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Psicologia USP
On-line version ISSN 1678-5177
Psicol. USP vol.5 no.1-2 São Paulo 1994
ARTIGOS ORIGINAIS
O fantasma do fim da história e a positividade do princípio feminino
The phantom of the end of history and the positivity of the feminine principle
Renata Udler Cromberg
Departamento de Psicanálise Instituto Sedes Sapientiae
RESUMO
Este artigo passeia pelas experiências-limite de uma lógica que vê na modernidade iluminada pela racionalidade científica, tecnológica e política, a única saída para a Humanidade. O nazismo e sua revisão, o esfacelamento da U. R. S. S, a queda do muro de Berlim e a AIDS mostrariam os impasses dessa lógica e a queda do fantasma linear da História. A fórmula controvertida do fim da História para dar conta da confusão sem saída que foi o século XX é problemática, se for pensada como um trabalho de luto entusiasta, como desconstruçâo maciça da História. A Autora, a partir do levantamento do silêncio das mulheres e do feminino em homens e mulheres, indaga sobre a relação entre o fim do fantasma linear da História e a emergência do princípio feminino, que aponta para o nascimento de um novo devir.
Descritores: Psicanálise. História. Sexualidade. Fascismo. AIDS.
ABSTRACT
This paper goes through border-experiences of a logic that sees in modernity, iluminated by cientific, political and technological rationality, the only way out for humanity. It proposes that the feminine principle, so long absent from the construction of society, ruled by masculine principles of rationality and iluminism, may bring about a new perspective for the future.
Index terms: Psychoanalysis. History. Sexuality. Fascism. Acquired Immune Deficiency Syndrome.
Antes eu fui uma ave, depois uma vaca, e após gerações e gerações de rabinos, eu me tornei uma mulher. Laurie Anderson no filme Home of the Braves
I. Panorama inicial: "Naquela noite, o rabino não veio jantar"
Em David, filme do cineasta alemão Lilienthal, vemos a construção primorosa da atmosfera pesada da ascensão e do estabelecimento do nazismo, de 1933 a 1943, sob o prisma de uma família judia, que vive numa cidadezinha alemã: o pai, rabino da mesma comunidade, a mãe, artesã de chapéus, a jovem filha e o filho David, o pequeno menino de 1933, fio condutor do filme, único que se salvará da catástrofe, indo para "Hartzaalinu" (nossa terra, música dos pioneiros da imigração judaica para a Palestina, anterior à criação do estado de Israel, cujos primeiros acordes, em tom melancólico, nostálgico e esperançoso, repetem-se no filme, acompanhando a terrível odisséia).
Gostaria de recortar três momentos do filme. O primeiro, logo no início, mostra uma festa judaica na casa do rabino, o bar-mitzvá de David (rito de passagem do menino para as obrigações de homem). O clima é de alegria, como foi também a preparação terna que o pai fez com o filho para este momento, entrecortada de brincadeiras. Um homem judeu, convidado, pede para conversar em particular com o rabino: quer o divórcio de sua mulher. Argumenta que ela grita à noite, tem presságios, o xinga. O rabino concorda, pois ela está doente, está paranóica.
O segundo momento do filme é logo em seguida. O rabino chega em casa cabisbaixo, angustiado. Sua mulher o acompanha e pergunta: "Então?" Ele diz: "Eles chamaram vários membros da comunidade e os colocaram alinhados." Ela diz: "E o que eles fizeram?" O rabino não fala nada, encaminha-se para uma janela, seguido pela esposa, abaixa a cabeça e tira o chapéu: uma enorme suástica marcada a brasa cobre toda a sua cabeça calva. A mulher grita então: "Vamos embora! O que você está esperando?" Ele diz: ccNão posso, é Deus quem quer assim". Ela diz então, com todo ódio, descrença e sarcasmo estampados no rosto: "Que Deus é este?" Ele responde resignado: "Deus está fazendo-nos passar por duras provas, mas temos que passá-las." A mulher não fala mais nada, não falará mais, apenas acompanhará o marido no sinistro caminho que terminará na câmara de gás. Por alguns instantes tem-se a sensação de que a mulher do rabino vai tornar-se uma mulher trágica, como as da tragédia grega que, "vieram misturar-se ao mundo viril da ação, ainda que sofrendo por isto." Mas não. "O silêncio é o ornamento das mulheres" (Louraux, 1988, p. 48), e se o silêncio da mulher do rabino é desses que "o ouvido percebe como outros tantos sinais angustiantes, que antecipam uma ação que a mulher quis subtrair à vista" (Louraux, 1988, p. 48), é porque ela escolhe uma espécie de suicídio, um morrer com: para ela, uma maneira trágica de ir até o fim do casamento (Louraux, 1988, p. 35). Logo após, o marido, ao contrário, talvez para espantar a angústia intolerável do narcisismo das grandes diferenças, que o colocava em situação impotente em relação à destruição que se aproximava de sua casa, de sua sinagoga e da comunidade que ele conduz, começa a rir e a falar incontinentemente para a mulher, gozando da expressão de uma certa figura de homem judeu, burguês rico, que se viu humilhado como ele, e se perguntando de que servia toda a jactância e orgulho de seus bens por parte deste homem.
O terceiro momento a destacar é mais para o final do filme. David e sua irmã refugiam-se incógnitos na casa de um conhecido alemão, em outra cidade, cujo filho, soldado nazista, está no front de batalha. Quando este filho vem visitar o pai, é a irmã de David quem, no seu silêncio observador, dá novamente os indícios de iminência da denúncia e da traição que estão para acontecer. É ela quem faz David fugir, ainda sem que ele entenda bem o porquê, mas ela fica. E David irá para a Palestina. O "sacrifício" da irmã de "David" faz pensar no sangue puro das virgens gregas que, no universo da tragédia, é derramado para por fim à guerra entre os homens. Glória desta moça bem mortal (Louraux, 1988, p. 63-90).
