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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.18 no.1 Belo Horizonte Apr. 2012

https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2012v18n1p119 

ARTIGOS

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2012v18n1p119

 

Hipnose e sentidos físicos em psicoterapia: sobre a reconstrução da experiência do sujeito

 

Hypnosis and physical senses in psychotherapy: reconstructing subject's experiences

 

Hipnosis y sentidos físicos en psicoterapia: sobre la reconstrucción de la experiencia del sujeto

 

 

Maurício da Silva Neubern*

 

 


Resumo

Este trabalho visa a destacar como a hipnose pode ser um importante instrumento para a reconstrução da experiência subjetiva dos sujeitos. Parte de uma discussão com autores da fenomenologia e do existencialismo para quem a hipnose não proporciona um trabalho legítimo de reconstrução da experiência do cliente, uma vez que este não se coloca como sujeito no processo terapêutico. Em seguida, apresenta um estudo de caso clínico em que há considerável ênfase na utilização dos sentidos físicos em sessões de hipnose e como a cliente, inicialmente marcada por um intenso luto, efetiva uma série de reconstruções de sua experiência no que se refere à vivência de corpo, de espaço, tempo e mundo. Conclui-se que os sentidos físicos, como processos vividos, podem ser de grande importância na psicoterapia e que a hipnose pode proporcionar ao sujeito uma posição ativa na reconstrução de sua experiência.

Palavras-chave: Hipnose, Fenomenologia existencial, Sentidos físicos, Experiência subjetiva.


Abstract

Hypnosis can be an important tool for reconstructing the subjective experiences of subjects. To understand this, we begin with a debate between authors of phenomenology and existentialism who believe that hypnosis, with its directives and the authority claimed by its therapists, is not a legitimate method for reconstructing experiences because the client does not participate as a subject in the process of therapy. Next, a clinical case study is presented that strongly emphasizes the use of the physical senses during hypnosis sessions and illustrates how a client in deep mourning was able to accomplish several reconstructions of her experience related to her body, space, time, and the world. The conclusion is that physical senses, as experienced processes, can be highly significant in psychotherapy, and that hypnosis allows subjects to actively participate in reconstructing their experiences.

Keywords: Hypnosis, Existential phenomenology, Physical senses, Subjective experiences.


Resumen

El presente trabajo destaca cómo la hipnosis puede ser un importante instrumento para reconstruir la experiencia subjetiva de los sujetos. Parte de una discusión con autores de la fenomenología y del existencialismo para quienes la hipnosis no proporciona un trabajo legítimo de reconstrucción de la experiencia del cliente, ya que éste no se coloca como sujeto en el proceso terapéutico. Después presenta un estudio de un caso clínico en el que se da un considerable énfasis a la utilización de los sentidos físicos en sesiones de hipnosis y cómo la cliente, inicialmente marcada por un intenso luto, concretiza importantes reconstrucciones de su experiencia en lo que se refiere a la vivencia de cuerpo, espacio, tiempo y mundo. Concluye que los sentidos físicos, como procesos vividos, pueden ser muy importantes en la psicoterapia y que la hipnosis puede proporcionarle al sujeto una posición activa en la reconstrucción de su experiencia.

Palabras claves: Hipnosis, Fenomenologia existencial, Sentidos físicos, Experiencia subjetiva.


 

 

 

A dimensão vivida do corpo consiste em um princípio de grande importância para autores clássicos de Psicologia fenomenológica e existencial que o concebem como um dos momentos fundamentais da constituição humana. Essa dimensão fala da existência do sujeito, em suas relações com os outros (Binswanger, 2008), e na forma como se situa num espaço que lhe é próprio, de modo a se relacionar com os objetos que compõem seu mundo de experiência (Ellenberger, 2004; Merleau-Ponty, 2008; Sartre, 1963). Ao mesmo tempo, está estreitamente ligada à dimensão temporal que, diferentemente de um tempo cronológico, remete às formas singulares com que os sujeitos se relacionam com seu vir a ser e a construção de seu destino (Minkowski, 1999; 2005). Nessa perspectiva, o corpo, o tempo, o mundo e o outro não se pautam por critérios externos e objetivos, passíveis de mensuração, mas por um modo de acesso à experiência do sujeito cotidiano, buscando a compreensão de processos e sentidos que lhe são próprios, o que consiste em um dos pontos mais importantes da psicoterapia.

