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Mental

Print version ISSN 1679-4427

Mental vol.7 no.13 Barbacena  2009

 

ARTIGOS

 

A construção de ofícios terapêuticos em saúde mental

 

The construction of therapeutic jobs in mental health

 

 

Margarete Aparecida Domingues* ; João Luiz Paravidini**

Universidade Federal de Uberlândia

 

 


RESUMO

No presente artigo estão os resultados obtidos na pesquisa de mestrado realizada acerca do “fazer artístico” no trabalho de oficinas terapêuticas, a partir do discurso de usuários e profissionais em quatro municípios do Estado de Minas Gerais. O trabalho nas oficinas pode ser visto de forma pendular. O “fazer artístico” tanto pode levar os atores envolvidos a uma paralisia, se realizado de forma repetitiva (na via do que em Psicanálise é denominado de automatismo de repetição), quanto produzir a criação, o novo e a trans¬gressão, na vertente da repetição diferencial. As quatro partes do trabalho procuram recobrir o percurso traçado. Na primeira parte apresentamos como surgiu o interesse em pesquisar o tema e o esquadrinhamento da trajetória percorrida. Na segunda, falamos sobre a metodologia utilizada. Na terceira, procedemos à análise e à discussão dos dados obtidos a partir da fala dos atores envolvidos. Na última parte apresentamos nossas considerações finais.

Palavras-chave: Melancolia, Sofrimento psíquico, História, Psiquiatria, Psicanálise


ABSTRACT

In this paper, we intend to report the results of a Masters research on “the making of art” in therapeutic workshops, from the perspective of users and professionals in four cities of Minas Gerais. The work in the workshops can be seen as a pendulum. It can both lead the actors involved during the “making of art” to a paralysis, in a repetitive way (through what in Psychoanalysis is called repetition automatism), as well as to a production of creation, the new and the transgression, on the side of the differential repetition. The four parts of this work seek to review the course that was undergone. In the first part we provide details on how our interest in researching the topic emerged and we do the scrutinization of the trajectory we have gone through. Secondly we discuss the methodology used. In the third part we analyze and discuss the data obtained from the actors involved. And finally we present our last considerations.

Keywords: Therapeutic workshops, Making of art, Repetition.


 

 

OBJETIVO DO TRABALHO

O objetivo do presente trabalho é apresentar um recorte da análise e discussão dos dados obtidos em uma pesquisa de mestrado acerca das ativi¬dades de oficinas terapêuticas, envolvendo o “fazer artístico”, a partir do discurso de usuários e profissionais. O estudo foi realizado no período de 2007 e 2008, em quatro CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), para atendi¬mento de adultos, nos municípios de Betim, Monte Carmelo, Uberaba e Uberlândia, Estado de Minas Gerais.

 

MÉTODO

O percurso metodológico foi composto de quatro partes: a) apresentar a trajetória da pesquisa; b) expor a metodologia empregada; c) mostrar a análise e a discussão dos dados obtidos nesse percurso; e d) explanar sobre as considerações finais

 

1. APRESENTAÇÃO

A loucura sempre esteve enredada, ao longo da história da humanidade, em um véu de preconceitos e ignorância, tendo sido considerada desde uma possessão demoníaca até castigo divino. No âmbito da saúde mental existem muitas controvérsias para circunscrevê-la, o que representa um grande desafio para profissionais desse campo, pois mesmo tendo seus saberes específicos dedicam-se a acolher, diagnosticar e tratar um sujeito “desrazoado”. A partir da implantação da reforma psiquiátrica no Brasil, com a criação dos dispositivos substitutivos à internação psiquiátrica como o Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS) e o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), as oficinas terapêuticas tornaram-se importantes ferramentas no tratamento da psicose, visando tratar o sujeito em sofrimento psíquico grave como um cidadão, que deve se responsabilizar por si e por seus atos e que durante um longo período não teve nenhum reconhecimento social.

O fato de trabalhar no campo da Saúde Mental, em um dispositivo de CAPS e, posteriormente, em um Centro de Convivência e Cultura, e de deparar-se constantemente com indagações e inquietações no cotidiano de nossa prática clínica, despertou o interesse de realizar esta pesquisa de mestrado, que investigou o “fazer artístico” no trabalho de oficinas terapêuticas, a partir do discurso de usuários e profissionais.

Durante a realização das atividades das oficinas terapêuticas observou-se que os atores envolvidos demonstravam forte tendência para executá-las de forma mecânica e, ou, automática. Evidenciava-se, assim, um esvaziamento no ato da produção artística singular, em sua forma criadora e instauradora de rupturas, desvelando-se um assujeitamento dos atores envolvidos, o que impossibilita o surgimento de atos efetivos de transformação. Na Psicanálise este fenômeno, conceitualmente, é denominado automatismo de repetição.

A oficina terapêutica não é somente um espaço para realização de ativida¬des, mas traz em si a dimensão temporal. O conceito de repetição, por definição, traz a marca da diferença e do tempo, portanto a atividade artística não deve ser pensada somente no seu aspecto mecânico, mas também no seu aspecto criativo.

