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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.23 no.3 Belo Horizonte Sept./Dec. 2017

https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2017v23n3p901-919 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2017v23n3p901-919

 

A diferença e o contingente na formação dos psicanalistas

 

Difference and contingency in the psychoanalytical formation process

 

La diferencia y el contingente en la formación de psicoanalista

 

 

Ana Carolina Borges Leão Martins*; Maria Cristina Poli**

 

 


Resumo

O trabalho que se segue procura discutir as categorias da diferença e do contingente no quadro atual de formação dos psicanalistas lacanianos. Perguntamo-nos de que maneira os aspectos contingentes em jogo na formação do analista tornam possível o maior (ou menor) acolhimento à diferença, tanto na clínica quanto no laço social. O primeiro tópico introduzirá as categorias da diferença e do contingente em uma perspectiva lógica, a lógica da sexuação, por nós articulada aos modos de funcionamento das instituições psicanalíticas. No segundo, com a ajuda do testemunho de uma psicanalista sobre seu próprio percurso de formação, veremos como o desejo de obter a diferença se produz em consequência do percurso de análise. Por fim, demonstraremos de que maneira a diferença e o contingente não se encerram no contexto das instituições de formação, estendendo as nossas conclusões à prática do psicanalista nas demais instituições disponibilizadas na cultura.

Palavras-chave: diferença. contingente. formação do psicanalista. instituições de psicanálise.


Abstract

The following work aims at discussing categories reflecting difference and contingency within the current formation process related to lacanian psychoanalysts. It is argued how contingent aspects involved in the formation process of the analyst make it possible a greater (or lesser) acceptance of difference in clinical aspects but also referring to the social bond. The first topic will present difference and contingency categories within a logical approach, namely, the sexuation logic, which is here articulated with functioning modes of psychoanalyst institutions. Secondly, following. The testimonial of a psychoanalyst about her own formation process, it is seen that the desire o acquire a differential is produced as an upshot from the analysis path. Finally, it is shown that difference and contingency do not end their trail within the context of formation institutions, but conclusions reached in this work extend to psychoanalyst practice in other available institutions in the culture.

Keywords:Difference. Contingency. Psychoanalytical formation process. Psychoanalyst institutions.


Resumen

El siguiente artículo científico busca analizar las categorías diferencia y contingente en el presente marco de la formación de psicoanalistas lacanianos. Preguntase cómo los aspectos contingentes en juego en la formación del psicoanalista permiten en mayor (o menor) grado la acogida de la diferencia, sea en el ejercicio clínico o en el lazo social. El primer tema introducirá las categorías diferencia y contingente según una perspectiva lógica, la lógica de la sexuación, articulada a los modos de funcionamiento de instituciones psicoanalíticas. En el segundo tema, con auxilio del testimonio de una psicoanalista acerca de su propio trayecto de formación, vamos a ver como el deseo de obtener la diferencia se produce en consecuencia del trayecto del análisis. Por último, vamos a demostrar de qué manera diferencia y contingente no se circunscriben al contexto de las instituciones de formación, extendiendo nuestras conclusiones a la praxis del psicoanalista en las demás instituciones disponibles en la cultura.

Palabras clave: Diferencia. Contingente. Formación de psicoanalistas. Instituciones de psicoanálisis.

1. INTRODUÇÃO

A proposta de fazer um recenseamento do quadro das atuais escolas de psicanálise lacanianas, se não é uma tarefa impossível, apresenta-se como um limite ainda não franqueado por nenhum pesquisador do campo psicanalítico. São tantas e tão variadas as instituições hoje existentes e espalhadas pelo mundo, que muitas vezes os estudantes não têm acesso às produções teóricas e clínicas dos analistas de filiação institucional diferente da sua própria. É o que atesta boa parte das construções bibliográficas dos trabalhos acadêmicos (monografias, dissertações, teses etc.), que não raro demonstram essa linha de filiação, a qual, de forma bastante determinista, propõe uma direção unívoca, a começar em Freud, passando por Lacan e desaguando no próprio orientador e nos psicanalistas de mesma escola. Sendo assim, torna-se fácil constatar a pouca abertura a outros saberes, como se os psicanalistas tendessem a se fechar no circuito das suas tradições de leitura e de interpretação dos seminários lacanianos utilizando, para tanto, o argumento das trilhas e afinidades transferenciais.

Esse nosso questionamento, longe de destituir as necessárias transferências de trabalho entre pares, antes enfatiza um problema atual e pouco discutido nas teses e dissertações em psicanálise: de que maneira o movimento lacaniano hoje acolhe uma concepção radical de “diferença”, para além da lógica fálica, concepção que foi tão bem trabalhada pelo próprio Lacan a partir dos anos 1970? É bem possível que o nível de abertura à questão da diferença esteja articulado a oscilações históricas, muitas vezes referentes às respostas que os analistas puderam dar ao problema da regulamentação da psicanálise, ao longo da história do movimento psicanalítico. Assim, podemos conjecturar que quanto maior é a incidência da força legalista, de um imperativo normalizante sobre a formação dos psicanalistas, menor é a possibilidade de invenção criativa e, por consequência, a dimensão da diferença tende aí a se elidir. No entanto, como veremos ao longo deste artigo, para além das respostas históricas, há uma questão clínica, absolutamente singular, de como a ordem da diferença pode ser acolhida pelo sujeito, ao final de sua própria análise.