Desse modo, a experiência dos sentidos físicos não se restringe a uma relação entre estímulos ambientais e reações orgânicas, uma vez que remetem profundamente à experiência vivida do corpo (Merleau-Ponty, 2008; Minkowski, 1936). Embora a discussão específica sobre esses não seja muito comum em psicoterapia, é possível conceber que os sentidos físicos refiram-se tanto à relação com o mundo e sua materialidade (Bachelard, 2007) como às relações com o outro (Binswanger, 2008) e à constituição histórica da experiência do sujeito (May, 2004), o que abre um espaço de grande pertinência para o processo terapêutico. A reconstituição dessa experiência passa, portanto, necessariamente por modificações na vivência dos sentidos físicos, como uma maior leveza e estabilidade na experiência do mundo (Ellenberger, 2004), no estabelecimento de uma distância vivida mais aceitável para o sujeito (Merleau-Ponty, 2008), na possibilidade do sujeito deixar de se amargar com as imposições do mundo (Binswanger, 2004), no restabelecimento temporal do sujeito diante de seu vir a ser (Minkowski, 2006) e na busca de novos sentidos para a existência (Frankl, 1967). A psicoterapia, inspirada em tais perspectivas, baseia-se num processo empático e dialógico que privilegia a autonomia do sujeito e as produções que lhe são próprias, sem que haja imposições e diretivas da parte do terapeuta (May, 2004).

Nesse sentido, a diretividade, comum em certas práticas terapêuticas como a hipnose, não permitiria a reconstituição da experiência do sujeito, por não permitir a este uma participação legítima no processo (Binswanger, 2004). Em outras palavras, as prescrições e ordens do terapeuta, imbuídos de uma pretensa autoridade oficial, impediriam que o sujeito se colocasse no papel autônomo que proporcionasse um trabalho gerado a partir de si mesmo e não de um outro. A figura do terapeuta na hipnose não ocuparia o papel de mediação do sujeito com seu mundo e sua história, posto que suas diretivas já trariam respostas prontas em vez de proporcionarem a criação e a construção próprias do sujeito (May, 2004). Assim, as sugestões e diretivas da hipnose consistiriam em um trabalho externo ao mundo do sujeito, ou seja, um trabalho de fora para dentro inspirado apenas na autoridade do terapeuta e não na experiência vivida desse sujeito. Por tal razão, a hipnose seria um procedimento oposto à psicoterapia, no qual o sujeito tenderia a ocupar a posição de objeto e o processo a ser conduzido por um saber objetivo que o enxergaria de fora (Binswanger, 2004; 2008).

Entretanto, tais críticas, ainda derivadas da oposição freudiana à hipnose (Freud, 1996), desconsideram algumas tendências contemporâneas da hipnose que se desenvolveram como forma de resposta a tal oposição e proporcionam perspectivas interessantes quanto à reconstrução da experiência do sujeito (Erickson & Rossi, 1980; Melchior, 1998; Roustang, 2006; Yapko, 2001; Zeig, 2006). Partindo de uma perspectiva de valorização da singularidade do sujeito, dos processos de influência mútua do setting terapêutico e da participação ativa do cliente em transe, tais autores ressaltam que a hipnose pode proporcionar um trabalho legítimo, isto é, um trabalho de dentro para fora no qual o terapeuta tem um papel ativo, mas é o cliente quem escolhe os caminhos e cria soluções em seu processo. Para tais perspectivas, a hipnose não se restringe a um jogo de prescrições e reações, mas a um processo criativo que se fundamenta na vivência do cliente e parte de seu próprio potencial para a reconstrução de sua experiência, de modo que não é apenas a eliminação de sintomas que está em jogo, mas também, e principalmente, a produção de novos sentidos. Portanto é possível considerar que as técnicas hipnóticas, num contexto terapêutico, podem favorecer a reconstrução da experiência vivida dos sujeitos em termos de tempo, espaço, mundo e outro, como ainda são de grande valor na utilização da vivência dos sentidos físicos (Neubern, 2009a). Contudo, malgrado a contribuição desses autores, a oposição entre hipnose e psicoterapia fenomenológica e existencial parece permanecer, uma vez que, na atualidade, hipnose tem sido objeto de interesse de perspectivas nomotéticas e não encontra espaço entre autores de inspiração fenomenológica e existencial.

