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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.22 no.3 Belo Horizonte Sept./Dec. 2016

https://doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9523.2016V22N3P709 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9523.2016V22N3P709

 

Maternidade e novos modos de vida para a mulher contemporânea

 

Maternity and new life modes for contemporary woman

 

Maternidad y nuevos modos de vida para la mujer contemporánea

 

 

Patrícia Shalana Albertuni*; Márcia Stengel**

 

 


Resumo

Este artigo aborda os discursos da maternidade para mulheres que participam de blogs sobre este tema. Trata-se de pesquisa qualitativa, pautada na discussão da psicossociologia da família, que analisou posts redigidos pelas autoras e seus comentários escritos pelas leitoras de dois blogs públicos (Macetes de Mãe e Manual da Família Moderna), com base na análise de conteúdo de Bardin. Como resultado, obtiveram-se três categorias e, neste artigo, trataremos da primeira: novos modos de vida da mulher. A análise nos permitiu observar diversos modos de vida femininos e interpretá-los com base em autores como Badinter, Rocha-Coutinho, Woodward e outros. Ainda que a contemporaneidade permita a escolha por posições diversas, observamos que, em todos os casos, existem cobranças sociais, permanece a expectativa de que a mulher seja mãe e mantêm-se os discursos do mito da maternidade, o que compõe um cenário de sofrimento-angústia para a mulher, complexificando essa experiência feminina.

Palavras-chave: Mulher. Identidade. Maternidade. Blogs.


Abstract

This article treats discourses of motherhood for women who participate in blogs on this theme. This is a qualitative research, based on discussion of family pychosociology, in which it examined posts written by authors and their comments written by readers in two public blogs (Macetes de Mãe e Manual da Família Moderna) from the Bardin’s content analysis. As a result, it was obtained three categories and in this article we shall deal with the first: new modes of women's life. The analysis allowed us to observe various modes of living female and interpret them from authors such as Badinter, Rocha-Coutinho, Woodward among others. Although contemporaneity allows the choice of different positions, we observe that in all cases there are social charges, the expectation remains that the woman is a mother and the discourses of the myth of motherhood, which composes a scenario of distress-anguish for the woman, complicating this female experience.

Keywords: Woman. Identity. Motherhood. Blogs.


Resumen

Este artículo trata de discursos de maternidad para mujeres participantes de blogs sobre este tema. Es una investigación cualitativa, basada en la discusión de psicosociología de la familia, que examinó los posts escritos por las autoras y sus comentarios escritos por las lectoras de dos blogs públicos (Macetes de Mãe y Manual da Família Moderna) desde el análisis de contenido de Bardin. Como resultado se obtuvieron tres categorías y en este artículo nos ocuparemos de la primera: nuevos modos de vida de la mujer. El análisis nos permitió observar diversos modos de vida femenina e interpretarlos partiendo de autores como Badinter, Rocha-Coutinho, Woodward y otros. Aunque la contemporaneidad permita la elección por diferentes posiciones, observamos que, en todos los casos, existen exigencias sociales, permanece la expectativa de que la mujer sea madre y se mantienen los discursos del mito de la maternidad, que compone escenario de sufrimiento y angustia para la mujer, complejizando esta experiencia femenina.

Palabras clave: Mujer. Identidad. Maternidad. Blogs.


 

 

1. INTRODUÇÃO

Este estudo tem por objeto de investigação os modos de vida das mulheres que participam da blogosfera materna, isto é, do espaço virtual da internet utilizado como canal de relacionamento por meio das mídias sociais, mais especificamente dos blogs que tratam do tema da maternidade. Quando pensamos nos novos modos de vida da mulher contemporânea, logo nos remetemos à história de luta das mulheres, principalmente das gerações passadas, para uma ampliação real dos espaços vivenciais além da casa e a conquista do mercado de trabalho, ou seja, para uma diversificação de maiores e melhores oportunidades de realização pessoal. Entretanto, se por um lado é possível considerarmos certas conquistas como que instituídas consistentemente na vida feminina, por outro não podemos nos referir à igualdade, sendo este um conceito ainda não alcançado, literalmente, pelas mulheres. Ainda que estejam inseridas no mercado de trabalho, as mulheres dividem seu tempo entre sua vida pública e a privada, entre as demandas de sua profissão e a de seus filhos, marido e lar. Já são cidadãs políticas, participantes ativas da vida socioeconômica de um país e muitas, inclusive, são "chefes" de família, sendo a maior ou a única responsável pela manutenção da casa. Podem estudar e alcançar altos níveis de liderança em corporações e inserir-se em espaços antes essencialmente masculinos. Todavia as diferenças permanecem e, para citar apenas um exemplo, tem-se a pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2013), em que se verificou que as mulheres ainda têm um rendimento médio inferior ao dos homens, independente de terem escolaridade maior.

Se, por um lado, a desigualdade e opressão ainda convocam a mulher para a luta, por outro, uma conquista alcançada parece permanente e irreversível: o rompimento das correntes que a aprisionavam à maternidade, pela criação dos métodos anticoncepcionais, ou seja, o esfacelamento do laço, aparentemente indissociável, entre maternidade e destino. Segundo Sarti (2008), isso introduziu na família a dimensão da escolha e possibilitou à mulher manipular de outra forma seu tempo e sua dependência em relação ao homem. A escolha passou a fazer parte da realidade feminina, independentemente dos valores que se impunham na vida socialmente compartilhada, a voz lhe foi dada e ela pôde falar. O sim e o não para a maternidade (assim como para o casamento) tornaram-se opções concretas a definir caminhos de vivenciar uma vida boa, ou seja, compatível com seus desejos mais íntimos.