Do universal ao particular, do necessário ao contingente, o percurso do nosso texto se inicia em uma visão mais geral sobre a lógica das instituições de psicanálise lacanianas, atravessa o testemunho de uma psicanalista sobre sua própria formação, para, no último tópico, discutir a dimensão da diferença e a lógica da contingência no campo de formação dos psicanalistas lacanianos.

2. AS INSTITUIÇÕES PSICANALÍTICAS TÊM SUA LÓGICA...

De algumas décadas para cá, a partir do final dos anos 1980, uma curiosa articulação teórica se mostra cada vez mais insistente entre os analistas: a afinidade entre as posições feminina e analítica. Em uma Jornada em Paris, em fevereiro de 1990, Colette Soler (2000) torna bastante explícita essa relação: "A lógica do não-todo própria ao analista, que, como a mulher, não existe, inquieta e trabalha o grupo analítico"1 (Soler, 2000, p. 491). Quase na mesma época, em 1991, na Argentina, a apresentação de Diana Rabinovich nos conduz a raciocínio semelhante: "'o' psicanalista como universal tem o 'o' tão barrado quanto a mulher barrada tem o 'a' das fórmulas da sexuação" (Rabinovich, 2000, p. 151). Tal flerte entre os psicanalistas e o feminino progressivamente extrapolou o domínio da função analítica, estendendo-se igualmente ao ensino da psicanálise, ao problema da transmissão e, também, às questões relacionadas à inserção institucional. É o que nos demonstram os extratos a seguir: "a relação lógica que a psicanálise mantém com a ciência é a mesma que A mulher mantém com a função fálica" (Pinto, 2006, p. 38) e, por fim, "Há de fato um laço entre Escola e feminilidade que não é da ordem literária ou alegórica, mas decorre de um parentesco estrutural" (Monribot, 2000, p. 40).

É interessante notar que a articulação entre as várias dimensões do discurso analítico e o feminino não está inteiramente explicitada nos três seminários em que Lacan desenvolve as suas conhecidas fórmulas da sexuação (De um discurso que não fosse semblante (Lacan, 1971/2007), Ou pior (Lacan, 1971-1972/2012) e Mais Ainda (Lacan, 1972-1973/1985)). Trata-se, portanto, muito mais de uma elaboração a posteriori dos psicanalistas lacanianos, porém perfeitamente coerente com as balizas conceituais introduzidas pelo próprio Lacan. Mas o que será que no campo do feminino nos autoriza essas relações de homologia à posição do analista? Para tratar da questão, recorreremos às fórmulas lacanianas da sexuação que, como procuraremos demonstrar, estão em íntima articulação com a lógica de funcionamento das instituições psicanalíticas.

 

 

Há, de fato, muitas e variadas maneiras de ler e elaborar as fórmulas quânticas da sexuação. Para a conveniência dos nossos objetivos, escolhemos explorá-las enfatizando as quatro categorias da lógica aristotélica: o necessário, o contingente, o possível e o impossível. Assim, na parte esquerda e acima do esquema lacaniano, do lado "homem", a primeira proposição (existe ao menos um 'x' para o qual a função fálica x não é predicado) mostra-se da ordem do necessário. É ela que institui o possível do conjunto dos homens, tornando verdadeira a proposição que se segue logo abaixo: (para todo 'x', a função fálica é um predicado válido).

Essa primeira proposição afirma o domínio da existência, existe ao menos um, que aqui não deve ser compreendida enquanto existência material, e sim como necessidade lógica: a existência da origem, de um ponto de fundação externo ao discurso, onde o conjunto "todos os homens" se fecha e encontra o seu limite. Esse lugar mítico da origem discursiva é preenchido, de acordo com Lacan (1971-1972/2012), pela função do pai, mas, evidentemente, não de qualquer pai: o ao menos um que escapa à castração é o pai da horda primitiva, o detentor do gozo de todas as mulheres, tão bem caracterizado por Freud (1912/1996a) em Totem e Tabu. Isso quer dizer que, do lado masculino, a função paterna demonstra sua máxima importância, é ela o ponto ideal a partir do qual os homens retiram suas referências de virilidade, fazendo bom uso da castração que, diga-se de passagem, lhes foi transmitida de pai para filho. Afinal, "é a partir desse existe um, é com referência a essa exceção, que todos os outros podem funcionar". (Lacan, 1971- 1972/2012, p. 35).

Mas a função paterna não é apenas uma necessidade lógica que torna possível a posição masculina: é ela também uma necessidade de discurso, a tornar possível a regulação do universo simbólico, o funcionamento "normal" da cadeia significante. Na ausência desse limite imposto pela significação fálica, a diacronia significante não encontra seu ponto de basta, o que comprometeria a produção retroativa do sentido. Nesses casos, a cadeia significante tende a deslizar incessantemente, uma frase se emendando com a outra, como bem demonstra a verborragia de certos psicóticos. Essa breve observação nos faz pressentir o quanto o uso das fórmulas quânticas extravasa o domínio da sexuação, referindo-se antes a uma estrutura lógica de funcionamento discursivo, passível de ser verificada nos domínios mais diversos.

