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Psicologia Hospitalar

On-line version ISSN 2175-3547

Psicol. hosp. (São Paulo) vol.3 no.2 São Paulo Aug. 2005

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Corpo e trabalho: instrumento ou destino?

 

Body and work instrument or destiny?

 

 

Roberto Heloani 1

Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - Brasil
Fundação Getúlio Vargas - FGV - Brasil

 

 


RESUMO

As alterações ocorridas no mundo do trabalho têm propiciado a vivência de transtornos mentais relacionados ao trabalho. O texto faz uma revisão histórica em busca de evidências dos transtornos propiciados pelo trabalho. Ressalta que as condições desfavoráveis podem desgastar o trabalhador, tendo este que ser eliminado do trabalho de produção. Essa exclusão em uma sociedade capitalista também é fator de angústia. Apresenta as abordagens que estudam a repercussão do trabalho na saúde mental. Conclui que enquanto política identitária, há que se buscar o desenvolvimento do processo de autonomia e emancipação humana.

 

Palavras-chave: Corpo, Trabalho, Saúde mental.


ABSTRACT

The alterations that have taken place in the work place have brought on work-related mental disorders. The text makes a historic review in search of evidence of work-related disorders. What stands out is that unfavorable conditions can wear down a worker, such that he or she ends up becoming eliminated from the process of production. This exclusion, typical of a capitalist society, is also a factor of anguish. The study presents approaches that study the repercussion of work on mental health. The study concluded that an actual identity policy, involving a process of human autonomy and emancipation, needs to be developed.

 

Keywords: Work, Body, Mental health.


 

 

Na realidade contemporânea, mudanças ocorridas no mundo do trabalho têm acarretado metamorfoses significativas em situações de trabalho, que acabam por afetar a saúde dos trabalhadores.

A nova divisão de trabalho, gerada pelo pós-fordismo, revelou-se extremamente competitiva, intensificando a capacidade adaptativa da fisiologia do trabalhador. Os avanços da informatização e da automação, da terceirização e mesmo da "quarteirização" (terceirização da terceirização?) carregam em seu bojo uma extrema aceleração na forma laboral e novas demandas em todos os níveis das estruturas organizacionais.

Com efeito, embora tardiamente, a situação chegou a tal ponto que em maio de 1999 o Ministério da Previdência e Assistência Social publicou o Decreto de número 3.048, que discrimina os "Transtornos Mentais Relacionados ao Trabalho".

Fazendo uma retrospectiva histórica a partir de informações obtidas no texto "Histórico das relações entre trabalho e saúde" (Nogueira,2000), vemos que já no século XVI, em 1556, Gerog Bauer, mais conhecido por seu nome latino, Georgius Agricola, levantou a suspeita de que o trabalho poderia ser causador de doenças. Em sua obra "De Re Metallica", estudou diversos problemas relacionados à extração de metais e à fundição de prata e ouro. No último capítulo de seu livro, Agricola referiu-se à "asma dos mineiros", provocada por poeiras que ele chamou de "corrosivas" e que, por sua descrição, vê-se que se tratam de casos de silicose.

O famoso Paracelso, Aureolus von Hohenheim, publicou, em 1567, uma monografia que também versava sobre doenças dos mineiros, como as provocadas por intoxicação por mercúrio.

Mas, apesar de sua importância, esses trabalhos foram praticamente ignorados, não chegando a contribuir para a proteção da saúde dos mineiros.

Mais de um século mais tarde, em 1700, o médico Bernardino Ramazzini, cognominado "Pai da Medicina do Trabalho", em sua obra notável "De Morbis Artificum Diatriba", descreveu com precisão várias doenças concernentes a 50 profissões distintas, acrescentando a uma série de perguntas a interrogação básica: "Qual é a sua ocupação?"(2000,p.3).

A Revolução Industrial, termo criado pelo economista francês Blanqui e popularizado pelo economista inglês Toynbee, que ocorreu entre 1780 e 1840, nas ilhas britânicas, transformou o processo artesanal e doméstico de fiação e tecelagem de tecidos. Com o aparecimento das primeiras máquinas de fiar e tecer, o artesão, que não podia adquiri-las por seu custo elevado, perdeu o domínio dos meios de produção (Toynbee,1968).

Os trabalhadores passaram então a trabalhar para os capitalistas que adquiriram essas máquinas; surgiram as primeiras fábricas de tecidos, impulsionadas por energia hidráulica, e com elas a subjugação dos operários, que eram recrutados em famílias numerosas e carentes, inclusive com a exploração de mulheres e crianças; não havia limites de horas de trabalho, sendo normal sua continuação à noite, sempre em ambientes fechados e mal iluminados. Verificavam-se numerosos acidentes de trabalho e inúmeras doenças causadas por ambientes infectos e pelo trabalho excessivo e barulhento, que impedia até, muitas vezes, que se ouvissem ordens e orientações dos supervisores.

