecimento de palavras e de compreensão de sentenças sejam adquiridas de forma relativamente simples ao longo dos primeiros anos de escolarização (Aaron et al., 1999; Florit & Cain, 2011). Os achados deste estudo provêm evidências de validade por relação com outras variáveis, considerando a ocorrência de mudança desenvolvimental (AERA, APA, & NCME, 1999; Urbina, 2007), ao TCLPP e ao TCCAL para alunos da 1ª à 3ª série do Ensino Fundamental.
No que tange às estratégias de leitura, o presente estudo também permitiu alguns esboços acerca de seu uso pelas distintas séries do Ensino Fundamental, por meio da análise dos subtestes do TCLPP. Verificou-se que, na 1ª série, a leitura é bastante incipiente, em geral se limitando aos itens TS e PE que podem ser "lidos" por uma estratégia de reconhecimento visual global. Na 2ª série, a estratégia alfabética se apresentou mais desenvolvida, conforme aumento do desempenho nos itens TV, CR e TF. Na 3ª série, a leitura ocorreu predominantemente pela estratégia alfabética, e a ortográfica começou a ser utilizada (conforme sugere o aumento no desempenho em PH). Por fim, na 4ª série, o padrão de desempenho dos estudantes revelou estratégias alfabética e ortográfica bem estabelecidas quando comparadas às séries anteriores, porém ainda não totalmente consolidadas.
Este achado corrobora a descrição teórica de Frith (1985; 1997) e, também, os achados empíricos de Sales e Parente (2002). Essas autoras constataram, na sua amostra, que a leitura via estratégia alfabética prevaleceu no desempenho dos estudantes na 2ª série, enquanto que, na 3ª série, as crianças eram hábeis em ambas as estratégias de leitura, alfabética e ortográfica. Os achados deste artigo ratificam que a estratégia alfabética parece ser predominante no desempenho dos alunos de 2ª série, porém, nesta amostra, foi apenas na 4ª série que as crianças apresentaram maior habilidade no uso de ambas as rotas, sendo a ortográfica ainda incipiente nos participantes de 3ª série. Mesmo assim, apesar de pequenas variações que podem refletir as diferenças entre as amostras, este estudo também estende seus achados em direção à tendência desenvolvimental esboçada por Salles e Parente (2002). No que tange à escassez de instrumentos de avaliação dos processos de leitura relacionados à teoria de processamento da informação, a análise dos subtestes do TCLPP permitiu a identificação das estratégias de leitura subjacentes aos desempenhos ao longo das séries escolares, de modo que este estudo pode desdobrar suas contribuições nesta direção.
Os coeficientes de fidedignidade encontrados foram bastante satisfatórios para o escore total no TCLPP e para ambas as medidas do TCCAL, denotando a consistência interna dos instrumentos. Para os subtestes do TCLPP, esses índices foram mais baixos, variando de 0,65 a 0,77, o que pode refletir o pequeno número de itens que compõem cada subteste. Ainda assim, os coeficientes podem ser considerados satisfatórios (Pasquali, 1999).
Com relação ao TPOC, considerando inicialmente apenas o escore no instrumento, verificou-se que foi efetivo ao discriminar entre a 2ª e a 4ª séries. Apenas a 1ª e a 2ª série não se diferenciaram entre si. Este resultado é interessante ao se considerar que o instrumento avalia a leitura via estratégia ortográfica, a qual somente pareceu ser usada de forma mais evidente a partir da 3ª série, apresentando- se mais estabelecida somente na 4ª série. Estes resultados corroboram os dados oriundos do TCLPP, que delinearam o uso das estratégias de leitura da amostra. A não discriminação entre as séries iniciais, 1ª e 2ª, pode estar relacionada ao baixo desempenho neste instrumento, sugerindo a incipiência do processamento ortográfico nestes níveis escolares, resultado também em consonância com o encontrado no item PH do TCLPP e, ainda, com o achado de autores como Salles e Parente (2002).