Assim, abre-se uma nova via de leitura das instituições de formação, a prescindir da excessiva ênfase que até então a bibliografia psicanalítica tem concedido aos aspectos burocráticos, às rixas entre membros e a outros detalhes do funcionamento institucional. Pois mais interessante do que considerar as escolas de psicanálise em sua realidade factual, cotidiana, será compreendê-las em sua realidade discursiva, na lógica que rege o laço entre os membros, e entre eles e a própria psicanálise. Nessa perspectiva, prevalecendo a lógica "masculina" de regulação institucional, podemos observar a instauração de um modelo "familiar de formação do psicanalista", como bem caracterizou Moustapha Sofouan:

 

Lacan demonstrou que a existência de ao-menos-um como exceção condiciona a formação da proposição afirmativa universal. E ele destacou este princípio lógico precisamente porque ele funciona sub-repticiamente na fabricação do mito do pai da horda primitiva [...] É claro que este princípio foi implementado de uma forma particularmente implacável na criação da IPA. 2 (Safouan, 2013, p. 39)

A criação da IPA é um dos exemplos mais paradigmáticos do discurso agenciado pela função da exceção, pelo "ao-menos-um" do mito do pai da horda. Antes da IPA, a psicanálise corria o sério risco de confundir-se com a figura de seu criador: Freud não apenas era consultado em todos os assuntos psicanalíticos como sua palavra assumia conotações quase "proféticas", conforme atestavam os seletos participantes do grupo das quartas-feiras. A estratégia de fundar uma instituição de psicanálise deslocava assim a excessiva autoridade de Freud em direção à ficção operatória (Safouan, 2013) que veio a se tornar a IPA: corresponderia ela à esperança de uma garantia externa e livre de críticas, assegurando, ao mesmo passo, a formação do psicanalista e a verdade sobre o que é a psicanálise. "Deveria haver alguma sede cuja função seria declarar 'Todas essas tolices nada têm a ver com a análise; isto não é a psicanálise'" (Freud, 1914/1996b, p. 52). Assim, em vez de retirarem a legitimidade de suas práticas diretamente da figura (idealizada) de Freud, a partir de 1910, com a criação da IPA, os psicanalistas passaram a fundamentar suas decisões e autorizar sua prática valendo-se do aval da instituição. Esta última, diga-se de passagem, encabeçada pelos “eleitos” do próprio Freud.

No modelo familiar, a questão do reconhecimento se introduz pela via genealógica, pelo argumento de autoridade do 'ao-menos-um' (seja ele Freud, a IPA, o analista didata), a garantir o exercício profissional dos "filhos", ou dos filiados. Desse modo, a função da exceção () é o que torna possível o estabelecimento do conjunto dos psicanalistas (), todos marcados pelo mesmo traço de "'qualificação"'. Vale acrescentar que a relação entre o necessário e o possível, entre a exceção e o conjunto fechado, é também a base da psicologia das massas a qual, em termos freudianos, se refere à constituição dos laços libidinais entre o líder e os membros, e dos membros entre si (Freud, 1921/1996c).

No início da nossa discussão, concedemos a devida ênfase à necessidade lógica da exceção paterna, enquanto elemento normatizador não apenas da posição viril como também do funcionamento (não-psicótico) da cadeia significante. No entanto, a lógica masculina nos demonstra incessantemente suas zonas de "desfuncionamento", próprias ao discurso agenciado pelo pai legiferante, inteditor do gozo. O lado homem se apresenta, portanto, continuamente parasitado pelas "patologias da lei", termo bastante feliz, cunhado por Morel (2008). Sob a regência da lógica fálica, convivemos com o risco constante de conceder consistência imaginária a uma função simbólica (lembremos o quanto Freud enfatizou a importância estrutural do pai morto). Por consequência, pela via sintomática, produzem-se fenômenos muito facilmente observáveis, tanto na clínica das neuroses quanto no laço social: a idealização, o segregacionismo, a identificação imaginária, o acirramento da tensão entre o eu e o supereu etc.

Esses problemas nos fazem cogitar se é possível institucionalizar a psicanálise minimizando-se ao máximo os efeitos patológicos do discurso agenciado pela exceção, fenômenos comuns à psicologia das massas, tão bem descritos em 1921 por Freud (1996c). Ao fundar a Escola Freudiana de Paris (EFP), Lacan tomou a si o desafio de propor um modelo de formação fundado em outra lógica, que não necessariamente agenciada pelo mito paterno. Nesse ponto, poderemos demonstrar as relações de afinidade entre a posição feminina e a analítica, pois muito embora a lógica do feminino não exclua o recurso à exceção (uma vez que se trata de uma necessidade de discurso), do lado mulher, há a possibilidade de afirmar uma "existência não caucionada", sem fazer apelo à autoridade externa. A mulher, assim como o psicanalista, autoriza-se de si mesma.

Retomando o quadro das fórmulas da sexuação, do lado direito e acima, encontramos uma articulação entre o impossível e o contingente: a primeira equação , (não existe 'x' para o qual a função fálica não seja atributo) determina a ordem da impossibilidade, em outros termos, da ausência de qualquer índice no real do corpo de uma mulher que possa conceder uma significação positiva sobre o feminino. Nessa perspectiva, a relação da mulher com a função fálica é puramente contingente, precisando ser observada caso a caso: (para não-todo "x", a função fálica é predicado válido). O "não-todo" aqui designa uma divisão do ser das mulheres, que de um lado se conecta ao gozo fálico e de outro está sujeito a um gozo que o ultrapassa, o gozo suplementar, relacionado ao : "Não é porque ela é não-toda na função fálica que ela deixa de estar nela de todo. Ela não está lá não de todo. Ela está lá à toda. Mas há algo mais" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 100).

