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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.27 no.1 Belo Horizonte Jan./Apr. 2021

https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p77-92 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p77-92

 

Excessos, violência e expressões de ódio em tempos da ausência do outro

 

Excesses, violence, and expressions of hatred in days of the lack of the other

 

Excesos, violencia y expresiones de odio en tiempos de la ausencia del otro

 

 

Tharso Peixoto Souza*; Cristina Moreira Marcos**

 

 


Resumo

As atuais expressões de ódio que circulam pelo mundo, em termos de racismo, preconceitos e injúrias, caracterizam a violência que surge na cena social como resultado do declínio do simbólico e a emergência do gozo, que evocam um Outro impreciso, cujo discurso totalitário visa à negação da alteridade, da diferença dos modos de gozar, revelando o mal-estar e a agressividade constituintes do humano. Este artigo pretende compreender, com base no ensino da psicanálise de orientação lacaniana, o que fundamenta esse fenômeno atual bem como os efeitos da violência presente nas expressões de ódio sobre o laço social. Assim, compreendemos que a violência é uma resposta ao Outro contemporâneo, constituído como sem falta e, portanto, ocasionando a aproximação do sujeito ao campo de um gozo ilimitado, sem lei, cujo efeito lhe parece dissociar de qualquer responsabilidade no laço social.

Palavras-chave: Ódio. Violência. Laço social. Outro. Infamiliar.


Abstract

The current expressions of hate, which circulates around the world in terms of racism, prejudice and insults, characterizes the violence that emerges on the social scene as a result of the decline of the symbolic and the emergence of jouissance, which evoke an imprecise Other, whose totalitarian discourse aims at the denial of otherness, the difference in the modes of enjoyment, revealing the uneasiness and aggressiveness that constitute the human being. This paper intends to understand, from the teaching of Lacanian psychoanalysis, what underlies this current phenomenon, as well as the effects of the violence present in the expressions of hate on the social bond. Thus, we understand that violence is a response to the contemporary Other, constituted as without lack and, therefore, causing the subject to approach the field of unlimited jouissance, without law, whose effect seems to dissociate him from any responsibility in the social bond.

Keywords: Hatred. Violence. Social bond. Other. Uncanny.


Resumen

Las actuales expresiones de odio, que circulan por el mundo en términos de racismo, prejuicios e insultos, caracterizan la violencia que emerge en la escena social como resultado del declive de lo simbólico y la emergencia del goce, que evocan un Otro impreciso, cuyo discurso totalitario apunta a la negación de la alteridad, de la diferencia de los modos de goce, revelando el malestar y la agresividad que son constitutivos del ser humano. Este artículo pretende comprender, desde la enseñanza del psicoanálisis lacaniano, cuál es la base de este fenómeno actual, así como los efectos de la violencia presente en las expresiones de odio sobre el vínculo social. Así, entendemos que la violencia es una respuesta al Otro contemporáneo, constituido como sin falta y, por lo tanto, provocando la aproximación del sujeto al campo de un goce ilimitado, sin ley, cuyo efecto parece desvincularlo de toda responsabilidad en el lazo social.

Palabras clave: Odio. Violencia. Lazo social. Otro. Infamiliar.


1. INTRODUÇÃO

Durante toda a história humana, testemunharam-se manifestações de violência. Freud (1933/2020) apresenta a mesma constatação quando, em seu texto Por que a guerra?, elenca inúmeros exemplos (e razões) dessas manifestações. Seguindo a argumentação de Freud, torna-se uma tarefa difícil dissociar a violência das relações sociais, uma vez que homicídios, dominação, violação de direitos, guerras sempre figuraram em meio aos processos sociopolíticos e culturais. Lembramos que tanto Freud (1913/1982), num outro texto de 1913, Totem e tabu, como Hobbes (1988), no texto Leviatã, indicam que a sociedade entre os humanos se constituiu sobre uma referência à violência: seja com o assassinato mítico do pai totêmico, seja na concepção do homem como lobo do homem, o outro é sempre e potencialmente uma ameaça.

Ademais, quando Freud (1930/2020) escreve seu magistral texto O mal-estar na civilização, demonstra que as relações sociais se constituem uma fonte de sofrimento ao homem, posto que a conquista do estatuto de civilização acarreta-lhe um custo considerável: uma parcela de satisfação precisa ser renunciada a fim de que a ordem social possa existir. Contudo a própria condição da renúncia ocasiona um mal-estar, uma tensão entre o que se deseja e aquilo que se pode desejar para que a civilização perdure. Em outras palavras, a existência e a manutenção da sociedade sempre estiveram atreladas a uma renúncia pulsional.

