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Revista da SPAGESP
Print version ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.21 no.1 Ribeirão Preto Jan./June 2020
ARTIGOS
Expressões de resiliência oculta nas letras do grupo de rap Facção Central
Expressions of hidden resilience in the lyrics of rap music group call "facção central"
Expresiones de resistencia oculta en las letras del grupo de rap Facção Central
Marcelo Augusto Gianfelice1, I; Alex Sandro Gomes Pessoa2, II; Ariane Rico Gomes3, II
IUniversidade do Oeste Paulista, Presidente Prudente-SP, Brasil
IIUniversidade Federal de São Carlos, São Carlos-SP, Brasil
RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar o conceito de resiliência oculta expresso nas letras de músicas do gênero rap. O estudo se configura como de natureza qualitativa, exploratório-descritivo, a partir da pesquisa documental. A pesquisa utilizou a musicografia do grupo de rap "Facção Central". No total, foram analisadas 125 músicas, sendo que 12 delas faziam menção direta a aspectos relacionados à resiliência oculta. A partir do material analisado, foram elaboradas 3 categorias: 1) Recursos materiais obtidos no crime; 2) Identidade e sensação de poder; 3) Relacionamentos afetivo-sexual. Os resultados apontam que, mesmo com os possíveis danos, pessoais e sociais, as atividades ilícitas, em especial o tráfico de drogas, podem trazer sentidos pessoais positivos às pessoas, sobretudo adolescentes e jovens de camadas sociais desfavorecidas. Os achados deste estudo reiteram as hipóteses sobre o conceito de resiliência oculta e convida pesquisadores a investirem neste campo temático.
Palavras-chave: Resiliência oculta; Vulnerabilidade social; Rap; Atividades ilícitas.
ABSTRACT
This article aims to analyze the concept of hidden resilience expressed in the lyrics of rap songs. The study is configured as qualitative, exploratory-descriptive, based on documentary research. The research used the musicography of the rap group "Facção Central". In total, 125 songs were analyzed, 12 of which made direct mention of aspects related to hidden resilience. From the analyzed material, 3 categories were elaborated: 1) Material resources obtained in the crime; 2) Identity and feeling of power; 3) Affective-sexual relationships. The results show that even with the possible personal and social damage, illicit activities especially drug trafficking can bring positive personal meanings to people mainly adolescents and young people from disadvantaged social strata. The findings of this study reiterate the hypotheses about the concept of hidden resilience and invite researchers to invest in this thematic field.
Keywords: Hidden resilience; Social vulnerability; Rap music; Illicit activities.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo analizar el concepto de resistencia oculta expresado en las letras de las canciones de rap. El estudio está configurado como cualitativo, exploratorio-descriptivo, basado en la investigación documental. La investigación utilizó la musicografía del grupo de rap "Facção Central". En total, se analizaron 125 canciones, 12 de las cuales mencionaron directamente aspectos relacionados con la resistencia oculta. A partir del material analizado, se elaboraron 3 categorías: 1) Recursos materiales obtenidos en el delito; 2) Identidad y sentimiento de poder; 3) Relaciones afectivo-sexuales. Los resultados muestran que, incluso con el posible daño, las actividades ilícitas personales y sociales, especialmente el tráfico de drogas, pueden traer significados personales positivos a las personas, especialmente a los adolescentes y jóvenes de estratos sociales desfavorecidos. Los resultados de este estudio reiteran las hipótesis sobre el concepto de resiliencia oculta e invitan a los investigadores a invertir en este campo temático.
Palabras clave: Resistencia oculta; Vulnerabilidad social; Rap; Actividades ilícitas.
Com o avanço das pesquisas na psicologia, resiliência passou a ser compreendida como a capacidade de um sujeito de passar por eventos estressores significativos e, ainda assim, conseguir acessar recursos de saúde que promovam fortalecimento subjetivo, não significando que o mesmo saia ileso (Benetti & Crepaldi, 2012). Todavia, já é consensual que para abordar a temática da resiliência de maneira assertiva, é necessário falar sobre outros dois conceitos adjacentes: indicadores de risco e proteção.