Nesse sentido, pretendemos, com este trabalho, compreender se e como essas mudanças acima descritas interferiram nos modos de vida da mulher contemporânea e como esses modos, ou seja, as maneiras de organizar os distintos aspectos da vida e os meios implicados para a realização desses modos, interrelacionam-se com a experiência da maternidade. Para Badinter (2011, p. 163), "Desde que as mulheres controlam a reprodução, estudam, invadem o mercado de trabalho e reivindicam a liberdade financeira, a maternidade não é mais uma evidência natural, mas um problema". Segundo ela, o controle da fecundidade pela mulher resultou em quatro fenômenos vistos na atualidade:

a) o declínio da fertilidade;
b) a elevação da idade média da maternidade;
c) o aumento das mulheres no mercado de trabalho; e
d) a diversificação dos modos de vida femininos.

Da mesma forma, buscamos analisar a importância da vivência da maternidade para as mulheres no que diz respeito às suas concepções de identidade feminina. Assim nos perguntamos se o sentimento de completude feminina estava associado, para as mulheres, à experiência de ser mãe. Para Barbosa e Rocha-Coutinho (2007), a maternidade ainda está no discurso social como valor intrinsecamente associado à concretização da identidade feminina, como destino biológico inquestionável e determinado desde o nascimento da menina. Desse modo, a possibilidade de uma escolha pelas mulheres não as exime da necessidade de lidar com a intolerância social caso decidam pela opção "não ter filhos", uma vez que "permanece a expectativa de que um dia elas venham a cumprir seu principal papel, o de mãe" (Barbosa & Rocha-Coutinho, 2007, p. 3, grifo dos autores).

Na contramão dessas ideias, Badinter (2011, p. 152) conclui que "o destino feminino se confunde cada vez menos com a maternidade, porque outras vias são possíveis e desejáveis", e isso "torna esse momento uma verdadeira revolução, que solicita uma redefinição da identidade feminina". Assim, todo estudo que se proponha a investigar algum aspecto relativo à subjetividade feminina na contemporaneidade contribui com o descortinamento dessa revolução, que abrigada no cotidiano da vida ou escancaradamente exposta pela tecnologia do mundo moderno, imprime sua marca na história da mulher.

 

2. METODOLOGIA

 

2.1 O campo de estudo

O blog foi escolhido como campo de estudo desta pesquisa, que surgiu, no Brasil, por volta dos anos 2000, embora tenha aparecido anteriormente em outros países. Ele é constituído por dois aspectos, de acordo com Recuero (2005): microconteúdo e atualização frequente. O primeiro refere-se às pequenas porções de texto, chamadas posts, que são colocadas de cada vez na página, e o segundo diz respeito à frequência com que os textos são publicados, que deve ser praticamente diária. De forma geral, o blog apresenta um link chamado comentários, que, para Di Luccio e Nicolaci-da-Costa (2007), foi um dos grandes responsáveis pelo seu êxito e popularidade.

 

2.2 Os participantes

Após realizarmos o levantamento do número total de blogs de maternidade no Brasil (computando apenas aqueles criados por mulheres e que estavam abertos ao público, isto é, sem necessitarem de senha para acessar seu conteúdo), chegamos a 512 blogs em atividade. Uma vez realizada essa etapa inicial, passamos para a seleção dos dois blogs de mulheres mães que seriam nossos instrumentos de pesquisa. Para a escolha do primeiro, decidimos por utilizar a referência do site TopMothers1, considerando duas características: o objetivo da página e o número de avaliações positivas que ela havia recebido, o que podia ser identificado pelas ferramentas de estatística disponíveis no site. Assim, escolhemos o Macetes de Mãe (MM). O segundo blog escolhido levou em conta o tipo de escrita, isto é, buscamos uma página que se caracterizasse como diário virtual, ou seja, que tivesse a característica de escrita íntima, com relatos voltados para o âmbito pessoal. Esse blog foi o Manual da Família Moderna (MFM) (Sabadini, 2016).

O MM (Hilgert, 2013) tinha três anos de existência e foi criado quando Shirley, sua autora, estava grávida do primeiro filho. Na época da pesquisa, Shirley tinha 37 anos. Ela é formada em Relações Públicas e Publicidade e Propaganda. O blog MFM tinha quatro anos e surgiu antes mesmo da gravidez de Tatiana, sua autora. Ela é formada em Jornalismo e estava com 33 anos. É mãe de gêmeas que tinham três anos e de um menino de um ano de idade.

 

2.3 O procedimento

Para realizarmos a seleção do material, efetuamos a leitura de todos os títulos dos posts e seus comentários publicados no período de maio a novembro de 2014, nos blogs MM e MFM, totalizando, aproximadamente, 600. Durante a leitura desses 600 posts, identificamos aqueles textos que abordavam, mais objetivamente, ideias envolvendo concepções de maternidade, suas práticas, desafios e dificuldades. Foram, então, selecionados 92 posts, sendo 35 do MM e 57 do MFM, e 1.887 comentários de leitoras. Desses comentários, 1.445 do blog MM e 442 do MFM. Vale ressaltar que todos os excertos de textos utilizados neste artigo foram reproduzidos exatamente da mesma maneira como publicados pelas suas autoras.

O material foi analisado de acordo com a proposta oferecida pelo método de análise de conteúdo, que, segundo Bardin (2011, p. 42), é "um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando obter indicadores que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção [...] destas mensagens". A seleção das unidades de análise nos permitiu formular três categorias: novos modos de vida da mulher; idealizações: o mito da maternidade; e naturalização da maternidade. Neste artigo, trataremos da análise realizada com base na primeira categoria.