Freud considera a articulação das dimensões do sujeito e do social quando se refere ao mal-estar. Tem-se, na elaboração freudiana, de um lado, a animalidade da pulsão e, do outro, a domesticação da moral civilizatória. É nesse espaço criado, cujo fundamento se encontra na castração, que subjetividades são tensionadas, contudo nunca alheias aos processos histórico-culturais de uma sociedade. Mas podemos pensar que a Hipermodernidade, ao trazer um novo arranjo, principalmente no que concerne hoje à negativa em renunciar qualquer parcela de satisfação, negue veementemente o mal-estar. Vejamos.

A ideia freudiana do mal-estar na civilização remete àquilo que esteve presente em toda a Modernidade, chamada por Dufour (2005) como a era do sujeito neurótico freudiano. Contudo consideramos que, ainda que seja possível testemunhar, na atualidade hipermoderna, a presença de um mal-estar relacionado diretamente à questão da castração, vê-se que o presente mal-estar ganha novos contornos. É por não haver renúncia de qualquer parcela de satisfação por parte do sujeito hipermoderno que se faz demonstrada uma ordem social subvertida, tendo o mal-estar advindo em forma de excesso, de gozo (o domínio da pulsão de morte).

Assim, encontramos na atualidade o mesmo mal-estar oriundo da relação com o outro semelhante, discutido por Freud (1930/2020), porém veiculado hoje a partir daquilo que advém do declínio da ordem simbólica e que incide no laço com o Outro, ocasionando a irrupção da violência de modo difuso e polifórmico, mas sobremaneira nas expressões de ódio, como veremos. Conhecemos bem como essas expressões surgem em nosso cotidiano: com os haters das redes sociais, nos ataques às minorias e ao diferente, nos enunciados preconceituosos, nas manifestações públicas em favor da exclusão e segregação, entre outras. Celebridades, políticos e pessoas comuns encontram-se em meio a um turbilhão de ditos e ações que violentam as diferenças e dão corpo ao mal-estar contemporâneo. Resta-nos compreender a que serve tais manifestações violentas, que tipo de enlaçamento coletivo elas criam e quais efeitos políticos e culturais produzem.

Para tanto, partiremos da concepção da Hipermodernidade como sociedade do excesso e do medo, articulando o fenômeno em questão com as contribuições da psicanálise de orientação lacaniana.

2. UMA SOCIEDADE DE EXCESSOS, FLUIDEZ E MEDO

O filósofo francês Gilles Lipovestsky observou, ainda na década de 70, que o mundo vivia uma espécie de hipertrofia dos valores da Modernidade, denominando este momento histórico e cultural com o termo "hipermodernidade", ganhando notoriedade em 2004 com o lançamento do seu livro Os tempos hipermodernos. Segundo o autor, a Contemporaneidade apresenta uma diferenciação com a Modernidade, sendo um tempo marcado de excessos, intensidades e urgências – tempo de efemeridade e fluidez (Lipovestsky, 2004). Por Hipermodernidade se compreende o processo de elevar às últimas consequências os parâmetros da Modernidade no que concerne ao discurso racional e científico, os quais assumem agora características de um pensar sem qualidades e esvaziado dos saberes preexistentes, bem como a supremacia do universal e da ciência associados ao domínio do discurso do capital (Ramírez, 2017).

Desse modo, na Hipermodernidade, tudo se apresenta como excesso, inclusive a violência; uma resposta urgente para uma demanda urgente do sujeito, que, na fluidez dos objetos, encontra-se sempre vazia de significado (Souza, 2017). Zizek (2014, p. 61) destaca que, alimentada pela ausência de limites numa época em que "o excesso absoluto é a própria lei", a violência se torna um modo de que os indivíduos se utilizam para lidar e se defender do outro semelhante, que também tem ambições ilimitadas. Por essa razão, "o conflito está dentro de toda a dinâmica da sociedade e do sujeito" (Ramírez, 2019, p. 25). Isso evidencia que pensar na violência e em seus efeitos na atualidade significa não apenas adentrar a dimensão do encontro do sujeito e do Outro, mas também compreender que Outro é evocado pela violência e suas manifestações. Nessa sociedade hipermoderna liberal, o imperativo entregue ao sujeito já não é o de gozar sem limites, mas o de temer a todo tempo: "Tudo o inquieta e o assusta" (Lipovestsky, 2004, p. 28).