Há ainda outra cena de um outro filme magistral, "Shoah", do cineasta francês Claude Landzman. É o depoimento comovente de um tcheco, que trabalhava em um dos campos de concentração, que vê trazida uma comunidade judaica de uma cidadezinha tcheca e que é instalada em condições especiais, particularmente boas em termos de comida, higiene, saúde e educação, em relação aos demais setores do campo. Ele se perguntava o porquê disso, se sabia que o destino de todos seria o mesmo, a câmara de gás. Vai intuindo que os seis meses desse paraíso são o tempo da limpeza das câmaras, entulhadas de cadáveres. Mas vai nos descrevendo o seu crescente estupor diante desta lógica perversa de uma ordem e civilidade que escondem a intenção da barbárie presente de antemão. Ao chegar o dia da execução, ao ver que, sob a ordem dos nazis de que todos tirem as roupas, alguns as tiram passivamente, ele não agüenta, entra junto na câmara de gás e quer morrer. É uma mulher quem lhe grita, ao perceber seu gesto: "Você está louco? Quem irá contar tudo isto?". Ele se salva, então, e, no filme, pode chorar ao fim de seu depoimento. Mas a genialidade de Landzman não é a de nos mostrar cenas horrendas, sangrentas, cruéis, que metros de filmes sobre a 2ª guerra nos fizeram ver. Sensivelmente, Landzman não nos permite exorcizar nossa cumplicidade inconsciente, seja com um voyeurismo sádico, descendente da pulsão de destruição, seja com sua contra-face, a identificação com o masoquismo da vítima indefesa.
Seu objetivo é outro. Através das imagens de um trem que percorre o caminho de outrora para o campo de concentração, hoje; através das cenas deste mesmo campo hoje, onde florescem árvores e grama e as crianças passeiam; através de entrevistas com os carrascos que nas próprias entrevistas fazem lapsos onde trocam o carrasco pela vítima, se perturbando e saindo de seu papel de Pontio Pilatos; através do relatos dos sobreviventes que tem que desenterrar um pedaço firmemente enterrado para poder viver (o único sobrevivente que se recusa a falar diz uma frase lapidar ao cineasta: "Se você lambesse meu coração, você morreria envenenado na hora"), o que Landzman consegue é marcar nossa memória com as nossas imagens que são suscitadas pela magia das palavras. Ele sabe da incomunicabilidade, do intransponível dos acontecimentos do holocausto. A solidariedade histórica só pode se estabelecer por esta produção de imagens que ele faz criar no espectador pelas palavras. Na narrativa não-linear, na simultaneidade do presente e do passado, nas imagens e nos relatos, não é a contabilização documental estatística, não é a identificação com a vítima ou a condenação do carrasco que ele nos traz, nem a nossa culpabilidade que ele evoca. É a possibilidade de um resgate da história, já que o real nos escapa, que a polifonia das palavras vai criando no espectador. Somos nós, espectadores, quem fazemos as imagens do filme.
II. O fim da história
Não é pouca coisa. Baudrillard (1990) cita Shoah em Necrospectiva e comenta a preocupação atual com uma revisão do nazismo. A tese de Faurisson, aquele professor que defende a teoria da "não existência da perseguição aos judeus, das medidas de extermínio, etc...", é odiosa em sua pretensão histórica de negar a existência das câmaras de gás. Da mesma forma, acusar ou inocentar Heidegger de ter sido nazista é vão, e não tem sentido filosófico próprio, porque ele deveria ter sido denunciado (ou defendido) quando era tempo. A vã querela em torno de Heidegger, se ele foi ou não foi nazista, e do paradoxo de Faurisson, são sintomas, para ele, daquilo que denunciam do momento da cultura atual.
Tudo isso, diz ele, é apenas sintoma de uma fraqueza de imaginação do pensamento atual e de uma indiferença à situação atual, que por não dispor de uma energia nova, volta obsessivamente às origens, que na hora do balanço secular revela a tentação de rever dolorosamente a cena histórica primitiva, de limpar os cadáveres, apurar as contas, assim como fascínio perverso de volta às fontes da violência, alucinação coletiva da verdade histórica do mal. "Porque desaparecemos hoje politicamente, historicamente (eis nosso problema), queremos provar que morremos entre 1940 e 1945, em Auschwitz ou Hiroshima isso ao menos é uma história forte."
Tudo isso, diz Baudrillard, é um desesperado recurso histórico a uma verdade póstuma, a uma inocentação póstuma. A sua tese é de que nunca saberemos se o nazismo, os campos de concentração e Hiroshima eram inteligíveis ou não, pois já não estamos no mesmo universo mental.
Esquece-se que toda a nossa realidade passou pela mídia, inclusive os acontecimentos trágicos do passado. Isto significa que já é muito tarde para verificá-los e compreendê-los historicamente porque, o que de fato caracteriza nossa época, este fim de século, é que os instrumentos desta inteligibilidade desapareceram. Era necessário ter compreendido a História enquanto havia História, porque noções tão fundamentais como as de responsabilidade, de causa objetiva, de sentido (ou de contrasenso) da história, desapareceram, ou estão em vias de extinção.
Os efeitos da consciência moral, da consciência coletiva são nitidamente efeitos midiáticos. A mídia substitui os acontecimentos, as idéias, a história a tal ponto que quanto mais forem evocados, quanto mais se conhecem os pormenores e as respectivas causas, menos eles existirão, deixarão de ter existido. Indiferença da memória à história igual aos próprios esforços para objetivá-la. E Baudrillard ainda não havia assistido pela televisão à fantástica guerra entre o Santo-Império americano e o Iraque. Ali, pela mídia, nos sentíamos cúmplices perversos no espetáculo de "fogos de artificio" dos cruises z patriots, onde os cadáveres eram escondidos e até mesmo falsificados, como mostrou recentemente notícia midiática que apontou ser falso o massacre de recém-nascidos em um hospital kuwaitiano pelas forças do Iraque. Trazido à tona, na época da guerra, pelo depoimento lacrimejante da filha do embaixador do Kuwait nos E.U.A., e que hoje se sabe eram lágrimas de crocodilo, já que a situação havia sido forjada. É nesta confusão que esta tragédia recente também está se apagando na nossa memória.