Devido a essas condições subumanas de trabalho, a opinião pública pressionou o parlamento britânico e sir Robert Peel, possuidor de fábricas, influenciou o parlamento a baixar a primeira lei de proteção à saúde dos trabalhadores, a "Lei da Saúde e Moral dos Aprendizes"; esta lei estabelecia um máximo de 12 horas de trabalho por dia, proibição de trabalho noturno, ventilação nos locais de trabalho. Mas, por um "lapso" absurdo, não estabelecia um limite de idade para o trabalho, permitindo que crianças extremamente pequenas trabalhassem nas fábricas. E, como não havia fiscalização, a nova legislação de nada adiantou (Nogueira,2000, p.4).

Essa situação nos remete a um pensamento de Hannah Arendt (2001), que afirmava que a "banalização do mal" vem da supressão da faculdade de pensar criticamente, o que sempre acompanha atos de barbárie. O mal pode assim ser produzido sem o uso da inteligência e sem qualquer planejamento, colocando-se faculdades e competências a serviço da eficácia.

Em 1831, o parlamento britânico estabeleceu uma comissão parlamentar de inquérito, ainda sob pressão da opinião pública, que estava preocupada com as péssimas condições dos trabalhadores, adultos e crianças, muitos doentes e aleijados; Sadler,que escreveu um dramático relatório sobre o "abandono dos fracos à capacidade dos fortes", chocou o parlamento que então baixou uma nova legislação de proteção aos trabalhadores, o "Factory Act" (1833); estabeleceu-se assim uma idade mínima para o início do trabalho(nove anos); proibiu-se o trabalho noturno para menores de dezoito anos; os empregadores eram obrigados a manter escolas que deveriam ser freqüentadas por menores de treze anos, durante duas horas por dia; as crianças poderiam trabalhar no máximo doze horas por dia e sessenta e nove por semana. Além do ponto mais importante: criou-se o Inspetorado de Fábricas, para garantir o cumprimento das leis.

Proprietário de uma fábrica inglesa, Robert Durnham, em 1830, antes da promulgação das novas leis, já se sentia preocupado com as más condições de trabalho de suas crianças operárias; procurou então um médico, o doutor Robert Baker, pedindo-lhe orientação para proteger-lhes a saúde. Baker já se interessava pelo assunto, fazia visitas periódicas a fábricas e conhecia o livro de Ramazzini, o que fez com que mais tarde fosse nomeado pelo governo britânico inspetor de fábricas; seu conselho foi que Durnham colocasse um médico no interior da fábrica, o que este aceitou, convidando-o para o cargo. Surgiu assim o serviço médico de empresa.

Em 1842, na Escócia, um diretor-gerente de uma indústria têxtil, James Smith, pediu ao médico de fábrica que contratou que examinasse seus trabalhadores periodicamente, orientasse-os quanto a problemas de saúde, e, se possível, fizesse a prevenção de doenças, tanto ocupacionais como não ocupacionais; os médicos de fábrica passaram a ter então funções específicas junto aos trabalhadores.

Em toda a Grã-Bretanha, a partir dessa data, expandiram-se os serviços médicos de empresa, que se estenderam por toda a Europa, partindo sempre de sua instalação voluntária pelos donos das fábricas (Nogueira, 2000,p.15).

Em 1913, na Inglaterra, Munsterberg publicou uma obra voltada para o estudo de aspectos psicológicos relacionados ao trabalho, "Psychology and industrial efficiency". Como seu autor bem colocou, tratava-se de um estudo com alguns objetivos definidos: "Como encontrar o melhor trabalhador possível, como produzir o melhor trabalho possível, como chegar aos melhores resultados possíveis." (Munsterberg citado por Seligmann-Silva,1994, p.46).

Durante a década de 1920, Elton Mayo efetuou pesquisas na indústria têxtil e na lendária Western Electric Company, em Hawthorne, Chicago. Suas investigações conduziram à formação da Escola de Relações Humanas e a práticas destinadas a sanar possíveis adaptações dos trabalhadores à organização empresarial do trabalho. Publicada pela primeira vez em 1933, sua obra "The human problems of an industrial civilization" (1960) tentou fazer o contraponto aos princípios e fundamentos tayloristas, chamando a atenção para a importância de técnicas e estratégias que objetivassem a melhoria da motivação dos assalariados.

Mayo e seus discípulos deslocaram assim o foco de suas reflexões da administração formal para a informal, com preocupações até então relativamente novas: grupo primário, co-identidade de seus membros, comunicação, persuasão e mudança de atitudes, liderança, dinâmica de grupo etc.

