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Psicologia USP
On-line version ISSN 1678-5177
Psicol. USP vol.6 no.2 São Paulo 1995
ARTIGOS ORIGINAIS
A RELAÇÃO PSICOTERAPEUTA-CLIENTE
Eva Maria Migliavacca
Neste trabalho serão abordados alguns aspectos que podem ser observados no decorrer do processo terapêutico psicanalítico e desenvolvidas algumas reflexões a respeito. O trabalho clínico oferece a possibilidade de observação, de compreensão, de elaboração dos movimentos mentais, sim, mas sobretudo a oportunidade da vivência de uma relação entre duas pessoas em toda sua riqueza, ao mesmo tempo em que se a analisa. Diante de tanta complexidade, torna-se importante assinalar que não se pretende esgotar esse assunto - muito longe disso -, se por mais não for, por ser tão inesgotável quanto são as nuanças do relacionamento humano.
Ao se considerar a relação terapeuta-cliente, delimita-se de imediato um campo específico. É uma relação com características próprias, que se desenvolve num contexto especial, por estar voltada predominantemente à apreensão do funcionamento mental de uma das partes, no caso, o cliente. O objeto de análise nessa relação é a realidade psíquica do cliente.
Quando procura um atendimento psicológico com a finalidade de desenvolver um processo terapêutico, normalmente o indivíduo está motivado pela perturbação e pela dor que lhe causam dificuldades emocionais com as quais não consegue lidar bem, sozinho. Sendo assim, já no movimento da procura, há um processo de reconhecimento de que algo lhe falta, ou de que algo é excessivo em sua pessoa. Não é um passo fácil de ser dado, pois implica a admissão de que precisa de alguém. Dependendo, porém, da capacidade de tolerar frustrações e também do grau de sofrimento experimentado pelo indivíduo, fica mais suportável conviver com tal necessidade.
A partir do momento em que o indivíduo chega à sala de consultório e que se opta por iniciar uma psicoterapia, estabelece-se um contrato de trabalho, no qual a proposta básica é examinar o funcionamento psíquico daquela pessoa. Tal investigação pode auxiliar o paciente a identificar, ampliar e melhor usar os próprios recursos de personalidade a seu favor. No trabalho analítico de longo prazo, em geral as queixas se ampliam e o campo de ação da análise se aprofunda.
Pode-se dizer que o indivíduo inicia uma terapia para viver algo que lhe faltou; para recuperar uma experiência emocional que lhe foi insuficiente ou que não teve, mas da qual intui a existência. Propõe-se, então, a busca de tal experiência.
Na verdade, não se pode conceber uma experiência emocional isolada de uma relação. É preciso pelo menos duas pessoas se relacionando para que tal ocorra, e esse acontecimento não é isento de dor. O terapeuta, então, precisa ficar atento para o que se passa, pois a dor psíquica pode ser amenizada com a integração de aspectos da personalidade do paciente, aos quais ele não tinha livre acesso. Neste caso, Bion (1966) chama a atenção para o indispensável cuidado de quem atende em aquilatar o risco de uma catástrofe tanto para a integridade mental do paciente quanto para o próprio trabalho analítico, se a dor for excessiva. Se o paciente suporta, pode elaborar a situação que se impõe, ampliando assim sua capacidade de tolerar o que lhe causa sofrimento.
Há um encontro entre duas pessoas, portanto, e certamente nele se dá uma multiplicidade de fenômenos emocionais. O que distingue esse encontro de outros, em diferentes contextos - sociais ou amorosos, por exemplo -, é o fato de que a atenção do terapeuta está concentrada em como o paciente vive tais fenômenos e os analisa.
Pode-se ilustrar esse ponto, digamos, com um aspecto da terapia de crianças. Geralmente, usa-se uma caixa de brinquedos, mas a criança não vem à sessão só para brincar, só pelo aspecto lúdico. Ela vem também para a terapia, ou melhor, especialmente para a terapia, isto é, para compreender melhor a si mesma e apossar-se de sua identidade através dos jogos que desenvolve e do entendimento do sentido desses jogos, de tal forma que chegue a ampliar seus recursos mentais para lidar com sua realidade mental.
O fato é que na relação terapeuta-cliente manifestam-se as mais variadas e contraditórias reações. Amor, ódio, medo, inveja, culpa, depressão, gratidão, ansiedade, o que for, o que importa é acolher e analisar como o paciente lida com tais turbulências. Ao viver tais emoções e sentimentos, na verdade o paciente estaria revivendo ou procurando resgatar experiências emocionais antigas e sofridas com seus primeiros objetos de ligação, sem que se dê conta disso. Há uma variedade de fenômenos vividos pelo paciente e acontecendo no encontro terapeuta-cliente, ao qual se dá o nome de transferência, como assim o denominou Freud (1912) no início de suas investigações do mundo mental, que é essencial perceber no âmbito do trabalho clínico. Evidentemente, o terapeuta é passível de experimentar os mesmos fenômenos com muita intensidade e o que se espera é que consiga instrumentalizar suas vivências a favor do trabalho.