"Isso não existiu" traduz com exatidão o movimento de toda uma cultura, o impasse de um fim de século alucinado, fascinado pelo horror de suas origens, para o qual o esquecimento é impossível e cuja única saída é a recusa. Constatado que "Auschwitz e a exterminação são inexpiáveis", Baudrillard tenta vislumbrar uma saída que não seja a do esquecimento impossível, nem a da recusa psicótica:
O que se está passando coletivamente, confusamente, é a passagem do estado histórico a um estado mítico, é a reconstrução mítica e midiática de todos estes acontecimentos... Em certo sentido, essa conversão mítica é a única operação que pode não nos desculpar moralmente, mas absolver-nos fantasticamente desse crime original (ele leu "Totem e tabu"!). Senão, todas essas coisas, o fascismo, os campos, a exterminação, tendo sido e continuando para nós insolúveis, nos condenariam a repeti-las eternamente como uma cena primitiva.
Baudrillard afirma que não é a nostalgia fascista que é perigosa. Quem leu Pasolini, em Os jovens infelizes, pode ter-se espantado que como recurso crítico desesperado ao fascismo do consumo, este autor, outrora um ferrenho crítico do fascismo, reviva com beleza poética a nostalgia da Itália do tempo do fascismo, mas sem deixar de mostrar corajosamente que isso é fruto de um desespero, e que naquela época era tão infeliz como no momento em que escrevia:
O que é perigoso e risível é a reatualização do passado do qual todos são atores simultâneos e quase cúmplices; é essa alucinação coletiva que transfere todo o imaginário ausente de nossa época, todo o risco de violência e de realidade para essa outra época, numa espécie de compulsão de revivê-la e de culpabilidade profunda, de não a ter vivido.
Penso que seria interessante pensar nas novas gerações alemãs em termos da herança de uma culpabilidade profunda, e de seus efeitos nos recentes movimentos neo-nazistas.
Após os acontecimentos do leste europeu, ele afirma uma ressuscitação do campo da História, reaberto ao movimento imprevisível dos povos e sua sede de liberdade. Mas visto de perto, o fato é um pouco mais misterioso e se parece com um objeto "histórico" não identificável. Ele vai trabalhar com a operação perigosa do descongelamento da liberdade, lançando mão de duas imagens: a ultracongelação como marca distintiva e negativa do leste e a ultrafluidez de nosso universo ocidental que é ainda mais escabrosa, uma vez que, por haver tanta liberação e liberalização dos costumes e das opiniões, o problema da liberdade já nem pode ser considerado entre nós. Será interessante, diz ele, ver o que acontece com a liberdade quando ela emerge descongelada, ressucitada: ela talvez não seja muito bonita, e talvez possa trocar-se imediatamente por valores de liquidez ocidental, ou seja, passar de um fim de história por congelação a um fim de história por ultrafluidez da circulação. A liberdade periga tanto gelada nos campos de concentração, como pela expansão total e centrífuga da comunicação.
Dialogando com os que são virtuosamente hostis ao fim da história, ou seja, que defendem a sua linearidade e que talvez vejam na Modernidade iluminada pela racionalidade científica, tecnológica e política, a única saída para a humanidade, ele tenta entender o sentido da fórmula controvertida do fim da história, através dos recentes acontecimentos, pondo em questão a própria idéia de fim, já que ela ainda faz parte do fantasma linear da História. Estamos, diz ele, numa espécie de trabalho de luto entusiasta, apagando e branquejando o século XX, como se tudo o que se passou (as revoluções, a repartição do mundo, a exterminação, a transnacionalidade violenta dos Estados, o suspense nuclear, enfim, a História em sua fase moderna), não passasse de uma confusão sem saída, e que todo mundo se pusesse a desfazer essa história com o mesmo ardor que a fizeram. Para Baudrillard, a reunificação da Alemanha e tantas outras coisas são inevitáveis, não no sentido de um salto para a frente da História, mas no de uma reescrita às avessas de todo o século XX, o que vai preencher os últimos dez anos desse século. Essa reabsorção, esse apagamento pode ser tão veloz porque não se trata de uma construção e sim de uma desconstrução maciça da História, que assume uma forma quase viral, epidêmica. Talvez a história como uma trajetória assintótica, que se aproxima indefinidamente de seu fim, sem nunca alcançá-lo, e afinal afasta-se em sentido inverso.
Para ir-me introduzindo mais no campo da psicanálise, penso que a idéia de luto entusiasta é problemática. Apagar, branquejar, recomeçar do zero são movimentos perigosos quando o luto vem acompanhado de mania (entusiasmo). O psicanalista sabe que o processo de desconstrução deve levar não ao esquecimento ou a recusa, mas, para usar um termo forjado por Mezan (1987), ao inquecimento, ou seja, a uma reabsorção que permite que se possa abrir um processo de repetição que não seja a do círculo, a repetição do mesmo, mas a da espiral, a repetição diferencial, o que só é possível por uma elaboração psíquica, ou seja, por um trabalho que conecta os elos psíquicos. É a partir daí que se dá a possibilidade de um processo construtivo, e não de um construtivismo maníaco. O retorno ao zero, às origens, fascínio humano que move o seu psiquismo, é impossível, pois a origem é sempre mítica e o mito, como aponta Levi-Strauss, é o conjunto de suas versões.