Mas, apesar disso, seus objetivos eram muito semelhantes ao escopo taylorista-fayolista-fordista que criticavam: a otimização do trabalho em benefício do capital.

Consoante Nogueira (2000,p.6), após a Segunda Guerra Mundial, a França, que teve sua indústria profundamente afetada por esse conflito, foi o primeiro país a criar a obrigação de haver serviços médicos em empresas que empregassem a partir de dez trabalhadores.

Em 1959, a OIT (Organização Internacional do Trabalho), com base nos ótimos resultados conseguidos na França, recomendou, por ocasião da 43ª Conferência Internacional do Trabalho, que todos os seus países-membros organizassem serviços médicos em todos os locais de trabalho; vários países europeus, como Espanha e Portugal, aderiram a essa proposição, com excelentes resultados; infelizmente, o Brasil, apesar de ser país-membro da OIT, não seguiu sua recomendação.

Com as primeiras estatísticas sobre o número estarrecedor de acidentes de trabalho no Brasil, em 1969, o Ministério do Trabalho baixou a portaria n.3.237, em 1972, tornando os serviços médicos na empresa obrigatórios. Além disso, criaram-se os "Serviços Especializados de Segurança e Medicina do Trabalho - SESMT", onde trabalhavam não só médicos como também enfermeiros, auxiliares de enfermagem, engenheiros e supervisores de segurança.Todos esses profissionais deveriam ter certificado de conclusão de cursos de Medicina do Trabalho, de Enfermagem do Trabalho e de Segurança do Trabalho. Como não houvesse tais cursos no Brasil, com exceção dos ministrados pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, a lei deu um prazo de dois anos para o cumprimento dessa exigência.

A Fundação Centro Nacional de Segurança e Medicina do Trabalho (hoje Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho) encarregou-se da coordenação desses cursos. Em São Paulo, realizaram-se os primeiros cursos sobre Medicina do Trabalho: em 1973, na Faculdade de Saúde Pública da USP, houve um curso para médicos do trabalho e para engenheiros de segurança do trabalho e, no mesmo ano, alguns meses depois, também houve um curso para médicos do trabalho na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Esses cursos foram então se expandindo para outros estados brasileiros.

Em 1978, pela portaria n.3.214, o Ministério do Trabalho e da Previdência Social estabeleceu normas reguladoras para a vigência de diversos aspectos da medicina e segurança do trabalho; e, desde 1988, a saúde do trabalhador configura-se como prática institucionalizada no Sistema Único de Saúde (SUS) e do ponto de vista da luta sindical. A CUT organiza o Instituto de Saúde no Trabalho para assegurar direitos dos trabalhadores. Já anteriormente, em 1969, constitui-se o seguro-acidente, dentro de uma política relativa aos benefícios acidentários, que foi incorporada como cobertura prestada pela Previdência Social. Mas infelizmente vêm ocorrendo alterações no seguro-acidente que, modificando cálculos e a sistemática de comunicação, acabam por acarretar perdas para os trabalhadores.(Nogueira, 2000, p.6).

 

E O QUESTIONAMENTO CONTINUA...

Recente edição do jornal Le Monde (edição brasileira, ano 4, número 41) traz um relatório divulgado pela Organização Internacional do Trabalho (a OIT, a que já nos referimos) denunciando que, atualmente, 270 milhões de assalariados são vítimas de acidentes de trabalho e 160 milhões contraem doenças profissionais no mundo inteiro. Além disso, o estudo revela que passa de dois milhões por ano o número de trabalhadores mortos no exercício de sua profissão. Isso em uma avaliação cujos números estão abaixo da realidade, segundo o próprio relatório.

Sendo a publicação francesa, ressalta que, segundo a Caisse Nationale d’Assurance Maladie (CNAM), 780 trabalhadores morrem, devido ao trabalho, por ano, em números também subestimados, com aproximadamente 3.700 vítimas de acidentes de trabalho por dia, num total de cerca de 1,35 milhão de acidentes por ano.

Trata-se de uma contribuição extremamente pesada e dolorosa que o trabalhador paga ao crescimento e à competitividade, "l’impôt du sang".

De fato, na lógica de produção capitalista, é de interesse do capital que a força de trabalho execute suas tarefas com saúde (além de capacidade técnica). Mas condições extremamente desfavoráveis de trabalho podem desgastar o trabalhador, que, como qualquer outra peça da engrenagem, pode vir a ser precocemente eliminado do processo de produção.É o que, infelizmente, parece ocorrer mundialmente, como demonstram os dados a que se refere o jornal citado.