 

3. A MATERNIDADE COMO MAIS UM CAMINHO E NÃO O ÚNICO

A análise dos posts relacionados aos modos de vida femininos nos permite afirmar que as mulheres já não se referem unicamente à maternidade como forma de encontrar a felicidade ou realização. Muitas compreendem que esse é um aspecto de suas vidas tão importante quanto suas profissões ou mesmo outras atividades. Porém também se referem ao conflito que se estabelece quando se tornam mães em relação a como devem priorizar e desempenhar seus diversos papéis. Como assinala claramente a leitora do blog MM:

Nós somos multimulheres. O que é maravilhoso. Mas, antes de tudo: da profissional, da esposa, da mãe. Somos Mulheres. Jamais esquecer disso, afinal, se tivermos mais prazer em sermos nós mesmas, seremos tão felizes desempenhando outros papéis. A nossa geração, não foi educada para ser mãe. O que acho às vezes tão sofrido, ter que abandonar muito do que fazia, para tornar esposa e mãe. Sei que fui privilegiada, mas, para a nossa geração, tudo isso é muito sofrido. Hoje, aprendi a reinventar-me, e ser de tudo um pouco, mas, sobretudo eu mesma. (Finotti, 2013).

Ela aborda diversas questões em sua fala, como a característica atual das mulheres em desempenharem várias funções, o que denomina de "multimulheres". Desde que conquistou o direito de circular por outros espaços além da casa, a mulher vem sentindo a sobrecarga do acúmulo de responsabilidades, pois, como enfatizaram Badinter (2011), Bruschini (2007) e Rosa (2011), a desigualdade de gênero, ainda existente, faz pesar sobre seus ombros o trabalho privado (que já lhe pertencia) acrescido do público. Entretanto, diferentemente de tempos passados, em que era preparada para o casamento e, consequentemente, para assumir seus encargos domésticos, na contemporaneidade, o que se valoriza, para as mulheres das camadas médias e altas, é a obtenção de títulos acadêmicos que lhe ampliem a possibilidade de independência e do alcance de um estilo de vida mais confortável (Barbosa & Rocha-Coutinho, 2007). O comentário de outra leitora (blog MFM) confirma esse ponto de vista: "Eu sou aquela que largou o glamour de ser reconhecida como uma profissional e mulher moderna". Porém, se essa geração de mulheres não foi educada para ser mãe, como ressalta a leitora acima em destaque, ainda recaem mais intensamente sobre elas os cuidados com os filhos, os serviços da casa, como que para lhes relembrar suas "origens fundamentais" socialmente determinadas.

A solução dada pela leitora para o conflito que vivencia já se encontra nas primeiras linhas quando enfatiza a necessidade de manter e fortalecer uma identidade feminina antes de ser totalmente envolvida pelos diferentes papéis, inclusive o de mãe. Parece fazer uma referência à condição de sujeito, não um sujeito qualquer, mas uma multimulher, com suas vontades e sonhos que não devem ser traduzidos em funções, as quais se espera que ela deva desempenhar. Tem-se, portanto, uma tensão entre expectativas sociais e identidade.

Essa cultura oferece um discurso que, segundo Woodward (2000), somente encontra eficácia se consegue recrutar as pessoas como sujeitos. Assim os sujeitos são sujeitados ao discurso e passam a assumi-lo e se posicionam a si próprios. Essas posições assumidas, com as quais os sujeitos se identificam, constituem suas identidades. A leitora se refere a uma identidade feminina, pois "antes de tudo [...] Somos Mulheres", lhe conferindo uma anterioridade à identidade de mãe (e mesmo profissional), esclarecendo que o discurso que lhe capturou não foi o da maternidade, já que, para ela, a sua geração não foi preparada para ser mãe.

Para Woodward (2000), a complexidade da vida moderna nos leva a assumir diferentes identidades, mas que podem estar em conflito umas com as outras, de acordo com as exigências e necessidades de cada uma. Ou ainda, nas palavras de Louro (2000, p. 12), "Essas múltiplas identidades podem cobrar, ao mesmo tempo, lealdades distintas, divergentes ou até contraditórias". Essa tensão pode ser exemplificada em um post de Hilgert (2013), em que ela relata sua conversa com outra mãe:

Quando decidimos que está na hora do bebê/criança ir para a escolinha ou de contarmos com a ajuda de uma babá há sempre aqueles (e que nem sempre são poucos) que acham que é muito cedo, que é importante a mãe ficar mais tempo com o filho, que nada substitui a presença materna e por aí afora. [...] E continuando o seu comentário, a minha nova-amiga-companheira-de-desabafo ainda lembrou que há o outro lado da cobrança. Aquela que vem dos chefes e colegas de profissão, que acham que a pobre coitada da mãe, que passa a vida se virando nos 30, está sempre em débito com eles, dando muita, mas muita mais prioridade para a família e filhos do que para seus compromissos profissionais.

Existe, portanto, uma contradição entre dois discursos, o que valoriza a presença materna e critica a mãe que decide por retomar suas demais atividades, deixando o filho sob os cuidados de terceiros; e o que representa o mundo capitalista e competitivo, expresso pela crítica de chefes e colegas de profissão sobre o desempenho profissional dessa mesma mãe, que para eles é deficiente, já que sua dedicação parece priorizar a família e os filhos.

 

4. A ESCOLHA PELA NÃO MATERNIDADE: UMA VIDA SEM FILHOS

Antes de nos lançarmos sobre a identidade materna, podemos nos debruçar sobre outra, com a qual muitas mulheres vêm se identificando. Estamos nos referindo à mulher sem filhos ou à mulher que, voluntariamente, deseja não os ter. Na fala a seguir, uma leitora do blog MM coloca em termos bastante claros sua decisão:

Eu não pretendo ter filhos, tendo em vista tanto sofrimento e reclamação, sei sim que deve ser algo mágico e que muda a vida… Mas é justamente por causa dessa mudança que não pretendo ter. Vejo minhas amigas, que antes eram tão belas, dispostas e bem-humoradas, hoje estão estressadas, se divertem pouco, tem pouco tempo pra fazer o que gostam e toda a felicidade delas depende da felicidade e do bem-estar do filho… É uma doação de sua vida, e que tenho minhas dúvidas se realmente vale a pena. Mas eu escolhi não ter que doar minha vida, já fui chamada de egoísta, mas acredito que temos liberdade de escolha, e eu escolho não ter filhos [...].