Foram realizadas 30 entrevistas, seguindo um modelo de entrevista semiestruturada, sendo 11 com profissionais e 19 com usuários. As entrevistas tiveram a duração média de 40 minutos e foram realizadas em quatro CAPS para atendimento de adultos, nos municípios de Betim, Monte Carmelo, Uberaba e Uberlândia, no Estado de Minas Gerais.

Para resguardar a identidade dos entrevistados, as cidades foram designadas pelas letras A, B, C e D e os entrevistados foram subdivididos em números. Os números de 1 a 3 referem-se aos profissionais e os demais referem-se aos usuários, com exceção da cidade A, em que somente 1 e 2 são profissionais.

As entrevistas foram divididas em tópicos, de acordo com as respostas obtidas e com o que se sobressaiu de forma repetitiva na narrativa dos entrevistados. Para análise das respostas, foram utilizados os textos de Guerra (2001) e Figueiredo (2002). Buscou-se identificar as categorias de análise conforme as operações-redução propostas por Miller, que são a repetição, a convergência e a evitação, citadas por Guerra (2001), e os segmentos de fala dos diferentes entrevistados, de acordo com Figueiredo (2002), já que para esta autora “... citar é recontextualizar” (FIGUEIREDO, 2002, p. 40). Desta forma, entendendo que ao citar os relatos se refaz mais uma vez o seu sentido, tal posicionamento permitiu pensar sobre o modo de trabalhar com o texto e com as citações das falas dos sujeitos entrevistados.

 

2. METODOLOGIA EMPREGADA

A pesquisa foi orientada dentro dos princípios do método psicanalítico.

Traçou-se um percurso metodológico com os seguintes objetivos:

- Analisar o fenômeno do automatismo de repetição a partir do discurso dos usuários e profissionais; investigar como os profissionais dos CAPS entendem a função da arte na terapêutica com os pacientes psicóticos; e produzir uma articulação entre a clínica do sujeito, advinda da prática psicana¬lítica, e a clínica psicossocial, oriunda da Reforma Psiquiátrica, considerando seus possíveis reflexos na produção da subjetividade e na criação de laços sociais, a partir do trabalho em oficinas terapêuticas.

Para dar consistência à investigação, foi feito um levantamento do aporte teórico sobre o tema, o que não será explorado neste artigo, uma vez que a intenção é mostrar, prioritariamente, aquilo que apareceu de relevante nas falas dos entrevistados, enfocando nas considerações finais os autores que possibilitaram uma articulação com as mesmas.

A seguir está o recorte da análise dos principais dados obtidos e da discussão produzida, dada a extensão do estudo.

 

3. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

Os serviços de Saúde Mental das cidades visitadas são muito heterogêneos e têm envolvimento distinto com as propostas da Reforma Psiquiátrica. À medida que as falas dos sujeitos começaram a ser analisadas, alguns elementos se destacaram e se repetiram, possibilitando decantar os analisadores que permitiram fazer um mapeamento das indagações norteadoras do estudo: a) perturbação do coordenador de oficinas sobre sua função; b) a oficina como um espaço, como um lócus; e c) o saber sobre o sujeito é do profissional/instituição.

 

PRIMEIRO ANALISADOR: PERTURBAÇÃO DO COORDENADOR DE OFICINAS SOBRE SUA FUNÇÃO

Através das falas de profissionais percebeu-se que na condição de coorde¬nador de oficinas apareceu uma perturbação sobre o que representa essa função, o que indica que este analisador é da ordem de uma incerteza. Cada profissional conduz o trabalho de oficinas orientando-se pela sua formação profissional.

O entrevistado A1 relatou que trabalha com o “fazer” numa oficina chama¬da de terapia ocupacional (TO), em que sua função é a de resgatar no usuário vínculos que foram desfeitos durante o processo de adoecimento, assim como melhorar sua autoestima. Se por um lado existe um aspecto interessante, que é o resgate dos laços sociais, por outro o entrevistado diz que seu objetivo na oficina é trabalhar a relação paciente/família. Ele discorreu sobre funções gerais do dispositivo de CAPS, mas não expôs claramente seu ofício na coordenação de oficinas. Chegou a afirmar que estabelece uma relação de “grude” com os pacientes, não conseguindo deixá-los com outra pessoa, e que na oficina eles formam uma família, demonstrando manter uma relação especular1 com eles (“[...] Eu sou daquele tipo que pega na mão do usuário e aí eu acho que eles grudam”).

O entrevistado B3 relatou que a organização da oficina deveria ser feita por afinidade com o trabalho, mas que isso na prática não se efetiva (“[...] como eu falo? [...] é mesmo de horário de distribuição [...] o ideal seria que a pessoa se identificasse com aquilo que é feito, mas nem sempre acontece [...]”). A distribuição é feita de acordo com o número de atividades que cada profissional tem para cumprir. A fala de B3 mostrou que as oficinas não são conduzidas pela afinidade do coordenador com alguma atividade, mas que ele é encaixado para atender à organização institucional estabelecida a priori.