Desse modo, este trabalho visa a demonstrar que a hipnose pode consistir num procedimento pertinente para a reconstrução da experiência do sujeito, pois, apesar do aspecto diretivo do terapeuta, o cliente pode adotar uma postura ativa na construção de seu próprio processo. Para tanto enfatiza a importância dos sentidos físicos na psicoterapia, ressaltando que sua dimensão vivida pode ser de grande valor para a experiência do cliente, uma vez que está imbuída de processos e vivências permeados por sua história como por sua forma de construir seu mundo. Ao mesmo tempo, os sentidos físicos são destacados aqui como importantes referências para a construção das intervenções do terapeuta (Zeig, 2001). Para tanto, o artigo parte de um breve estudo de caso, no qual são destacadas algumas intervenções hipnóticas utilizadas nas sessões e algumas mudanças produzidas pela cliente.

 

Dona Cecília Ayres, 49 anos, casada, dois filhos

Dona Cecília chegou ao serviço com o semblante profundamente abatido e olhar desconfiado. Sua procura, a princípio, ocorreu devido a diversas dores que sentia em função de uma fibromialgia persistente que atacava a região da nuca, dos ombros e dos braços, e pareciam puxar e repuxar os músculos, de maneira que alguns deles encontravam-se sempre tensionados e impediam certos movimentos. Nas pernas, a dor assemelhava-se a uma queimadura próxima aos joelhos, o que também a incomodava bastante. Mas essas dores haviam se agravado sobremaneira nos últimos seis meses, após a morte de sua irmã mais próxima e querida, levando-a a dizer que "estava tudo cinza", "que seu mundo era cinzento" e que parecia que havia um "buraco enorme" que a engoliria, pois a morte de sua irmã significava a "perda de algo muito grande em sua vida".

Era a pessoa com quem tinha mais intimidade, uma relação de cuidado muito próxima e uma história de vários momentos de afeto e descontração. Embora tivesse o papel de ser "o esteio da família", a pessoa forte que deveria apoiar os outros e orientá-los na vida, a cliente mergulhou numa experiência depressiva profunda, pediu afastamento de seu trabalho e isolou-se de seus compromissos sociais. Para tanto, além das dores intensas, alegava que havia perdido o "gosto pela vida" e que nem mais o hábito de comer, que tanto apreciava, parecia ter gosto. Assim, alimentando-se e dormindo precariamente, Dona Cecília não via um futuro para si, pois a vida não lhe trazia mais qualquer perspectiva positiva, embora relatasse estar interessada em colaborar com os procedimentos terapêuticos e hipnóticos. Relatava ainda que a família, adepta de uma religião afro-brasileira, procurava apoiá-la, mas não deixava de lhe cobrar outra postura, pois aquele choro e aquela tristeza profunda estariam atrapalhando a evolução espiritual de sua irmã no mundo astral. Era por essa razão, segundo os familiares, que a cliente ainda não havia conseguido sonhar com sua irmã, tendo notícias dela na outra vida.

Foram realizadas sete sessões de hipnoterapia entre setembro e dezembro de 2008 e uma de follow-upem abril de 2009, no retorno das férias na Clínica Escola de Psicologia da faculdade. As sessões foram conduzidas pelo autor do trabalho, aqui denominado como pesquisador, filmadas, registradas e discutidas num processo qualitativo de pesquisa (Gonzalez Rey, 2005; Neubern, 2009a). É importante destacar que as sessões hipnóticas aqui discutidas, inspiradas na perspectiva de Milton Erickson (Erickson & Rossi, 1980), utilizam o conto de histórias e metáforas no estado de transe e não prescrições diretas, como ocorre na hipnose clássica. Considera-se que tal processo, permeado por um setting terapêutico humanista e pela forma de construção de sugestão, consiste num processo permissivo de terapia, no qual o próprio sujeito, inspirado nas histórias que lhe são contadas, evoca em si experiências que serão importantes para a reconstrução de sua experiência (Melchior, 1998; Zeig, 2006). Desse modo, as histórias visam a oferecer uma espécie de estrutura (frame) na qual se articulam processos e temas referentes à sua situação de vida, e o cliente, evocando suas vivências e recursos, passa a ter a possibilidade de modificar essa estrutura, criando novas soluções quanto a suas demandas. É essa ênfase na experiência do sujeito que confere um caráter humanista à hipnose de Erickson, um humanismo pragmático muito influenciado por William James (citado em Neubern, 2009b).