III. A AIDS e o fantasma da morte sinistra
É neste panorama "veloz, viral e epidêmico do fim do século" que surge o vírus epidêmico da AIDS. Tendo a sua transmissão inicialmente ligada à homossexualidade masculina, seus grupos de risco logo se expandiram (drogadictos, prostitutas etc), até tornar-se um risco generalizado para a humanidade. Houve outros riscos, epidemias, outras pestes, outros vírus, que tiveram uma dimensão sacrificial para a humanidade e cuja cura foi obtida pelos homens. Com certeza, o mesmo se passará com a AIDS. O que eu gostaria de abordar rapidamente, sob a forma de conjecturas, pois a AIDS também é ainda uma espécie de objeto "histórico" não identificável, é a dimensão imaginária da AIDS essa vertente da morte que aparece ligada à sexualidade, essa sexualidade vivida como mortífera.
Neste conturbado fim de século, a AIDS emerge, na década de 80, como fenômeno social. Nela, estão em curso algumas transformações importantes a partir do imaginário social ligado a morte. Vemos arrefecer o fantasma da morte violenta ligada à catástrofe nuclear, que ronda a civilização desde o final da 2ª Guerra, através de medidas de redução do arsenal nuclear. Também o fantasma ligado à morte lenta pela degradação da natureza vem trazer, com ênfase, embora de maneira gradativa, a preocupação com os ecossistemas, o que, aliás, já estava presente no ideário e prática das culturas alternativas na década de 70.
Mas para tentar entender a construção de um novo imaginário social em torno da morte viral e epidêmica pela AIDS, que liga morte e sexualidade, teríamos de recuar até a contracultura, na década de 60. Se a contracultura era, então, uma ética de pequenos grupos, ela não permaneceu assim por muito tempo. Logo passa a ser englobada por uma moral cultural. Isso foi possível pela Mídia e por uma fantástica capacidade que os mecanismos selvagens do capitalismo têm de englobar tudo o que a ele se opõe.
Não haveria na contracultura um excesso de positividade de Eros? Sob o imperativo da sexualidade, pela recusa do limite e da morte, o que poderíamos pensar agora de seus motes, "Faça já, não adie", "Mostre", "É proibido proibir"? Se num primeiro momento procuraram se contrapor ao erotismo clássico do "Esconda-se e mostre", não teriam, paradoxalmente, levado a uma lógica do consumo e da consumação da sexualidade, através de um exibicionismo involuntário e inconsciente, onde acabou se mostrando sua cumplicidade com a lógica que pretendia desmontar?
A AIDS introduz agora o espectro sinistro da morte ligada à sexualidade através dos motes "Evite", "Faça com cuidado", "Ela pode te pegar". Observa-se aí uma enorme inflexão em relação ao imaginário quanto à problematização que a cultura (através dos movimentos contraculturais) vinha fazendo da sexualidade1.
A situação é complexa e a AIDS traz angústia e dor não só para os que estão diretamente afetados por ela, mas também para o imaginário fantasmático cultural. Ela traz a dimensão de "susto" a humanidade. Talvez a sua existência possa abrir para a possibilidade de um outro erotismo, de uma sexualidade que traga um outro lugar para os mistérios do corpo e do amor.
O que me chama a atenção na Síndrome da Deficiência Imunológica Adquirida é a deficiência imunológica adquirida. E a pergunta que me faço é sobre as circunstâncias psíquicas em que se adquire um vírus que fragiliza as defesas orgânicas. Sob que estado de fragilização das defesas psíquicas se encontra quem adquire a AIDS? Chamou-me a atenção, através da leitura de jornais, as circunstâncias dos primeiros grupos de risco: os drogadictos que se infectavam pelo uso de uma seringa e uma agulha para muitos, os homens que transavam com vários homens numa sauna ou numa festinha, as casas de diversão norte-americanas onde homens se escondiam nas cabines com o pênis à mostra, onde outros homens pagavam, como num jogo de fliperama, para masturbar, chupar ou enfiar esses pênis.
Desde os anos 60 e 70, vários psicanalistas Joyce MacDougall em destaque vêm trabalhando sobre as neo-sexualidades, as sexualidades aditivas. Para mim, o que intriga, nas circunstâncias acima descritas, é o apagamento da diferença, um desejo de dissolução e aniquilamento, essa liquidificação de si através da sexualidade, essa transfusão de sangue junto com a droga, é a evidência tão gritante de um apagamento da sexualidade como diferença, mas que apaga o próprio corpo. O que me intriga é este extremo, onde a não-intervenção de um princípio vital de desligamento, da pulsão de morte como o que faz emergir o desejo e a diferença, leva à dissolução das fronteiras corporais de maneira viral e epidêmica, levando Eros a uma circulação desenfreada onde a pulsão parcial se desloca e se movimenta ao máximo e num ritmo cada vez mais regressivo. Sem dúvida, ela dará muito o que pensar e rever a respeito da própria sexualidade humana!
Supervisionei o caso clínico de um homem que tinha todas as condições de adquirir o vírus da AIDS, pelas suas práticas sexuais. Esse era um dos aspectos presentes na angústia do sensível e ético analista, que ofereceu uma imprescindível acolhida a esse homem, e o que tentamos examinar, entre muitos aspectos, era como o analista poderia não cair numa posição inconsciente de voyeur, cúmplice nas perversões compulsivamente exibidas através do discurso. A mim, curiosamente, o que talvez contribuiu para trazer alguns aspectos novos à complexa discussão desse caso pelo grupo, esses relatos desinteressavam principalmente pela sua quantidade. Mas o que me chamou a atenção nessas práticas, era como o próprio pênis era desconsiderado, quase nulo para o paciente, que aliás, não se definia como homossexual. Talvez ele nem sequer soubesse ainda, psiquicamente, se tinha um corpo, e nem suspeitasse da melancolia que se escondia sob suas requintadas racionalizações.