Para Marx, em sua principal obra, "O capital" (1980, p.202), o trabalho é um processo de que participam homem e natureza, em intercâmbio. Com efeito, esse processo de trabalho é uma atividade dirigida que visa criar valores de uso para atender às necessidades humanas úteis e necessárias, condição natural e eterna da vida humana, que é comum a todas as formas de vida social. Na sociedade capitalista, tomou a forma de trabalho alienado, tornando-se apenas um meio de sobrevivência e não a realização do reino da liberdade.

Essa alienação do trabalhador, para Marx, se dá em dois aspectos: na relação do trabalhador com o produto do seu trabalho e no próprio processo produtivo. Além desses dois fatores, Marx (1974,p.163) refere-se a um terceiro: a universalidade do homem, que, como ser genérico, deve ser livre. É o trabalho alienado que transforma sua vida genérica e universal – portanto, livre – em vida individual.

Marx (1974,p.12) divide o conceito geral de trabalho em dois níveis: o reino da necessidade, que compreende o que é necessário para a sobrevivência do ser humano e corresponde à produção e à reprodução material; e o reino da liberdade, a práxis existencial que, indo além da produção e da reprodução material, expressa a necessidade de integração dos dois níveis.

Para este pensador alemão, herdeiro de Hegel, o reino da liberdade só acontece quando, livre da necessidade imediata de sobrevivência, o homem se volta para a exploração de toda a sua potencialidade; é a divisão da sociedade em classes e a apropriação dos meios de produção pela classe dominante que fazem com que o trabalho se restrinja à dimensão da necessidade; a separação do homem em relação à produção e à reprodução (elementos ligados ao reino da necessidade) e a valorização do reino da liberdade (a que o indivíduo deve almejar para alcançar a realização de todo o seu potencial) é que acaba por conferir plenitude à existência, fazendo com que a dimensão econômica abarque o todo existencial do seu interior e concretize a práxis livre da existência, conduzindo ao que Marcuse (1970,passim), filósofo da Escola de Frankfurt, chama de realização efetiva, plena e livre do homem.

Esses autores buscam um sentido para o trabalho, em outra organização social que, ao invés de voltar-se para o mercado, para o capital, atenda às necessidades humanas e à realização do trabalhador.

Com efeito, tanto a saúde como a doença mental tem uma forte correlação com as atividades do homem e com sua maneira de lutar pela sobrevivência e constituir sua identidade. Destarte, o trabalho pode, em dois pólos opostos, tanto ser benéfico quanto destruidor em relação à saúde de quem trabalha, o que já era conhecido por pensadores da estatura de Sigmund Freud e de Karl Marx.

Em uma reflexão sobre a complexidade do trabalho em nossa sociedade, Ricardo Antunes faz uma distinção entre o trabalho abstrato e concreto; para ele, trabalho abstrato é o sentido genérico do trabalho, enquanto dispêndio de força produtiva, física ou social, determinada pela sociedade; já o trabalho concreto seria o trabalho criativo, no sentido de que cria coisas efetivamente úteis e necessárias. Antunes acredita que, para se efetuar o salto para além do capital, teremos que superar a fase do trabalho abstrato e tornar nossa sociedade produtora de coisas úteis, "na construção de uma organização societária que caminhe para a realização do reino da liberdade, momento de identidade entre o indivíduo e o gênero humano" (1998, p.81).

Enquanto ainda vemos prevalecer a fase do trabalho abstrato, é preciso que realcemos o grande medo do trabalhador: perder seu emprego, seja por motivo de saúde ou mesmo por outras razões, como remanejamento, enxugamento, reestruturação produtiva, downsizing, reengenharias... e por outras "modernidades".

Essas situações criam no trabalhador um grande impacto paralisante, em que este se vê utilizado como objeto, facilmente descartável. O desemprego surge então como uma violência que abala todos os seus sonhos, seus projetos, seu orgulho como provedor de si mesmo ou de sua família.

É o contexto da exclusão, em que fica difícil falarmos de saúde mental no trabalho. O trabalhador excluído, "jogado fora" da realidade de trabalho, divide seu espaço com o trabalhador "ainda" empregado, mas com medo, apavorado pela possibilidade de ser o próximo a ser excluído. O que nos faz lembrar Rousseau (1999), que trata com lúcida sensibilidade da nefanda desigualdade no trato social que ocorre em um primitivismo que pode levar ao sofrimento no trabalho: para que apareça, com o contrato social, o estado de humanidade, é preciso que os contratantes estejam em igualdade; nenhum contrato existe sem reciprocidade. Se o mais forte impõe sua lei ao mais fraco, não há mais contrato possível, encontramo-nos diante da precariedade e da injustiça das sociedades primitivas. Essa oposição à lei do mais forte é semelhante ao advogado por Habermas em sua Teoria da Ação Comunicativa (1987), onde a força do argumento é que deve prevalecer, ou seja, a razão comunicativa deve suplantar a razão instrumental.