 

Histórias sobre lágrimas, doces, pescaria e flores

Um dos primeiros pontos que a cliente apresentou na terapia foi sua dificuldade com o choro. Em sua história, o choro era uma expressão de fraqueza e, portanto, não deveria fazer parte da experiência de pessoas fortes como ela, principalmente diante dos outros. Tanto seus filhos, como seus sobrinhos, irmãos e marido mostravam-se incomodados quando presenciavam seu choro, embora evitassem lhe falar do incômodo que isso causava. Os mais jovens lhe diziam algumas vezes que ela deveria voltar logo ao normal, pois precisavam de um esteio, alguém que pudesse dar boas orientações para a vida. No entanto, a tristeza era tão profunda que frequentemente Dona Cecília buscava algum esconderijo na casa, como o banheiro, ou algum horário incomum, como a madrugada, para poder chorar. Nesse ponto, o pesquisador percebeu que a cliente vivia um sofrimento considerável, já que seu choro havia se transformado em um dilema: era algo reprovável por si mesma e por seus familiares, mas era também uma necessidade que tinha de "desabafo", de dar vazão a algo preso em seu corpo que o fazia mais pesado e dolorido. Não era sem razões que sua sensação de paralisia era tão marcante, uma paralisia de sentir o corpo pesado, com alguma coisa pesada dentro dele (Merleau-Ponty, 2008; Minkowski, 1936), com poucas possibilidades de se mover pelo mundo e sem poder seguir seu destino.

Então, o pesquisador lhe propôs uma prescrição de tarefas na qual toda vez que quisesse chorar, ela deveria se sentar diante do altar da casa, colocar a foto da irmã junto à imagem dos santos de sua religião e chorar o quanto achasse necessário para se sentir aliviada. Caso algum familiar a interrogasse sobre a tarefa, ela deveria encaminhá-lo ao pesquisador que, de bom grado, estaria disponível para quaisquer esclarecimentos. Ao mesmo tempo em que buscava introduzir a possibilidade de uma aceitação maior pela família, a tarefa também intencionava trazer para a cliente a possibilidade de poder mover-se diante de uma força que parecia maior que ela e impossível de ser controlada. Não seria possível para ela represar o choro, mas Dona Cecília poderia se mover em seu mundo de objetos diretamente ligados ao luto, de maneira a sair da paralisação em que vivia e começar um processo de aceitação de sua própria experiência. Assim, ela estaria atenta às suas próprias sensações corporais, escolheria o momento para dar vazão ao choro e organizaria os objetos significativos daquela situação, começando a assumir outra atitude diante de seu próprio sofrimento.

Contudo, semelhante prescrição foi acompanhada de um conjunto de sugestões hipnóticas com ênfase na dimensão tátil das lágrimas, que começaram a cair no início da indução:

    E algumas lágrimas caem de seus olhos... E você pode perceber que elas passam pelo seu rosto... o calor dessas lágrimas que passam em sua pele, rolando pela sua pele... e há lágrimas de tristeza, há lágrimas de perda, há lágrimas de alegria, há lágrimas de dor, há lágrimas de felicidade... e nem sempre sabemos os sentidos que as lágrimas têm... mas que elas costumam lavar a alma e deixar uma sensaçãode alíviona pessoa.1