Entende-se risco como qualquer variável que prejudique o desenvolvimento saudável de um indivíduo (Morais & Koller, 2009). Existem diversos fatores que podem ser considerados como indicadores de riscos ao desenvolvimento humano, tais como pobreza, falta de políticas públicas, atuação precária de instituições necessárias ao desenvolvimento humano, como escolas, hospitais ou programas sociais. Porém, o risco deve ser concebido contextualmente (Ungar, Liebenberg, Dudding, Armstrong, & Vijver, 2013), pois o impacto do fator de risco está atrelado as experiências subjetivas. Em outras palavras, existem fatores que podem ser considerados como riscos para um indivíduo e interpretados de forma diferente por outra pessoa (Pesce, Assis, Santos, & Oliveira, 2004; Yunes, 2003).
Os indicadores de proteção, por sua vez, amenizam ou anulam os danos causados pelos riscos e propiciam um desenvolvimento saudável ao indivíduo (Pesce et al., 2004). Segundo Pesce et al. (2004), os indicadores protetivos "têm a característica essencial de provocar uma modificação catalítica da resposta do indivíduo aos processos de risco". Partindo destes conceitos, reconhece-se que contextos com maiores indicadores de proteção tendem a apresentar maiores probabilidades de desenvolvimento saudável. Porém, é necessário questionar se apenas indicadores protetivos formais (como a escola e a família) e reconhecidos pela literatura, podem fornecer esse efeito catalítico na resposta do indivíduo mediante ao risco (Amparo Galvão, Alves, Brasil, & Koller, 2008; Komatsu & Bazon, 2018; Poletto & Koller, 2008).
Constata-se que a falta de recursos protetivos formais leva o indivíduo a buscar outras formas para superar suas dificuldades, mesmo que estas incluam envolvimento em atividades ilícitas (Pessoa, 2015; Pessoa, Coimbra, Noltemeyer, & Bottrell, 2017). Assim, algumas situações, por mais que possam trazer danos ao indivíduo, eventualmente podem estar carregadas de sentidos positivos, e, portanto, podem ser significadas como indicadores protetivos não-convencionais (Pessoa, 2015).
No trabalho de Silva e Graner-Araújo (2011), por exemplo, foram entrevistados adolescentes com algum tipo de envolvimento com o tráfico. Foi constatada a escassez de recursos protetivos convencionais na realidade dos participantes, bem como dos recursos necessários para assegurar positividade pessoal e saúde mental. Segundo os autores, no tráfico de drogas os jovens relataram ter encontrado um senso de pertencimento grupal, sensação de segurança, acesso a recursos financeiros e o desenvolvimento de um senso de identidade positivo. Concluíram, então, que, paradoxalmente, o tráfico, apesar de colocar os indivíduos em constante risco de morte, auxiliam na construção de significados positivos, pois, na falta de fatores de proteção formais, o grupo recorreu ao tráfico como alternativa para assegurar o desenvolvimento.
Na mesma direção, ao entrevistar adolescentes com algum tipo de envolvimento com o tráfico, Pessoa (2015) constatou a precariedade do contexto de vida em que os adolescentes viviam, como carência de recursos socioeconômicos e falta de políticas públicas de qualidade. Averiguou, ainda, a presença de indicadores positivos de desenvolvimento ligados à venda de drogas, tais como: possibilidade de aquisição de bens materiais, respeito dos moradores da comunidade onde vivem e o estabelecimento de relações afetivo-sexuais, supostamente asseguradas pelo status adquirido no tráfico.
A partir dos estudos supracitados, é possível afirmar que o envolvimento de adolescentes em atividades ilícitas, apesar de os colocarem em situações cotidianas de risco, podem trazer sentidos positivos na vida do sujeito, o que pode, de alguma forma, estar associado a processos de resiliência. No contexto internacional, tal problemática também já foi estudada (Ungar, 2004), ainda que de maneira tímida e com poucas experiências empíricas.
O termo hidden resilience, desenvolvido pelo pesquisador canadense Michael Ungar (2004) e traduzido para português por Libório e Ungar (2010) como resiliência oculta, traz considerações importantes sobre esse fenômeno psicológico. Em seu trabalho, Ungar identificou comportamentos desviantes como forma de alcance de sentidos positivos. O pesquisador, por intermédio de práticas mais ligadas ao contexto clínico, percebeu que alguns adolescentes extraem das atividades consideradas como "de risco" formas de empoderamento que não foram encontrados em outros espaços. Portanto, é necessário enfatizar que esses "comportamentos problemáticos" seriam um meio de substituir a falta de recursos que levariam a formas convencionais de resiliência (Libório & Ungar, 2010).