Na ausência da exceção, enquanto ponto de exterioridade discursiva, o conjunto formado pelas mulheres permanece aberto, de modo que elas não compartilham nenhum traço em comum que as permita universalizá-las: "A Mulher não existe", aforismo lacaniano que nos distancia de qualquer tentativa de definição do "ser mulher". Mas, prescindindo-se da exceção, o que exatamente agencia e movimenta o discurso do lado do feminino? Em outras palavras: como se produz uma mulher? A resposta a essa questão, poderemos vislumbrá-la no conceito de "ato".

Do lado homem, a linhagem masculina é "contável", há aí uma origem bem precisa, aquela dada pela função mítica do pai da horda. Mas, do lado mulher, é falso afirmar que uma mulher retira suas referências de feminilidade a partir da identificação direta com a mãe. Se a identificação existe, ela jamais é suficiente, uma vez que falta igualmente à mãe um significante próprio ao feminino que lhe diga o que é uma mulher. Assim, é função do ato introduzir um "começo" no mundo, produzindo aquilo que antes não existia: uma mulher, em sua relação única e contingente com o falo. Nesse ponto, interessante seria investigar as variadas dimensões do ato responsáveis por produzir uma mulher: o ato de amor, relacionado ao "'ser mulher"' no campo do Outro, o ato criminoso, do qual Medéia é o exemplo mais paradigmático, o ato performativo, muito mais próximo da "mascarada" feminina etc. Questões para desenvolvermos em outra ocasião.

E é também a dimensão do ato que Lacan (1967-1968) posiciona ao final da análise didática, quando se verifica a produção do psicanalista: "é ao termo de uma psicanálise que se supõe acabada, que o psicanalisante pode tornar-se psicanalista" (Lacan, 1967-1968, p. 95). Assim, de um só golpe, o ato analítico institui o final da psicanálise didática, mas também o começo de outras psicanálises: a cada novo começo, ao receber um novo paciente, é inevitável que o psicanalista seja remetido ao ato que o destituiu da sua posição de sujeito, permitindo-o, agora, operar na posição de semblante de objeto. No entanto, com o passar dos anos, os analistas tendem a se instalar confortavelmente em uma posição de suficiência, como se fossem analistas "'desde sempre'" e "'para sempre'". Com o intuito de dissipar "a amnésia do ato" (e seus efeitos sobre a psicanálise), Lacan (1967/2003) propôs um dispositivo de investigação sobre o final de análise, o dispositivo do passe. Como veremos mais adiante, o passe reconhece a existência de um psicanalista a partir das consequências geradas pelo próprio ato analítico.

Em suas elaborações teóricas e na fundação da EFP, Lacan progressivamente deslocou o problema da "autoridade", suportado pela função paterna, à questão da "autorização", muito mais coerente com a lógica do feminino. Assim, na falta de um ponto de exterioridade a autorizar a função analítica, temos que "o psicanalista se autoriza de si mesmo" (Lacan, 1967/2003, p. 248); é ele o único responsável pelo seu próprio percurso, e pela decisão de começar a receber analisandos. Vale lembrar que os psicanalistas, assim como as mulheres, não se "universalizam", precisando ser contados um a um. Desse modo, Lacan devolveu ao tratamento analítico a sua potência formadora, a sua capacidade de produzir um analista, em sua completa singularidade.

Surge, então, outra questão: na ausência de regulamentação do Estado, do aval do didata e da autoridade institucional, como é possível reconhecer um psicanalista para além da clínica, no campo social? Será que a fórmula lacaniana do "autorizar-se" não endossaria todo tipo de impostura, em que alguns reclamariam o direito de se dizerem analistas sem atravessarem um percurso de análise, por exemplo? Esses problemas se relacionam com as respostas que o movimento lacaniano pôde conceder à velha querela em torno da regulamentação da psicanálise.

Pois, na ausência de uma regulamentação profissional, são as Escolas de psicanálise que respondem pelo reconhecimento do psicanalista no plano da cultura. E o fazem de duas formas: a primeira, autenticando que houve um percurso de formação, a partir das provas de trabalho para com a própria psicanálise: supervisão, ensino, construção de casos clínicos etc. Na EFP, esses psicanalistas eram nomeados Analistas Membros da Escola (AME), nomeação que indicava a "atividade profissional de seus membros quando ela é efetivamente psicanalítica" (Lacan, 1970/1995, p. 44).

Já a segunda confundia-se com os objetivos de investigação sobre o ato analítico: pela via do dispositivo do passe, os analisandos que demonstravam algo sobre a passagem a analista eram nomeados Analistas da Escola (AE). Nesse caso, o processo de "autorizar-se" deixa de ser uma questão de foro íntimo, assunto entre analisando e analista, passando a ser acolhido (e discutido) no laço social, entre os membros de uma mesma escola.

O dispositivo do passe foi inventado por Lacan, em 1967, numa tentativa de driblar os (sérios) problemas que a EFP à época enfrentava. Na fundação de sua Escola, Lacan optou por conservar as antigas titulações adquiridas no contexto da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP), instituição que pleiteava o reconhecimento da IPA, e da qual ele fazia parte, juntamente com um grande número de seus alunos. Como resultado, a estrutura hierárquica da IPA foi transposta ao contexto da EFP, mantendo-se os privilégios e a falta de circularidade entre as nomeações. Essa estratificação entre membros refletia outro problema, ainda mais sério: a produção teórica medíocre sobre os fins da análise didática. Assim, Lacan acreditava que o passe, de um só golpe, iria destituir o regime hierárquico em jogo na nomeação dos psicanalistas, e também contribuiria para o avanço da teoria da formação.

