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Revista da SPAGESP

Print version ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.20 no.1 Ribeirão Preto Jan./June 2019

 

ARTIGOS

 

A monoparentalidade por opção e seus aspectos psicossociais: estudo de revisão integrativa

 

Single parenthood by choice and its psychosocial aspects: an integrative review study

 

La monoparentalidad por elección y sus aspectos psicosociales: un estudio de revisión integrativa

 

 

Rebecca Holanda Arrais1; Isabel Cristina Gomes2; Elisa Maria Parahyba Campos3

Universidade de São Paulo, São Paulo-SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A monoparentalidade, tradicionalmente relacionada a abandono ou viuvez, vê-se como uma opção familiar na contemporaneidade. Objetivou-se analisar a produção acadêmica acerca dessa escolha filiativa por meio de uma revisão integrativa de artigos publicados na última década nas bases de dados: Scopus, Medline, Web of science, SciELO, Lilacs, BVS e Dedalus. De 77 resultados no levantamento inicial, permaneceram 20 na seleção final. Com prevalência às pesquisas de campo qualitativas, obteve-se estudos realizados só com a população feminina e oriundos de centros economicamente desenvolvidos. Concluiu-se que, a monoparentalidade programada emerge num cenário de mudanças na organização familiar e no papel exercido pela mulher na sociedade, entre a tradição e a inovação, o empoderamento desta e a deficiência nas relações interpessoais.

Palavras-chave: Relações familiares; Pais solteiros; Técnicas reprodutivas; Produção independente; Monoparentalidade por opção.


ABSTRACT

Single parenthood is traditionally related to abandonment or widowhood, but contemporaneously it is observed the development of single-parent families by choice. The objective of this research was to review the academic production about the psychosocial aspects involved in this choice. An integrative review of the articles published between 2008 and 2018 was carried out in the databases: Scopus, Medline, Web of science, SciELO, Lilacs, BVS and Dedalus. The initial survey presented 77 results, remaining 20 in the final selection. With the prevalence of qualitative field researches, studies were carried out only with the female population and from economically developed centers. It is concluded that the single-parent families by choice emerge in a scenario of changes in family organization and the role played by women in society, between tradition and innovation, between women's empowerment and disability in interpersonal relationships.

Keywords: Family relations; Single parent; Reproductive techniques; Single mothers by choice; Single parents by choice.


RESUMEN

La monoparentalidad está tradicionalmente relacionada con el abandono o la viudez, pero contemporáneamente se observa el desarrollo de familias monoparentales por elección. Se objetivó entonces revisar la producción académica acerca de los aspectos psicosociales que intervienen en tal opción. Se realizó una revisión integrativa de los artículos publicados entre 2006 y 2016 en las bases de datos: Scopus, Medline, Web of Science, SciELO, Lilacs, BVS y Dedalus. El levantamiento inicial presentó 77 resultados, permanecieron 20 en la selección final. Prevalecieron las investigaciones de campo cualitativo, se obtuvieron estudios realizados sólo con la población femenina y oriundos de centros económicamente desarrollados. Se concluye que la monoparentalidad por elección emerge en un escenario de cambios en la organización familiar y en el papel ejercido por la mujer en la sociedad, entre la tradición y la innovación, entre el empoderamiento de la mujer y la deficiencia en las relaciones interpersonales.

Palabras clave: Relaciones familiares; Padres solteros; Técnicas reproductivas; Madres solteras por elección; Monoparentalidad por elección.


 

 

A contemporaneidade tem vivido uma série de modificações na organização familiar, com diversificação em sua forma de composição e modo de funcionamento, bem como com movimentos de busca de legitimidade por parte daqueles que compõem esses modelos emergentes. Atualmente, além da família nuclear, encontram-se famílias recompostas, homoparentais, geradas artificialmente, monoparentais, entre outras (Rios & Gomes, 2009). A monoparentalidade, tradicionalmente relacionada a casos de viuvez ou abandono, no contexto das transformações atuais, mostra-se como uma opção. O foco deste artigo aborda justamente a monoparentalidade como resultado da busca por técnicas de reprodução humana assistida (RHA), adoção ou fecundação sexual independentemente de um relacionamento estável.

As técnicas de RHA desempenham, aqui, um importante papel ao dissociar sexualidade e procriação e diversificar as formas de acesso à gestação. No Brasil, apenas após a resolução nº 1957/2010 do Conselho Federal de Medicina (2011) expandiu-se o acesso a esse recurso para além das pessoas casadas ou em união "de fato", contempladas na legislação anterior.