Diante do questionamento de como crianças e adolescentes se desenvolvem em contextos com precariedade de recursos protetivos, e que estratégias não convencionais são adotadas para a superação das adversidades vividas no cotidiano, Ungar ampliou o conceito de resiliência e apresentou o termo resiliência oculta (Ungar, 2004). Esse conceito se refere a estratégias não convencionais que se tornam promotores de resiliência, manifestados, essencialmente, a partir da ausência de indicadores protetivos formais na vida do indivíduo (Libório & Ungar, 2010; Pessoa, Coimbra, Koller, & Ungar, 2018).
Apesar de pouco explorado nas pesquisas da área, parte-se do pressuposto que o conceito de resiliência oculta pode ser identificado em alguns movimentos artísticos e culturais. Em algumas letras de música, por exemplo, especialmente do gênero rap, são apresentados comportamentos e condutas socialmente não aceitos. Porém, as realidades expressas nas letras das músicas, sobretudo em relação às injustiças sociais, possuem um contexto social amplo, complexo e possuem dimensões sociais e psicológicas que merecem investimentos da comunidade acadêmica.
O rap é um movimento artístico que está situado dentro do movimento hip-hop e tem como característica principal a contestação de realidades opressivas. Desse modo, o rap, para além de uma expressão artística, pode ser visto como uma forma de engajamento político de toda uma comunidade, na medida em que busca retratar contextos onde prevalece a privação de direitos e expressões múltiplas da violência (Hinkel & Prim, 2009). Martins (2013) argumenta que o movimento hip-hop se caracteriza por uma prática social promovida por jovens negros e pobres, visando à construção de um senso de identidade positivo e menos estigmatizado.
Desse modo, o rap tornou-se uma forma de engajamento político que possibilita contestar e reelaborar a realidade vivida pelas populações de periferia (Hinkel & Prim 2009). Em consonância com essas prerrogativas, Fochi (2007) destacou que o movimento hip-hop, além de um movimento cultural, aproxima-se de um movimento social, por ter como característica seu caráter contestador. Para o autor, o movimento hip-hop tem a capacidade de despertar o senso crítico e conscientizar as pessoas através da arte sobre determinadas realidades opressivas.
O rap escancara as injustiças sociais instauradas nas periferias e denuncia as opressões diárias vivenciadas, sobretudo, pela população jovem e negra (Andrade, 1999). Além disso, levanta-se como hipótese que os conteúdos das letras de rap podem apontar para e expressão do fortalecimento subjetivo por intermédio do engajamento em atividades consideradas como ilícitas, associado, portanto, ao conceito de resiliência oculta (Ungar, 2004). A partir destas considerações, este artigo tem como objetivo analisar o conceito de resiliência oculta expresso nas letras de músicas do gênero rap, de forma a identificar expressões de fortalecimento subjetivo por intermédio do engajamento em atividades consideradas ilícitas.
MÉTODO
DELINEAMENTO E CORPUS DA ANÁLISE
O estudo se configura como de natureza qualitativa, exploratória e descritiva. Recorreu-se a um site de domínio público (https://www.letras.mus.br/), no período de março a julho de 2017, sendo a busca realizada com o uso do descritor "Facção Central", que se refere à um grupo de rap popular no contexto brasileiro. Toda a musicografia foi selecionada e arquivada para posterior análise. O grupo Facção Central foi escolhido pelos pesquisadores de forma arbitrária e intencional, por suas letras conterem alto teor político e pela notória popularidade que o grupo possui com adolescentes e jovens que residem em bairros periféricos.
PROCEDIMENTOS E ANÁLISE DE DADOS
Na primeira etapa de análise do material coletado, os pesquisadores, de forma independente, buscaram referências de expressão de resiliência oculta nas letras das músicas selecionadas. As exclusões foram devidamente justificadas e as discrepâncias resolvidas por consenso, tendo como base as referências teóricas sobre resiliência oculta levantadas na etapa de elaboração do projeto de pesquisa. Os critérios de exclusão adotados foram: 1) não fazer menção alguma a expressões de resiliência oculta; 2) apresentar conteúdos exclusivamente negativos e prejudiciais ao desenvolvimento das pessoas e grupos retratados nas letras, sem reconhecer vantagens, materiais ou subjetivas, obtidas em atividades ilícitas.