Corroborando a construção de uma sociedade do medo neste cenário hipermoderno, marcado pelo discurso do capital e do neoliberalismo, há o predomínio da biopolítica pós-política, utilizando assim o termo apresentado por Zizek (2014). O autor se refere a uma sobreposição de duas dimensões: a pós-política e a biopolítica. Por pós-política entende-se o abandono dos antigos debates ideológicos e a ênfase nas questões relacionadas à gestão. Por biopolítica compreende-se a "regulação da segurança e do bem-estar das vidas humanas" (Zizek, 2014, p. 45). Nisso é introduzida uma política do medo como meio de mobilizar as pessoas e garantir que os alvos da biopolítica sejam alcançados. Desse modo, uma ameaça paira no ar sob a forma de medo generalizado: medo do estrangeiro, medo da criminalidade, medo de certos lugares da cidade. Segundo o autor, o medo tem sido um meio político de mobilizar multidões assustadas, tendo no apelo por tolerância a possibilidade de evitar que o outro seja excessivamente impertinente, intrusivo.

Junte-se a isso, conforme nos diz a psicanálise, a atualidade, marcada pelo declínio da dimensão simbólica e, consequentemente, do Outro. Estabelece-se, assim, uma indeterminação quanto ao Outro, tornando seu desejo indeterminado, mas potencialmente avassalador, ou seja, quando o Outro tudo pode, o medo se generaliza (Vieira, 2008). Ademais, ao tomar o desejo do Outro como indeterminação, o sujeito tende a aderir, com facilidade, a um discurso totalitário, já que a demanda do Outro se apresenta como puro capricho. Essa tendência atual pode ser observada no tom violento e ameaçador que marcam algumas expressões de ódio ao outro e, ao mesmo tempo, caracteriza um tipo de enlaçamento social, no qual o coletivo é operado a partir do Um funcionando como um conjunto de sujeitos solitários e isolados. Sujeito solitário, que rechaça e, ao mesmo tempo, reivindica um Outro que parece não poder suportar. Seria, então, a violência um modo utilizado pelo sujeito hipermoderno de, alimentado pelo ódio, fazer emergir um Outro?

3. A LÓGICA DO MERCADO E A UNIFORMIDADE DOS GOZOS

Laurent (2019), em seu texto Discursos e gozos maus, destaca que, com o declínio do simbólico e na ausência das grandes narrativas, uma exigência se faz: de que os relatos sejam científicos. Ao se aclamar a hegemonia do discurso da ciência, tenta-se legitimar a razão, ficando à parte as singularidades, a heterogeneidade das diferenças, ocasionando assim a insurreição dos gozos; dos que são exceção. Laurent aponta: "Os gozos particulares se negam a ser uniformizados" (Laurent, 2019, p. 50). Contudo o momento preza pela uniformização dos modos de gozo, rechaçando-se toda diferença, toda falta, a fim de haver a prevalência de Um gozo.

Consideramos que as forças que operam no sentido dessa uniformização se sustentam nos discursos do capital e da ciência. Ora, toda ideia de uniformizar ou padronizar (como encontramos sobremaneira na ciência) implica a exclusão da dimensão do sujeito, conforme concebido pela psicanálise, sede da singularidade inconsciente. O discurso do capital, por sua vez, recusa a castração, ofertando aos sujeitos os objetos propagandeados como resposta a qualquer demanda. Cria-se o conto capitalista de que tudo está ao alcance das mãos (e do bolso). Como consequência disso, há um esvanecimento do desejo e uma ruína da subjetividade. A falta é tamponada pelos gadgets do mercado, tendo como efeito a produção de consumidores, os quais tomam o lugar do sujeito. Os objetos são ofertados como promessa de recuperação do gozo perdido na castração, isto é, cobrindo o lugar da falta na condição de que haja uma homogeneização dos modos de gozar assim como exige o mercado globalizado. Miller (2004), em seu texto Uma fantasia, denuncia esse gozo ao qual o sujeito se entrega: o objeto a como zênite da vida social aparece mais em sua dimensão de desejo do que de causa; versão contemporânea da pulsão de morte, lembra Ramírez (2017). Assim, todos gozam ao consumir aquilo que, consequentemente, torna-se o instrumento do consumo de si mesmos.

Foucault (2008), em seu curso O nascimento da biopolítica, já havia chamado atenção para o tratamento da vida pela lógica do mercado, quando este se generaliza a âmbitos que não envolvem diretamente a moeda. Ele aponta duas consequências diretas dessa tendência: o modo de compreender e interpretar as relações sociais, e os comportamentos individuais tendo como fundamento os "efeitos de existência provocados pelo mercado" (Foucault, 2008, p. 331). Para existir, é preciso, paradoxalmente, entregar-se ao gozo do consumo.