São muito significativas as mudanças ocorridas no papel social da mulher no último século, desde o início do movimento feminista. O surgimento da pílula anticoncepcional promoveu a desvinculação entre sexualidade e procriação. A desconstrução do mito do amor materno permitiu a mulher optar pela maternidade, entre outras escolhas (Rios & Gomes, 2009). Por outro lado, sabemos que os papéis e funções determinados pela tradição, principalmente no interior do grupo familiar, ainda que percam a característica de obrigatoriedade, deixam, contudo, suas marcas (Féres-Carneiro, Machado, Mello, & Magalhães, 2017). Butler (2003), ao discutir os movimentos pela regulamentação do casamento homossexual, questiona a vinculação entre parentesco e casamento, estabelecida como organizadora do modelo familiar no ocidente, e aponta que mesmo as novas formas de organização familiar acabam correndo o risco de tomar como norma esta vinculação. Rodriguez e Gomes (2012) afirmam que a maior liberdade de valores possibilita que se estabeleçam novos sentidos para as relações familiares, porém tais mudanças ocorrem de modo lento e complexo.

Em meio às transformações citadas, o termo "parentalidade", fruto da junção dos termos "maternidade e paternidade", passa a ser usado para nomear vínculos de parentesco e processos psicológicos deles decorrentes (Solis-Ponton, 2004). Sendo utilizado por diferentes disciplinas que abordam a temática da família, o termo enfatiza o processo de construção psíquica e vincularidade em detrimento da ênfase no vínculo biológico e nos papéis sociais (Gorin, Mello, Machado, & Féres-Carneiro, 2015). Rodriguez e Gomes (2012, p. 31) ainda afirmam que "As novas formas de parentalidade (...) pautadas pela filiação psíquica independente da questão biológica, permitem a existência destas sem necessariamente estarem na condição periférica de menor valor ou realidade".

O termo específico "monoparentalidade", embora com uma carga valorativa mais neutra que outros utilizados anteriormente, com o tempo, foi mostrando-se insuficiente para a complexidade das famílias aí contidas. Se por um lado, a monoparentalidade é tradicionalmente associada à pobreza e vulnerabilidade, por outro, o grupo de mulheres que ativamente optou pela maternidade desvinculada de um relacionamento conjugal não se enquadra nesse perfil (Acuña, 2017). Faz-se importante, então, compreender os elementos relacionados à monoparentalidade eletiva enquanto configuração familiar contemporânea.

Tomando como referência as novas modalidades de arranjos familiares existentes na atualidade, o presente artigo objetiva revisar a produção acadêmica nacional e internacional na última década a respeito dos aspectos psicossociais envolvidos na opção pela constituição da família monoparental. Serão considerados aspectos psicossociais variáveis desde a descrição de características pessoais e história de vida, passando por atitudes e vivências individuais, até fenômenos de ordem cultural e histórica. Busca-se, de tal maneira, responder à seguinte pergunta: quais elementos podem ser identificados na literatura científica especializada como relacionados à escolha pela monoparentalidade?

 

MÉTODO

Esta pesquisa se propõe a realizar uma revisão integrativa (Koller, Hohendorff, & Couto, 2014) dos artigos publicados nos últimos dez anos – Janeiro de 2008 a Janeiro de 2018 – nas bases de dados nacionais e internacionais a seguir: Scopus, Medline, Web of Science, SciELO, Lilacs, BVS e Dedalus. Sendo utilizado na Psicologia (Crema & De Tilio, 2017; Rossato & Falke, 2017), este modelo de revisão mostra-se como o mais amplo por proporcionar uma síntese atualizada de conhecimentos advindos de estudos teóricos e empíricos com métodos diversos (Souza, Silva, & Carvalho, 2010).

Para cada uma das bases de dados, foi realizada uma busca com os descritores em língua inglesa e portuguesa, com a última atualização do levantamento tendo sido feita em Janeiro de 2018. Cabe destacar não existir termo específico para a monoparentalidade programada nas terminologias padronizadas em inglês – MeSH – ou português – DeCS –, sendo os termos mais próximos aqueles que se referem à monoparentalidade de maneira genérica – "single parents" e "pais solteiros". Uma vez que a quantidade de registros relacionados a estes termos foi além dos critérios de inclusão, buscou-se maior especificação na escolha desses.