 

ABORDAGENS EPISTEMOLÓGICAS DA RELAÇÃO SAÚDE MENTAL E TRABALHO

Até a década de 1950, a área da psicopatologia do trabalho era bastante restrita e nela predominava a crença de que o papel do trabalho no surgimento de distúrbios psiquiátricos só atuaria como elemento "desencadeante" em um indivíduo predisposto. Tal postura é espelho das velhas teorias psiquiátricas, ou seja, da psiquiatria mais ortodoxa.

Por outro lado, em medicina do trabalho, como vimos, os enfoques preventivos sempre se concentraram nas "condições de trabalho"; ou seja, nos aspectos físicos, químicos e biológicos do ambiente de trabalho, sem que se considerasse a importância da questão do poder, intrinsecamente ligada à questão administrativa e gerencial, com toda a sua rede de relações intersubjetivas.

Hoje a tendência é o estudo interdisciplinar, em um conjunto onde diferentes disciplinas abordam um mesmo objeto; ou o "diálogo entre disciplinas", de que fala Edgard Morin (2002).

A organização do trabalho vem ganhando, paulatinamente, um lugar central na relação entre saúde mental e trabalho. Aspectos organizacionais e culturais são cada vez mais considerados em diversas formas de pesquisa e intervenção no ambiente de trabalho.

Portanto, quando se estuda a saúde mental no trabalho temos que considerar inúmeros aspectos, inclusive as questões jurídicas e da interface família-trabalho, pois embora a França tenha inspirado parcela significativa de toda a legislação latino-americana nessa área, sua realidade é bastante diversa da nossa. Mario Vargas Lhosa, em entrevista ao jornal Le Monde (Ehradr, 1989, p.28), lucidamente coloca que a Revolução Francesa foi um dos fatores decisivos da emancipação latino-americana; a Declaração dos Direitos do Homem e a divisa "liberdade, igualdade, fraternidade" determinaram a ideologia da independência. Além da influência da Enciclopédia e da literatura revolucionária, Vargas Lhosa diz que seu país, o Peru, sofreu um enorme abalo com o Contrato Social, de Rousseau, em uma sociedade inteiramente dominada pela Igreja. Além disso, a constituição napoleônica foi copiada pelo Peru, no começo do século XIX. Em nosso caso, o Código Civil também sofreu fortíssima influência do Código Napoleônico; já nossa legislação na área de saúde do trabalho teve múltiplas influências, além da francesa e da italiana. Daí a complexidade e a dificuldade na conciliação dessas raízes, dentro de um contexto epistemológico que Pierre Bourdieu (1983) chamaria de "campo científico".

As repercussões do trabalho sobre a saúde mental têm sido estudadas em abordagens diversas, a partir de diferentes correntes teóricas.

A primeira delas enfatiza o conceito de Stress, salientando uma perspectiva psicofisiológica, em freqüentes estudos epidemiológicos, embora algumas pesquisas dentro dessa abordagem também considerem aspectos sociais. O "burnout", ou esgotamento profissional, uma síndrome peculiar de Stress, é bastante contemplado pelos adeptos dessa primeira corrente. Esse termo foi lançado por Freudenberger em 1975, seguido por Christina Maslach no ano seguinte, que o caracteriza em três aspectos básicos: exaustão emocional, despersonalização e redução da realização pessoal e profissional (1997).

A segunda abordagem enfoca o estudo da subjetividade e da dinâmica intersubjetiva, que integra o referencial psicanalítico à análise da vivência humana no trabalho. Geralmente, nessa corrente, a opção qualitativa em termos de pesquisa é recorrente, ao contrário da primeira abordagem, onde o enfoque quantitativo prevalece.

No Brasil, em relação a essa última corrente, temos, sobretudo, estudos de origem francesa, nos quais Christophe Dejours é a figura de proa, desenvolvendo a chamada Psicodinâmica do Trabalho. Nessa vertente, o conceito central é o de Sofrimento Mental, opondo-se ao conceito de Stress dominante para a corrente psicofisiológica.

Em um terceiro enfoque, vemos a dominância das Ciências Sociais, que enfatizam a "dinâmica da dominação". Esses pensadores ponderam que precisamos ser analisados pela "ótica do poder" e o "desgaste" é, dentro dela, o elemento capital. O que faz com que os adeptos dessa corrente considerem que não se pode abordar o "desgaste mental" sem que o associemos ao "desgaste psico-orgânico" do sujeito; é preciso que o correlacionemos à vida concreta das pessoas. De extração marxista, tenta integrar, arduamente, as duas primeiras concepções.