Referente ao TR no instrumento, apesar de uma diminuição sistemática na progressão das séries escolares, as análises de comparação de pares apenas discriminaram as primeiras das últimas séries escolares, ou seja, 1ª e 2ª de 3ª e 4ª séries. Este resultado corrobora o achado referente aos escores, pois é apenas a partir da 3ª série e especialmente na 4ª que o processamento ortográfico aparece com mais consistência na leitura, de modo que é plausível que alunos nestas séries escolares demandem menor TR na leitura de itens que requeiram esta habilidade. Em contrapartida, estudantes de 1ª e 2ª séries, ainda sem a estratégia ortográfica de leitura, demandam maior TR na identificação dos itens do teste. Isto se deve possivelmente à necessidade de decodificação e ao conflito gerado pela forma fonológica regularizada da palavra. Assim, o estudo proveu ao TPOC evidências de validade baseada na relação com outras variáveis. Complementarmente, a fidedignidade do instrumento também foi aferida, constatando- se sua alta consistência interna.
Com relação ao TVLC, considerando o escore e o TR, o instrumento foi efetivo ao discriminar somente a 1ª série das demais, apesar de uma tendência a menor cometimento de erros e TR aparecer claramente nas estatísticas descritivas com a progressão da série escolar. Por sua vez, o TLoc demonstrou maior sensibilidade. Por exemplo, o TLoc total discriminou as 1ª e 2ª das 3ª e 4ª séries, o que sugere que os estudantes nas séries finais apresentam maior velocidade de leitura (e, portanto, maior fluência) do que os estudantes nas séries iniciais de alfabetização, provendo algumas evidências da validade do instrumento.
Esse achado encontra suporte nos resultados de Sales e Parente (2002). As autoras não avaliaram a velocidade de leitura de palavras, mas, sim, a velocidade de leitura textual. Mesmo assim, algumas comparações são possíveis. As autoras verificaram que as crianças com melhores habilidades de leitura de palavras foram aquelas que demandaram menor tempo na leitura textual, o que pode ser explicado pelo fato de que a leitura de palavras dessas crianças está mais automatizada. O mesmo parece se aplicar a este estudo: os participantes mais velhos, nas 3ª e 4ª séries, já possuem estratégia alfabética melhor desenvolvida e alguma leitura com uso da estratégia ortográfica (vide resultados do TCLPP) e, por isso, puderam ler de forma mais rápida (Fletcher et al., 2009). Além disso, na leitura de pseudopalavras, que integra a segunda parte do TVLC e que requer, necessariamente, leitura pela estratégia alfabética, o TLoc foi superior às demais partes do teste, consideradas todas as séries escolares. Isso mostra que o recurso à estratégia ortográfica pode estar atrelado à maior fluência ou velocidade de leitura. Quanto à aferição da precisão, o instrumento se mostrou internamente consistente, com altos coeficientes de fidedignidade tanto nos desempenhos totais quanto em cada parte do teste.
Apesar dos resultados significativos da Anova, pôde-se verificar que o TPOC e o TVLC foram menos discriminativos que o TCLPP e TCCAL. O fato das medidas de fluência terem discriminado as séries pode ser explicado pela característica transparente da nossa ortografia, visto que, conforme discutido por Aaron et al. (1999) e Florit e Cain (2011), tais medidas são mais eficazes para discriminar entre leitores nesse tipo de ortografia do que naquelas opacas. Porém, como as crianças aqui estudadas ainda são jovens, e visto que as habilidades de processamento ortográfico e velocidade de leitura são mais importantes para a leitura em estudantes mais velhos, a partir da 6ª série (Aaron et al., 1999), não é surpreendente que os testes de reconhecimento de palavras (especialmente logográfico e alfabético) e de compreensão ainda tenham sido mais discriminativos do que os testes de reconhecimento por processamento ortográfico e de fluência nessa faixa de escolaridade. Estudos futuros devem averiguar essa suposição e investigar evidências de validade destes instrumentos em estudantes do segundo ciclo do Ensino Fundamental, para complementar e esclarecer estes achados.
Este estudo investigou evidências de validade e de fidedignidade de instrumentos de avaliação da leitura, consoante à necessidade de dispor de instrumentos para avaliar componentes ou habilidades de leitura com modelos teóricos consistentes. Verificou-se que os instrumentos apresentaram satisfatórios coeficientes de fidedignidade e evidências de validade por relação com outras variáveis. O TCLPP e TCCAL se mostraram mais eficazes em discriminar as séries iniciais do Ensino Fundamental, enquanto que o TPOC e TVLC foram menos discriminativos.