A expressão mais corrente para a monoparentalidade programada em inglês é single mothers by choice, entretanto, quisemos garantir maior abrangência englobando estudos com famílias monoparentais masculinas. Para isso, outros termos foram incluídos resultando na seguinte string de busca: ("single mothers by choice" OR "single parents by choice" OR "single motherhood by choice" OR "single parenthood by choice" OR "optional single motherhood" OR "optional single parenthood"). Na busca em língua portuguesa, identificou-se como palavra-chave principal "produção independente", sendo necessário o refinamento desta para excluir artigos relativos a outras disciplinas – tais como produção econômica ou cultural. Buscou-se então artigos que, além de "produção independente", apresentassem os termos "maternidade" ou "parentalidade" ou "filhos". Devido ao baixo número de artigos encontrados, foram realizadas novas tentativas com os termos "monoparentalidade eletiva", "monoparentalidade por opção" ou "monoparentalidade programada" ou "mães solteiras por opção" ou "pais solteiros por opção". A string de busca resultante em português foi então: ("produção independente" AND maternidade OR parentalidade OR filhos) OR "monoparentalidade eletiva" OR "monoparentalidade por opção" OR "monoparentalidade programada" OR "mães solteiras por opção" OR "pais solteiros por opção").

Foram estabelecidos como critérios de inclusão: a abordagem de aspectos psicossociais de sujeitos que optaram pela monoparentalidade como via de constituição familiar; artigos publicados na íntegra; período entre janeiro de 2008 e janeiro de 2018; idiomas inglês, português, espanhol ou francês. Consideraram-se critérios de exclusão: estar fora do período estipulado; publicação em outro formato que não artigo; em outros idiomas; texto completo não disponível; não abordar a monoparentalidade; não distinguir monoparentalidade programada de monoparentalidade não planejada (por divórcio, viuvez etc.); foco exclusivamente em aspectos fisiológicos ou biomédicos; investigar exclusivamente os filhos, uma vez que estes não optaram por estar em famílias assim constituídas, ainda que certamente recebam as consequências de tal opção.

A primeira fase de buscas gerou um total de 77 resultados para o período estipulado, o qual, após retiradas as publicações duplicadas, forneceu 40 artigos para serem verificados quanto à adequação para a presente revisão. Através da busca nos resumos, oito registros foram excluídos por não serem artigos (cinco capítulos, um livro e dois resumos de apresentação em eventos científicos), três por não abordarem a monoparentalidade, dois por investigarem unicamente os filhos de mães solteiras por opção (MSO) e um por não diferenciar monoparentalidade programada e não planejada. Dos 26 artigos restantes, todos foram recuperados em versão completa.

Procedeu-se, então, à leitura dos artigos selecionados para análise e classificação de acordo com: localização geográfica da pesquisa, idioma de publicação, objetivo do estudo, método utilizado e resultados relevantes para a compreensão dos aspectos psicossociais da opção pela constituição de família monoparental. Ainda nesta fase, cinco artigos foram removidos em decorrência de não apresentarem resultados que mantivessem relação com a pergunta de pesquisa e um por não diferenciar monoparentalidade programada e não planejada. Desse modo, o número final de artigos que permaneceu na amostra foi de 20. Os passos da revisão foram verificados por dois dos autores, não tendo sido necessário recorrer a um terceiro juiz.

 

 

Dados relativos à caracterização dos estudos foram quantificados e seus objetivos e métodos foram sumarizados e apresentados na Tabela 1. Os resultados foram, então, organizados em quatro categorias temáticas: caracterização sociodemográfica; mudanças na organização familiar e no papel da mulher; vias de acesso à maternidade na monoparentalidade programada; atitude em relação à intimidade e à conjugalidade.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os artigos encontrados dividiram-se principalmente entre publicações em inglês e espanhol – com sete estudos no primeiro e 12 no segundo idioma. Houve apenas uma publicação em português após 2008, a única com autoria brasileira. O país com maior concentração de artigos foi a Espanha (11), seguida pela Inglaterra (4) e pelos Estados Unidos (2). Chile, Israel e Brasil, apresentaram um resultado cada. Nove entre as 12 publicações espanholas derivam de um único grande estudo etnográfico conduzido por um grupo de pesquisadores de Madrid, com diversas frentes específicas de investigação. Observa-se, dessa maneira, uma concentração da produção em países ocidentais economicamente desenvolvidos.

 

 

Os estudos teóricos (4) e de análise documental de filmes, séries, livros, folhetos informativos e outras produções não acadêmicas (2) corresponderam a 30% da produção encontrada. Os demais 14 artigos foram fruto de pesquisas envolvendo seres humanos, sendo um artigo de método quantitativo, dois de método misto e 11 de metodologia qualitativa. Ainda sobre os artigos decorrentes de estudos qualitativos, foi predominante o uso do método etnográfico, com nove artigos tendo recorrido a este, dos quais dois foram estudos de caso. Não foram encontrados estudos experimentais ou quase experimentais.