As entrevistas revelaram uma grande confusão por parte dos profissionais sobre o que fazer com os usuários em crise, repetindo-se a tendência de não incluí-los nas atividades, por considerá-los incapazes de participar e porque se supõe que alguém em crise vai tumultuar a oficina. O entrevistado B1 relatou que trabalha nas oficinas com a questão da facilidade, não incluindo de imediato o paciente em crise, pois considera que quem está em crise pode não conseguir lidar com minúcias. Pareceu que por não conseguir definir qual é o seu papel na condução de uma oficina dentro desse dispositivo, a tendência foi procurar trabalhar com o que lhe exige menos (“[...] A gente trabalha com a questão da facilidade, coisa que é muito complexa [...] a gente tenta não trabalhar de imediato com o paciente que tá mais em crise, [...] que tá mais comprometido? A gente trabalha com coisa menos complexa [...])”.

Constatou-se que é muito mais cômodo para o profissional/instituição não receber e não lidar com o paciente em crise. Ocorre que o dispositivo foi criado para atender os usuários que apresentam uma desorganização psicótica, com suas produções delirantes, com suas alucinações. Os profissio¬nais demonstraram, através de suas intervenções, como é difícil conviver com a desorganização da loucura, com o tumulto que ela provoca.

O entrevistado B3 manifestou que aquilo que vem do paciente e se torna insuportável para o coordenador de oficina ele transfere para o profissio¬nal de referência (“[...] a terapeuta que tá de referência, que acaba conversan¬do algumas coisas. Poderia ser qualquer pessoa [...]). Esse posicio¬namento contribui para a criação de pequenos especialistas dentro dos dispo¬sitivos de CAPS, que vão formar um par simbiótico com o usuário. A tendência é dizer que quem entende o estado psíquico do sujeito é a chamada referên¬cia. Desde aquilo que se apresenta por parte do sujeito em suas manifestações psíquicas mais tênues, até as formas mais atravessadas, o profissional de referência é convocado porque foi ele que deu conta de falar com o outro, de intervir, portanto os outros profissionais nada têm que inventar.

A diferença causa uma perturbação no profissional/instituição. O que pode perturbar, ou dar errado, deve ser evadido, mas o problema é que se trata de doença mental. Toda a montagem, todo o planejamento institucional é para que tudo funcione dentro de uma ordem, sendo insuportável ver os pacientes estragá-la. Parece que o ideal seria que os pacientes não revelassem, com suas produções sintomáticas, a sua própria desorganização.

Os dispositivos institucionais funcionam como máquinas, no sentido da produção da mesmice, e vão estabelecendo previamente uma rotina para que os sujeitos funcionem dentro de uma engrenagem, de uma ordem, a ponto de não causar diferença alguma. Os sujeitos sequer fazem parte da criação dessa ordem. Essa é a lógica, e os dispositivos institucionais tentam fazer frente à perturbação. Entretanto, ela pode ser atravessada pelos próprios sujeitos, como se percebeu no discurso de um usuário ao enunciar: “[...] falar o que? Aqui não há nada para fazer”. Esse relato sugeriu ser uma denúncia de como as oficinas estão constituídas e de como os profissionais reproduzem o funcionamento institucional.

Chamou a atenção o posicionamento repetitivo dos usuários C4 e D11, pois em seus primeiros enunciados sobre as atividades nas oficinas enfatizaram que tudo está arrumado, funcionando corretamente. Ressaltaram que os pro¬fissionais são responsáveis, atenciosos e prestativos. Evidenciou-se com seus discursos que é como se as oficinas existissem para funcionar de forma ordeira, como se nada pudesse escapar ao controle. Mesmo não demonstrando (in)satisfação, indicaram que ainda há algo que poderia melhorar: (C4)

“Porque nós as mulheres aqui precisa de muito carinho, não é? [...]” e (D11) “É pra sair melhor[...] o trabalho. Sempre buscando o melhor”.

Nos discursos dos próximos usuários entrevistados evidenciou-se claramente uma insatisfação: B7 expôs sua dificuldade em aproveitar o espaço da oficina, uma vez que não consegue avançar na produção da construção de laços sociais, destacando que há uma convivência superficial nas relações. Ele destacou que ali se produz, somente, uma “conversa fiada”, ficando subjacente à sua fala uma crítica à condução das oficinas (“[...] às vezes eu tenho dificuldade de ficar conversando com as pessoas, [...] conversar fiado, [...] eu tenho dificuldade...é isso!.”).

O entrevistado B8 fez uma queixa explícita de que no espaço de oficinas as pessoas que coordenam não o deixam falar, que querem mais falar do que ouvir (“Ah! ...Aí elas quer mais falá do que ouvi... que elas não sabem ouvi... só sabem falá... É...tem que ter mais espaço pra escutar do que pra falar...”). Os usuários demonstraram de forma velada ou explícita que a oficina poderia atender melhor às suas demandas se o coordenador estivesse mais afinado com a posição que ocupa. Eles interrogaram sobre esse fazer, deixando nas entrelinhas uma possibilidade de se fazer diferente, de uma forma mais criativa.