Segundo Ramírez (2017), o imperativo superegoico (goza!) lança o sujeito num circuito alucinante de gozo, no qual a falta é tratada não mais no campo da palavra, mas na materialidade do objeto, conforme enunciado pelo discurso capitalista. Imerso nesse circuito de gozo, o sujeito não endereça qualquer mensagem ao Outro, já que o simbólico é declinado juntamente com o apagamento do significante "Nome do pai". Por essa razão, fala-se sobre sujeito à deriva. Contudo, o declínio do "Nome do pai", segundo Ramírez (2017), ocasiona o retorno desse significante no real social na forma de totalitarismos, violência e expressões de ódio.

4. ÓDIO COMO FORMA DE ALCANÇAR O OUTRO

Um bom exemplo da repercussão do discurso totalitário encontra-se nas expressões de ódio, como no racismo. Não há novidade quanto à proliferação desse tipo de manifestação, já que, desde a Antiguidade, nós a encontramos. Contudo, nas últimas décadas, nas redes sociais, encontramos um meio que a amplifica, revelando seu aspecto nefasto ao surgir em comentários de postagens diversas. Foi o que ocorreu nas Olimpíadas de Tóquio 2020, particularmente em referência às competições de surf, quando um atleta brasileiro foi derrotado pelo atleta japonês e alguns internautas brasileiros, insatisfeitos, extravasam seu ódio aos japoneses com frases como: "Se houvesse outra bomba de Hiroshima e Nagasaki, não tinha acontecido isso", "Eu tô com vontade de estrangular um japonês", "Hiroshima e Nagasaki foi pouco, roubaram a gente ontem no skate e hoje no surf" (Medalhistas, 2021).

No texto Racismo, Miller (2010) pontua que o sujeito se faz como um imigrante na terra estrangeira do Outro, ainda que essa terra seja sua própria terra natal. Assim, o que faz do Outro o Outro?, interroga Miller. Compreendemos que é a alteridade que demarcará os campos do sujeito e do Outro, contudo nos parece que o que o ódio tenta executar é exatamente a negação da diferença. Mas não somente isso: nega-se o gozo do Outro. Violenta-se a diferença do Outro, sendo seu gozo odiável. Odeia-se o modo particular do gozo do Outro. Ademais, novos fantasmas recaem sobre o sujeito quando o gozo do Outro se torna excessivamente próximo e a violência irrompe como mecanismo para arrebatar essa parcela de gozo do Outro (Miller, 2010).

Esse Outro do qual se tenta extrair uma parcela de gozo nos lembra a figura mítica freudiana do pai totêmico, detentor do gozo absoluto, incólume, que se faz exceção à castração. No referido texto, Totem e tabu (Freud, 1913/1982), os filhos assassinam o pai da horda primeva como resposta diante do insuportável do gozo do Outro total, uma vez que, colocados numa posição de exclusão ao acesso a esse gozo, eles mesmos ficam como objetos do gozo do Outro, restando a violência do homicídio contra o pai, sua destruição. "O insuportável do pai totêmico reside neste ser Um fora da lógica fálica, aquele Um gozador, que mesmo morto impede o acesso ao gozo a partir da instauração da lei fraterna" (Souza, 2017, p. 18).

Diante disso, o sujeito em si mesmo nada pode ofertar como consistência a esse Outro, muito menos pode tratá-lo como semelhança. A despeito do que a Hipermodernidade impõe no sentido de uniformização dos gozos, da negação do Outro como alteridade, a insurgência irrompe como violência. Em outras palavras, o ódio tenta reduzir o Outro, mas essa é uma tarefa impossível (Izcovich, 2019).

Lacan (1964/2008), no Seminário XI, faz menção ao ódio como paixão advinda do apelo do sujeito em dar consistência ao Outro, apagando-lhe a falta. Alberti (2001) elucida que, nesse apelo, está vinculada a ideia de união entre ser e Outro, opondo-se a qualquer possibilidade de descompletude no encontro dos conjuntos (ser e Outro). É nesse mesmo seminário que Lacan faz referência à alienação como um tempo primitivo de completude imaginária do sujeito no Outro, tempo da plenitude narcísica, e o tempo da separação, quando a alteridade é estabelecida na demarcação dos campos do sujeito e do Outro e um resto é produzido (o objeto a). Ademais, é na separação que se evidencia a presença da incompletude em ambos os conjuntos, sendo o objeto a aquilo que recobrirá as duas faltas.

Compreendemos, assim, que o ódio como violência tenta eliminar a alteridade, solicitando ao Outro um retorno a esse estado primitivo narcísico, no qual o eu ideal reinava como imagem ideal, perfeita e completa. Tendo isso em mente, não seria a operação do ódio hoje senão a tentativa de o sujeito dar sua própria "cara" ao outro? Defendemos que sim, mas não sem suscitar paixões.