Quanto à definição de monoparentalidade programada e população abordada, todos os estudos focaram em mulheres, não tendo sido encontrado nenhum artigo que discutisse a vivência de homens/pais em famílias monoparentais por opção. Doze entre os 14 artigos com seres humanos recorreram a centros de reprodução humana ou associações de apoio à monoparentalidade como espaços de recrutamento dos sujeitos de pesquisa. Em um artigo, a monoparentalidade programada foi abordada de maneira geral, sem especificar as vias de acesso à maternidade. O recurso a técnicas de reprodução humana assistida (RHA) foi abordado em 18 artigos, nos quais a inseminação artificial com doador (IAD) foi especificamente citada sete vezes e a fertilização in vitro com dupla doação de gametas apenas três vezes – em 11 artigos, a RHA foi considerada de maneira geral, sem especificação de técnicas. A maternidade via adoção foi discutida em 11 trabalhos. O recurso à fecundação por via sexual apareceu oito vezes, porém principalmente em artigos resultantes da pesquisa espanhola (5), além dos quais esteve presente em dois outros estudos empíricos, tendo em todos uma baixa representação na amostra frente às mães que optaram por outras vias.

CARACTERIZAÇÃO SOCIODEMOGRÁFICA

Conforme citado anteriormente, não foi encontrado nenhum estudo que incluísse a população masculina, permitindo que se fale, então, de um perfil sociodemográfico das mulheres que vivenciam a monoparentalidade por opção. Nesse sentido, diversas publicações destacaram tratar-se de subgrupo de mulheres com características específicas, distintas do conjunto maior de mães solteiras, e em condições socioeconômicas privilegiadas (Acuña, 2017; Gonzáles, Diéz, Jimenes, & Morgado, 2008; Graham, 2017; Jadva, Badger, Morrissette, & Golombok, 2009; Tous, 2016). Moncó, Jociles e Rivas (2011) constatam que essa diferenciação é marcada pelas próprias MSO, as quais consideram importante definir-se como tendo escolhido ser mães, em oposição à maioria estatística de famílias monoparentais não planejadas.

O perfil geral encontrado para as mulheres que optaram pela monoparentalidade foi aquele com acesso ao ensino superior, condição de renda média a alta e inserção no mercado de trabalho (Acuña, 2017; Gonzáles et al., 2008; Graham, 2017; Jadva et al., 2009; Jociles & Vilaamil, 2012). Todas as pesquisas que consideraram raça/etnia tiveram maioria de sujeitos declarados brancos/caucasianos (Graham, 2017; Jadva et al., 2009).

Jociles e Vilaamil (2012) apontaram uma média de idade de acesso à maternidade elevada, o que vai ao encontro dos resultados que mostram que uma das motivações para decidir pela monoparentalidade é a percepção do envelhecimento ou de se estar próximo de uma idade limite para se tornar mãe (Gonzáles et al., 2008; Jadva et al., 2009; Jociles, 2013). Jadva et al. (2009) indicaram que, para mulheres que recorrem à adoção, a idade tende a ser ainda maior.

MUDANÇAS NA ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E NO PAPEL DA MULHER

As mudanças ocorridas nas últimas décadas no âmbito familiar e de parentesco permitiram que as mulheres pleiteassem novas formas de constituir suas vidas e identidades familiares, levando a cabo seu desejo de serem mães sem a necessidade de um par que as acompanhe ou valide (Acuña, 2017; Moncó et al., 2011; Tous, 2016). A monoparentalidade pode, inclusive, ser entendida não apenas como independente de uma "parceria", mas como opção pela independência e exclusão da parceria (Quayle & Dornelles, 2015).

Segundo diversos autores, a monoparentalidade por opção intenta desconstruir regras culturais de parentesco, demarcando a concepção dominante que liga procriação ou filiação ao casal e insistindo no caráter eletivo, social ou voluntário da família (Agoglia & Torralba, 2015; Gonzáles et al., 2008; Jociles & Villaamil, 2012; Quayle & Dornelles, 2015; Tous, 2016). Indica-se que a organização da família na contemporaneidade é cada vez mais marcada pelo afeto e desejo pessoal (Quayle & Dornelles, 2015) e traz marcas do individualismo presente na cultura ocidental contemporânea (Jociles & Villaamil, 2012; Tous, 2016).