A expectativa social em relação à mulher ainda perpassa pelo terreno da maternidade. Mesmo que exista uma disponibilidade de métodos contraceptivos necessários para realizar uma escolha, perguntamo-nos se ela é realmente possível, isto é, se o discurso, ao valorizar esses valores femininos e identitários, não acaba por enredar a mulher de tal maneira que não lhe resta alternativa socialmente confortável senão corresponder ao que dela se espera para que não, seja afinal, como mencionou outra leitora que não deseja filhos (blog MM), "apedrejada em praça pública"?

Para Mansur (2003, p. 159), "Permanecer sem filhos por opção ou circunstância significa deixar de realizar um potencial e viver uma diferença significativa em relação à comunidade das mulheres-mães", por isso envolve uma questão existencial importante e se caracteriza por uma decisão que mobiliza emocionalmente qualquer mulher. Daí toda a dificuldade em se optar por uma posição, como diria Woodward (2000), que é diferente daquela socialmente valorizada. Badinter (2011) ressalta que a mulher que decide não ter filhos dificilmente escapará da hostilidade da sociedade, por definição natalista, e do Estado, que têm múltiplos pequenos meios de punir e estigmatizar quem não cumpre seu dever, tornando tão difícil a escolha pela não maternidade a ponto de ser preciso ter uma "vontade a toda prova e um caráter inflexível" para manter esse posicionamento (pp. 20-21).

Ainda assim, existem mulheres para as quais a vida sem um filho é, sim, uma opção e, sendo assim, o sentido de uma existência plena, para estas, não está na maternidade. Para Barbosa e Rocha-Coutinho (2007), o simples questionamento que algumas mulheres hoje fazem sobre se, de fato, desejam ou não ter filhos já se configura em uma abertura possível para a descoberta dessas novas experiências.

Essa possibilidade de questionar valores solidamente estabelecidos, tal como o da maternidade, pode ser reflexo das transformações culturais promovidas pela Pós-Modernidade com delineamentos próprios. Bauman (2003) descreve nossos tempos como pouco hospitaleiros para a confiança ou para objetivos e esforços de longo prazo. Para ele, tal fato é decorrente da vulnerabilidade e transitoriedade de tudo, ou quase tudo, em todos os aspectos da vida contemporânea, seja na vida profissional ou nas relações íntimas, seja no meio social, em que valores, estilos de vida parecem seguir uma espécie de moda, tão volátil na sua imaterialidade e passageira na sua temporalidade, que o fez denominar essa era de "modernidade líquida".

Para Bauman (2003), diante dessas incertezas e imprevisibilidades, resta a busca pela satisfação instantânea, pelo prazer individual e por uma tentativa constante de evitar frustrações. Desse modo, "nos compromissos duradouros, a líquida razão moderna enxerga a opressão; no engajamento permanente percebe a dependência incapacitante. Essa razão nega direitos aos vínculos e liames, espaciais ou temporais" (Bauman, 2004, p. 65). O homem, assim, torna-se o homo consumens, consumindo coisas e pessoas, que facilmente são descartados porque o valor está na velocidade e na variedade com que se adquirem esses objetos e na possibilidade de acompanhar e ser satisfeito pela novidade disponível.

Então nos perguntamos de que maneira a experiência da maternidade permanece para as mulheres; se submetida (ou submetendo) a esses valores contemporâneos tão contraditórios ao discurso sobre ser mãe? Ora, se a mãe perfeita, segundo o discurso da maternidade idealizada, e como enfatiza Badinter (2011), é aquela completamente devotada aos filhos e ao papel de mãe, que se entrega e ama incondicionalmente e é capaz de enormes sacrifícios, no mínimo podemos supor que essa prática discursiva encontra alguma forma de resistência em uma época em que justamente essa condição de compromisso e dependência é menosprezada.

Na avaliação de dessa autora, diante desse princípio hedonista que participa da constituição do sujeito contemporâneo, a maternidade se torna um desafio ou uma contradição, isso porque a preocupação consigo mesma deve dar lugar a um esquecimento de si, o que atualmente não tem tido muito valor, conforme esclarece o lamento dessa leitora (blog MM): "Muitas vezes, é um saco ser mãe, simplesmente porque você não tem mais vida própria". Esse quadro que retratamos sobre o mundo contemporâneo pode ser mais bem ilustrado na fala de uma autora convidada pela blogueira MM:

Sinto falta da esposa, amiga, profissional, botequeira e festeira que eu posso ser. Da moça que lê e vai ao cinema e dança fazendo um inevitável biquinho. Da defensora da preguicinha domingueira, do ócio criativo e do dolce far niente. Tudo o que eu ainda quero ser (e fazer) exige tempo. Os filhos também. De modo que, céus!, eu não raras vezes prefiro estar sem os filhos por perto para tocar certos aspectos da minha vida. Tenho adorado dividir a parte chata da rotina com a babá.

O sentimento de melancolia em relação aos prazeres que um dia ela pôde desfrutar e que foram abandonados com a chegada dos filhos, e o atual desejo em viver novamente esses mesmos prazeres que são, única e exclusivamente, pessoais e que não incluem a maternidade denunciam a importância dos valores contemporâneos para a mulher, como a liberdade, a exaltação do eu e a satisfação imediata, como também o significado da maternidade como impeditivos para essas mesmas realizações. Diante desse conflito, muitas mulheres passam a optar pela chegada dos filhos tardiamente, depois de viverem o máximo de experiências que desejam, outras efetuam a chamada "terceirização dos filhos" e existem aquelas para as quais a vida sem filhos é a melhor opção.