Recapitulando, referimo-nos a três correntes, comentadas por Edith Seligmann-Silva em sua obra Desgaste mental no trabalho dominado (1994 p.72-73). A do Stress, a do Sofrimento Mental e a do Desgaste. Tais modelos possuem metodologias e técnicas diferentes e fazem um recorte epistemológico- teórico-metodológico peculiar na relação indivíduo, sociedade e organização. São modelos clássicos.

Hoje, porém, temos novas correntes interessantíssimas, como a de Jacqueline Siegrist (2001) e Renaud Sainsaulieu (1996), em que se centraliza no "reconhecimento", ou melhor, no "não reconhecimento", o sofrimento, o adoecimento vinculado ao trabalho. Assim, trabalhadores que lidam com esgoto, bueiros e ambientes infectos em geral tendem a identificar-se com os dejetos que manipulam, o que acarreta uma questão identitária complexa. Sabendo-se que a nossa identidade depende da alteridade, isto é, do outro, pois é ele que nos dá noção do que somos, e tendo ciência de que as pessoas, devido a preconceitos, tendem a identificar o sujeito com sua atividade, deve ser extremamente penosa a atividade de um sepultador, por exemplo. Sob esse aspecto, a existência do reconhecimento ou de sua negação são um fator capital para a saúde do trabalhador.

O mais relevante é que pesquisadores que tendem a ter seu olhar voltado para a objetivação do mundo, com enfoque epidemiológico, usando uma metodologia positivista quantitativa é que atestaram o poder do "ser reconhecido", que pode ter tanto ou mais influência na saúde mental que outras questões bem mais palpáveis. Vê-se, portanto, que essas conclusões não foram produto de nenhuma elucubração de alguns pesquisadores "pouco ortodoxos" mas, pelo contrário, são constatações daqueles que suspeitam de qualquer concessão metodológica ou epistemológica...

Infelizmente, hoje em dia se observa aquilo que pode ser chamado de "management by stress", isto é, o gerenciamento advindo de uma tensão propositadamente criada para que os problemas apareçam e o ritmo de produção possa aumentar sem prejuízo do sistema técnico. Essa situação de constante tensão para o trabalhador levanta-nos à questão do sofrimento causado por stress, principalmente aquele que ocorre no âmbito dos profissionais da área de saúde e de educação básica, pois são profissionais que cuidam de outras pessoas, muitas vezes em um trabalho árduo executado em condições adversas, e em que nem sempre conseguem obter a compensação por seus esforços e a retribuição pelo grau de envolvimento emocional que dispensaram a seus pacientes. De fato, nesse caso, o chamado "stress positivo" só o é para os interesses da produção, que, maquiavelicamente, manipulam o tempo de serviço do trabalhador, acelerando ao máximo sua produção.

Para a Psicofisiologia, o stress seria o intermediário entre saúde e doença e usá-lo como catalisador, de forma manipulativa, me parece não só absolutamente antiético, como muito perigoso, mormente para aqueles cuja atividade consiste em cuidar do outro, ou seja, os profissionais da saúde. É o stress induzido...

Na Alemanha, atualmente estudam-se novas síndromes relacionadas com a automação e considera-se que a automação pode levar a um alto grau de dependência na sincronização entre homem e máquina.

Percebe-se um certo fetiche em relação à tecnologia, ou melhor, uma grande fantasia no que concerne à eficácia homem-máquina. Quando o sistema automatizado falha, há uma tendência a se culpabilizar apenas o elemento humano. Isso faz com que pessoas que trabalham em terminais, geralmente bastante qualificadas, sejam objeto de constante pressão, que se acentua em caso de alguma falha técnica que ocasione algum "ruído" nos terminais.

No afã de procurar eliminar qualquer possibilidade de ocorrência de erros, as pessoas tendem a sobrecarregar-se de atividades intelectuais e suprimir, ao máximo, a "carga afetiva" de suas decisões, privilegiando a esfera racional, e por que não dizer, "racionalizando" suas emoções. Isso pode acarretar um embotamento da afetividade.

A insensibilização do afetivo, que usualmente é mais observada por familiares e amigos do trabalhador do que por ele mesmo, é conhecida também por alexitimia, palavra usada por expressar uma idéia de distanciamento, por parte do sujeito, em relação a seus próprios sentimentos (Karasek & Theorell,1990). Porque pressionadas a pensar depressa, sempre sob tensão, as pessoas não entram em contato com seus sentimentos e fantasias; é como se essa área de esfera subjetiva ficasse isolada, totalmente cindida em relação ao plano consciente das percepções, pensamentos e ações de cada pessoa.

Esse bloqueio, denominado síndrome da insensibilidade, é conhecido também por depressão essencial e por normopatia (Mc Dougall,1991). Na depressão essencial, termo que Pierre Marty cunhou, o operacional solapa o mundo afetivo, e a "vida operativa", como Marty (1968) chama o viver cotidiano, passa a se reduzir à racionalizações e a ações desvinculadas de emoções.