Para tanto, ele propôs uma estrutura de transmissão indireta da experiência de análise, em que um analisando, chamado de passante, falaria sobre a sua análise a outros dois analisandos, chamados de passadores. Esses últimos eram responsáveis por "passar" o relato do passante para o júri de confirmação, hoje chamado de cartel do passe. Se houvesse transmissão da experiência, o cartel retroativamente nomeava o passante à Analista da Escola. Caso contrário, o passante poderia refazer o seu pedido em outras circunstâncias, se desejasse.

Ao inventar o passe, Lacan se absteve de propor muitas regras para instituir o dispositivo, as discussões sobre quem seriam os passadores e quem comporia o cartel do passe surgiram na sequência. Os passadores, por exemplo, eram (e ainda são) designados por seus próprios analistas, em um momento específico da experiência de análise, quando os analisandos se mostram mais sensíveis ao advento do desejo do analista. Para ser passador, é preciso estar a um "passo" do desenlace da sua própria análise, de tal maneira os passantes não se reportam aos que estão à frente, aos analistas didatas, mas aos que ainda estão em vias de fazer a passagem à posição de psicanalista. Essa proposta visava a desconstruir a hierarquia entre os lugares dispostos no dispositivo.

Sobre o cartel do passe, ele é composto pelos Analistas da Escola e também pelos Analistas Membros da Escola. A sua função é a de autenticar o relato dos passantes, constatando que ali houve a transmissão da experiência de formação. Também cabe ao cartel a construção de um trabalho de elaboração teórica da experiência, contribuindo para o avanço nos problemas fundamentais relacionados à formação do psicanalista. Assim, "todo acesso ao título de Analista da Escola é, em primeiro lugar, contribuição efetiva ao progresso teórico da psicanálise" (Lacan, 1970/995, p. 45).

É bem verdade que o movimento lacaniano promoveu uma saída bastante satisfatória à questão do reconhecimento do psicanalista entre os “pares”, entre os analistas de uma mesma Escola. Mas resta ainda o problema de saber como os lacanianos reconhecem a existência do "ímpar", da diferença, ou dos analistas para além do seu círculo transferencial. Antes de trabalharmos com a diferença na lógica institucional, um breve testemunho de passe nos fará pensar sobre o acolhimento da diferença no plano subjetivo, quando a formação do psicanalista se mostra mais intensamente da ordem da contingência, do "não-todo".

3. QUANDO O CONTINGENTE PRODUZ UM DESEJO DE OBTER A DIFERENÇA

Em nossos dias, não há quem conteste a fundamental importância da análise pessoal para aqueles que desejam se tornar analistas. A experiência analítica é o instrumento de formação por excelência, e não por razões de aprendizado técnico, mas porque um psicanalista só pode advir da sua relação com o próprio inconsciente, enquanto analisando. No entanto, se a análise é necessária à formação do psicanalista, podemos igualmente afirmar que ela é suficiente? Em outros termos: o final de uma análise garante por si só produção de um psicanalista?

Qualquer um que se debruçasse despretensiosamente sobre o assunto não tardaria a constatar que uma análise não é suficiente para a formação de um psicanalista. Os exemplos mais cotidianos demonstram a justeza dessa afirmação: há muitos analisandos que encaminham suas análises a um bom termo e, no entanto, não se tornam psicanalistas; há também os que começam a atender muito antes do desenlace de suas análises ou, ao contrário, temos aqueles que dão por concluído o percurso e só depois se instalam na posição analítica. Existe, portanto, um leque muito variado de relações entre a psicanálise e o psicanalista, que não obedece a nenhuma fórmula pré-estabelecida.

Parece haver, portanto, um fator ainda não contabilizado, um "a mais", o qual, encadeado com a experiência analítica, constitui as bases de surgimento do novo, do desejo do analista. O testemunho que escolhemos para a discussão nos faz notar que esse "plus" que se acresce à análise pessoal é da ordem da pura contingência e, portanto, precisa ser verificado caso a caso. Se Lacan (1964/1998) define o desejo do analista como "um desejo de obter a diferença absoluta" (p. 260), o testemunho de Marie-Annick Gobert nos mostra que o consentimento subjetivo à diferença está condicionado à lógica do impossível e do contingente, própria ao feminino.

Gobert (2000) promove três escansões temporais no curso de seu testemunho: o primeiro referente à direção da cura e ao ponto de incidência do ato analítico (final de análise); no segundo, destaca-se a passagem do psicanalisando à psicanalista e, por último, o dispositivo do passe e a elaboração de saber sobre o ato. Esses três tempos não se sucedem cronologicamente: entre o final de análise e a passagem à psicanalista, três anos foram decorridos; da passagem à psicanalista à entrada no dispositivo do passe, mais seis anos se passaram.

A autora entra em análise com uma queixa relacionada a sintomas fóbicos: angustia-se diante de fotos de crianças, evita essas fotografias. Em articulação com o sintoma, mas inteiramente por acaso, sua transferência com a analista se instala logo à primeira vista, já na porta de entrada do consultório: a analista está grávida, "o objeto do fantasma está contido no ventre da analista"3 (Gobert, 2000, p. 137). Será necessário um longo período de análise para que o sintoma fóbico encontre sua significação, articulando-se à experiência traumática de uma grave meningite, que a acometera aos seis meses de idade.