IV. A positividade do princípio feminino: o tempo da duração e o prazer como criação2
Tenho a impressão de que o fim do fantasma linear da história esteja se delineando, pois o século XX assiste finalmente, em grande parte graças à psicanálise, ao levantamento do silêncio das mulheres, à sua saída das sombras, à sua inserção gradativa como cidadãs (e quão recente isto é), ao também gradativo reconhecimento da especificidade de sua sexualidade, sem isto implicar em excluí-las do reconhecimento cultural. É certo que este movimento vem se dando em meio a dificuldades, ambigüidades, contradições e mistérios, mas ele sim é um movimento onde nenhum retorno é mais possível, ainda que seu futuro seja desconhecido, prenhe de descobertas, surpresas e criações.
Os ouvidos inquietos da psicanálise puderam captar, na fala de homens e mulheres, não apenas a bissexualidade constitutiva, mas a recusa do feminino, tanto nos homens como nas mulheres. E será que não é o princípio feminino que vem pedir sua positividade, para sair do seu lugar abismai, de falta absoluta? Não para se contrapor, para se colocar como "contra" e "anti" o princípio masculino que tem regido toda a racionalidade de uma sociedade iluminista e construtivísta, pois aí seria, num movimento simplista, atribuir-lhe meramente sinais negativos. Mas talvez, em uma lenta desconstrução "desta engrenagem do pensamento ocidental que se acha tão emperrada"3 , para poder apontar para um novo tempo, o da duração, já não mais pensado de uma maneira linear: através de uma sexualidade pós-edípica e pós-genital, que não nega o lugar do complexo de Édipo, nem o do prazer genital, mas alterna com eles, e que, ao dar lugar singular ao amor e ao corpo, permite finalmente que o fantasma da mãe fálica, contraface da recusa do feminino, possa ser combatido, pela assunção da positividade da castração da mulher, como a iconografia hindu nos mostra a respeito da cultura milenar tântrica. Ao invés de Judith com a cabeça de Holofernes cortada, a imagem da cabeça degolada da mulher acompanha a iconografia dos atos sexuais de profundo encontro, que adquirem uma nova transcendência, pois repousam em outra concepção do tempo, do amor, da sociabilidade e do trabalho humano, e em uma arte erótica desconhecida do ocidente, embora ele venha chegando a ela a sua maneira.
Ariés (1985), historiador, comenta que a permanência está retornando, e que o amor no casamento está passando por uma reforma em nossos costumes, em torno da duração, duração de fato, mais do que vontade de durar:
Um casal se fez em um tempo longo, e cada suplemento de tempo aproximou ainda mais os cônjuges e lhes deu o sentimento de fortalecer sua união: duo in una carne. Eles se amam porque se amam há muito tempo, e o amor cresce com o tempo, até o dia terrível em que se choca contra o muro da morte, insuportável porque ele é a separação, o fim desta lenta construção à dois.
Ele aponta que este sentimento de permanência e de duração não é uma herança antiga. A sociedade ocidental antiga tinha o culto do precedente, não o da duração. Fora uma vez, será sempre, sem que a duração acrescentasse alguma coisa ao fato. Reconhecia-se um valor ao precedente porque ele havia existido, não porque havia durado. Hoje, diz ele, pouco importa a origem ou a natureza do vínculo, o que conta é a sua duração.
No limite, e sem que se antecipe e se diga, um verdadeiro casamento pouco diferente de uma união livre que resiste não é criado por um ato de cartório ou na igreja, nem por uma opção prévia, frágil, e sim pelo fato de sua duração. O verdadeiro casamento é uma união que dura, com uma duração viva, fecunda, que desafia a morte. Vingança subterrânea de uma civilização que privilegia o instante e a ruptura.
Nossa cultura tende a reforçar as crenças fálicas, e são esses padrões culturais que moldam a representação do genital feminino (Winnicott, 1985). Mas seria um erro considerar isso apenas uma neurose cultural, já que uma cultura que permitisse às meninas conhecer desde cedo a feminilidade e as funções que dela decorrem, não seria a melhor amiga delas (Winnicott, 1985). Mas temos de reconhecer que é todo um modo cultural de descrever a sexualidade feminina que tem exacerbado "o menino-dentro-da menina", fazendo com que a transformação da menina em mulher se faça em um caminho mal pavimentado. Também dificulta ao menino que se transforma em homem, o acesso à abertura genital feminina, restringindo-lhe a representações muito mais ligadas a seus desejos orais e anais do que algo que corresponde às sensações e anseios vaginais, pois esses desejos existem no menino, ainda que lhe falte a abertura. A ênfase fálica cultural, aliada a uma obscura inveja à fêmea o convida a ficar na ilusão do "menino completo" da fase fálica, impedindo-o de perceber que depende da mulher para se completar.
A rapidez com que a cultura ocidental incorporou e banalizou os complexos de Édipo e de castração, transformando-os em motes simplistas, é totalmente avessa ao ritmo e à temporalidade de uma psicanálise e à multiplicidade das facetas em que se apresentam estes complexos. A lenta duração de uma psicanálise mostra que o doloroso e o intolerável é o levantamento das defesas e das resistências, o refazer de um percurso soterrado pela amnésia infantil. Para Freud, também foi lento o caminho que o levou à afirmação cada vez maior da centralidade do complexo de Édipo e de castração. Foi lento o caminho que o levou à enigmática "recusa do feminino", esse "rochedo da castração", "um pedaço deste grande enigma da sexualidade" (Freud, 1973a).
Se podemos nos surpreender por Freud ter permanecido tanto tempo surdo ao que seria a especificidade da sexualidade feminina, ele também se surpreende, já que "surpreendente" e "novo" são os adjetivos que mais se encontram nos artigos sobre a feminilidade (Freud, 1973c, 1973e). O horror à castração também foi uma marca violenta e forte que, presente/ausente, orientou suas reflexões e o deixou, quando pode enfrentá-lo, a avistar, como Moisés, a terra prometida, sem poder dela usufruir (Freud, 1973b). Não podemos nos esquecer que, se Freud descobre a "civilização creto - miscênica" por baixo da civilização grega, este primeiro amor da menina à mãe, pré - edípico, um novo enigma se faz para Freud, o do período pré - edípico para o menino. Este novo enigma jaz sob a cripta do interesse investigativo sobre a feminilidade e a hesitação em abordá-lo de frente vem da magnífica nota de rodapé em "O sinistro" (Freud, 1973d), quando Freud se defronta com o horror à vagina da mulher (mais precisamente da mãe?).