Embora executando "normalmente" suas tarefas, a pessoa age mecanicamente, sem encontrar qualquer prazer no que faz, ostentando uma gélida insensibilidade em relação a si mesma e a tudo que a cerca. São quebras de um funcionamento frágil e regressivo da pessoa em seu todo psíquico e orgânico (Marty, 1976).

A normopatia é o termo com que Joyce Mc Dougall designou uma síndrome em que o sujeito evita qualquer manifestação de sofrimento, construindo uma verdadeira couraça para se blindar contra qualquer sofrimento de ordem psicológica; essa atitude, que implica a não-elaboração de emoções, leva a uma debilidade do equilíbrio psicossomático, acarretando uma grande variedade de doenças.

Como quer que se denominem esses quadros – alexitimia, normopatia ou depressão essencial – essas atitudes de encasulamento em relação às emoções, um embotamento afetivo, podem levar, todas elas, como se observou em estudos epidemiológicos, a doenças cardiovasculares que freqüentemente se manifestam sem muitos avisos prévios, podendo ter conseqüências fatais, como infarto do miocárdio e hipertensão arterial.

 

A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE E ALGUMAS DELIMITAÇÕES TEÓRICAS

Lembrando-se de que o conceito de identidade depende do conceito de alteridade, ou seja, do outro, pois é este que me diz "quem eu sou", percebe-se a complexidade que pode acarretar a relação entre o indivíduo e as máquinas altamente complexas. Sentindo-se ameaçado pelas máquinas, o indivíduo se fecha por sentir-se muitas vezes ameaçado pelo poder dessa tecnologia e até mesmo pelo medo da robotização – "Virei a tornar-me uma delas?".

Aliás, Habermas desenvolve, em sua "Teoria da Ação Comunicativa (1987,passim), uma análise epistêmica e teórica da racionalidade no mundo atual. Segundo ele, a sociedade seria dividida em dois grandes mundos: o mundo sistêmico, que é o mundo do trabalho, da reprodução material, no qual a razão instrumental é imprescindível para o desenvolvimento das forças produtivas, por meio dos subsistemas político e econômico, que possuem organismos auto-reguladores – dinheiro e burocracia; e o mundo da vida ( espaço social reproduzido pela sociedade por meio da ação comunicativa, ação esta que está direcionada para o entendimento, dependendo, assim, do outro). Pode-se afirmar que este mundo da vida se estrutura por meio de tradições culturais, de ordens institucionais e de identidades que são criadas pelo processo de socialização. Cenário das relações interpessoais, o mundo da vida tem no Direito a possibilidade de tradução das determinações e definições dessas interações, que se transformam em dispositivos jurídicos.

O fato é que, no mundo sistêmico, as inter-relações ocorrem na lógica do custo-benefício, ou seja, os argumentos são negligenciados a favor do preço, do custo e, no topo da pirâmide, do lucro. Quando essa lógica passa a ser aplicada no mundo da vida, se instaura o perigo maior. E se faz mister a luta pela cidadania. Esse processo de racionalização e de complexificação, ou melhor, de colonização do mundo vivido pelo mundo sistêmico, consiste na dominação da interação, que é a razão comunicativa, pelos imperativos sistêmicos da economia e da administração capitalista. A racionalidade comunicativa vai sendo, paulatinamente, excluída e a ordem sistêmica vai ordenando nossas vidas...

O utilitarismo instrumental racional constitui o que o autor chama de razão instrumental, que forma a ordem sistêmica. Já no que denominou mundo da vida, Habermas explana que a racionalidade dos indivíduos pode ser mediada pela comunicação e por sua linguagem, que poderíamos intitular discurso comunicativo, a base ontológica no estabelecimento de um instrumento de consenso social da realidade. Dessa forma, a razão instrumental, que constitui a ordem sistêmica, passa a afetar o mundo da vida ou da razão comunicativa.

Se estivermos corretos em nossa tese, talvez possamos afirmar, sem muita hesitação, que o embotamento afetivo, a normopatia, a depressão essencial e a alexitimia, enfim, as síndromes da insensibilidade são patologias decorrentes da colonização do mundo da vida pela ordem do mundo sistêmico. Poderíamos afirmar mais: essas síndromes são uma tentativa de adaptação ou mesmo uma "defesa neurótica", em nosso entender motivada pela imposição de uma lógica construída na esfera do poder (do burocrático, do econômico etc.), que acaba por vitimizar o indivíduo. Como diria Dejours, "o defeito crônico de uma vida mental sem saída mantido pela organização do trabalho, tem provavelmente um efeito que favorece as descompensações psiconeuróticas" (2001,p.122).