"Por que não estou morta?", essa é a questão que a analisanda, agora aos cinquenta anos, endereça a sua analista. A pergunta remete ao caráter enigmático em jogo na frase proferida pela mãe, frase sujeita a equívocos, por não deixar claro se ali se tratava de um desejo de vida ou de morte: "quando você fez essa sua psicomeningite, eu imaginei que você estivesse morta"4(p. 137). A doença fora desencadeada num contexto bastante específico, em que os pais tinham se mudado para Paris, deixando-a, ainda bebê, no interior (a autora não especifica sob aos cuidados de quem ela fora deixada). Gobert (2000) enfatiza, então, a importância do olhar do Outro enquanto suporte à própria existência, "para não morrer" (pour ne pas mourrir), e anseia o retorno incessante dessa dimensão do olhar, em vários aspectos do cotidiano: no ativismo, na mudança de profissão, na militância pela causa dos outros e, também, na análise. "Partir" e "retornar" tornam-se sintomas analíticos, agravados com a expectativa do final de análise.

Duas intervenções da analista modificam a posição fantasmática e concedem um novo estatuto ao sintoma. A analista intervém: "você jamais me perguntou se meu bebê tinha nascido" (Gobert, 2000, p. 137), interpretação que possibilita à analisanda significar a pulsão de morte não mais como um elemento puramente destrutivo, mas também como o fundamento da própria vida. O fantasma em torno do risco de morte é atravessado: "ela aprende que todo ser vivo obrigatoriamente faz um pacto com a pulsão de morte" (p. 138). Na segunda intervenção, feita um pouco antes da suspensão da análise, a analista arregala bem os olhos (écarquillement des yeux), encarnando o objeto olhar. O olhar da analista, ao mesmo tempo em que mergulha o sujeito no vazio, também possibilita a extração do objeto causa do desejo [...] de viver: "eu estou identificada ao único sintoma incontornável, irredutível, aquele de viver/estar viva" 5(p. 136).

Ao final da análise, a incidência do ato analítico promoveu o atravessamento da fantasia, a redução do sintoma e também um novo pacto do sujeito com a pulsão de morte. No entanto, apesar dos benefícios terapêuticos, a análise não foi suficiente para promover o surgimento do psicanalista. Isso não significa que a analisanda não possa conduzir análises e operar analiticamente na direção da cura de seus pacientes. De fato, nos três anos após o final de análise, Gobert sustentou uma prática com pacientes psicóticos, mas, durante esse período, intitulava-se como "analisanda", e não como analista.

"Uma prática não precisa ser esclarecida para operar" (p. 144). Devemos, portanto, supor que o desejo do analista, enquanto operador de uma análise, esclarece a lógica do tratamento, afastando a psicanálise das técnicas obscurantistas e da sugestão. Talvez essa seja uma possível diferença entre uma prática conduzida por um analisando e outra, por um analista. A posição subjetivada, de analisando, não lhe permite ver com clareza os operadores do tratamento, uma vez que a fantasia neurótica costuma interferir na leitura do ato analítico. Isso não o impede, entretanto, de operar analiticamente e de conduzir tratamentos a um bom termo. Em contrapartida, o lugar do analista implica a construção e a elaboração do caso clínico, é o seu desejo que transmite o modo pelo qual a psicanálise pode operar.

No caso de Gobert, a passagem à psicanalista se articula a um segundo encontro com a pulsão de morte (lembramos que o primeiro se deu ao final de análise), encontro real e puramente contingente. A analisanda começa a atender uma jovem esquizofrênica, quase muda, em estado de autismo, que se apresenta ao olhar dos outros como um cadáver. Essa moça passou um ano enclausurada em seu quarto, alimentando-se apenas de castanhas. Suas duas únicas palavras são "não incomodar" (pas déranger), pronunciadas sempre que a ela se dirijam.

"Por que ela não está morta?" – a pergunta reduplica inversamente a sua própria questão enquanto analisanda: "por que não estou morta?" O encontro com a jovem esquizofrênica promove, assim, uma volta a mais no tratamento analítico, cronologicamente posterior ao final de análise. É nesse contexto que irá operar a incidência do ato da analisanda, a decisão de "incomodar" (déranger) a paciente, pondo-se a ler para ela um romance, mesmo sem esperar resposta. Como efeito, a jovem esquizofrênica começa pouco a pouco a falar.

O ato analítico, como qualquer ato, desencadeia consequências. Aqui, vemos que a consequência mais direta do ato de "incomodar" foi a entrada da jovem psicótica em análise, momento em que ela começa a falar. Mas o ato também marca uma diferença do lado do psicanalista: se até então Gobert se achava na posição de analisanda, concernida pela sua própria questão ("por que não estou morta?"), a partir do ato analítico, a posição se inverte, surge aí uma psicanalista, ou alguém capaz de fazer semblante de objeto para o outro. Nesse caso, a inversão lógica do psicanalisando ao psicanalista põe em jogo o objeto "olhar": de uma analisanda fascinada pela visão do corpo cadavérico à analista, capaz de sustentar o objeto "olhar" para a jovem esquizofrênica. Exemplo que demonstra muito claramente a maneira pela qual o ato analítico enlaça o final de análise e o começo de outras psicanálises.