 

5. A MATERNIDADE RELATIVIZADA PELA IMPORTÂNCIA DA VIVÊNCIA PROFISSIONAL

Como vimos, não podemos deixar de incluir nessa análise sobre os modos de vida femininos os seus desdobramentos sobre a percepção acerca da maternidade, que não parece imaculada diante dessas transformações. O mesmo parece acontecer como decorrente da inserção das mulheres em um espaço em especial, conquistado arduamente, em suas vidas: sua vivência profissional. Sobre isso, o relato da leitora a seguir é bastante expressivo:

Eu sou uma mãe comissária de voo. Vivo as duas funções: nas folgas fico o tempo todo cuidando da casa, dos meninos 7a e 2 anos, do marido e dos cachorrinhos. E qdo vou trabalhar, me despeço das crianças com um abraço forte e um beijo gostoso, pois só vou voltar para casa depois de alguns dias qdo a jornada de voo terminar. Ouço muitas críticas em deixar meus filhos, mas meu esposo me apoia e é um paizão. [...] Qdo estou em casa, eu curto o máximo que posso os meninos, ir ao cinema no meio da semana, parque, picnic, pois não tenho todos os finais de semana de folga. Eu amo demais meus filhos e minha família, e amo também meu trabalho, conhecer pessoas, lugares, culturas diferentes. Não quero outra vida. Sou feliz assim, minha família é feliz e é o que importa.

Dessa maneira, torna-nos aceitável reconhecer que os novos modos de vida femininos estão consolidados como escolhas possíveis na experiência real de muitas mulheres (não de todas), e que a maternidade, inclusive quando se presentifica, nem sempre ocupa a vida feminina por inteiro ou lhe interrompe projetos anteriores.

Bruschini (2007) evidencia a mudança simbólica do significado do trabalho para as mulheres, que, se no século passado, caracterizava-se, sobretudo, por ser um segundo salário para a família, atualmente se constitui em um valor e corresponde a um desejo por autonomia, como bem revela a leitora do blog MM: "Fico arrasada em pensar em largar minha profissão [...], e fico atormentada em pensar perder minha independência financeira". Desse modo, a maternidade deixou de ser exercida em tempo integral, em muitas famílias, e passou a coexistir lado a lado com a necessidade, ou o desejo da mulher em manter sua autonomia, mesmo que relativa.

Todavia essa coexistência não se dá, genuinamente, de forma harmoniosa, uma vez que, indiretamente, rompe com a idealização da maternidade e sua consequente supervalorização. Vejamos nossa leitora comissária de voo: ela decide permanecer em um trabalho que a faz ausentar-se de casa por dias, deixa aos cuidados do pai duas crianças e, destemidamente, afirma que é feliz, que é possível ser uma mãe feliz assim e, indo além, que sua família é feliz também. Esse comentário singular seria um discurso impensável há algum tempo e, não nos enganemos, mesmo que esse arranjo doméstico, que traduz uma determinada vivência da maternidade, do trabalho e da constituição de uma identidade feminina encontre meios de se realizar na atualidade, ele certamente é questionado e condenado por muitas pessoas, principalmente mulheres.

Ao realizar uma pesquisa sobre gênero, trabalho e família, Araújo e Scalon (2006) puderam retratar um quadro sobre diversos valores que compõem o discurso de homens e mulheres. Sobre o discurso das mulheres, ao serem apresentadas à afirmação "As crianças sofrem mais se a mãe trabalha fora", uma maioria maciça (79,8% totalmente e 10,1% em parte) concordou com a assertiva, evidenciando uma concepção de maternidade ideal que perpassa a ideia de cuidados em tempo integral e de presença materna como garantidora da satisfação emocional da criança, ao mesmo tempo em que expõe as possíveis tensões existentes entre o papel materno e o profissional. No relato a seguir, temos um exemplo da evidente associação que fez a mãe entre saúde e bom desenvolvimento físico, cognitivo e psicológico da criança com a presença materna:

Sempre quis ficar mais tempo com minha filha e isso foi planejado. Para mim e para ela, principalmente, tenho certeza que foi a melhor escolha. Em 2 anos ela só teve duas febrinhas leves, come de tudo, sempre dormiu a noite toda, sozinha em seu quartinho, de luz apagada, desde seus 20 dias de vida… sempre foi muito alegre, amorosa e superesperta. [...] Mas infelizmente, há mães que "terceirizam" seus filhos. [...] Seu filho não pediu para nascer e ele merece e tem, sobretudo, o direito de ter sua presença, sua atenção, seu cuidado e seu amor, seja do jeito que você puder dar isso a ele. O importante é ser MÃE! (Leitora Blog MM)

Ilustra-se, assim, a opinião da maioria das mulheres pesquisadas, calcada no princípio de que a única capaz de dar, verdadeiramente, aquilo de que precisa um filho é a sua mãe.

Sobre o papel profissional, quase que a totalidade de mulheres questionadas (82%) concordou com a ideia de que "Trabalhar fora é o melhor jeito de se tornar independente" (Araújo & Scalon, 2006). Temos aí estabelecido o conflito entre o trabalho e a maternidade, o valor social da independência feminina versus a concepção de uma maternidade "de corpo presente". No relato a seguir, uma mãe descreve a importância da independência financeira em sua vida, enfatizando o seu valor/sentido para sua vida, já que começou a trabalhar aos 13 anos porque queria ter o "seu dinheiro":

E como é duro… e acredito que a questão trabalho x filhos… sempre será a mais louca de todas!!! Em casa somos em dois engenheiros. Comecei a trabalhar com 13 anos porque queria ter meu dinheiro (não por necessidade). Fiz curso técnico e faculdade. E trabalho na minha área à mais de 14 anos… NUNCA pensei em cogitar à parar de trabalhar… e antes de minha filha nascer… sempre disse que seria fácil… como todo mundo faz… ao final da licença coloco numa creche e volto a trabalhar (como todo mundo faz….) Mas aí… minha pequena nasceu…. minha licença acabou. E descobri que eu não sou todo mundo… [...] Juro que pensei muitas vezes… em jogar tudo pro alto.. e ficar com ela.. em chegar ao cúmulo de achar péssimo ter um salário compatível ao do meu marido e isso então representar 50% da nossa renda… e tomar essa decisão significar cair pela metade o padrão de vida que conquistamos… E fora aquela briga interior… quero ficar com ela… mas e tudo que trabalhei ao longo desses mais de 14 anos para chegar até aqui… e ter tudo que temos… poder fazer o que fazemos [...] Poxa!! E tudo isso não foi para dar conforto para minha pequena?? Não é para isso que trabalhamos tanto??? (Leitora Blog MM)