Tais sugestões foram pertinentes devido a seu potencial de evocar sensações físicas da experiência da própria cliente (Erickson & Rossi, 1979), colocando-a em contato com o ato de chorar de outra maneira. Ali a força da expressão popular "sentir na pele" se fez presente, uma vez que tais sugestões induziram a cliente a focar sobremaneira suas sensações físicas, mas num contexto em que as lágrimas foram aceitas como algo natural, o que confrontava com seu significado habitual de fraqueza. Nesse contexto, com uma relação terapêutica em início, as lágrimas foram associadas a várias possibilidades de significação, como tristeza, perda, alegria, dor, felicidade, mas, mais ainda, à perspectiva de trazer uma consequência útil para a cliente: "lavar a alma". O ato de chorar, vivido ali, naquele instante, no próprio corpo, passava a consistir em algo importante para trazer alívio para um sofrimento de meses. Tratava-se, portanto, de uma forma de qualificar sua necessidade de chorar como algo importante e positivo para sua integridade. Vale lembrar que, em alguns momentos dessa mesma etapa, foram utilizadas sugestões que descreviam a trajetória de um rio, de seu nascimento até seu encontro com o mar, destacando como aspecto fluido da água é essencial para que o rio contorne os obstáculos e chegue a seu destino. Além de o rio ser algo familiar para a cliente, a identificação entre água e lágrimas e de uma força que precisa fluir (Bachelard, 2007) foi de grande importância para o momento de Dona Cecília.

Outro sentido físico trabalhado por via da sugestão hipnótica nessa etapa foi a gustação, principalmente devido à expressão inicial da cliente sobre "ter perdido o gosto pela vida". O trecho a seguir é bastante ilustrativo sobre semelhante forma de sugestão:

    E é muito interessante quando somos crianças e aprendemos a gostar de doces... aquela sensação do doce dissolvendo na boca e invadindo tudo lá dentro com aquele gosto, com aquele aroma... e algumas crianças aprendem a gostar de doce de leite... outras de chocolate... outras de doce de fruta... e cada criança tem um jeito de aprender gostar de doces... algumas acham o máximo se esconder em algum canto para saborear o doce... outras veem o doce sendo preparado e as pessoas em volta, contando histórias e se divertindo... e isso tudo fica na nossa memória... fica lá guardadinho lá dentro...

Essa forma de sugestão tem um aspecto interessante por ressaltar a dimensão vivida do aprendizado, destacando como a gustação não é um processo puramente objetivo, mas está enraizado na história de vida do sujeito. Assim, tal processo não consiste em simples estimulação de receptores gustativos da boca e da língua, mas a uma evocação de experiências de vida da cliente plenas de emoções, significados, lembranças e sentidos subjetivos. No caso específico, à primeira vista, essa técnica encontra sua pertinência por evocar experiências de prazer já vividas por Dona Cecília, o que proporcionou o início da ruptura do constante processo de ideação negativa, marcado por um mundo cinzento, pesado, denotando a ausência de gosto pela vida (Minkowski, 1936). Por outro lado, essa forma de sugestão proporcionou a vivência de memórias muito intensas habitadas por personagens centrais e momentos muito significativos de sua vida: houve a lembrança da família, na roça, fazendo doce em volta de um fogão à lenha; dos momentos em que ela e a irmã, já jovens, ficavam na cozinha compartilhando histórias e se deliciando com o arroz-doce muito saboroso; e do café preto e forte feito pela irmã, que, segundo a cliente, era inigualável em sabor e aroma. Assim, por meio da gustação, o cenário subjetivo de Dona Cecília começou a perder a hegemonia de processos depressivos, em termos de experiências vividas de tempo, corpo e espaço (Ellenberger, 2004), para ganhar também experiências marcadas pelo prazer e por momentos marcantes, de maneira que os significados referentes à sua irmã começaram também a ensaiar certa modificação. Nessas experiências, ela não era mais apenas a pessoa importante que havia falecido, mas principalmente a pessoa querida que havia compartilhado muitos momentos de grande valor afetivo em sua vida.

A expressão "mundo cinzento" também chamou a atenção do pesquisador, pois a cliente a associava a um mundo de profunda tristeza, marcado pela morte e pela falta de esperança. A predominância do visual o levou, então, a tecer sugestões ressaltando belos processos já vividos pela cliente em seus momentos de pescaria, que eram muito especiais para ela e sua irmã:

    E fico me perguntando como é a sensação de ficar ali, dentro do rio, num final de tarde, com a água pela cintura... o Sol se pondo por entre as nuvens e a mata, com tantas e tantas cores... azul, misturas de laranja, lilás, amarelo... e até rosa... como um quadro que pintor algum seria capaz de pintar... e a sensação de estar ali, corpo relaxado e cabeça despreocupada... só cuidando da linha e da vara... com a brisa batendo no corpo e as aves cantando ao longe... e um cenário de muitas cores no céu, refletindo-se no rio como num belo e grande espelho...