É relevante destacar as limitações deste estudo. Entre elas, o uso de uma amostra de conveniência e a participação de apenas uma escola, em apenas um estado brasileiro. Estudos futuros devem ser conduzidos visando a sanar algumas dessas limitações, incluindo, por exemplo, investigações longitudinais, que permitam inferências acerca do desenvolvimento, na progressão escolar, das habilidades mensuradas. Além disso, recomenda- se pesquisar amostras maiores e mais amplas em termos de escolaridade. Pode ser útil a exclusão de estudantes com histórico de repetência ou com discrepância idade-série. Ainda, podem ser investigadas quais medidas dos componentes de leitura são mais discriminativas em estudantes mais velhos, entre a 5ª e a 8ª série (6º a 9º ano) do Ensino Fundamental, bem como quais medidas são mais eficazes na discriminação entre bons e maus leitores em diferentes níveis escolares.
Referências
Aaron, P. G., Joshi, R. M., Gooden, R., & Bentum, K. E. (2008). Diagnosis and treatment of reading disabilities based on the Component Model of Reading: An alternative to the Discrepancy Model of LD. Journal of Learning Disabilities, 41(1), 67-84. doi: 10.1177/0022219407310838 [ Links ]
Aaron, P. G., Joshi, R. M., & Quatroche, D. (2008). Becoming a professional reading teacher. Baltimore: Paul H. Brookes Publishing Co. [ Links ]
Aaron, P. G., Joshi, L., & Williams, K. A. (1999). Not All Reading Disabilities are alike. Journal of Learning Disabilities, 32(2) 120-137. [ Links ]
Alves, L. M., Pinheiro, A. M., Reis, C., & Capellini, S. A. (2009). Medidas objetivas de fluência de leitura e o processo de compreensão. Em T. Barbosa, C. Rodrigues, C.Mello, S. Capellini & L. Alves. (Orgs.), Temas em Dislexia (pp. 89-102). São Paulo: Artes Médicas. [ Links ]
AERA, APA, & NCME. (1999). The Standards for Educational and Psychological Testing. Washington, D. C.: American Educational Research Association. [ Links ]
Argollo, N., Bueno, O., Shayer, B., Godinho, K., Abreu, K., Durán, P., ... Seabra, A. G. (2009). Adaptação transcultural da bateria NEPSY – avaliação neuropsicológica do desenvolvimento: estudo-piloto. Avaliação Psicológica, 8(1), 59-75.
Bastien-Toniazzo, M., & Jullien, S. (2001). Nature and importance of the logographic phase in learning to read. Reading and Writing, 14(1-2), 119-143. [ Links ]
Brasil. (2005). Relatório Técnico do SAEB de 2003. Brasília: MEC, INEP. Recuperado de http://www.inep.gov.br/download/saeb/2003/ Relatorio_Tecnico_Saeb_2003.pdf. [ Links ]
Capellini, S., & Cavalheiro, L. (2000). Avaliação do nível e da velocidade de leitura em escolares com e sem dificuldade na leitura. Temas sobre Desenvolvimento, 51(9),5-12. [ Links ]
Capovilla, A. G. S. (2008). Dislexia do desenvolvimento: definição, avaliação e intervenção. Em A. Sennyey, F. C. Capovilla, & J. M. Montiel (Orgs.), Transtornos de Aprendizagem: da avaliação à reabilitação (pp. 251-260). São Paulo: Artes Médicas. [ Links ]
Capovilla, A. G. S., & Dias, N. M. (2008) Habilidades de linguagem oral e sua contribuição para a posterior aquisição de leitura. Psic, 9(2), 135-144. [ Links ]
Capovilla, F. C., & Seabra, A. G. (2013). Teste Contrastivo de Compreensão Auditiva e de Leitura. Em A. G. Seabra, N. M. Dias, & F. C. Capovilla (Orgs.), Avaliação Neuropsicológica Cognitiva: leitura, escrita e aritmética. Vol. 3. (pp. 29-53). São Paulo: Editora Memnon. [ Links ]