Layne (2015a) ilustra como a igualdade de gênero – vinda de políticas públicas, e não da negociação interpessoal – possibilita a mulheres heterossexuais deixarem de lado a intimidade sexual durante a criação de crianças para investir em outros relacionamentos íntimos, especialmente, mas não unicamente, com os filhos. A autora conclui que o "ambiente íntimo" muda ao longo da vida, mas também há mudanças sociais que formam o terreno em que estes "ambientes íntimos" se constroem. Além deste, outro estudo (Tous, 2016) credita ao feminismo a possibilidade de se tornar uma MSO. Destaca-se também que o desenvolvimento da RHA vem desempenhando um papel importante no processo de reconfiguração dos modelos familiares (Quayle & Dornelles, 2015), deixando de ser um coadjuvante aos problemas de infertilidade e passando a se tornar um modelo de reprodução em si mesmo (Tous, 2016).

Entretanto, a monoparentalidade eletiva não está livre das demandas contraditórias que tencionam a maternidade entre o tradicional e sua ruptura. Layne (2013) conclui que MSO, apesar de terem trilhado um caminho atípico para a maternidade, geralmente buscam uma aproximação com a norma, reafirmando – mais que contestando – alguns padrões de parentesco. Lahad e Shoshana (2015) identificam o recurso ao aniquilamento simbólico da "solteirice" e o estabelecimento de hierarquias de identidade feminina. Permanecer solteira é representado como antinatural e patológico. Em oposição à mulher solteira sem filhos, a monoparentalidade programada aparece como estilo de vida preferível e desejável. Dessa forma, ela receberia novas formas de legitimação que reforçam novas-velhas concepções sobre o potencial reprodutivo da mulher e o que seria sua "razão primordial de vida". Os resultados concordam com outros estudos recuperados na revisão, os quais concluem que a monoparentalidade programada pode ser considerada uma reciclagem da tradicional equiparação do feminino com a maternidade, a partir das novas demandas por autonomia, ou constituir experiências inovadoras de subjetivação (Agoglia & Torralba, 2015; Tous, 2016).

Outra contradição observada foi que,quando percebida a partir de uma perspectiva pessoal, a experiência de ser MSO é dominada por empoderamento, livre escolha e autonomia (Gonzáles et al., 2008; Moncó et al., 2011). Entretanto, quando observada a partir de uma perspectiva interpessoal, a experiência é vista como deficiente e até desviante (Lahad & Shoshana, 2015; Quayle & Dorneles, 2011). Analisando-se o conflito entre o status de cidadãs e de mães, observou-se que essas mulheres se apresentavam como empoderadas e autônomas, o que as permitiu a opção pela monoparentalidade como via de acesso à constituição de uma família. Contudo, a visão negativa que outros indivíduos têm das MSO acaba por ser assimiladas por estas, as quais assumem uma diferenciação do modelo familiar dominante pela via da "falta", da "família pela metade" e da carência para filho e mãe (Rivas, Jociles, & Moncó, 2011).

Apesar da licitude de tal modelo familiar, parecem ser necessários outros tipos de legitimações que tragam visibilidade e força para esse arranjo familiar. Em relação aos modelos de legitimação, aparece como muito importante para as MSO definir-se como "tendo escolhido ser mães" diferenciando-se das famílias monoparentais, não planejadas. Segundo elas, a escolha pela maternidade é feita consciente e voluntariamente porque "querem e podem". É uma escolha, desde suas perspectivas, refletida, autônoma e independente, fruto do caminho que trilharam para que essa escolha fosse possível (Moncó et al., 2011). Também se observa que as formas de legitimação partem dos próprios grupos de MSO (Jadva et al., 2009; Moncó et al., 2011), que buscam inclusive definir termos que destaquem o positivo de seus projetos familiares e contribuam para sua normalização (Acuña, 2017).

Observa-se, assim, que a monoparentalidade programada surge em contexto geral de transformações nas configurações familiares – possibilitadas por mudanças culturais e pelo avanço de tecnologias reprodutivas – em que inovação e tradição coexistem, formulando por vezes demandas contraditórias.

VIAS DE ACESSO À MATERNIDADE NA MONOPARENTALIDADE PROGRAMADA

Foram publicados seis artigos resultantes do estudo etnográfico espanhol, os quais se dedicaram às diferentes formas de acesso dessas mulheres à maternidade (Jociles, 2013; Jociles et al., 2010; Jociles & Rivas, 2009; Jociles & Rivas, 2010; Jociles & Villaamil, 2012; Moncó et al., 2011). Neles, concluiu-se que as ciências sociais, os meios de comunicação e as próprias MSO têm difundido uma imagem dessas mães como mulheres empoderadas, com capacidade para gerir suas próprias vidas e consciência de que têm competência para isso. Sem negar totalmente isso, os autores consideraram importante reconhecer a diversidade interna ao grupo, que leva as mulheres a experimentarem posições que vão desde o empoderamento à vulnerabilidade. Para analisar as posições sociopolíticas, consideram não apenas informações como idade, formação e renda, mas também a via de acesso à maternidade escolhida, bem como a etapa pela qual estão passando. Foram diferenciados nesses artigos, e também nas publicações de Acuña (2017), Gonzáles et al. (2008) e Jadva et al. (2009), quatro meios de acesso à maternidade para as MSO: o "engano" como fecundação via relação sexual planejada para isso, porém não declarada; a fecundação sexual por "doador conhecido"; a RHA; a adoção.