Tal hesitação não é sem sentido, é uma cautela necessária. Se o final do complexo edípico masculino dissolve-se sem deixar vestígios dessa "civilização creto - miscênica" que é também o período pré - edípico para o menino, é porque ele encontra um refugio seguro neste pênis que ganhou, através de árduo trabalho psíquico, a partir da identificação com o sexo de seu pai. Vantagem masculina contra a castração, porém ilusória. Mas essa ilusão, até poder ser percebida, vai render-lhe os louros de um êxito investigativo, de uma excitada construção de mundos e teorias luminosas (Leclaire, 1977). Isso, desde que ele não olhe para trás, ou para dentro, desde que deixe cuidadosamente enterrado (ilusoriamente dissolvido?) esse sol negro, quisto de sua dolorosa separação da mãe, onde a pulsão matricida desempenha um papel fundamental, o primeiro marco de sua autonomização psíquica, e onde o feminino imagem da morte é não somente uma tela do medo à castração, mas também um freio imaginário contra a pulsão matricida, que sem esta representação o pulverizaria em melancolia ou o impeliria ao crime (Kristeva, 1989, p. 33). Isso, desde que ele venha repousar este sol negro no outro, através de seu íntimo olhar desvalorizador e desdenhoso à mãe, às meninas e às mulheres, oferecendo a elas o lugar de adulados objetos, posses narcísicas secundárias, que levam o selo impresso de seu pênis, que permite a elas uma existência em certas funções e posições dentro dos mundos e teorias criados, desde que elas não venham ameaçá-lo com esse sol negro cuidadosamente soterrado. Sem querer entrar, por enquanto, no fascínio sedutor que esta proposta oferece como saída à sexualidade feminina, é preciso prosseguir e dizer que nada do que é soterrado permanece indefinidamente assim.
Os destinos da evitação do sol negro podem levar, em primeiro lugar, à exaltação do pai que, vivo ou morto de fato, permanece o cenário de uma batalha pela posse do próprio pênis que nunca acaba realmente de ser feita, já que o do pai é sempre maior e melhor, e que sempre vai ter impresso o sêlo desse grandioso pai, outorgador e salvador, ao mesmo tempo muito amado e muito odiado. O ódio ao pai aparecendo sob o grandioso e exaltado amor. O amor ao pai aparecendo sob a crueldade.
Em segundo lugar, podem levar o homem a gabar-se de Seus atributos fálicos e empenhar-se neles, mas aí, esse "homem de palha da ideologia sexologista",
preocupado antes de tudo em preservar este desconhecimento que lhe dá a ilusão de ser um homem, um "Verdadeiro"..., enquanto não passa de um aspectro, apresentará este sintoma tão comum: vejam vocês, diz ele, a mulher a quem amo, eu respeito, e trepo com aquelas que me são indiferente(...) Fazer da exclusão do desejo a condição do amor é exemplo de impotência maior, esta consiste em não poder olhar de frente a verdade da castração (Leclaire, 1977, p. 39).
Ou então, este outro sintoma mais terrível, esta sobreadaptação às exigências fálicas culturais, que levam ao esquecimento do corpo e à morte ou invalidez prematuras por enfartes, úlceras e derrames.
Mas existem dois caminhos onde este sol negro não é evitado e a perda da mãe pode ser otimizada e erotizada, sem conduzir à introjeção depressiva ou melancólica do objeto materno (Kristeva, 1989): um, é a metamorfose desse objeto primordial em objeto erótico sublimado através das construções culturais; o outro, é quando encontra o amor verdadeiro, ou quando, para encontrá-lo, não teme enfrentar o sol negro em si, para poder enfrentá-lo na mulher, para poder aderir à sua vagina, tocar seu útero e ter acesso à castração. É verdade que "desejo e amor não são certamente a mesma coisa, mas é do desconhecimento perpetuado da castração que se origina e se legitima a distinção entre os dois" (Leclaire, 1977).
Para a mulher, o esforço psíquico, intelectual e afetivo que deve fazer para encontrar o outro sexo como objeto erótico é imenso:
Se a descoberta de sua vagina invisível já demanda à mulher um imenso esforço sensorial, especulativo e intelectual, a passagem para a ordem simbólica ao mesmo tempo que para um objeto sexual, de um sexo diferente daquele do objeto materno primordial, representa uma elaboração gigantesca na qual uma mulher investe um potencial psíquico superior àquele exigido do sexo masculino (Kristeva, 1989, p. 35).
Ao invés disso, o objeto perdido pode ser reencontrado como objeto erótico homossexual, ou então, o que é muito freqüente nas mulheres, a introjeção do objeto materno, em lugar do matricídio, que condena à morte depressiva do ego. A inversão da pulsão matricida em figura materna mortífera na mulher é mais difícil, ou quase impossível, pela imediatez da identificação especular com a mãe, e também a introjeção do corpo e do ego maternos. O ódio contra a mãe não se exerce para fora, mas se fecha em si, transformando-se em um humor implosivo, que mata escondido, em fogo brando, em amargura permanente, em acessos de tristeza ou até o sonífero letal, na esperança de encontrar a completude imaginária na morte. O homossexual masculino participa dessa mesma economia depressiva (Kristeva, 1989, p. 34).
Uma outra saída é refugiar-se no fantasma convicto de ser imortal na e para além da morte (a Virgem Maria), que enraiza-se no narcisismo negativo (Kristeva, 1989). Quantas vezes podemos encontrá-lo na abnegação de mães por seus filhos, ainda que um desdobramento de seu narcisismo seja necessário para a mulher se tornar mãe, só que sob percalços que incluem a agressividade (Hilferding, Besserman & Pinheiro, 1991).