Na tese V do texto A agressividade em psicanálise, ao fazer referência à agressividade como algo inerente no humano, Lacan (1948/1998) aponta que o mal-estar contemporâneo, emergente a partir do declínio do simbólico, testemunha a depreciação das instituições sociais, dos ritos cerimoniais e das relações da família, inclusive com a retirada das veiculações do ideal do eu, deixando a estrutura original paranoica do eu descoberta e precariamente contida. Assim, paixões primitivas, como o ódio, aparecem em forma de hostilidade e rivalidade, tal qual encontramos em situações que envolvem a diferença.

Compreendemos, assim, como o ódio ganha efeitos devastadores, uma vez que se sustenta naquilo que é primitivo e constituinte no humano: a agressividade. Miller (2010) nos diz que o ódio seria a consistência da agressividade. De fato, odiar alguém ou alguma coisa comporta um lado mais consistente, diria operacional, de uma ação operada pelo corpo e no corpo com o intuito de destruição, tal como encontramos no horror dos corpos de moradores de rua queimados dolosamente, sem qualquer motivo aparente. Por outro lado, Izcovich (2019, p. 37) nos diz: "O ódio é a paixão que melhor alcança tocar a essência do Outro", isso porque, segundo nos parece, ao odiar outro, estabelece-se a alteridade, um Outro é convocado.

Além disso, o estrato subjacente ao ideal de completude nesse apelo do sujeito ao Outro produz o declínio da dimensão do desejo, e o sujeito, incapaz de engendrar o Outro tão somente no plano simbólico, perde-se ante a ausência do enigma do desejo do Outro (Alberti, 2001). Esse vazio de desejo, por sua vez, reverbera no campo do imaginário como dimensão privilegiada, daí os apelos irresistíveis a uma imagem de sucesso e plenitude tão facilmente veiculadas no mercado que captura o sujeito atualmente. Junto a isso, orientados por um narcisismo recuperado e atualizado, elimina-se tudo o que não tiver correspondência com sua própria imagem, como vimos, nas ações de preconceito, racismo, segregação.

Vale destacar, contudo, que a agressividade inerente à estrutura do eu não implica necessariamente um ato violento. Muitas vezes, apresenta-se como "intensão de agressão", como dito por Lacan (1949/1998; 1948/1998): para além daquilo que está em guerra e faz guerra, encontra-se também no roubo de segredos, intimidação, preconceitos, violação de intimidade, exploração. Ademais, tais atos (muitas vezes operando como passagem ao ato) são o resultado de um circuito pulsional que parte do imaginário ao real sem a mediação do simbólico: violência crua que desnuda o real numa guerra contra um inimigo íntimo infamiliar.

5. OUTRO ESTRANHO, MEU INIMIGO

Avançando no ensino de Lacan, compreende-se que a natureza desse outro, tido aqui como inimigo íntimo infamiliar, encontra-se na própria constituição do eu, a partir do que trata o estádio do espelho, onde o outro é uma imagem que evoca júbilo e hostilidade, bem como na questão da centralidade do sujeito: aquilo que lhe é mais íntimo encontra-se no exterior a ele. A natureza ex-centricado sujeito, forjada em sua "falta a ser", que o coloca fora da cadeia significante como ex-sistente, aponta para fora. Por conseguinte, o Outro se constitui o êxtimo1 do sujeito (Quinet, 2009).

O caráter infamiliar da relação do sujeito e do Outro pode ser melhor compreendida na correlação entre o termo extimidade e os termos alemães Das Ding (a coisa) e Nebennzensch (o outro ao lado). Para Miller (2010, p. 17), a extimidade "é uma fratura constitutiva da intimidade", o que nos lembra da condição de divisão do sujeito, que perde algo de si quando se aliena no campo do Outro, mas também quando se separa na tentativa de sobrepor as duas faltas. Uma vez que o Outro é a extimidade do homem, "Qual é, pois esse outro a quem sou mais apegado do que a mim, já que, no seio mais consentido de minha identidade comigo mesmo, é ele que me agita?" (Lacan, 1957/1998, p. 528).