É interessante como essa engenheira declara que viveu as reações condizentes com dois posicionamentos sobre a volta ao trabalho, um antes do nascimento da filha e outro depois. Em um primeiro momento, ela foi tomada pela certeza da ordem das coisas, pois "NUNCA" cogitou parar de trabalhar; então tudo seria resolvido facilmente, "como todo mundo faz": voltaria a trabalhar, e a criança ficaria na creche. Porém não contava com as mudanças internas e os novos discursos que lhe tomariam de assalto diante da filha de carne e osso: pensou não somente uma, mas muitas vezes "em jogar tudo pro alto... e ficar com ela". Todo o seu relato nos faz sentir como que arrebatados por uma montanha-russa de emoções, pendurados pelos trilhos da angústia de um conflito, que ela denominou de "briga interior", em que parecemos ir e vir entre seus pensamentos (e seu sofrimento!) sobre um ideal de maternidade em confronto com o significado de uma vida financeira independente, que caracterizava sua identidade. Por isso ela não diz apenas "parar de trabalhar", mas "jogar tudo pro alto" (grifo nosso), referindo-se claramente a um aspecto de grande significado para ela, e que, afinal, lhe constituía como sujeito. Outro ponto que merece destaque é a sua crença de que o fim da licença maternidade leva, invariavelmente, a mulher ao retorno ao seu trabalho, a criança a inserir-se em uma creche e que essa separação é fácil. Ora, sabemos que a volta da licença-maternidade raramente acontece sem conflito para a mulher e que, diante deste, muitas decidem por abandonar seus trabalhos e permanecer com o filho. Então como ela pôde pensar que a separação entre mãe e filho sempre acontece e com facilidade? A hipótese que levantamos é que, talvez, não haja muito espaço para as mães trabalhadoras manifestarem seus sentimentos (e possíveis sofrimentos), em relação à separação do filho, que vivenciaram ao reassumirem suas vidas profissionais, pois, quando estão em suas funções, desvestidas de suas roupas de mãe, precisam valorizar a lógica do mundo corporativo e público e acabam por não revelar as desventuras emocionais que viveram para chegar até ali, dando a impressão de que apenas fizeram "o que todo mundo faz".

De maneira geral, o discurso hoje endereçado às mulheres as incentiva a assumir posições de sujeitos livres e autônomos, em que o trabalho se apresenta como um dos meios de afirmação desse sujeito. Concomitantemente, permanecem ativos os discursos que destacam as mulheres como mães, esposas e donas de casa.

Vejamos a seguir dois exemplos de mulheres a quem são endereçados esses discursos. A primeira recebe o discurso da maternidade idealizada como uma verdade que lhe posiciona enquanto sujeito, mas que, uma vez que se identifica com ele, estabelece um conflito na sua condição de profissional: "Não consigo ser feliz vendo meus filhos crescendo e eu aqui, cheia de processos e contratos em cima da mesa sem nenhum ânimo. [...] Se largar um emprego é bem difícil, imagine um concurso" (Leitora Blog MM). A segunda não se identifica com o discurso de pura felicidade materna e questiona a ideia de realização plena proporcionada pela maternidade: "Minha vida não 'ganhou sentido', ela já tinha. A felicidade eu conheço desde muito cedo, graças a uma família ótima, escolhas certas e muita sorte nessa vida. Ser mãe é a melhor coisa que pode acontecer na vida de uma mulher? Não sei" (Leitora Blog MM).

Esses são exemplos de como as mulheres podem articular os discursos de maneira diferente, identificando-se com posições que podem ser distintas entre si, muitas vezes contrárias, outras vezes concomitantes, como não nos deixa esquecer Louro (2000, p. 12), ao acrescentar que "somos sujeitos de muitas identidades". E independentemente de essas mulheres viverem sob o mesmo tempo histórico, sendo impactadas por práticas discursivas semelhantes, por fatores sociais compartilhados e por um mesmo sistema de significação, existe o nível psíquico, a história individual que devem ser considerados como elementos importantes na posição de sujeito que assumimos (Woodward, 2000). Para essa autora, no caso da maternidade, os fatores sociais podem explicar sua construção particular, em um determinado momento histórico, "mas não explicam qual o investimento que os indivíduos fazem em posições particulares e os apegos que eles desenvolvem por essas posições" (Woodward, 2000, p. 59). De qualquer maneira, posições que produzem discursos que relativizam a importância da maternidade ainda são timidamente manifestados por algumas mulheres, raramente de forma expressiva como fez a segunda leitora, mas muitas vezes em enunciados contraditórios, em que escapam ideias que aludem para uma outra concepção e com diferentes significados.

Esses são exemplos de como as mulheres podem articular os discursos de maneira diferente, identificando-se com posições que podem ser distintas entre si, muitas vezes contrárias, outras vezes concomitantes, como não nos deixa esquecer Louro (2000, p. 12), ao acrescentar que "somos sujeitos de muitas identidades". E independentemente de essas mulheres viverem sob o mesmo tempo histórico, sendo impactadas por práticas discursivas semelhantes, por fatores sociais compartilhados e por um mesmo sistema de significação, existe o nível psíquico, a história individual que devem ser considerados como elementos importantes na posição de sujeito que assumimos (Woodward, 2000). Para essa autora, no caso da maternidade, os fatores sociais podem explicar sua construção particular, em um determinado momento histórico, "mas não explicam qual o investimento que os indivíduos fazem em posições particulares e os apegos que eles desenvolvem por essas posições" (Woodward, 2000, p. 59). De qualquer maneira, posições que produzem discursos que relativizam a importância da maternidade ainda são timidamente manifestados por algumas mulheres, raramente de forma expressiva como fez a segunda leitora, mas muitas vezes em enunciados contraditórios, em que escapam ideias que aludem para uma outra concepção e com diferentes significados.