Mas, no momento de incidência do ato analítico, nada fora pensado ou calculado, não houve nenhuma elaboração de saber. Em acordo com a autora, os seis anos que separam o ato da demanda de passe correspondem a um período de consentimento ao desejo do analista, marcado pela invenção de um saber sobre a própria formação. Na elaboração do passe, a autora conclui que, em seu caso, "o desejo do analista é um efeito direto da pulsão de morte" (Gobert, 2000, p. 143), da experiência íntima com o trauma infantil, por um lado, e do encontro com a jovem esquizofrênica, por outro. Para ela, o desejo do analista foi um produto, uma consequência lógica do duplo encontro com a pulsão de morte, na análise, mas também nas contingências da vida.

Retomando a definição lacaniana do desejo do analista como desejo de diferença absoluta, precisamos investigar o estatuto dessa diferença absoluta. Talvez seja preciso distingui-la do domínio de uma diferença relativa, marcada pelo binarismo, pelo signo de presença e de ausência. Sabemos que a leitura neurótica do mundo não conhece outra ordem de diferença senão aquela marcada pelo binarismo: o sim e o não, o eu e o outro, o masculino e o feminino etc. E é por essa via que a analisanda Gobert reintegra, à sua própria fantasia, a diferença em jogo nos fenômenos psicóticos, formulando a seguinte pergunta: "por que ela não está morta?". O que podemos concluir de seu testemunho é o quanto o desejo do analista se mostra particularmente operativo no tratamento de pacientes psicóticos, desviando o psicanalista do desejo de normalizar, de neurotizar o doente. Ao "incomodar" a jovem esquizofrênica, engajando-a na tarefa da fala, a psicanalista também tornou possível que algo de novo lhe fosse ensinado, isso que é da ordem da diferença radical.

4. A DIFERENÇA E O CONTINGENTE: DA CLÍNICA À CULTURA

Um pequeno passo nos separa das articulações possíveis entre essas duas ordens de diferença (relativa e absoluta) e a lógica da sexuação (masculino e feminino). De fato, o lado homem não reconhece outra diferença que não seja relativa, marcada pelo binarismo significante "presença/ausência". No enlace do Édipo com a castração, o homem assume seu valor sexual pelo temor de perder o falo (ameaça de castração), enquanto a mulher procura restituir aquilo que imagina ter perdido (inveja do pênis). Essas são as consequências psíquicas mais diretas da pequena diferença anatômica entre os sexos (do "ter" e do "não ter"), as quais, em Freud (1925/1996d), não podem ser dissociadas da incidência do pai sobre o falicismo das crianças pequenas.

O que seria então essa "diferença absoluta", muito mais próxima da lógica do feminino? É certo que o nosso aparelho psíquico rechaça qualquer diferença não suportada pelo significante fálico. Sofremos todos do "repúdio ao feminino" (Freud, 1937/1996e), da dificuldade em conferir sentido ao que não têm inscrição no aparelho psíquico. Essa ordem de diferença mostra-se, portanto, a consequência direta da categoria do "impossível", da inexistência de algum índice no real que possa suportar uma significação positiva ao "ser" . Não há palavras para dizer "A Mulher" (nem para dizer "O Analista"), o que nos faz inferir uma dimensão de irredutibilidade da diferença absoluta.

É importante frisar que a demarcação de duas ordens de diferença (bem como de duas lógicas) não quer dizer em absoluto a exclusão de uma em face de outra: ao contrário, o vislumbre da pura diferença só pode se insinuar no plano de fundo do universo simbólico, da diferença relativa entre significantes, que é a única a que os seres falantes têm acesso. Assim, nosso único acesso ao real da pura diferença é a referência da linguagem, a qual, ao ver-se reduzida a elementos mínimos, confere uma borda simbólica ao irredutível.

Essa concepção de duas "diferenças" nos distancia de uma visão moralista do Édipo e da confluência harmônica entre as estruturas clínicas e as posições sexuadas. Poli (2012) nos apresenta uma crítica a tal concepção, que se difunde nas aproximações teóricas entre a homossexualidade e a perversão, entre a transexualidade e a psicose e, também, na tradução da diferença relativa entre homens e mulheres em termos de neurose obsessiva e de histeria. De acordo com a autora, tal leitura "se sustenta na concepção de que o Édipo é normativo e que, portanto, as formas de lide com o conflito e sua 'solução', expressos nos modos de exercício sexual, podem ser avaliados em termos de maior/menor patologia ou normalidade" (Poli, 2012, p. 124). A confluência entre estrutura e sexuação apresenta assim um caráter moralista, efeito de negação da lógica do feminino e da dificuldade em reinserir os fatores contingentes (em jogo na posição sexual) no domínio universalizante (das estruturas clínicas). Na impossibilidade de considerar a contingência e a singularidade, propagam-se interpretações normativas dos fenômenos culturais (adoção por casais homoparentais, inseminação artificial etc.), os quais passam a ser lidos sob a ótica do “declínio da função paterna”.

Esses problemas nos fazem retomar a questão que deu ensejo ao presente artigo: de que maneira o movimento lacaniano hoje acolhe a ordem da diferença absoluta, na clínica e na cultura? Seria de se esperar que, por sustentar o princípio de "autorização", as escolas lacanianas se mostrassem mais afeitas à dimensão da diferença absoluta ou, pelo menos, mais do que as instituições "duras", fundadas pelo princípio de "autoridade". Mas não é o que acontece na prática. Assistimos, hoje, a uma excessiva promoção da diferença, responsável por produzir uma espécie de "efeito rebote", o do psicanalista que se dobra autisticamente sobre si mesmo, fechando-se em suas tradições de leitura e em seu círculo transferencial. "Cada um no seu quadrado", as produções de psicanalistas de filiação "estrangeira" pouco circulam nas mais diversas escolas de psicanálise, e, assim, essas últimas pouco a pouco vão se tornando ilhas, com seus dispositivos particulares de reconhecimento, que parecem nada dever ao Outro, à cultura.