A análise e interpretação dos dados foram feitas através do método de análise de conteúdo, proposto por Bardin (Santos, 2012). Para a autora, a análise de dados consiste em um conjunto de técnicas capaz de analisar a comunicação e o conteúdo das mensagens por um procedimento sistemático. Assim, as letras das músicas foram tabuladas, também de forma independente pelos pesquisadores, a partir de duas etapas que se entrecruzaram: 1) elaboração de códigos ou expressões que identificassem conteúdos nas letras das músicas associadas à resiliência oculta; 2) elaboração de temáticas que aglutinassem as letras a partir de conteúdos específicos. Mais uma vez, procedeu-se com discussões teóricas entre os pesquisadores de modo que as discrepâncias fossem resolvidas por consenso.
RESULTADO E DISCUSSÃO
No total, foram analisadas 125 músicas, sendo que 12 delas faziam menção direta a aspectos relacionados à resiliência oculta. A partir do material analisado, foram elaboradas 3 categorias: 1) Recursos materiais obtidos no crime; 2) Sensação de obtenção de poder; 3) Relacionamentos afetivo-sexuais. É importante frisar que foram feitos recortes que interessassem ao tema central desta pesquisa, e que, portanto, este trabalho não afirma que o grupo Facção Central produz, deliberadamente, músicas que versam sobre resiliência oculta, tampouco que fazem apologia à criminalidade. Para otimizar a redação do manuscrito, foram elaboradas Tabelas que aglutinam trechos que exemplificam os conteúdos que dão base à categoria.
RECURSOS MATERIAIS OBTIDOS ATRAVÉS DO CRIME
Nesta categoria, foram considerados conteúdos que faziam referência à possibilidade de consumo de bens materiais obtidos através da vinculação a atividades ilícitas, como por exemplo, tráfico, furto e porte de arma. Entre os bens mais citados na produção musical, encontram-se equipamentos para o uso cotidiano (relógios, equipamentos eletrônicos, roupas e calçados), mas também a possibilidade de adquirir bens de alto custo, como casas, carros e até "piscina climatizada".
O porte de arma apareceu como algo relevante para auxiliar na conquista de alguns bens materiais. Uma das músicas apresenta, inclusive, uma referência aos inventores de armas de fogo (Hiram Maxim, Georg Luger e Samuel Colt). Ao que parece, algumas das letras revelam a sensação de poder adquiridos a partir de tais bens materiais, incluindo aquisição de revólveres e fuzis.
As atividades ilícitas constatadas nas letras analisadas também fazem referência à aquisição de substâncias psicoativas, tanto para o consumo próprio ("Gramas de cocaína, tênis importado, dinheiro, relógio"), quanto para a venda. Sumariamente, as atividades ilícitas, em especial o tráfico, aparecem diretamente relacionado à ideia de conquistas, marcadamente entendida como a capacidade de consumir e de possuir determinados de bens materiais ("Meus exemplos de vitória estão todos na esquina, de Tempra, de Golf, vendendo cocaína").
Caniato e Capelasso (2016) afirmam que a mercadoria e o poder de consumo são vistos como um valor supremo, instaurando na sociedade a apologia ao consumismo desenfreado. Esta imposição repercute em toda a sociedade, sem diferenciar graus socioeconômicos ou pertencimento de classes. Assim, na lógica do capital, a população é altamente estimulada a desenvolver hábitos de consumo (Barros & Nascimento, 2018; Bauman, 2001; Costa & Godoy, 2008). Contudo, é necessário analisar o impacto de tal ideologia em classes que não podem acessar esses recursos pelo acúmulo de capital. Neste contexto, o tráfico e demais atividades ilícitas aparecem como meio alternativo para a obtenção de bens materiais. Pessoa et al. (2017) contataram que entre os sentidos pessoais positivos advindos da venda de drogas por adolescentes, um deles está diretamente relacionado com a ideia de ascensão social e a ideais de consumo impostos socialmente às culturas juvenis. Na mesma direção, Feffermann (2006), ao entrevistar adolescentes envolvidos no tráfico, constatou que estes reconheciam o alto nível de periculosidade das atividades ilícitas que se envolviam. Contudo, sem outras para a inserção num mundo de bens e consumo, o tráfico aparecia como alternativa. O consumo adquiri um valor que se sobrepõe à própria vida.