Acresce-se a isso que "o êxtimo é o inconsciente", nos diz Miller (2010, p. 20). Estabelece-se, assim, uma heteronomia radical da condição humana, tomando o inconsciente como o discurso do Outro. Todavia o sujeito custa admitir sua extimidade e a ela reage, posto sua natureza fundada no real (Seganfredo, & Chatelard, 2014). Reage muitas vezes com uma espécie de delírio febril, que agita o sujeito, que o toma em sua desrazão, em ódios e violências dirigidos ao outro, seu semelhante, mas que convoca um Outro com seu discurso totalitário. Vemos, assim, a que se endereça as expressões de ódio: uma tal totalidade que nega e impede qualquer possibilidade do encontro com a castração, sustentando a fantasia de uma perfeição imaginária. Nota-se, portanto, a força da determinação das sentenças de ódio, as quais se mostram sem vacilação, é pura certeza.

As estatísticas brasileiras de crimes contra a comunidade LGBTI+ ilustram sobremaneira como tais narrativas de ódio ganham uma dimensão de sentença de morte. Movidos por uma certeza própria, violentam-se os direitos fundamentais, agridem e matam. No Brasil, são conhecidos os casos de assassinato e violência relacionados às questões de gênero, os quais, segundo um relatório divulgado em 2021, seguem em crescimento (Gastaldi et al., 2021).

É quando esse Outro (Um gozador) se corporifica na dimensão do outro, o semelhante, que o insuportável desse gozo ocasiona a irrupção da agressividade do sujeito, como descrevemos anteriormente. Mandil (2019) acrescenta que o ato que veicula a agressividade como violência e ódio dirige-se ao Outro ou retorna sobre o próprio sujeito. Um bom exemplo disso foi trabalhado por Lacan em sua tese de doutoramento, o caso Aimée.

Aimée atinge, portanto, em sua vítima seu ideal exteriorizado, como a passional atinge o objeto único de seu ódio e de seu amor. Mas o objeto que Aimée atinge só tem um valor de puro símbolo, e ela não sente com seu gesto nenhum alívio. Contudo, pelo mesmo golpe que a torna culpada diante da lei, Aimée atinge a si mesma, e, quando ela o compreende, sente então a satisfação do desejo realizado: o delírio, tornado inútil, se desvanece (Lacan, 1932/1987, p. 254, grifo nosso).

Ao tentar eliminar a atriz, matando-a, Aimée está atacando a si mesma (ao outro do espelho, o eu ideal) o outro imagético. "A mesma imagem que representa seu ideal é também o objeto de seu ódio" (Lacan, 1932/1987, p. 254). O outro da imagem é o duplo que precisa ser eliminado, já que goza de uma imagem unificada, isto é, goza do que supostamente eu não sou. Por essa razão, a proximidade do sujeito ao gozo do outro é experimentada com uma estranheza familiar (o infamiliar) como ameaça de desintegração, remontando aos tempos do corpo despedaçado, daí a emergência da agressividade, que pode assumir contornos de violência (Lacan, 1949/1998). Porém é preciso distinguir o ódio da violência. Pode-se odiar sem ser violento, contudo o contrário não pode ocorrer, já que o substrato da violência é o próprio ódio.

É preciso acrescentar que será o ideal do eu que possibilitará ao sujeito algum tratamento ante à ameaça de desintegração vinda do outro. Na fragilidade desse ideal, como encontramos na sociedade hipermoderna, onde há um enfraquecimento do significante "Nome do pai", o sujeito fica à deriva do medo do outro, bem como do ódio dirigido àquele que goza de modo distinto. Neste ponto, referenciamo-nos ao sofrimento e segregação infligidos aos imigrantes no Brasil num ataque ocorrido em agosto de 2018, na cidade de Pacaraima, Roraima. Civis brasileiros decidiram atacar um grupo de refugiados venezuelanos após a morte de um comerciante local. Os brasileiros gritaram palavras de ordem e cantaram o Hino Nacional durante a ação de ódio ao estranho invasor. Evocaram um Outro total, a nação, a pátria onde todos precisavam ser da mesma natureza e raça. Ações como essas se repetem em muitos lugares no mundo, mas por que tomar o outro como inimigo?

Ao elucidar acerca do ódio, Lacan (1948/1998) faz referência ao kakon, um inimigo íntimo que é localizado e eliminado no exterior. O kakon está relacionado a uma tendência de identificação narcísica do eu em sua estrutura paranoica, ao endereçar sua agressividade a um inimigo externo, o qual guarda algum traço de si mesmo e que denuncia a condição de extimidade do próprio eu. Sendo esse inimigo um estranho familiar, atribui-se a ele a causa de todas as mazelas que assombram o sujeito, como no tempo do corpo despedaçado. A infamiliaridade reside na natureza especular do outro, naquilo que ele é e que diz do que eu sou. Assim, as diferenças têm sido, de muitas formas, tratadas como ameaça à integridade do sujeito: sendo insuportáveis precisam ser eliminadas.