Na sequência dessa sugestão, a cliente se lembrou das primeiras vezes em que sua irmã lhe levou para pescar, o que consistiu num momento muito especial de sua vida. Pelas induções de teor visual, a dimensão histórica foi intensamente trabalhada, uma vez que a cliente pôde rememorar, de forma intensa, uma experiência de grande valor em sua vida, o que proporcionou continuidade aos processos de ruptura da experiência depressiva. A pesca, para Dona Cecília, consistia em uma espécie de ritual marcado por considerável valor simbólico, pois era o momento de se encontrar com a natureza, seus orixás, preparar o material, o pescado e a alimentação. E tudo isso marcado por momentos de muita cumplicidade com sua irmã. Não seria exagero considerar que a cliente passava a se reconhecer novamente fora da depressão, tendo acesso a um pedaço de experiência tão seu que remetia à sua própria identidade. Em outras palavras, semelhantes experiências, caracterizadas pelas marcas profundas de cumplicidade e afeto com a irmã, pareciam sinalizar, de forma mais visível, outros momentos de suas trajetórias históricas além da depressão, de maneira a se constituir como mais um elemento importante de ruptura com a abrangente generalização da experiência depressiva. Vale destacar ainda que, em oposição ao aspecto cinzento, mórbido e paralisante de sua experiência, muito comuns em processos depressivos (Binswanger, 2004; Ellenberger, 2004), tais sugestões foram perpassadas por muitas cores do céu, pela figura do Sol brilhando e pela descrição de um ecossistema vivo (o rio e a floresta), cujos componentes estão em cadeias dinâmicas e complexas de interação, simbolizando referências de movimento, cor, dinamismo e, sobretudo, vida.

Na mesma linha de pensamento, duas facetas da experiência vivida, o peso e o movimento, foram trabalhados com base em sugestões que, apesar do caráter visual, enfocavam a experiência cinestésica da cliente, tal como ilustrado no trecho a seguir:

    E nesse momento, enquanto sua respiração flui, você pode apreciar como um dente-de-leão dança ao sabor do vento... ver como ele vai suavemente para um lado... e depois desliza pelo ar para outro lado... e é algo interessante olhar para ele e perceber o tanto que pode nos ensinar... porque é tão frágil e flutua... flutua... flutua... e se move a cada pequena rajada de vento... e não se preocupa onde vai descer... ele apenas dança acompanhando o vento,... onde quer que o vento sopre...

Nessa sugestão, é possível notar a ênfase conferida a verbos que se referem a movimento e leveza de uma figura conhecida de seu cotidiano, o dente-de-leão. Considera-se que a forma de construção da sugestão e o próprio contexto terapêutico favoreceram uma relação de identificação do sujeito com o objeto imaginado, de maneira que o sujeito pôde passar a construir novos significados e sentidos a partir dessa relação (Melchior, 1998). Desse modo, enquanto a experiência depressiva da cliente era marcada por um corpo pesado e sofrido (Binswanger, 2005), que mal conseguia se mover e habitava um mundo sufocante onde tudo ganhava muito peso, as sugestões apresentadas referiam-se a uma estrutura frágil e bela, que se movia com leveza e facilidade ao sabor do vento (Bachelard, 2007), num mundo onde os objetos são leves, flutuam, dançam, deslizam e podem fluir sem maiores impedimentos. Tratava-se de uma forma de ajudá-la a reconstruir sua postura diante de tantos impedimentos que, em seu cenário subjetivo, a morte de sua irmã havia proporcionado, como a impossibilidade de trabalhar, de se interessar pelos assuntos da família, de ter uma vida social mais intensa, de se alimentar e dormir bem e, sobretudo, de retomar com mais profundidade a troca afetiva com pessoas mais próximas. Embora seu sofrimento fosse intenso, tais sugestões, focalizando os temas por ela trazidos naquela sessão, ofereceram a perspectiva de levá-la a lidar com sua vida de outra forma, percebendo a situação com mais leveza e voltando a avaliar as possibilidades do momento.