Com relação à perturbação na função do coordenador de oficinas, percebeu-se que ela não é unânime entre os profissionais, haja vista que alguns destaca¬ram que sabem o que fazem e o “fazer” relaciona-se com a postura assumida no exercício desse ofício. Suas falas serão mostradas no segundo analisador, quando a oficina será enfocada como um lugar possível de desconstrução do sujeito.

O discurso de profissionais e usuários evidenciou como a Reforma Psiquiátrica deixou lacunas que hoje parecem ser de difícil transposição. A sociedade não está pronta para acolher a loucura, circulando livremente. Vimos que até mesmo os profissionais inseridos dentro dos dispositivos apresentam grande dificuldade para lidar com a desorganização provocada pela loucura, e a tendência é encaminhar o paciente em crise para quem se encarregue dele (profissional de referência, ou mesmo o internamento). Entretanto, existem movimentos de resistência a essa situação. A clínica psicossocial e a clínica do sujeito estão inseridas dentro dos dispositivos, procurando delinear um novo lugar social para a loucura, buscando seu reconhecimento como um sujeito de desejo e de direitos e que pode responsabilizar-se por si e por seus atos.

 

Segundo analisador: a oficina se configura como lócus de realização de atividades

A formação de todo CAPS ancora-se na constituição das oficinas que se configuram como um espaço privilegiado para realização de atividades. Em muitos serviços de saúde mental, o lócus oficina e os CAPS se fundem. As oficinas surgiram nas falas dos entrevistados como um lugar de simbolização e de elaboração; de trocas e de socialização; de ocupação do tempo e da mesmice; de distração; de aprendizado; e como um lugar possível de descons¬trução do sujeito.

A OFICINA COMO LUGAR DE SIMBOLIZAÇÃO E DE ELABORAÇÃO

As oficinas terapêuticas, segundo os relatos, abrem possibilidades para a concepção de arranjos mais criativos. Emergiu no discurso dos entrevistados que elas têm uma potência genuína, mesmo ocorrendo em alguns momentos um esvaziamento dos sujeitos envolvidos e da produção obtida. Foi possível também perceber como os profissionais entendem a função da arte na terapêutica com os pacientes psicóticos.

O entrevistado B1 destacou uma extinta oficina de pintura como um lugar de elaboração, onde os pacientes retratavam suas emoções, e uma oficina de dança como um lugar de catarse ((B1) “Sabe, assim...às vezes, eles faziam alguma pintura e se retratavam com aquilo.. e conseguiam,... trabalhar o que eles tavam sentindo. ... Tem a dança. Eles adoram... É bem de catarse mesmo...”). Relatou também que é mais comum existir no CAPS oficina de artesanato, não a enxergando com uma finalidade artística, que poderia causar um efeito na terapêutica dos pacientes.

Percebe-se que o artesanato é apreendido no seu discurso somente como uma atividade de execução, e que para ele há mais “fazer” do que simboliza¬ção da parte dos usuários. O entrevistado pareceu, em um primeiro momento, ficar enredado na repetição do trabalho, preso à ilusão do que acreditou ter funcionado como ideal, recordando-se das oficinas do passado. Porém, ao visualizar a oficina de dança com um grande potencial terapêutico e a diferença que ela causa na vida dos usuários, fez um deslocamento no tempo, trazendo o que é da ordem da repetição diferencial, no seu aspecto positivo.

O entrevistado D2 apresentou a oficina terapêutica como um lugar de expressão, elaboração e estabilização dos pacientes desorganizados ((D2)”...A minha função, acho que é um pouco, assim..., incentivar, porque os pacientes que estão graves, muitas das vezes, eles têm a dificuldade de se expressar... Então, a atividade, ela vai proporcionar essa expressão deles, a subjetividade, a vontade...”). A fala deste entrevistado reitera outras falas de profissionais, demonstrando que a oficina é um lugar de expressão, de resgate da subjetivi¬dade e de promoção da estabilidade, através do fazer artístico, daqueles pacientes que estão desorganizados. Se por um lado a oficina tem essa função para o profissional, por outro ele indica que o caminho a se percorrer é do próprio usuário, porque ele tem haverá ver com as suas próprias escolhas.

Para o usuário B4, a oficina de artesanato foi um lugar onde ele pôde se reorganizar através do vagonite e elaborar as coisas ruins da cabeça (“... Enfim, eu tô falano do que eu gosto... É dificuldade que você tem que vencer. Mas o vagonite é muito interessante. Tem uma lógica, sabe? Ajuda a me reorganizar a cabeça...”).

Percebe-se com a fala do paciente B4 que a oficina, mesmo sendo um lugar que tem uma dimensão terapêutica, é também um lugar onde outras lógicas se agregam, pois com o próprio fazer ele foi reorganizando sua vida, saindo de um lugar cristalizado, para alcançar outras possibilidades. A emersão do novo, da repetição diferencial, pode-se dar através de um “fazer” que tem uma concretude, e que mesmo sendo realizada de forma automática possibilita uma mudança de posição subjetiva. Seu discurso permite dizer que se a oficina terapêutica for tomada como um dispositivo de potência, em que várias lógicas se cruzam e vários sentidos podem ser produzidos, os sujeitos inseridos podem engendrar sempre novas possibilidades de subjetivar-se.