Mas de certa forma podemos dizer que mesmo quando admiravelmente a mulher consegue erotizar o objeto masculino e aceder à ordem simbólica, a facilidade e a maturidade masculinas encobrem uma propensão a celebrar o luto problemático do objeto perdido, que continua lancinante sob esta cripta.
A menos que uma introjeção maciça do ideal venha satisfazer, ao mesmo tempo, o narcisismo com o seu lado negativo e a aspiração de estar presente na arena onde se decide o poder do mundo (Kristeva, 1989, p. 35).
O gozo fálico pode ser freqüentemente suficiente para a realização psíquica da mulher. A competição ou a identificação com o poder simbólico do parceiro podem constituir uma compensação, bem como a compensação profissional ou materna e até mesmo o prazer clitoriano. Funciona melhor ainda quando ela mantém o sobretudo protetor de seu pai. Não como um abrigo provisório que a permita existir como mulher separada da mãe. Mas quando, para evitar o ódio perigoso mas necessário contra este amado pai antes que a ternura possa advir (perigoso, pois pode impeli-la de volta a uma espécie de abraço sem saída à mãe, e necessário, senão ela fica fixada neste primeiro amor masculino), ela se gruda nele, moldando-o como se fosse a sua segunda pele.
O gozo fálico e o refugio do narcisismo secundário no próprio corpo, com sua transformação em objeto fálico que o faz objeto de amor pela mulher, são os disfarces da frigidez. A mulher fálica e a mulher narcísica são talvez duas imagens estereótipos que apontam para a consideração de dois aspectos fundamentais que basculam nas análises de mulheres e que podem levar à resolução da frigidez: o reconhecimento integral da inveja do pênis, ainda que seja difícil a ela chegar, ainda mais se ela é ativa ou se há a aparência de uma identidade feminina fortemente constituída, e a análise do narcisismo primário que sustenta uma retração no amor à própria imagem.
E o que é este outro gozo que não é o gozo fálico, ao qual homens e mulheres atribuem um valor quase sagrado, até mesmo místico?
Para a mulher,
o fantasma que o imagina e realiza visa mais profundamente o espaço psíquico e corporal. Mas isso exige que o objeto melancólico que obstrui o interior psíquico e corporal seja literalmente liquefeito por um parceiro capaz de dissolver a mãe aprisionada, dando tudo que ela pode e, sobretudo o que ela não pode dar, e que se mantém no lugar, não da mãe, mas do que pode proporcionar o dom maior do que ela jamais pode oferecer uma vida nova. Um parceiro que não tem nem o papel do pai que gratifica sua filha de forma idealizada, nem aquele do padrão simbólico que se trata de atingir numa competição viril. O interior feminino (no sentido do espaço psíquico e da vivência corporal, da associação ânus vagina) pode então deixar de ser a cripta que engloba a morte e condiciona a frigidez. A condenação à morte de mãe mortífera confere ao parceiro o charme de um doador de vida, precisamente de um "mais-que-mãe". Ele não é uma outra mãe fálica mas, sobretudo, uma separação da mãe através de uma violência que destrói o mau, mas que também dá e gratifica. O gozo dito vaginal que se segue é simbolicamente dependente de uma relação com o outro imaginado não mais numa supervalorização fálica, mas como re-constituinte do objeto narcísico e como capaz de assegurar o seu deslocamento para fora dando um filho e tornando se ele próprio o traço de união entre o laço mãe-fílho e o poder fálico, ou então favorecendo a vida simbólica da mulher amada(...) No fantasma feminino, esse gozo supõe o triunfo sobre a mãe mortífera, para que o interior se torne fonte de gratificação, sendo, ao mesmo tempo, fonte de vida biológica, de concepção e maternidade (Kristeva, 1989, p. 78).
Françoise Dolto distingue quatro orgasmos na mulher: o clitoriano, o clitoriano vulvar, o vaginal e o útero anexial, erradamente confundido com os anteriores, sobretudo com o vulvo-vaginal, porque não é sentido conscientemente pela mulher e, assim sendo, nunca é por ela mencionado. Ela enfatiza a importância de diferenciá-lo dos outros por razões libidinais referentes à teoria psicanalítica. Para ela, ele proporciona o máximo de gozo, secreto e silencioso, característico deste orgasmo, gozo tão vivo que não é compatível com a manutenção da sensação de existir para a mulher. Esse gozo só é testemunhado pelo seu parceiro.
É imediatamente após o término desta revolução órgano-psíquica resolutória que a mulher recupera sua consciência por um instante desaparecida, arrebatada, que ela se lembra de ter sido em seu gozo, no último ponto de impacto vaginal, como que arrebatada por algum vagalhão, ao mesmo tempo em que experimenta uma sensação intensa de bem-estar e de reconhecimento para com seu parceiro(...) Esse orgasmo é plenamente satisfatório para uma mulher, tanto do ponto de vista emocional... como do físico... e seu efeito de renovação energética se faz sentir em todos os domínios psicossomáticos e emocionais (Dolto, 1984).
Mas como significar este gozo? Essa sensorialização da vagina e do útero, tão arduamente conseguida pela mulher, ganha ela representação no inconsciente? Aquilo que Dolto descreve como o orgasmo útero-anexial, não seria aquilo que o Ocidente conhece atualmente como o ponto G, uma bolsa na forma de uma moeda que contém líquido, que os hindus chamam de Rajas (Rajneesh, 1977, 1991), que é reassimilado depois pelo organismo após o declínio da excitação sexual, proporcionando à mulher saúde e maior sensibilidade a cada relação sexual?