Vale ponderar que, de alguns anos para cá, devido mais a razões políticas que epistêmicas, observa-se uma sutil mudança nesse quadro, onde as instituições lacanianas constroem espaços de troca e de discussão entre si. Foi esse o caso da Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, criada no ano 2000, em reação direta ao projeto de lei da bancada evangélica em prol da regulamentação da psicanálise. A esse propósito, comenta Alberti:

 

Um movimento de entidades psicanalíticas que podem se encontrar para debater juntas em defesa da psicanálise é alvissareiro. Que ele tenha surgido de uma necessária afinidade encontrada entre as entidades, cujas relações até então foram, em sua maioria, bastante difíceis, e cujas diferenças as fundamentam, tal como a falta fundamenta o desejo, já é, sem dúvida, um de seus grandes sucessos! (Alberti, 2009, p. 8).

No entanto, por mais que as instituições de psicanálise construam suas zonas de interlocução, elas continuam insuficientes para abarcar o "desejo de diferença absoluta", em jogo na formação do psicanalista. E é importante que assim o seja, que nenhum nível institucional envolva a totalidade da formação do psicanalista, sob o risco de reativarmos o fantasma da autoridade legalista, regulamentadora da psicanálise. Tanto é assim, que a mera articulação entre instituições psicanalíticas não responde ao problema do acolhimento da diferença, e o exemplo mais claro disso é a associação entre as quatro entidades psicanalíticas americanas que deu origem ao Consórcio Psicanalítico, em 2001. Com o pretexto "democrático" de superar as divergências entre grupos e sob o princípio liberal de promover a qualidade dos profissionais, o Consórcio produziu um Relatório com diretrizes de credenciamento para que as instituições psicanalíticas fossem reconhecidas pelo Departamento de Educação Nacional (Mieli, 2006). Parece-nos que as iniciativas que visam ao consenso e à unificação da diferença mostram-se tão ou mais perigosas do que aquelas impostas pelo autoritarismo estatal.

Onde, então, poderíamos encontrar uma saída para a tensão histórica entre, de um lado, a inserção institucional da psicanálise e, de outro, a perspectiva do sujeito, em sua irredutível diferença? A nosso ver, a resposta a essa questão não se encerra em nenhuma instituição de psicanálise, em particular, tampouco no laço entre elas, em geral. Antes disso, é preciso que os lugares institucionais se pluralizem ao máximo, que os psicanalistas cavem seus espaços nos mais diversos âmbitos disponíveis na cultura, para além das escolas de psicanálise.

E esse é um movimento que, felizmente, pode ser observado em nossos dias. Há muito os psicanalistas se lançam no esforço de ampliar seus campos de atuação, inserindo-se nas universidades, hospitais, sistemas educacionais e de saúde. Todos esses espaços abrangem uma diversidade enorme de analistas, vinculados a diferentes instituições de formação, sustentando assim concepções singulares sobre a psicanálise e sobre a sua práxis. Para além das estratégias de reconhecimento dos pares, restritas à filiação institucional, esses espaços reatualizam a questão do reconhecimento da diferença. Neles, psicanalistas das mais diversas "filiações" são interpelados pelo Outro, pela sociedade, a prestar contas de suas práxis, o que não é sem consequência para a representação que a psicanálise assume na nossa cultura.

Inserir-se institucionalmente sob a rubrica da filiação trouxe (e ainda traz) inúmeros problemas, principalmente no que concerne ao trabalho entre "ímpares", entre psicanalistas de instituições diferentes e entre os demais profissionais da rede de saúde. O trabalho em torno da diferença e do contingente na formação dos psicanalistas nos aponta, por fim, uma via alternativa para a inserção institucional da psicanálise. Sem negar as trilhas transferenciais e a filiação a uma tradição psicanalítica, a inserção pela via do feminino contabiliza os psicanalistas em sua inteira singularidade, na relação que cada um estabelece com o próprio inconsciente. Trata-se, portanto, de uma estratégia de institucionalização que enlaça a produção clínica do desejo do psicanalista ao campo da coletividade, em maior coerência ao discurso analítico.

REFERÊNCIAS

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Texto recebido em 31 de agosto de 2014 e aprovado para publicação em 25 de junho de 2015.

 

 

* Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica – UFRJ. E-mail: carolinablmartins@gmail.com.
**Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica – UFRJE-mail: mccpoli@gmail.com.
1 "La logique du pas-tout propre à l’analyste, qui, comme la femme, n’existe pas, inquiete et travaille le groupe analytique"(no original)
2 "Lacan a montré que l’existence d’un au-moins-un faisant exception conditionne la formation de la proposition affirmative universelle. Et il a mis ce principe logique en lumière précisément parce qu’il fonctionne subrepticement dans la fabrication du mythe du père de la horde primitive. [...] II est clair que ce principe a été mise en oeuvre d’une manière particulièrement implacable dans la création de l’IPA"
3 "l’objet du fantasme est contenu dans le ventre de l’analyste" (no original).
4 "J’ai cru que tu étais morte quand tu as fait ta psycho-méningite" (no original)
5 "je suis identifiée au seul symptôme incontournable, irréductible, celui de vivre" (no original)

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