O paciente B7 tomou a atividade artística como forma de expressar o que está sentindo no momento. Disse que se está se sentindo triste, isso vai se refletir na sua produção. A dança representa uma possibilidade de se libertar desse estado e como forma de expressar seus sentimentos (“... É uma forma de expressar o que a gente tá sentino no momento... eu procuro por na arte, ou na dança, ou no desenho... aquilo que eu tô sentino no momento. Se eu tô triste... cê faz um desenho mais triste... ou você dança mais desanimado... no desenho, também você pondo aquilo pra fora no desenho... você procura tirar de você...”).

O entrevistado utiliza-se das oficinas que envolvem a arte como um lugar genuíno de expressão. Consegue se lançar na atividade e fazer desse espaço um meio para se sentir melhor, mesmo que exprima no desenho a sua tristeza ou na dança, o seu desânimo. Mesmo havendo esse movimento repetitivo, consegue transformá-lo em um momento lúdico.

A OFICINA COMO LUGAR DE TROCAS E DE SOCIALIZAÇÃO

Nos relatos de profissionais e usuários, a oficina é um espaço de socializa¬ção que propicia diversas trocas, convivência, interação, em que cada um opera com sua própria lógica temporal, propiciando a emergência da repetição diferencial e a transformação na subjetividade dos envolvidos. Com C2 e C3 percebe-se a ênfase que dão à participação, à socialização e à reinserção social e de como a oficina pode torná-las possível (C2). “...Os objetivos principais são a participação, a socialização... Se sentem assim bastante úteis, sabe?... é um momento assim que eles percebem que tem alguém que acredita no potencial deles...”. (C3) “... eu acho que... às vezes através da oficina terapêutica a gente tá oferecendo reinserção social pra pessoa (...”).

Ainda que prevaleçam fundamentos norteadores da clínica psicossocial na grande maioria dos serviços, constata-se, através das falas de A1 e A2, que alguns lugares estão calcados numa lógica asilar (A1) “Reabilitação social. É esse é o principal objetivo.; (A2) “Reabilitação deles! trazer a cidadania de volta pra eles! Que eles perderam”...). Os entrevistados falaram de reabilitar o usuário para a vida social. No contexto em que foi usado pelos entrevistados, o usuário é visto mais como um “deficiente” que precisa ser recuperado, reabilitado, do que como alguém que tem um problema grave de ordem psíquica. Essa é a lógica discursiva impregnada dos princípios manicomiais. A visão é incongruente com a ideia disseminada pelos princípios da reforma. Tomar o sujeito nessa dimensão é desconsiderar que ele pode mudar sua posição subjetiva e operar num outro registro. É tentar anular a diferença. A lógica discursiva que rege o trabalho desses profissionais é manicomial e assistencialista esvaziada de propostas de inclusão social.

Diferentemente da lógica descrita, constatou-se que o trabalho de reinserção social pode trazer a marca da diferença quando começa a operar num outro campo, num outro tempo: um tempo fora da instituição. Ao sair do espaço institucional, o usuário pode produzir novas marcas subjetivas e se deparar com um Outro marcado pela falta, o que pode gerar indagações sobre si e outras implicações subjetivas. O entrevistado B1 enfocou uma atividade que começou a ser desenvolvida por um grupo de bordadeiras nas oficinas do CAPS e que pode ser levada para fora do espaço institucional, para a comunidade, dentro da proposta da clínica psicossocial (“...tem até um grupo aqui de não intensivo, que elas são bordadeiras e elas bordam fora também. Se reúnem... às vezes não se encontram aqui, mas se encontram em outros locais...)”.

A OFICINA COMO LUGAR DE OCUPAÇÃO E DA MESMICE

Percebeu-se como é incômodo para o profissional/instituição lidar com o paciente ocioso, pois segundo os princípios institucionais ele deverá ser capaz e útil. As oficinas são criadas para que o sujeito não fique ocioso, prevalecendo a sua repetição e a paralisia. É como se já houvesse um consenso do que é bom para o paciente. C1 relatou a existência de oficinas chamadas de “oficina de movimento”, “oficina de relaxamento”, criadas com essa finalidade: (“... É assim é rápido, ele num pode esperá muito, a gente peleja, controla... como é que fala? ... relaxamento... a gente tenta com uma música lenta pra ver se eles consegue esperá mais um pouco...”).

Para B3 a oficina é um lugar de ocupação e reprodução da mesmice, salientando que as oficinas, como estão constituídas, têm de ser repensadas e que se tira pouco proveito delas com finalidade artística. Lamenta e relata que preferiria dizer que está tudo bonito, que tudo está andando dentro da proposta antimanicomial, mas não é isso que ocorre. O trabalho acontece dentro de uma paralisia, impossibilitando que seja terapêutico para os usuários. (“... Eu acredito que a forma como ela tá sendo estabelecida hoje no que eu vivencio não funciona, tá? ... Eu acho que as oficinas são muito válidas desde que tenha uma coisa maior, pensada por trás que nem sempre existe... Eu gostaria de falar que tá tão bonito... é uma atividade pra tá ocupando... dentro dessa paralisia é muito difícil ver o terapêutico, entendeu? ... Num acontece o novo, nada é pensado... Eu não acredito que a mesmice das oficinas, ela seja tão terapêutica assim”).