Similarmente, Silva e Graner-Araújo (2011) encontraram no relato de jovens envolvidos no tráfico de drogas sentidos pessoais positivos. O dinheiro ganho pelos jovens, de acordo com os autores, possibilitava ajudar nas despesas da casa, ir a festas e, ainda, adquirir roupas, acessórios e afins. Motta-Costa (2012) explica que a baixa escolaridade e o alto índice de desemprego fazem do tráfico uma alternativa de sobrevivência e lucro imediato, dando poder aquisitivo que jamais seriam possíveis por meios considerados formais.
O estímulo ao consumo se mostra ainda mais intenso em adolescentes, sobretudo no que diz respeito ao uso de determinadas marcas e grifes. Para Gade (1998), os adolescentes de classes desfavorecidas buscam ostentar produtos de determinadas marcas. Os símbolos que aparecem nestes produtos, revelando determinadas marcas, dão a sensação de pertencimento, de status social. Assim, mesmo nas comunidades socioeconomicamente desfavorecidas aparece a preocupação em pertencer à outra classe social. Santos e Fernandes (2011) destacam que, especialmente na adolescência, as roupas e acessórios são importantes componentes de identificação. Destarte, se tornam uma das condições para pertencer a um grupo ou uma determinada classe social. Assim, as músicas revelam que o engajamento de adolescentes e jovens em atividade ilícitas possibilitam o consumo de adolescentes e jovens, o que pode produzir a sensação de pertencimento e o acionamento de processos de resiliência oculta.
SENSAÇÃO DE OBTENÇÃO DE PODER
Esta categoria aborda conteúdos que fazem alusão direta à sensação de poder obtida através do envolvimento em atividades ilícitas. Foi constatado que os termos "Rei" e "Deus" aparecem repetidas vezes nas letras das músicas analisadas, sempre associados com uma condição de superioridade e de posse do poder que as atividades ilícitas promovem. Ficou evidenciado, ainda, a transformação nas condições materiais através das atividades ilícitas, de tal forma que as dificuldades são superadas através do crime, saindo de uma posição de pobreza para uma posição de poder.
O tráfico de drogas, uma atividade repetidamente descrita nas letras das músicas, ultrapassa o nível de aquisição de bens, como debatido na categoria anterior, e permite que adolescentes e jovens adquiram poder e influência em diversas esferas sociais ("Tô na lista vip de cassinos clandestinos, quer ser presidente? Traz a campanha que eu financio, sou poderoso chefão, mas invisível como o ar"). Em um trecho de uma das músicas analisadas, aparece a figura do traficante como exemplo inspirador para as próximas gerações ("sou o herói, o espelho, o sonho da criança"). Em outras palavras, pode-se afirmar que as atividades ilícitas possibilitam não apenas a aquisição de bens materiais, mas também a obtenção de poder que pode ser exercido em várias instâncias sociais.
Ter status, poder e se sentir respeitado apareceu como um fator relevante para a realidade dos adolescentes e jovens retratados nas músicas. Cada pessoa tem suas condições materiais peculiares em busca de tais objetivos. Cruz Neto, Moreira e Sucena (2001) pontuam que jovens expostos a indicadores de vulnerabilidade social, por vezes, identificam no tráfico de drogas e na criminalidade a única alternativa de expressarem poder e controle, justamente por inexistirem oportunidades convencionais para o desenvolvimento desta população.
Zilli (2015) constatou, através de depoimentos de jovens envolvidos no tráfico de drogas, que o poder para resolver conflitos e a possibilidade de ser temido são fatores importantes para a entrada do jovem no mundo do crime. É importante frisar que a necessidade de ter poder para resolver conflitos, por si só, nasce da ausência do poder público em propiciar instrumentos de segurança e justiça. O autor supracitado encontrou no depoimento dos jovens satisfação em ser temido por pessoas que, outrora, eram ameaçadoras (Picanço & Lopes, 2016).
Outro ponto importante a se destacar é a sensação de pertencimento destes jovens ao entrar no tráfico de drogas. Cruz Neto, Moreira e Sucena (2001) atentam para o fato de que, no tráfico de drogas, existe uma complexa estrutura de funcionamento, cujo jovem, através de suas habilidades e desempenho, pode ser promovido a níveis mais elevados, obtendo maior poder e prestígio. O sonho de muitos adolescentes e jovens passa a ser a concretização do "dono da bocada" (cargo mais elevado na hierarquia do tráfico). Com a aquisição de dinheiro, respeito e atenção das mulheres (como será exposta na próxima categoria), os jovens conseguem obter sentimentos positivos em relação à sua autoestima, bem como do exercício do poder e controle. Tais aspectos são fundamentais para o bem-estar e saúde mental, ainda que sejam alcançados por intermédio da resiliência oculta.