Eric Laurent, em sua conferência no X Congresso da AMP, resgata o conceito lacaniano de kakon para interrogar acerca de seus efeitos sobre o corpo do sujeito e o corpo político; lugar onde se experimentam os ódios. Trata-se do modo contemporâneo de construção do laço social, que encontra nos fenômenos de massa o espaço oportuno para manifestar o ódio e a violência; como um grito extraído do corpo.

Dois tempos do fantasma... Por um lado, o grito do sujeito, na tentativa de ocupar um lugar subjetivo na massa. Por outro, o surgimento do objeto a. Em um segundo tempo, de fato, assistimos à encarnação do kakon, do objeto mal, este gozo mal, com respeito ao qual o sujeito não deixa de querer se separar... o corpo do qual se extrai o grito de consternação é paixão. É um corpo que goza, marcado por afetos poderosos, principalmente a angústia. Para Lacan, se trata tanto do corpo do sujeito, como do corpo político. Corpo enquanto lugar onde se experimentam afetos e paixões, tanto o corpo político quanto o individual. As paixões políticas novas surgem como acontecimentos de corpos políticos novos e logo se transformam (Laurent, 2018).

A psicanálise, desde Freud, faz referência aos movimentos de massa, quando o sujeito fixa o Um (o mesmo) no lugar de um ideal do eu, evocando a ordem do pai totêmico. Assim, tal evocação alimenta ânimos exaltados em algumas manifestações, nas quais o ódio e a violência estão presentes. Nelas vemos o kakon encarnado num outro odiável, que precisa ser eliminado: o diferente, o estrangeiro, o estranho. É a encarnação do kakon que tem servido de traço comum em certos modos de laço social, "mas que, sem dúvida funcionam no registro de um corpo político produzido como ex-sistência lógica e atravessado pelas paixões fantasmáticas" (Laurent, 2018). Esse é o novo modo de constituir o laço social, não a partir de identificações, mas sim a partir do gozo e do fantasma de plenitude e supremacia. Trata-se de um arranjo hipermoderno sustentado na conjunção do imaginário e do objeto a, fazendo com que o objeto assuma o lugar de ideal (Izcovich, 2019). A massa, narcisisticamente identificada a um ideal ou imagem ideal, mantém-se unida pelo ódio, como "crença de uma identidade possível na comunidade dos corpos" (Izcovich, 2019, p. 41). Mecanismos denunciados nos movimentos racistas e segregatícios em todo mundo.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Lacan (1953-1954/2009), adiante de seu próprio tempo, referiu-se à sua época como uma geração de ódio. Como vimos, as violências, portanto, sugerem certas manifestações relacionadas ao narcisismo que dizem da "frenética paixão do homem por querer imprimir sua imagem" (Izcovich, 2019, p. 34), tendo no ódio seu substrato, a intensidade das intenções de destruição de tudo o que não corresponda a si mesmo. De fato, a concretude da violência desde os conflitos armados, homicídios até as manifestações injuriosas de ódio e intolerância, testemunha hoje o cumprimento do dito lacaniano.

Já que o ódio se situa na articulação do imaginário e do real, excluindo-se assim o registro simbólico, resulta ainda na destituição do saber (saber onde se localiza a falta). Tenta-se haver-se com um Outro que não existe, construí-lo de algum modo à sua própria imagem, ainda que seja pela via do ódio e das violências, a qual parece nem precisar ter justificativa ou sentido, já que não mantém compromisso com o simbólico.

Nisso reside o caráter infamiliar presente nas violências atuais: esse Outro ao lado, Nebenmensch: familiar e estranho, íntimo e estrangeiro, hostil, do qual evita-se separar, mas que é insuportável. "Ao longo do processo de constituição da subjetividade, o Nebenmensch vai se tornando também um objeto que comporta em si algo estranho-familiar" (Klautau, & Faissol, 2016, p. 73). Daí, o Outro carregar sempre consigo algo de infamiliar, estranho, ameaçador.