De modo consciente, D3 afirmou que o trabalho realizado é uma mesmi¬ce, mas deixou escapar no seu discurso não acreditar que a mesmice das oficinas seja “tão” terapêutica assim, permitindo pensar que ela foi atravessada nesse momento por uma outra lógica temporal, a lógica do seu inconsciente, mesmo que não tenha percebido isso. Uma oficina que não é tão terapêutica ainda guarda em si a possibilidade de sê-lo. A oficina, mesmo sendo operada na mesmice, produz o novo. O ato repetitivo por definição traz outra tempora¬lidade e é produtor de originalidade.

A fala de D5 mostrou que a atividade é realizada como uma tarefa, como um trabalho. Ao dizer: “Quem manda é o professor...”, percebeu-se que o sujeito está colocado numa posição de entrega, de extrema sujeição, onde ele não interfere em absolutamente nada. Ocupa seu tempo e executa a atividade na via do automatismo, numa posição de alienação perante o outro (“...Quem manda é o professor, eu respeito. Eu já trabalhei com outras profissões, quem manda é o professor...”).

A OFICINA É VISTA COMO UM LUGAR DE DISTRAÇÃO

A oficina é também tomada como um lugar de distração, como se verifica nos depoimentos a seguir. Para D2, as atividades podem se tornar realmente lúdicas, propiciando que o usuário saia da mesmice e descubra novas possibili¬dades. Acreditamos que uma oficina que privilegia o lúdico causa um giro na dimensão temporal do usuário, permitindo-lhe esbarrar na diferença (“... as atividades deles são mais lúdicas... É como se fosse um entretenimento, mas num é só isso pra eles... eles não tem essa consciência de qual atividade é benéfica, mas eu acho importante pela satisfação de tá fazendo a atividade).

O usuário A4 afirmou gostar de artesanato, ilustrando significativamente a fala de vários outros que disseram se distrair durante o fazer na oficina. (“... os palhacinhos. Eu gostei muito de fazer o palhacinho. Parece que eu, eu senti melhor. Deve ser que, deve ser que assim, distrai um pouco...”).

Na visão de B2, a oficina é um lugar para distrair os pacientes deprimidos, onde o usuário pode trabalhar a mente e deixar de lado os pensamentos negativos. Se o usuário chega com um pensamento ruim, força-os a pensar diferente, descartando, no final, esses pensamentos, aproveitando o que é bom. O paciente não pode ter “pensamentos ruins”? (“... Olha, eu acredito que esse trabalho... existem pacientes que eles, às vezes, chegam muito deprimidos... é pra distrair, trabalhar um pouco a mente deles... forçar um pouco... pra não ficar pensando tanto... a gente aproveita o que é de bom e, o que é de ruim a gente descarta...”). Tomar a oficina nesse lugar rígido, onde a expressão genuína do paciente é tolhida, significa tentar matar a possibilidade de que o espaço propicie diferentes modulações nas apresenta¬ções dos sujeitos, ao se depararem com a diferença. Isso significa tentar anular a diferença, apagá-la.

A OFICINA É VISTA COMO UM LUGAR DE APRENDIZADO

Na perspectiva da maioria dos profissionais e usuários, as oficinas têm a função de ser um lugar de aprendizado, havendo uma ajuda mútua. Contudo, há aqueles profissionais que se posicionam no “lugar de mestre” diante do usuário. Na visão de A1, a oficina é um espaço de aprendizado tanto do usuário como também do profissional: “...Tem gente que fala que TO (terapia ocupacional) é trabalhar com artesanato. TO não é isso. Eu aprendo é com os pacientes. 90% do que eu aprendi foi com eles, na faculdade a gente não ensina isso...”). Nota-se que A1 cometeu um lapso em sua fala, pois ao se referir à faculdade ele deixou escapar que a gente não “ensina” isso, quando tinha a intenção de dizer “que a gente não aprende isso”. Não é do lugar de quem ensina que alguns profissionais dos CAPS se colocam?

Dentro da oficina, cada participante é regido pela sua própria lógica temporal, seja usuário ou profissional, podendo, realmente, haver uma inversão dos papéis, que até então os definia naquele espaço. Um profissional, saindo do “lugar de mestre”, pode não ser mais o que ensina, mas também ser o que aprende; e o usuário também pode se deslocar para a posição de quem ensina, evidenciando a emergência da repetição diferencial.