 

6. MATERNIDADE EM TEMPO INTEGRAL: O ABANDONO DA IDENTIDADE PROFISSIONAL

Finalmente as análises dos posts dos blogs, juntamente com os comentários, permitem-nos abordar ainda a existência de mais um modo de vida feminino que diz respeito ao retorno da mulher contemporânea para as funções domésticas como exclusividade, isto é, o abandono do trabalho para o cumprimento dos cuidados com os filhos em tempo integral.

A blogueira MFM, quando engravidou, trabalhava em ritmo acelerado com chances de crescimento profissional. Com a chegada das filhas gêmeas, passou a questionar a permanência no trabalho, os benefícios e as perdas em manter ambas as identidades:

Quando me tornei mãe, tinha dois caminhos a seguir. Número um: trabalhar e deixar as meninas na creche ou com duas babás em casa, como acontece com várias mães modernas que se dividem em muitas para dar conta do recado. Pensei muito sobre essa possibilidade e ela sempre parecia muito distante. Com duas bebês, financeiramente, eu estaria trabalhando para outras pessoas ficarem com as minhas filhas e receber um trocado no fim do mês. – o momento em que o conflito trabalho x casa precisa ser avaliado. Número dois: ficar em casa e acompanhar de perto o crescimento das minhas filhas, abrir mão do meu lado profissional, meus desejos, para cuidar das duas. Também escutei muita coisa (e ainda escuto) quando tomei essa decisão "você não vai dar conta, não vai aguentar ficar em casa". E realmente não é fácil. Mas como filha de uma mãe que escolheu a segunda opção como modo de vida, me pareceu, e ainda parece, natural. [...] definitivamente a melhor coisa que eu já fiz na vida! [...] E tudo o que eu posso dizer é que vale a pena, nunca fui tão feliz e vejo o peso da minha decisão todos os dias nas minhas filhas e como elas são (Sabadini, 2016).

Temos visto um número cada vez mais expressivo de mulheres que são profissionais, que têm uma história laboral, que arquitetaram suas vidas de maneira a obter uma total ou parcial independência de seus companheiros e que, aos serem mães, abandonam suas carreiras e, ou, trabalho; algumas temporariamente outras em definitivo. Para Lake e Conway (2005), ficar em casa cuidando das crianças virou um novo símbolo de status, que diferencia as mães cujos companheiros têm um ganho suficiente para arcar sozinhos com as demandas da família daquelas que necessitam colaborar com a renda familiar e para quem permanece o sentimento de culpa por uma ausência prolongada.

O discurso científico será uma das vozes a valorizar o comportamento da mãe que abandona seu trabalho para permanecer integralmente com o filho, enfatizando a importância dessa decisão para o futuro deste. Nesse sentido, o pediatra Martins Filho (2012, p. 71), ao teorizar sobre as crianças terceirizadas, adverte para a necessidade de prevenção de distúrbios de desenvolvimento físico, emocional e cognitivo. Para ele, essa prevenção ocorre quando a criança pode ter "uma relação pessoal com a mãe, com atenção, carinho e presença constante" (grifo nosso).

Todavia a saída da mulher do mercado de trabalho pode lhe trazer sérias consequências. Para Bennetts (2007), a perda da independência financeira deixa a mulher vulnerável, principalmente diante do divórcio, desemprego ou viuvez. A autora também chama a atenção para a dificuldade no retorno ao mercado de trabalho após algum tempo. Para ela, existe uma discriminação contra as mães, que enfrentam resistência para serem admitidas e, quando o são, na maior parte das vezes, submetem-se aos menores salários, se comparadas com mulheres sem filhos e homens. Um exemplo dessa situação está posto no relato de uma leitora, pedagoga:

Sou mae de tres filhos. Consegui trabalhar depois da maternidade, mas foi impossivel continuar. Tive depressao e quase morri. Nao da para abracar todas as causas!!! So se voce ganhar muito bem e tiver condicoes de pagar pessoas serias para ficar com seus filhos. Mas infelizmente era pedagoga e o salario e muito ruim, alem das condicoes de trabalho serem demasiadamente estressantes!! Hoje apesar de Amar ser mae, e Amar meus filhos vejo que deixar o emprego nao e o Certo. Meu casamento acabou e Nao tenho emprego. Estou velha demais para o Mercado de Trabalho!!! To zerada! Nao tenho casa, nao tenho nada! Mas acertei na Criacao dos meus filhos! Sao pessoas serias!! Bons cidadaos!!! Mas sofri toda a maldicao possivel por ser mae!! O Pais Nao te valoriza, e o marido Nao quer saber!! Te toma os filhos e nao te da nada em troca! Ainda faz ameacas! Pense antes de ter filhos!!! Nao da para ser mae pobre!!! Nao da! (Leitora Blog MM)