Para o homem, tenho a impressão que ele pode, ainda nos jogos amorosos preliminares, temer a mulher como uma estranha feiticeira, o que pode levá-lo a desencantá-la defensivamente. Mas se ela não se assusta, e se ele puder enfrentar o fantasma de uma vagina que come pedaços, lembrando de que ela é doadora de surpresa e criação, ele pode erotizar o desafio de encontrar o lugar do tesouro. Esse outro gozo, que ele também almeja, implica na possibilidade de alegrar-se em ocupar para a mulher amada, um lugar antes insuspeitado por ele. Sua potência viril, vivida antes temerosamente por ele, muitas vezes sob um fantasma agressivo e destruidor, pode ser fonte de dádiva e de vida, ao provocar uma morte fantasmática desejada pela mulher. A sombra do fantasma incestuoso fica definitivamente afastada, ao sentir, na mulher amada, as luzes e a música que seu desejo de perder-se nela e dela se alimentar produz. Ele pode, secundariamente, ver afastados os fantasmas de seus competidores imaginários e se reassegurar de sua integridade. Ao desfantasmar os líquidos femininos, pode prolongar o seu prazer.
E o que significa este outro gozo para os dois?
Para Kristeva, é a linguagem do corpo feminino que provisoriamente triunfou sobre a depressão, sobre a morte imaginária da qual o ser humano, nascido sem maturidade, é o jogo permanente se a mãe o abandona, o negligencia ou não o compreende (Kristeva, 1989).
Para Dolto, o coito é o ato surrealista no sentido pleno do termo, um ato deliberado, num tempo em suspenso, um lugar onde dois corpos se desrealizam pela sua comum e complementar referência peniana ao falo.
O ponto onde se manifesta a força fálica impessoal, nascida do narcisismo abandonado, é o acme da curva de confrontação, em cada uma das pessoas do casal, das pulsões de vida com os ritmos vegetativo-circulatório e respiratório intensificados em sua amplitude até a aceleração cardíaca, e das pulsões de morte, no silencioso, total e profundo abandono da "consciência consciente", vale dizer, o gozo durante a realização do orgasmo. (Dolto, 1984).
A questão que se coloca para mim é se esse "ponto G", ao invés de ser um ponto culminante, não seria a chave e a porta para um túnel do tempo que leva a ambos, homem e mulher, para uma outra temporalidade, verdadeira vertigem, infinito de anéis em espiral que pelo seu movimento reflexo coloca em contato com as forças das quais os corpos biológico, erógeno, dos objetos parciais, são apenas apreensões, estruturações. Tempo instante, rasgo inesperado e fugaz de liberdade que só pode surgir ao ser banhado por um tempo duração.
Este tesouro escondido no corpo feminino (que algumas vezes aparece nos sonhos de início de análise de mulheres), lugar do mistério e do bem-estar corporal, daquilo que está além das palavras, só é possível pela assunção da castração da mulher, o que não quer dizer sua amputação. Não o lugar do que falta, mas da fenda, do vazio criador, que só então se justifica para ela. Daí a ternura e gratidão ao parceiro amoroso. Mas ele também fica agradecido por esta vivência de ser succionado através de um mar quente para um outro tempo e lugar, que nunca se sabe de antemão qual será, a lua, a montanha, o sol, a selva, as estrelas, o mar, o fogo, a luz. Gratos por um instante supremo de vivência de eternidade e de serem deuses. Ao final, o Eu pode se perguntar: mas era tudo/só isso? Esse é o momento perigoso onde pode aparecer a angústia em qualquer um dos parceiros. Somente a delicadeza e a ternura do amor reassegurado por gestos e palavras pode acalmar este Eu que renasce, confrontado ao que antes foi vivido apenas nas sonoridades ou no silêncio.
Foi o que descobriu Sabina Spielrein, em 1912:
Assim que reina o amor, o Eu, esse obscuro tirano, periga. Para a pessoa que ama, a dissolução do eu no ser amado representa ao mesmo tempo a suprema afirmação de si, uma nova vida do eu na pessoa do outro. Mas na ausência do amor, a modificação psíquica e física do indivíduo sob ação de uma potência exterior tal que o ato sexual comporta, só pode engendrar representações de destruição e morte.
Se há o amor, o mergulho nesta Qualquer Coisa (o termo é dela), neste mar, nesta mãe, neste lugar original, onde não há lugar, tempo, nem contrários, faz com que cada partícula de nosso ser, cada parcela do eu que foi reenglobada por esse mergulho, reapareça reordenada, diferenciada (Spielrein, 1981).
o que é impossível no mergulho psicótico, mas também atingido na criação artística. Desejo de transformação, processo de destruição do eu ao fim do qual nasce um novo devir.
É sobre o tempo que fala o músico poeta Chico Buarque de Holanda quando diz: "Depois de te perder, te encontro com certeza, talvez no tempo da delicadeza... onde não diremos nada... nada aconteceu... apenas seguirei como encantado ao lado seu".
Se estas problematizações correm o risco de levar a um novo misticismo ou romantismo de moda, sem enfrentar estes novos desafios, a psicanálise corre o risco de se desvitalizar, no quadro contemporâneo de uma cultura profundamente mudada, em um momento de crise, mas que mostra os sinais de nascimento de novas subjetividades. Isso implica em considerar que a psicanálise é uma produção da cultura humana que não existiu sempre, e nada garante que continuará existindo. Ela sempre esteve em movimento, passível sempre de recriações. Ela caminha para onde vai o feminino, ainda que estruturada pelo masculino. Foi o que Freud vislumbrou após escrever seu livro que ele não quis profético, mas que é hoje de uma atualidade impressionante, que corajosamente revolucionou o edifício construído em tantos anos, "O mal-estar na civilização". Após o escrutínio infindável de Roma, ele pode voltar a pensar na flor preferida de Marta.
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1 Francisco Elinaldo Teixeira, texto inédito, sem título.
2 Esta última parte foi publicada, na sua primeira versão, no debate sobre "O mal estar na sexualidade" promovido pelo Anuário Brasileiro de Psicanálise, 1992/1993, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1992.
3 Para empregar uma feliz expressão de Monique Schneider em seus seminários realizados no Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, em 1991.