RELACIONAMENTOS AFETIVO-SEXUAL
Esta categoria aborda conteúdos que evidenciam como o crime pode proporcionar possibilidades de estabelecer relacionamentos afetivo-sexuais. Alguns trechos analisados referem-se à facilidade de se ter relações sexuais quando se é "o detentor da droga", podendo usá-la como moeda de troca ("As vadias fazem fila na minha porta, um de 5, um de 10, por uma foda", "As bailarinas do programa sempre afim de um programa, perna aberta na cama por 5 gramas").
Os dados também revelam que o status, os bens materiais e o prestígio (advindos de atividades ilícitas), aparentemente se tornam atrativos para o sexo oposto ("De Mustang Madison, 32 tiros, todas vacas dão o rabo, pedem senha pra ser seu amigo", "o traficante tem casa uma S-10, relógio de ouro e vagabunda aos seus pés). Um aspecto importante a ser destacado também são os termos utilizados para fazer referência às mulheres, sempre com teor pejorativo e desqualificador. As expressões "vaca", "vadia" e "vagabunda" retratam como as mulheres passam a ser coisificadas e tratadas como objeto de troca e consumo.
Athayde, Bill e Soares (2005) pontuam que o envolvimento no tráfico e a posse de armas, trazem, além das recompensas econômicas, valores simbólicos na cultura patriarcal: virilidade e masculinidade. Os autores ressaltam que a virilidade de se envolver no perigo, a força proporcionada pelo porte de armas de fogo e o medo provocado nas pessoas, podem trazer admiração do sexo oposto, possibilitando relações afetivo-sexuais para indivíduos que, outrora, se sentiam excluídos da sociedade pelo seu baixo poder de compra (Athayde, Bill, & Soares, 2005). Isto acarreta em um fortalecimento de sua autoestima e, portanto, vincula-se aos processos de resiliência oculta.
Cruz Neto, Moreira e Sucena (2001) constataram no relato de jovens envolvidos no tráfico que a ideia de "bandido" se torna símbolo de poder, dominação e riqueza. Os jovens ainda relatam que mulheres jovens costumam se atrair por estes atributos, e que, ao namorar o "bandido", estas mulheres também recebem status em seu meio social. É perceptível que, além dos valores proporcionados pelo envolvimento em atividades ilícitas (virilidade, produtividade, poder), a ideia de sedução está fortemente relacionada à condição socioeconômica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar das categorias terem sido analisadas separadamente no manuscrito, é notório que todas estão fortemente relacionadas entre si e explicam, ainda que parcialmente, os processos de resiliência oculta identificados nas letras das músicas analisadas. A melhoria da condição financeira auxilia na formação de identidade e sentimento de poder, assim como possibilita os indivíduos serem notados pelo sexo oposto. Tais fatores possibilitam um aumento de sua autoestima, pois na medida em que o contexto social estigmatiza as pessoas e gera exclusão social, as atividades ilícitas aparecem como alternativa para algum nível de participação social.
É importante ressaltar que os sentidos positivos alcançados no envolvimento em atividades ilícitas, ocorrem, em grande parte, pela falta de indicadores protetivos formais. Contudo, não se deve perder de vista que as atividades ilícitas que produzem sentidos pessoais positivos a adolescentes e jovens (na ausência de fatores de proteção convencionais), também podem trazer graves consequências, como a perda da própria vida. Tal condição, embora explicitada nas letras das músicas, não parecem ser impeditivas para o engajamento no crime.
Faz-se necessário investir no contexto destes jovens, criando indicadores de proteção que darão mais opções para a busca de sentidos positivos que substituam a aqueles obtidos no envolvimento em atividades ilícitas. Por fim, espera-se que este estudo contribua com as discussões acerca da resiliência oculta, que ainda é um campo incipiente de investigações empíricas.
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Endereço para correspondência
Marcelo Augusto Gianfelice
E-mail: marcelogianfelice123@hotmail.com
Recebido: 21/09/2019
Reformulado: 10/01/2020
Aceito: 03/02/2020
1 Marcelo Augusto Gianfelice é mestrando em Educação na Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE).
2 Alex Sandro Gomes Pessoa é docente da Universidade Federal de São Carlos.
3 Ariane Rico Gomes é mestranda em Psicologia na Universidade Federal de São Carlos.