Observou-se, nos estudos espanhóis citados (Jociles, 2013; Jociles et al., 2010; Jociles & Rivas, 2009; Jociles & Rivas, 2010; Jociles & Villaamil, 2012; Moncó et al., 2011), que as participantes possuíam uma grande variedade de concepções sobre parentesco, reprodução biológica, consanguinidade, herança genética, filiação, maternidade e vínculo mãe-filho, que fundamentavam suas justificativas pela opção por determinado meio de acesso à maternidade. As concepções sobre parentesco parecem organizar-se num continuum, que vai da perspectiva biologista – com valorização dos vínculos "de sangue" – à construcionista – que percebe a família como construção social. Suas decisões são perpassadas pela existência de uma hierarquia sociomoral entre as vias de acesso à maternidade, com valor crescente do "engano" para o "doador conhecido", para a RHA e para a adoção.

Em relação à adoção, os enunciados de valor em que se baseia tal hierarquia apontam a motivação de "solidariedade" como a explicação dada pelas mães adotantes, apesar de sua deslegitimação pelo conhecimento especializado sobre o tema (Jociles, 2013; Jociles et al., 2010). Essas mães buscam evitar que sua decisão seja vista como fruto de carência ou falta, além de considerarem a adoção uma opção mais socialmente aceita, em decorrência de associarem a gravidez à vida em casal (Jociles, 2013). Também foi encontrada como motivação para a adoção a falta de interesse ou a inviabilidade de se recorrer às demais vias de acesso à maternidade (Jadva et al., 2009; Jociles, 2013). Outro aspecto elencado, no caso espanhol sobre a adoção internacional, é que as mulheres podem passar por um momento inicial marcado pela vulnerabilidade, que cede conforme conseguem se tornar mães (Jociles & Rivas, 2009).

Quanto à fecundação sexual, constata-se que a aceitabilidade social de tal meio é afetada por valores morais sobre a sexualidade da mulher solteira – especialmente quando leva à gravidez. Espera-se que as mães possam "justificar-se" a seus filhos sobre suas decisões e a fecundação sexual é considerada "menos explicável". As mulheres entrevistadas também afirmaram procurar evitar o risco de que um "doador conhecido" buscasse assumir a paternidade, ameaçando a autonomia de seus projetos familiares. Dessa forma, apenas uma pequena parte das MSO utilizaram a fecundação sexual como meio de acesso à maternidade – seja por "doador conhecido", seja mantendo uma relação sexual orientada à gravidez sem informar ao parceiro (Jociles & Villaamil, 2012). Faz-se importante ponderar a dificuldade encontrada pelos pesquisadores, também devido ao estigma social, em alcançar mulheres que recorreram a tal meio, comprometendo a amostra por seu número pequeno em relação aos outros grupos.

Dados nacionais espanhóis mostram que as mulheres solteiras corresponderam a 3% das maternidades por RHA no país entre 2000 e 2004 (Gonzáles et al., 2008) e registros de um centro de RHA no mesmo país indicaram um aumento de 200% entre 2007 e 2012 no número de mulheres solteiras que buscaram esse serviço (Tous, 2016). Ainda que tais números possam contribuir para uma compreensão inicial da representatividade das MSO frente a outros grupos que recorrem à RHA e indiquem um possível crescimento na quantidade de mulheres que buscam essas técnicas, os dados mostram-se bastante limitados em sua representatividade. Seriam necessários levantamentos mais abrangentes ou mais estudos, com origens geográficas diversificadas, para subsidiar análises mais amplas e verificar tendências gerais ou locais.