Dentro dessas condições adversas para o trabalhador, que se sente pressionado constantemente por toda essa estrutura, parece-nos pertinente a questão sobre se é possível que se consiga desenvolver uma atividade de trabalho sem que a saúde seja prejudicada. Em nosso ver, a resposta pode ser positiva, desde que o trabalhador possa ter um mínimo controle sobre o seu trabalho, ou, pelo menos, possa verbalizar seu incômodo utilizando-se de um "espaço público de palavra", na denominação de Dejours. Esses espaços seriam espaços públicos de discussão, isto é, lugares e momentos para que se possa expressar e discutir melhorias em relação aos problemas apontados, com a reflexão de propostas em pequenos ou grandes grupos de pessoas, sem a sonegação de quaisquer informações. E se constituiriam na grande metáfora que propicia a ação dialógica que levaria a um certo controle, por parte do trabalhador, da interface das condições objetivas e subjetivas no e do trabalho.

É fato que, frente às atuais condições na relação capital-trabalho, este último tem pouco poder, pois este é, normalmente, centralizado pela organização. Para "driblar" essa situação, o trabalhador se utiliza de estratégias para modificar as regras e as normas do trabalho prescrito pela gestão. O que ele produz de fato é o trabalho real, ou seja, dá um "jeitinho", retraduzindo as normas do trabalho prescrito. Essa é uma tentativa exercida pelo trabalhador no sentido de aproximar-se do controle sobre a atividade executada por ele. E, mais do que isso, é, muitas vezes, o único meio que se apresenta para que o trabalhador possa executar sua tarefa (Sato,1991). O que é interessante nessa estratégia é que, apesar de ser público e notório, o "jeitinho", um hiato entre o trabalho planejado (prescrito) e o realizado (real), nunca ganha o status de planejamento formal, pois, reconhecê-lo como tal seria admitir uma falha nos sistemas administrativos ou de produção.

Considerando toda essa situação, uma hipótese bastante provável me vem à mente: quanto maior o poder de interferência do trabalhador, na forma de organizar o seu trabalho, maior a sua anuência em relação ao trabalho prescrito, ou seja, às normas e às regras que deve cumprir. E quanto menor for seu poder de interferência no trabalho, maior será sua tendência à "burla", à "transgressão" às normas. O que, por vezes, é uma tentativa desesperada de cumprir o que, para ele, parece ser quase uma "missão impossível".

Foucault, em sua obra "Microfísica do poder" (1982), chama a isso de "biopoder" ou micro-poder, o que, em nosso entender, poderia ser denominado de estratégia de contra-controle, uma forma de se opor a um controle definido pela administração, em que o dominado trilha um caminho oblíquo para escapar das malhas do poder ou, na expressão foucaultiana, trata-se da "docilização dos corpos".

Por representar a ineficiência do trabalho prescrito, o jeitinho acaba se tornando um verdadeiro tabu, ou seja, algo a que ninguém se refere por atestar, em sua base, a ineficácia dos "donos do poder", além de sinalizar para a redução da qualidade do serviço ou do produto.

 

PERSPECTIVAS

Retomando as palavras já citadas de Hannah Arendt, vamos lutar contra a "banalização do mal". Melhores condições de saúde dos trabalhadores, respeito à subjetividade do trabalhador, que deve ser atuante e presente em relação à sua história, são fatores que podem tornar mais "saudável" esse quadro ainda bastante insalubre. Um trabalhador respeitado quanto aos limites de seu corpo, sua faixa etária, seu ritmo de trabalho, naturalmente produziria melhor, sem precisar recorrer aos chamados "jeitinhos", a que nos referimos.

Na atualidade, o mercado de trabalho, com suas condições e exigências, rotiniza e amortece o sentido da vida, deixando no corpo do trabalhador marcas de sofrimento que se manifestam em variadas doenças ocupacionais, podendo, até mesmo, atentar contra a sua saúde mental. As questões que envolvem a psicodinâmica do trabalho tornam-se pontos fundamentais de preocupação para todos aqueles que lidam com saúde pública, especialmente quando se sabe que a separação entre mente e corpo é apenas aparente e que o conceito de saúde vai muito além da mera ausência sintomática de doenças.

Com base em todos esses aspectos, podemos concluir que, enquanto política identitária, existe possibilidade de superação da colonização do mundo da vida pela ordem sistêmica, mediante a oposição ferrenha de uma política que busque proporcionar o desenvolvimento de um processo de autonomia e emancipação humana, propiciando que o corpo se torne sujeito e não somente objeto ou instrumento de e no trabalho.

 

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1 Pesquisador e Professor Livre-Docente na UNICAMP e FGV-SP

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