Nesses termos, a violência é um modo de tratamento do Outro contemporâneo, este em que não há falta, constituído alheio à dimensão da castração e da palavra. São novos os cenários da Hipermodernidade. É ao Outro criado total e pleno que se dirigem as violências: o sujeito excluindo toda a diferença e desaparecendo na alienação ao Outro. A alteridade declina juntamente com o simbólico, ocasionando a "construção de um Outro totalitário e tirânico" (Souza, 2017, p. 28). Fraternidades de gozo emergem do campo do desaparecimento do sujeito: as gangues, as fratrias dos excessos, a violência pela violência. Algumas vezes, utilizam um discurso que procura legitimar o sentido que o gozo não tem, mas que dá corpo ao Um, à massa, ao grupo, num tipo de laço social que apaga o sujeito (Souza, 2017), permanecendo o sujeito vinculado à imagem ideal de um Outro gozador:

Sociedades de massas – isolamento acompanhado de um sentimento de fracasso e/ou exclusão – desenraizamento – cooptação e adesão irrestrita – superidentidades – em lugar das ideologias, as "fratrias de gozo" - naturalização da violência: parece que estamos diante de uma cadeia formada pelos elos constituintes de um estado totalitário, o que parece indicar que, mesmo no seio de sociedades democráticas, diferentes formas de organização totalitária poderão subsistir, sob a forma de microcosmos totalitários (Macedo, 2016, p. 58).

Esse gozo das fratrias é o que possibilita suas próprias existências. Vê-se aí vínculos sociais promovidos unicamente em torno de um ideal imaginário, a que Lacan denomina narcisismo da causa perdida: os sujeitos se encontram enlaçados ao objeto, tomando-o não mais como causa, mas como imagem (Izcovich, 2019).

Por fim, o infamiliar da violência também reside no tipo de apelo que carrega: não se separar do Outro, mantendo a fantasia daquilo que um dia se acreditou ser. Apagado, o sujeito constrói um Outro a partir da violência: um Outro persecutório que mata ou um Outro dominante, a quem se deve subjugar ou matar. De qualquer maneira, trata-se de um Outro que não reconhece o ser do sujeito e, por conseguinte, mantém um estado de coisas: a ausência da alteridade. Desse modo, o sujeito hipermoderno encontra um meio de fazer existir o Outro que não mais existe.

Diante do exposto, nós nos indagamos sobre quais seriam as possibilidades dos sujeitos no enfrentamento da violência numa sociedade hipermoderna. Em resposta a Einstein, se haveria na natureza humana uma tendência nata ao conflito e à guerra, Freud (1933/2020) responde, no texto Por que a guerra?, que, de fato, o conflito persistente entre as pulsões de vida e as pulsões de morte marcam a existência dos sujeitos, emergindo de suas vidas em forma de violências. Há em todo ser falante uma dimensão na qual algo do desumano existe: "Porque cada um de nós, diz ele, aturdido de compaixão que esteja, também é solicitado em sua parte irredutível de desumanidade, sem a qual não há humanidade que se sustente"2 (Miller, 2012, p. 46, tradução nossa). Para Freud (1933/2020), não há qualquer instância exterior que possa conter esse movimento pulsional, restando ao sujeito apenas a civilização como possibilidade.

Freud acredita que os processos de civilização poderiam fazer frente à vida pulsional do sujeito sem, no entanto, eliminá-la. Vemos nisso que a possibilidade de enfrentamento da violência para o sujeito na Hipermodernidade se torna mais alcançável quando igualmente se torna possível acolher o insuportável de cada um: aquilo que é incivilizado, voraz e fracassado. Poderá ser, a partir da impossibilidade de completude, que o sujeito se permita a uma existência incompleta ou, como nos diz Safatle (2020), é preciso assumir a condição da queda, a certeza de se quebrar, de que algo falhará. É a certeza da queda que mobilizará o desejo, desejo de sermos diferentes.

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Texto recebido em 1º de setembro de 2021 e aprovado para publicação em 16 de novembro de 2021.

Este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES),Código de Financiamento 001, e se propõe a analisar, pelo viés da Psicanálise de orientação lacaniana, os fenômenos de ódio e a violência na atualidade, como um meio de manifestação do mal-estar dos sujeitos num tempo de declínio do Outro.

 

 

* Doutorando em Psicologia, Mestre em Psicologia (processos de subjetivação) e especialista em Clínica Psicanalítica com Crianças e Adolescentes pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), psicanalista, docente na área de Psicologia e Psicanálise (graduação e pós-graduação).E-mail: tharsopeixoto.tp@gmail.com.
**Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris 7, docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC Minas, professora adjunta IV da Faculdade de Psicologia da PUC Minas, coordenadora do Lapsi (Laboratório de Psicanálise Invenções Subjetivas na Atualidade/CNPq), pesquisadora mineira Fapemig, psicanalista.

 

 

1 O termo “extimidade”, referido por Lacan poucas vezes, refere-se a algo que é mais íntimo, próximo e familiar, mas que é exterior (Quinet, 2009).
2 "Car chacun d'entre nous, tout éperdu de compassion qu'il soit, est aussi sollicité dans sa part irréductible d'inhumanité, sans laquelle il n'est pas d'humanité qui tienne."

 

 

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