Conselho Federal de Psicologia. SATEPSI. Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos. (n.d.). Recuperado de http://www2.pol.org.br/satepsi. [ Links ]
Ehri, L. (2013). Aquisição da habilidade de leitura de palavras e sua influência na pronúncia e na aprendizagem do vocabulário. Em M. R. Maluf, & C. Cardoso-Martins (Orgs.), Alfabetização no século XXI: como se aprende a ler e a escrever (pp. 49-81). Porto Alegre: Editora Penso. [ Links ]
Ellis, A. W., & Young, A. W. (1988). Human cognitive neuropsychology. London, UK: Lawrence Erlbaum. [ Links ]
Escorcia, D. (2010). Conocimientos metacognitivos y autorregulación: una lectura cualitativa del funcionamiento de los estudiantes universitarios en la producción de textos. Avances en Psicología Latinoamericana, 28(2), 265-277. [ Links ]
Fletcher, J. M., Lyons, G. R., Fuchs, L. S., & Barnes, M. A. (2009). Transtornos de Aprendizagem: da identificação à intervenção. Porto Alegre: ArtMed. [ Links ]
Flórez-Romero, R., Restrepo, M., & Schwanenflugel, P. (2009). Promoción del alfabetismo inicial y prevención de lãs dificultades en la lectura: una experiencia pedagógica en el aula de preescolar. Avances en Psicología Latinoamericana, 27(1), 79-96. [ Links ]
Florit, E. & Cain, K. (2011). The Simple View of Reading: Is it valid for different types of alphabetic orthographies? Educational Psychology Review, 24, 553-576. doi: 10.1007/s10648-011-9175-6 [ Links ]
Frith, U. (1985). Beneath the surface of developmental dyslexia. Em K. Patterson, J. Marshall & M. Coltheart (Orgs.), Surface dyslexia: Neuropsychological and cognitive studies of phonological reading (pp. 301-330). London: Lawrence Erlbaum Associates. [ Links ]
Frith, U. (1997). Brain, mind and behavior in dyslexia. Em C. Hulme & M. Snowling (Orgs.), Dyslexia: Biology, cognition and intervention(pp.01-19). London, UK: Whurr Publishers. [ Links ]
Gough, P., & Tunmer, W. (1986). Decoding, reading and reading disability. Remedial and Special Education, 7(1), 6-10. [ Links ]
Hair Jr., J. F., Black, W. C., Babin, B. J., Anderson, R. E., & Tatham, R. L. (2008). Análise Multivariada de Dados. Porto Alegre: Bookman. [ Links ]
Harley, T. A. (2004). Does cognitive neuropsychology have a future? Reflections stimulated by Rapp (2001). Cognitive Neuropsychology, 21(1), 3-16. doi:10.1080/02643290342000131 [ Links ]
Kawano, C. E., Kida, A. S. B., Carvalho, C. A. F., & Ávila, C. R. B. (2011). Parâmetros de fluência e tipos de erros na leitura de escolares com indicação de dificuldades para ler e escrever. Revista da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, 16(1), 9-18. [ Links ]
Kershaw, S., & Schatschneider, C. (2010). A latent variable approach to the simple view of reading. Reading and Writing, online first. doi:10.1007/s11145-010-9278-3 [ Links ]
Kirby, J. R., & Savage, R. S. (2008). Can the simple view deal with the complexities of reading? Literacy, 42(2), 75-82. [ Links ]
Montiel, J. M. (2008). Evidências de validade de testes para identificar componentes da linguagem escrita. (Tese de doutorado não publicada). Universidade São Francisco, Itatiba, SP, Brasil. [ Links ]
Montiel, J. M. & Capovilla, A. G. S. (2008a). Teste de processamento ortográfico computadorizado – TPOC. Software desenvolvido.
Montiel, J. M. & Capovilla, A. G. S. (2008b). Teste de Velocidade de Leitura computadorizado – TVLC. Software desenvolvido.