A OFICINA COMO UM LUGAR POSSÍVEL DE DESCONSTRUÇÃO DO SUJEITO

As oficinas que são constituídas com a aposta de que ali existem sujeitos foram relacionadas como um espaço de sua desconstrução, pois trazem a marca da diferença, onde os que estão inseridos têm mais oportunidade de sair da repetição e lidar com o diferente, com o novo, pois sua montagem tem essa finalidade. O cotidiano é construído através de pequenas negociações com o usuário, produzindo pequenas diferenças, mas que são essenciais para que ele possa se envolver e se implicar como um sujeito de desejo nas atividades, responsabilizando-se por si e por sua produção. A oficina tomada nesse lugar apresenta características essenciais no tratamento da psicose.

Considera-se a aposta do coordenador da oficina, de que no espaço de oficinas se encontram sujeitos, como uma saída criativa. As oficinas terapêuticas que se formaram nos dispositivos de CAPS não funcionaram sem que houvesse uma implicação de usuários e profissionais nesse processo construído cotidianamente. Nos serviços em que existe uma aposta no trabalho e no sujeito, apareceram produtos oriundos das oficinas extremamente criativos, não só o produto materializado, como também o sujeito que é um produto desse processo. Um exemplo disso se deu com a criação de um carrinho de pipoca num dispositivo de CAPS, para que alguns usuários muito desorganizados se envolvessem numa atividade e pudessem contribuir para produzir um deslocamento da mesmice em que se encontravam.

Essa proposta foi absorvida por um paciente com muitas dificuldades de relacionamento com o outro. Aos poucos ele foi assumindo a condição de “pipoqueiro”, saindo da instituição para vender sua pipoca no social. Ele solicitou a participação de outros usuários na atividade, mas foi o único a levar o projeto adiante ((D1)”. “Pra esse paciente o carrinho funcionou como socialização; pra vender pipoca ele tem que falar com todo mundo... Então foi muito bom, hoje ele é o único que tá no carro, que tá bancando vender pipoca, mas como uma atividade pra ele...”).

A partir do momento em que a atividade funcionou como forma de incluí-lo socialmente, ele aceitou se inserir numa atividade artística, o que durante determinado tempo foi impensável, por conta de seu funcionamento psíquico. Aos poucos ele foi mudando sua posição subjetiva, saindo de um estado semicatatônico para criar e se relacionar com o outro social. O profissional D1 mostrou que na medida em que se faz uma aposta de que nas oficinas existe um sujeito, e que ele pode se envolver no desenvolvimento de atividades, qualquer que seja a sua finalidade, cria-se a possibilidade de um atravessamento da barreira da mesmice para a produção de algo novo e inventivo, proporcionando mudanças significativas na sua subjetividade.

O entrevistado D3 enfatizou que a oficina decorre a partir do caso clínico. Ele montou uma oficina denominada de “oficina sob medida” para uma paciente, no intuito de fazer borda ao sintoma da melancolia: (“... eu coordeno só uma oficina, que eu chamo de trabalhos manuais... Surgiu a partir de uma paciente que tem um quadro de melancolia e que ela no passado tinha uma vida muito ativa no fazer, ela tecia muito bem... O sujeito é que vai te falar alguma coisa...”). Ele entende a oficina como um espaço que tanto pode ser criado para funcionar para um usuário, quanto para um número maior de pessoas que se identifiquem com a atividade desenvolvida.

Essa forma de trabalhar torna a experiência mais rica porque o usuário não vai realizar tarefas para ocupar seu tempo, e sim porque elas se relacionam com a sua história de vida, permitindo mudanças na sua singularidade e o afloramento da repetição da diferença que traz a dimensão do tempo e das marcas do sujeito. Seu posicionamento indicou que o trabalho analítico pode perfeitamente ser desenvolvido na instituição, mas deve visar dar conta da relação particular do sujeito com “o não sabido que se sabe” do sintoma, que é o gozo.

O entrevistado D3 afirmou que o condutor de uma oficina deve estar ciente do seu papel e do nível de implicação necessário, porque não é só fazer por fazer, e nem querer que o usuário faça a sua produção do jeito que ele acha que deve ser feito. Essa posição é questionadora da própria sistemática da organização das oficinas que tendem a se cristalizar, a fixar os papéis tanto do técnico quanto do usuário.

Constatou-se no decurso da análise das entrevistas desse segundo analisa¬dor que as oficinas terapêuticas se configuram como lócus de realização de atividades diversas, sendo diferenciados os objetivos e as expectativas de usuários e profissionais. Se por um lado as falas indicam que a oficina representa um lugar de criação artística e de constante experimentação, facilita a criação de laços sociais, a interação, a socialização e a reinserção social; promove o exercício da cidadania; faz uma inclusão pela arte, etc., por outro, há muito que caminhar para que se consolidem as propostas preconizadas pela Reforma Psiquiátrica. Como um espaço em que várias lógicas discursivas se cruzam, e vários sentidos são produzidos em diferentes matizes de tempo, se as oficinas forem tomadas como um lugar de potência, engendra-se a emergência da repetição diferencial e a mudança na posição subjetiva dos atores envolvidos.

 

TERCEIRO ANALISADOR: O SABER É DO PROFISSIONAL/INSTITUIÇÃO

Através do discurso repetitivo dos entrevistados apareceram indicações consistentes de que o saber na oficina está centrado no profissional/instituição.