Os fenômenos transferenciais, quando captados e elaborados, permitem grandes evoluções no trabalho. Podem se dar sentimentos amorosos, com disposição favorável ao trabalho, permitindo que o atendimento decorra com mais facilidade. Podem predominar sentimentos profundamente eróticos, quando o paciente procura mudar a relação para uma espécie de namoro; ou então sentimentos hostis muito intensos, criando-se uma barreira contra tudo que o terapeuta diz. Não é de espantar também o surgimento de tentativas de controle da capacidade de trabalho do terapeuta, por parte do cliente, como um subterfúgio contra a dor. As nuanças desse fenômenos são infindáveis e, quando adequadamente analisadas, revelam-se extremamente ricas e produtivas para o desenvolvimento da terapia.
Ao longo desse árduo trabalho que se amplia e se aprofunda lentamente, observa-se como o paciente pode adquirir e bem usar novas percepções. Ele faz um confronto consigo mesmo e, grau a grau, pode tornar-se capaz de aproveitar ao máximo a experiência vivida. Se ele consegue tolerar a dor do crescimento, surgem novos elementos e também novos problemas a serem enfrentados. Ele pode reconhecer o dano que causou a seus objetos de ligação e a si mesmo. Tolerando a culpa então sentida, procura uma atitude reparatória verdadeira, que depende de sua capacidade de amar e de conter os impulsos agressivos. Elaborando esses acontecimentos mentais - que Klein (1970) chamou de posição depressiva - o indivíduo se torna responsável pelos seus atos, cuidadoso com seus objetos de ligação, capaz de respeitar a si próprio e aos outros. Para isso, contudo, precisa ser capaz de suportar a angústia, e se esta lhe é excessiva, o paciente não mede custos e expele de si os próprios conteúdos emocionais, retornando a um estado anterior, vivido como mais gratificante.
Esse processo é sempre oscilante e o trabalho clínico permite observar os conflitos que aí se dão. O terapeuta não pode induzi-los nem determiná-los, mas sim mostrar ao cliente o que se passa. O uso que o paciente fará daquilo que o terapeuta consegue ver e comunicar foge inteiramente ao controle deste último e também requer análise.
É claro que para que esse trabalho se desenvolva é necessária uma boa dose de confiança, o que não impede o paciente de se utilizar de defesas que o protegem contra a sensação de estar excessivamente a descoberto. E isso precisa ser respeitado.
É necessário, portanto, que o paciente seja acolhido empaticamente; necessário que ele se sinta num meio bom o bastante para aceitar que ele se expresse e também que se recolha, isto é, que ele possa existir de um modo suportável para conviver com o reconhecimento de seus próprios conteúdos emocionais ou de sua realidade mental.
Winnicott (1972) afirma que para que o bebê cresça sadio é preciso o que ele chama de mãe suficientemente boa, aquela que o ajuda a desenvolver o sentido da realidade, a descobrir seus limites e também seu alcance. Assim, o modo como o terapeuta escuta, elabora e devolve ao paciente seus entendimentos, tem influência no modo como este último recebe aquilo que lhe é entregue - ainda que não seja realmente determinante. Na verdade, há um interjogo constante que exige atenção e cuidado do terapeuta, nas mãos de quem está grande parte da qualidade do trabalho que se desenvolve.
Pode-se ainda afirmar que a qualidade da ligação afetiva entre terapeuta e cliente é fundamental para o desenvolvimento do trabalho. Disso depende não só suportar a frustração de desejos, a contenção de angústias, o desvanecimento de expectativas, mas também, e sobretudo, o entendimento do indivíduo como uma totalidade. Do amor presente na relação terapeuta-cliente depende, em grande parte, a integração psíquica, a descoberta e apreciação da própria individualidade e o desenvolvimento da noção de que se é alguém digno de ser amado. Se ainda aqui quisermos nos referir à teoria, desse amor depende o estabelecimento do que Klein (1970) chamou de bom objeto interno. Esse aspecto, penso, pode orientar em grande parte a vida do paciente e tornar gratificante também para o terapeuta a realização de seu trabalho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BION, W. Os elementos da psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar, 1966. [ Links ]
FREUD, S. (1912). A dinâmica da transferência. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1969. v.12, p.133-43. [ Links ]
KLEIN, M. Uma contribuição à psicogênese dos estados maníaco-depressivos. In: Contribuições à psicanálise. São Paulo, Mestre Jou, 1970. p.355-89. [ Links ]
WINNICOTT, D.W. As comunicações entre o bebê e a mãe, e entre a mãe e o bebê, comparadas e contrastadas. In: JOFFE, W.G., org. O que é a psicanálise? Rio de Janeiro, Imago, 1972. p.35-53. [ Links ]