O relato dessa mãe nos dá muitos elementos para pensarmos as extensões das repercussões da maternidade sobre a vida feminina. Ela declara que, depois de ter sido mãe, teve muita dificuldade, inclusive psicológica, para conciliar trabalho e maternagem e, por perceber que não conseguia "abraçar todas as causas", decidiu por abandonar sua profissão. Temos, portanto, a maternidade traduzida como um objetivo de vida, uma "causa", isto é, aquilo que dá significado à existência e pela qual vale a pena lutar. Assim, ao ter sido colocada lado a lado com a carreira de pedagogia, a balança pendeu para o outro propósito: o de criar bons filhos. E foi o que ela fez e bem feito, já que seus filhos são "pessoas sérias". Entretanto esse parece seu único legado, já que os anos foram passando e surgiram os novos papéis identitários para essa mulher, como que a lhe frustrar os sonhos de outrora: de pedagoga havia se tornado dona de casa, de mulher casada se tornou divorciada, de economicamente dependente viu-se desempregada e pobre, de jovem mãe exclusiva tornou-se uma velha mãe, exclusivamente. Uma importante revelação que ela nos faz parece recobrir de dor toda a ideia que ela possa nos expressar sobre a maternidade, quando diz ter sofrido "toda maldição possível por ser mãe". Acreditamos que essa sua sentença sobre a maternidade se refere ao casamento desfeito, às graves dificuldades financeiras, a uma vida de inseguranças em que localizou na falta de apoio do Estado e nas artimanhas do funcionamento capitalista as vulnerabilidades pelas quais as mulheres mães são expostas, a tal ponto que conclui seu desabafo demonstrando que, para ela, existe uma profunda articulação entre maternidade e condição de vida, ou ainda, mais apropriadamente, entre ser uma boa mãe e ter financeiramente essa possibilidade, por isso o seu alerta: "Pense antes de ter filhos!!! Nao da para ser mae pobre!!! Nao da!".

Essa mulher nos faz questionar as consequências dos imperativos do discurso da boa mãe, da maternidade idealizada, suas repercussões nas vidas individuais, nos abandonos que efetuam e os que sofrem posteriormente; enfim, discursos que norteiam um determinado modo de vida em que prevalece uma função em particular: a materna. Para Rocha-Coutinho (2012), quando a mulher corresponde ao ideal da maternidade exclusiva, acaba por se deparar com um produto específico da sua maternagem: a dependência. Torna-se dependente tanto do marido, economicamente, como também psicologicamente dos filhos.

Retornando à blogueira MFM, ela não conseguiu permanecer dedicada exclusivamente a suas filhas, principalmente com a chegada do novo filho, dividindo seu tempo entre as obrigações domésticas, o cuidado com o bebê, o empreendimento próprio (fabricação de bolos caseiros) e os cuidados das meninas compartilhados com uma instituição escolar. Há de se avaliarem, portanto, as idealizações que muitas mulheres fazem em torno da maternidade, por meio das quais tomam decisões importantes sobre seus destinos. Ainda que se sintam mais felizes vendendo bolos e vez de atenderem às demandas de uma vida profissional com ritmo e cobrança acelerados, questionamo-nos até que ponto esse sentimento de satisfação está diretamente relacionado com o cumprimento de uma prática discursiva. E, sendo assim, passamos a considerar que a felicidade materna pode estar sendo associada ao fato de se corresponder às expectativas de uma posição assumida, que lhe fornece uma identidade, mas que a afasta progressivamente de seus outros símbolos identitários, restringindo-lhe a própria compreensão subjetiva sobre si mesma. Não é por acaso que a blogueira, em muitas de suas falas, vai repetir: "Estou tentando me encontrar no meio de tudo isso".

 

7. AFINAL, É POSSÍVEL ESCOLHER?

Podemos concluir que o conflito, na contemporaneidade, parece inerente à experiência da maternidade. Em meio a tantos modos de vida que a mulher pode escolher ou tantas leituras que pode fazer de uma experiência individual, permanece um discurso sobre ser mãe e, imbricado a ele, um modelo de mulher. Todas as possibilidades de vida parecem partir de uma questão fundamental: a maternidade. Então podemos ter as mulheres sem filhos, livres para a escolha, mas não para as suas consequências, como a sua destituição de um lugar de valor social (que é dado apenas às mães) e uma oferta do lugar do vazio, daquela que deve conviver com a falta; as profissionais com seus múltiplos turnos de trabalho e suas ausências cobradas, que necessitam dessas rendas para auxiliar a família ou que conferem a suas profissões um significado relevante que lhes impossibilita desfazerem-se dessa parte de si mesmas; as que, ao contrário, desfazem-se de suas rendas, de seus trabalhos, de seu tempo produtivo para, inteiramente, assumirem o seu espaço reprodutivo. E existem também aquelas para quem a maternidade não deve ser um impedimento, seja para os prazeres que continuam realizando, seja para os compromissos que valorizam, com menos culpa e uma concepção relativizada da maternidade, isto é, não consagram a ela uma felicidade incomensurável, mas condicionada à possibilidade de realização em outros aspectos de suas vidas.

Todas essas mulheres pertencem a um tempo histórico específico, e este valoriza o prazer e a satisfação do eu. A maternidade, em contrapartida, valoriza o altruísmo, a doação e a satisfação do outro. São valores contraditórios, discursos que se entrecruzam na contramão dos possíveis caminhos femininos e que oferecem posições diferentes para diferentes sujeitos em processo de subjetivação. Como proceder? Parece-nos que cada mulher fará suas escolhas, mas não de maneira livre, isto é, uma liberdade fundante, tal como desejava Beauvoir (1967). Cada mulher parece ser capturada por símbolos, significados, emoções e pensamentos que são determinados por discursos sociais, históricos, políticos e culturais que ressoam em sua história pessoal e se comunicam com seus componentes psíquicos (conscientes e inconscientes), e, então, encontram ou não consonância com desejos íntimos. A partir daí, a forma como conduzirá sua vida, suas várias identidades, a maneira como disporá de seu tempo, de sua corporeidade refletirão nas escolhas e no modo como articulará seu reconhecimento de quem é e do seu estar no mundo com as consequências sociais dos seus posicionamentos.

 

Referências

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Texto recebido em 11 de maio de 2016 e aprovado para publicação em 4 de outubro de 2016.

 

 

* Mestra em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minhas Gerais (PUC Minas). E-mail: shalana.alber@gmail.com.
** Professora doutora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUC Minas. Endereço: Avenida Itaú, 525, 2º subsolo - Dom Cabral, Belo Horizonte-MG, Brasil. CEP: 30535-012. Telefone: (31) 3319-4568. E-mail: marciastengel@gmail.com.
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