As MSO alegam dois tipos de motivação para recorrer a tais técnicas: a importância que atribuem à existência de um vínculo genético e a possibilidade de viver os aspectos "físicos" da maternidade (Jociles & Rivas, 2010). Investigando especificamente a inseminação artificial de doador (IAD) – uma das possibilidades de RHA –, Graham (2017) observou que esse aspecto da monoparentalidade eletiva desperta especial ansiedade e ambivalência nas participantes de seu estudo. Layne (2013) afirma que algumas práticas de MSO e de casais lésbicos não podem ser abordadas pelo viés da normalização, e sim do misteriosamente familiar, do "estranho". Para lidar com o que foge ao padrão, as vezes o estranho é tornado familiar ou é acentuado. As MSO, assim como os casais lésbicos, parecem apresentar desconforto com a mistura entre aspectos íntimos e comerciais representados pela compra de esperma. Apesar dos esforços em adaptar o papel do doador frente ao modelo familiar assumido, algumas MSO sentem-se assombradas por sua presença (Layne, 2013). Contudo, em estudo comparado com casais heterosexuais que recorreram à RHA, observou-se nas MSO atitude significativamente mais positiva em relação ao uso de gametas de doadores identificáveis (Freeman, Zadeh, Smith, & Golombok, 2016). Adicionalmente, duas pesquisas apontaram a valorização do conhecimento das origens genéticas dos filhos pelas mães e por eles próprios (Freeman et al., 2016; Graham, 2017). Identificou-se como recurso de enfrentamento quea "ausência do pai" é objeto de um trabalho coletivo de "desproblematização", entre outros, pela referência ao "doador", separando-se as funções parentais e maritais (Jociles et al., 2014).

O estudo teórico brasileiro é aqui retomado para abordar a RHA em geral e o caso específico da inseminação post mortem (Quayle & Dornelles, 2015). Os autores defendem que o desejo por um filho, que motiva a busca por técnicas de RHA – tanto na pessoa que opta por constituir família monoparental, como nos casais –, pode corresponder a uma expressão positiva do Eros no narcisismo. No caso da utilização de sêmen post mortem, é fundamental que se busque compreender a que demanda tal gestação tenta responder, o que terá impacto inclusive no desenvolvimento da criança.

ATITUDE EM RELAÇÃO À INTIMIDADE E À CONJUGALIDADE

Artigos incluídos identificaram que, das MSO, a maioria queria originalmente atingir a maternidade com um(a) parceiro(a) ou encontrar um parceiro(a) no futuro,concluindo-se que ser MSO não é, em geral, o modo preferido de maternidade, mas uma solução que se precisou aceitar (Graham, 2017; Jociles, 2013). Algumas mulheres expressaram preocupação com a criação de filhos fora do modelo tradicional ou sem a figura de um pai (Jadva et al., 2009), e outras buscaram legitimar suas decisões por vias que negam atitudes antimasculinas e o questionamento desse modelo familiar (Jociles & Villaamil, 2012). A família monoparental por opção questiona, entretanto, princípios do modelo de parentesco ocidental, ao dissociar casamento/conjugalidade e filiação/parentalidade.

Ainda que muitas MSO afirmem estar abertas a constituir relacionamento conjugal e mesmo venham a realizá-lo após a maternidade, há aquelas que não desejam essa vivência (Quayle & Dornelles, 2015).Também não se pode simplesmente falar de uma inversão da ordem tradicional casamento-maternidade, uma vez que, mesmo vindo a casar-se, muitas não querem dividir os filhos com ninguém (Jadva et al., 2009; Jociles & Villaamil, 2012), outras demonstraram desconforto com a figura do doador (Layne, 2013) e também preocupação com a possibilidade de doadores conhecidos buscarem assumir a paternidade de seus filhos, prejudicando a autonomia de seus projetos (Jociles & Villaamil, 2012). Do ponto de vista sociocultural, autores identificaram marcas do individualismo presente na sociedade ocidental contemporânea na monoparentalidade eletiva (Jociles & Villaamil, 2012; Tous, 2016) e, em tal contexto, o vínculo mãe-filho aparece como estável e permanente em meio à impermanência dos demais relacionamentos (Tous, 2016).

Layne (2015a; 2015b) investiga as preocupações resultantes de ser MSO em contexto de "maternagem intensiva" e indica que a maioria dos medos e das preocupações é similar à de outros pais, independente do estado civil. Ao optar pela monoparentalidade, a mulher pôde tirar o risco de um casamento infeliz, divórcio e briga pela guarda de filhos, mas trouxe novos, e, portanto, largamente desconhecidos, gerando ansiedades para ela e seus filhos. Nesse estudo, a autora conclui que a intimidade heterossexual deixa de ser a mais importante para se tornar uma das formas de intimidade de que mulheres heterossexuais podem usufruir. Tais resultados aproximam-se dos encontrados por Graham (2017), o qual aponta que toda forma de ingresso na maternidade tem preocupações que lhe são próprias, observando o padrão de "maternagem intensiva" como uma maneira dessas mulheres se considerarem capazes de ser boas mães.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A revisão realizada mostrou que, apesar da quantidade crescente de artigos sobre o assunto, a produção acadêmica acercados aspectos psicossociais da opção pela monoparentalidade ainda se encontra concentrada em alguns poucos centros geográficos ocidentais economicamente desenvolvidos. Em geral, prevaleceu a abordagem qualitativa com pesquisas de campo, o que demonstra um interesse maior sobre a compreensão mais profunda desse tipo de vivência e construção vincular, com a valorização dos discursos assumidos pelos participantes e a ressonância no social mais amplo, descaracterizando as generalizações.