 

Considerações finais sobre as mudanças alcançadas

A breve apresentação do caso de Dona Cecília destacou como os sentidos físicos podem ser utilizados de maneira favorável em psicoterapia, principalmente no caso de depressão. É importante salientar, de início, que nem toda psicoterapia ou mesmo intervenção hipnótica necessita conferir tal ênfase aos sentidos físicos, pois, para que isso ocorra, é importante que o próprio sujeito enfatize, em seu cenário subjetivo, expressões, indicadores e vivências que remetam aos sentidos físicos (Zeig, 2001), como foi o caso aqui descrito. No entanto, por meio desse caso, é possível destacar como os sentidos físicos podem ser qualificados na psicoterapia como importante fonte de recursos para os processos de mudança dos clientes. Ao mesmo tempo em que dizem do mundo vivido de uma pessoa, principalmente porque sua subjetividade se constitui a partir de um corpo, os sentidos físicos trazem vivências, lembranças, aprendizados de profunda emocionalidade e sentido para ela, tanto em termos de sua história como de suas relações atuais e dos universos simbólicos em que toma parte (Merleau-Ponty, 2008). Assim, por consistirem em matéria-prima de muito valor para a experiência vivida, eles podem assumir grande importância na reconstrução do mundo de relações e histórias do sujeito que pode aprender a se posicionar de outras maneiras diante de seu sofrimento.

Para que isso ocorra, a hipnose não pode assumir o papel de uma técnica impositiva, ou seja, uma prescrição que imponha diretrizes à pessoa sem lhe proporcionar um trabalho terapêutico legítimo, originário de seu papel ativo como cliente e de sua própria subjetividade. Desse modo, em vez de ordenar que a cliente tivesse tal ou qual sensação física, o pesquisador descrevia histórias carregadas de apelo aos sentidos físicos, e a cliente evocava e criava, à sua maneira e em seu próprio cenário subjetivo e corporal, uma série de experiências que foram úteis e pertinentes para as demandas trazidas. Como tais experiências eram originárias de seu próprio mundo vivido, com toda sua história e subjetividade, tornava-se possível à Dona Cecília assumir um papel ativo na construção de seus processos de mudança, assumindo atitudes distintas diante de questões de grande importância em sua vida. Desse modo, esse caso procurou demonstrar que, diferentemente do que colocam alguns autores clássicos (Binswanger, 2008; May, 2004), a hipnose é uma ferramenta possível para a reconstrução da história íntima das pessoas e que seu uso pode favorecer que estas se coloquem como sujeito do processo terapêutico, como é destacado a seguir.

No caso referente aos sentidos produzidos sobre o ato de chorar, Dona Cecília passou a considerar o choro, antes tido como uma fraqueza, como uma possibilidade terapêutica. Relatou que, no passado, ficava surpresa com seu cunhado, nascido e criado no Nordeste, onde "os homens não choram"; indagava se eles seriam mais homens que seu pai e irmãos que, raras vezes, expressaram lágrimas em público. Porém, durante o trabalho terapêutico, ela mesma aconselhou a esse cunhado, viúvo de sua irmã, a chorar quando sentisse necessidade, dizendo que, em seu tratamento, havia aprendido que chorar pode ser uma ótima forma de terapia. O mais interessante nesse processo é que a cliente retoma sua vida, seu lugar de "esteio da família", o interesse por atividades sociais, voltando a se sentir como uma pessoa forte que, ao mesmo tempo, poderia chorar quando achasse necessário.

No retorno das férias, foi possível verificar com mais nitidez todo um processo de reconstrução subjetiva produzida pela cliente. A primeira chamada telefônica foi atendida por sua filha, pois Dona Cecília estava dirigindo o carro, tarefa que não desempenhava há muito tempo; retornando a ligação, disse que não poderia comparecer à próxima sessão, pois havia combinado com a filha que tomaria conta dos netos enquanto esta estivesse no trabalho. Nota-se aqui o retorno da autonomia, em que o sujeito readquire a possibilidade de mover-se pela vida (Merleau-Ponty, 2008), e do interesse pelos afazeres da família, principalmente do papel de cuidar do outro, algo que havia desaparecido nos últimos meses. Aparecendo no serviço de Psicologia, apresentava-se muito bem vestida, sorridente, com movimentos físicos bem mais leves e sem as tensões que praticamente paralisavam a região do pescoço e do braço. Havia também retomado o ânimo para a fisioterapia, que estava lhe fazendo muito bem. Disse que, por ela, já se sentia de alta da psicoterapia, pois sua vida já havia mudado bastante e agora ficava apenas uma tristeza que ela dizia ser natural, mas que não a impedia de "ter a sua vida de volta". Já estava mesmo retomando alguns contatos sociais, não só pela amizade, mas também pelo desejo de voltar ao trabalho, que sempre foi muito importante para ela. Relatou ainda que, durante a ceia de Natal, trancou-se no banheiro e chorou longamente por ser o primeiro Natal sem a irmã, mas, em seguida, voltou ao grupo familiar e continuou na festa. Já no réveillon, disse ao marido que era o momento de deixar a tristeza ir embora e que, no momento dos fogos, fez uma oração despedindo-se daquela tristeza. A partir daí, disse ter sentido voltar a ser a pessoa que sempre havia sido.