Morais, J., Leite, I., & Kolinsky, R. (2013). Entre a pré-leitura e a leitura hábil: condições e patamares da aprendizagem. Em M. R. Maluf, & C. Cardoso-Martins (Orgs.), Alfabetização no século XXI: como se aprende a ler e a escrever (pp. 17-48). Porto Alegre: Editora Penso. [ Links ]
Oakhill, J., Cain, K., & Bryant, P. (2003). The dissociation of word reading and text comprehension: Evidence from component skills. Language and Cognitive Processes, 18(4), 443-468. doi: 10.1080/01690960344000008 [ Links ]
Pasquali, L. (1999). Testes referentes a construto: teoria e modelo de construção. Em L. Pasquali (Org.), Instrumentos psicológicos: manual prático de elaboração (pp. 37-71). Brasília: LabPAM, IBAP. [ Links ]
Pontes, V. L., Diniz, N. F., & Martins-Reis, V. (2013). Parâmetros e estratégias de leitura e escrita utilizados por crianças de escolas pública e privada. Revista CEFAC, 15(4), 827-836. [ Links ]
Rotta, N. T., & Pedroso, F. S. (2006). Transtorno da Linguagem escrita-dislexia. Em N. T. Rotta, L. Ohlweiler, & R. S. Riesgo. Transtornos da Aprendizagem. Abordagem Neurobiológica e Multidisciplinar. Porto Alegre: Artmed. [ Links ]
Salles, J. F., & Parente, M. A. (2002). Processos cognitivos na leitura de palavras em crianças: relações com compreensão e tempo de leitura. Psicologia: Reflexão e Crítica, 15(2) 321-331. [ Links ]
Salles, J. F., & Parente, M. A. M. P. (2008). Variabilidade no desempenho em tarefas neuropsicológicas entre crianças de 2ª série com dificuldades de leitura e escrita. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 60(1), 32-44. [ Links ]
Santos, A. A. A., & Oliveira, E. Z. (2010). Avaliação e desenvolvimento da compreensão em leitura no ensino fundamental. Psico-USF, 15(1), 81-91. [ Links ]
Santos, A. A. A., Boruchovitch, E., & Oliveira, K. L. (2009). Cloze: um instrumento de diagnóstico e intervenção. São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Seabra, A. G. & Capovilla, F. C. (2010). Teste de Competência de Leitura de Palavras e Pseudopalavras. São Paulo: Memnon. [ Links ]
Seabra, A. G., Dias, N. M., & Capovilla, F. C. (2013). Avaliação Neuropsicológica Cognitiva: leitura, escrita e aritmética. Vol. 3. São Paulo: Editora Memnon. [ Links ]
Seabra, A. G., Dias, N. M., & Montiel, J. (2012). Estudo fatorial dos componentes da leitura: velocidade, compreensão e estratégias logográfica, alfabética e ortográfica. Psico-USF, 17(2), 273-283. doi:10.1590/S1413-82712012000200011 [ Links ]
Shaywitz, S., Morris, R., & Shaywitz, B. (2008). The education of dyslexic children from childhood to young adulthood. Annual Review of Psychology, 59, 451-475. doi:10.1146/annurev.psych.59.103006.093633 [ Links ]
Stein, L. M. (1994). Teste de desempenho escolar TDE: manual para aplicação e interpretação. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Suehiro, A. C. B. (2008). Processos fonológicos e perceptuais e aprendizagem da leitura e escrita: instrumentos de avaliação. (Tese de doutorado não publicada). Universidade São Francisco, Itatiba, SP, Brasil. [ Links ]
Tilstra, J., McMaster, K., Broek, P. V., Kendeou, P., & Rapp, D. (2009). Simple but complex: components of the simple view of reading across grade levels. Journal of Research in Reading, 32(4), 383-401. doi:10.1111/j.1467-9817.2009.01401.x [ Links ]
Urbina, S. (2007). Fundamentos da Testagem Psicológica. Porto Alegre: Artmed. [ Links ]
Wechsler, S. M., & Schelini, P. W. (2006). Bateria de habilidades cognitivas Woodcock-Johnson III: validade de construto. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 22(3), 287-296. [ Links ]
Wechsler, S. M., Vendramini, C. M. V., & Schelini, P.W. (2007). Adaptação brasileira dos testes verbais da Bateria Woodcock- Johnson. Revista Interamericana de Psicologia, 41, 285-294. [ Links ]
Recebido em agosto de 2013
Reformulado em novembro de 2013
Aprovado em dezembro de 2013
Sobre os autores
Natália Martins Dias: é Psicóloga, Mestre e Doutora em Distúrbios do Desenvolvimento e pós-Doutoranda da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia Educacional, Centro Universitário FIEO – Unifieo.
Alessandra Gotuzo Seabra: é Psicóloga, Doutora e Pós-Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Programa de Mestrado e Doutorado em Distúrbios do Desenvolvimento. Bolsista de Produtividade CNPq. Universidade Presbiteriana Mackenzie.
José Maria Montiel: é Psicólogo, Doutor em Avaliação Psicológica pela Universidade São Francisco. Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Psicologia Educacional. Centro Universitário FIEO – UniFIEO. Fundação Instituto de Ensino para Osasco.
1Endereço para correspondência: Estrada Municipal Nemésio Dario dos Santos, s/n Moenda, Cx. Postal 45, 13252-755, Itatiba-SP. Tel.: (11) 99818-7335. E-mail: natalia_mdias@yahoo.com.br