Diversas publicações retratam a emergência da monoparentalidade programada em um cenário de mudanças na organização familiar e no papel exercido pela mulher na sociedade, num movimento entre a tradição e a inovação, entre o empoderamento da mulher e a deficiência ou o desvio nas relações interpessoais.

É significativo notar a falta de referências nas pesquisas a homens vivendo processos de monoparentalidade eletiva. Se os meios para obter filhos "autonomamente" via RHA ou fecundação são mais limitados para homens – uma vez que eles necessitam de uma mulher que geste a criança –a adoção está, em princípio, tão disponível a eles quanto às mulheres. Dada esta limitação no campo pesquisado, levanta-se a hipótese de que, apesar da mudança nos modos de filiação, gerando novos arranjos familiares, ainda é forte a tradição que relaciona os cuidados com os filhos prioritariamente à mulher.

A opção pela constituição de família monoparental perpassa também a escolha pelo meio de acesso à maternidade, com os facilitadores e dificultadores correspondentes, identificados pela fecundação sexual, pela RHA e pela adoção. Com relação à fecundação sexual há pouca informação pois, os resultados encontrados demonstram certo estigma para as mulheres que utilizam esse método,talvez por provocarem um (a)sujeitamento nos homens/doadores e também pelo modo como eles podem se tornar ameaçadores frente à perspectiva futura de reivindicação do lugar parental.

Posteriores investigações com esse grupo podem representar importante contribuição para esse campo do conhecimento, possibilitando revelar um perfil de MSO até agora não abordado devido ao foco dos estudos atuais em ex-pacientes de clínicas de reprodução assistida e participantes de organizações sociais de apoio à monoparentalidade eletiva. Sendo a RHA e a adoção mais viáveis para as mulheres com melhores condições financeiras, ou até necessárias às mais velhas que desejam ter filhos, cabe indagar se, ao incluir mais sujeitos que recorreram à fecundação sexual, novas condições socioeconômicas não seriam também englobadas, podendo contemplar mulheres mais jovens ou com condições financeiras menos favoráveis. Atualmente, o perfil predominante encontrado é de mulheres em idade madura, brancas/caucasianas, com acesso à educação formal e boas condições financeiras.

Algumas mulheres parecem recorrer à monoparentalidade em decorrência de a maternidade, hoje, estar no mesmo nível de outras escolhas também significativas em suas vidas, como suas carreiras. Somada a esse fato, está a dificuldade de se encontrar um parceiro para um projeto familiar e a proximidade do limite biológico. Todavia, alguns estudos destacam que há casos que não podem ser descritos pela lógica da decisão por filhos "independentemente de um companheiro", mas, sim, pelo reconhecimento de uma opção pela "maternidade independente" e "desacompanhada". É uníssona a ênfase que ainda é dada à vinculação biológica como modo de promover maior visibilidade e legitimidade a esse arranjo familiar.

Dessa forma, observa-se que a monoparentalidade programada não se constitui como bloco homogêneo, e os elementos psicossociais relacionados a esta opção são diversos e complexamente articulados. Vale ressaltar a contribuição dos avanços das técnicas de RHA, que permitem cada vez mais a desvinculação entre sexualidade e procriação.

 

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Endereço para correspondência
Rebecca Holanda Arrais
E-mail: rebecca.arrais@gmail.com

Submetido: 17/05/2017
1ª reformulação: 23/02/2018
Aprovado: 04/03/2018

 

 

1 Rebecca Holanda Arrais é mestre pelo Programa de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
2 Isabel Cristina Gomes é professora titular do Instituto de Psicologia da USP e Coordenadora do Laboratório de Casal e Família: Clínica e Estudos Psicossociais.
3 Elisa Maria Parahyba Campos é professora associada da Universidade de São Paulo e coordenadora do Centro Humanístico de Recuperação em Oncologia e Saúde – CHRONOS.

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