Essa postura ativa tomada por Dona Cecília foi o aspecto mais importante de sua psicoterapia e tem estreitas relações com a dimensão vivida de sua corporalidade (Binswanger, 2008; Merleau-Ponty, 2008), inclusive no que se refere a seus sentidos físicos. Note-se que as sugestões de fluidez e movimento, particularmente no nível cinestésico, contrapondo-se ao peso e à paralisação, evocaram as possibilidades de mover-se com mais leveza e liberdade por seu próprio mundo, de maneira a poder manipular seus objetos com maior facilidade. Nesse sentido, tanto o dirigir seu carro como o locomover-se para as atividades importantes remetem a uma mudança significativa, em que a cliente retoma seu impulso para mover-se em direção a pessoas, tarefas e, de certa forma, a seu vir a ser, num futuro desbloqueado (Minkowski, 1999; 2005). Esse mundo vivido se torna novamente claro, como proporcionado pelas sugestões visuais, sendo novamente um lugar onde era possível a visualização da distância vivida quanto a obstáculos e objetos e, consequentemente, quanto às possibilidades de movimentação e orientação (Minkowski, 2005). Ao mesmo tempo, acompanhando as sugestões gustativas, sua experiência volta a ser marcada pelo interesse, fosse ele manifesto no sabor dos alimentos e na prática do comer, como no cuidado dos familiares e no desejo de voltar a trabalhar e retomar suas tarefas. Esse conjunto de configurações de sua experiência vivida culminou com sua sensação de estar voltando ao próprio eixo e se reconhecendo em seu corpo, num legítimo processo de reconciliação consigo mesma (Binswanger, 2008). Agora, a cliente concebia que a morte de sua irmã havia sido um fenômeno muito sofrido, mas a história que tiveram juntas era tão altamente marcada por experiências significativas que essa morte não seria capaz de apagá-las.

Em suma, sua irmã deixava de ser uma espécie de assombração, que assolava seu mundo com vivências de sombra e morte, para ser novamente uma personagem querida. Na última sessão hipnótica, cuja data coincidiu com o falecimento de sua irmã, Dona Cecília disse ter estado com ela durante o transe, ali na sala de atendimento, tomando aquele café de aroma inconfundível que só ela sabia preparar. Disse ter saboreado intensamente o café e ter a certeza de que aquela experiência não era uma produção de sua mente, mas um encontro espiritual verdadeiro. Sua irmã dizia estar muito feliz por ver que a cliente havia superado o sofrimento e que agora poderia seguir sua evolução espiritual sem problemas. Não era mais preciso sonhar com ela como forma de comunicação espiritual, pois ali, naquele encontro, haviam se entendido, e cada uma poderia seguir seu rumo sem serem paralisadas pelo sofrimento. "Sei que ela está bem e que um dia iremos nos encontrar." Para ela, ambas retomavam suas vidas e os próprios caminhos a serem percorridos.

 

Referências

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Binswanger, L. (2008). De la psychothérapie. In L. Binswanger. Introduction à l'analyse existentielle. (pp. 119–147). Paris: Minuit. (Texto original publicado em 1935)

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* Doutor em Psicologia, professor adjunto do Departamento de Psicologia Clínica (PCL), Instituto de Psicologia (IP) da Universidade de Brasília, psicoterapeuta. E-mail:mneubern@hotmail.com
1 O itálico nas sugestões refere-se à técnica do entremeamento, pela qual o terapeuta modifica o tom de voz e a duração da palavra como forma de enfatizar alguns trechos da sugestão.