Há profissionais que consideram que a construção de uma boa relação com o paciente depende de se conseguir entendê-lo, resolver o seu problema, olhar por ele e correr atrás de coisas para ele. A fala de B2 indicou uma colagem com o discurso institucional. (“... É, eu vejo assim que essa relação é muito boa a partir do momento que você consegue entender o paciente. Acho que a gente tem que tá sempre olhando pelo lado do paciente, que pode ser melhor pra ele, correr atrás, assim, do que é melhor...”). Esse posicio¬namento indica que é do lugar de saber sobre o sujeito que o profissional se posiciona. A partir do momento que o profissional considera que sabe o que é melhor para um paciente, ele se coloca num lugar absoluto de “Todo-saber”, de “Toda-Verdade” sobre o outro. É como se o sujeito nada soubesse de si, sendo um outro (a instituição ou o profissional) que tivesse o poder de decisão sobre sua vida. Em qualquer situação isso é da ordem de uma violência, e em relação ao paciente da saúde mental parece ser pior, pois foi desse lugar de saber sobre si que ele se viu destituído desde sempre.

Posicionar-se do lugar de saber torna-se mais confortável, reproduzindo o discurso institucional do saber/fazer na perspectiva de uma certeza. Esta é uma forma de evitar lidar com a multiplicidade permanente de aconteci¬mentos que se operam no espaço das oficinas terapêuticas. Os próprios pacientes vão se identificando com o lugar em que são colocados, resistindo a qualquer proposta de mudança. Eles ficam contaminados, evitando sair dessa condição, pois acabam obtendo ganhos secundários com a doença, mas o que aparece é uma cronificação. Evita-se cotejar a diferença, embora ela esteja se presentificando a todo instante.

Percebemos que as relações de poder aparecem de forma torpe em relação ao médico. Embora se saiba que o seu poder no imaginário social tem sido inabalável, causou surpresa perceber alguns profissionais de outras áreas com seus saberes se curvarem, deixando a direção do tratamento do paciente se concentrar totalmente em suas mãos. Alguns usuários são inseridos na oficina a partir do momento que o psiquiatra define seu projeto terapêu¬tico. Após a definição, a equipe se reúne para discutir, depois que as condutas foram definidas, como mostra a fala de C2?

... Geralmente, o que acontece? O critério de admissão nas oficinas tem que passar primeiro por um acolhimento... é encaminhado pra uma avaliação com o psiquiatra... quem define a necessidade do cliente participar das oficinas terapêuticas e qual regime de participação ele será enquadrado...

Essa atribuição de saber ao médico foi corroborada por A2. Entretanto, aqui, o próprio médico questiona a equipe:

... Os que fica aqui passam pelo médico... que ele vê a atividade que esse paciente vai tá fazendo... E o olhar é mais do médico. Esse médico agora tem uma visão mais antimanicomial e ele tem questionado muito porque que tudo é ele, porque ficar em cima dele....

Tomando esse analisador como referência, de que o saber/poder sobre o sujeito centra-se no profissional/instituição, e articulando-o com o fenômeno da repetição, que traz a dimensão do tempo e as marcas do sujeito, podemos afirmar que ainda prevalece no discurso de usuários e profissionais um esvaziamento que é da ordem do automatismo da repetição. Colocar-se em posição de saber sobre o outro impede que as reflexões e indagações se produzam, prevalecendo a existência de práticas rotineiras, dessubjetivantes. A possibilidade de os sujeitos se expressarem, de explorar as relações e de circular como cidadãos fica obstaculizada, no seu sentido literal e simbólico.

 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise das entrevistas permitiu explorar algumas das principais inquietações disparadoras desta pesquisa. No decurso do processo, o conceito de repetição tornou-se pregnante e muito importante para produzir a discussão dos resultados. Freud (1914, 1919, 1920), Lacan (1998), Kierkegaard (1975) e Deleuze (2006) se destacaram como autores fundamentais para dialogar com a questão crucial deste estudo, que foi articular a dimensão do tempo durante a realização das oficinas, uma vez que o conceito de repetição traz a marca da diferença e do tempo.

Deleuze (2006) tornou-se um importantíssimo interlocutor, pois na sua visão o conceito de repetição traz a dimensão da sua diferença constitutiva, bem como de sua condição de multiplicidade. É uma repetição que se faz pela via do diferente, por onde se desloca um “diferencial”. A repetição tem uma potência própria, revelada pelas pequenas diferenças que se deixam entrever nas repetições, em um sistema ou em uma série de elementos coexistentes e ressonantes. A arte se enlaça à repetição na vertente transgres¬sora. Todo ato criativo é constituído de repetição. A arte para o autor não imita, porque ela repete, e repete todas as repetições, a partir de uma potência interior. Não há, segundo Deleuze (2006), outro problema estético a não ser o da inserção da arte na vida cotidiana, e esta deve se ligar à arte, arrancando dela a diferença.

Percebe-se que o caminho tem sido árido para efetivação das propostas de inclusão do louco e da loucura nos espaços da cidade no Estado de Minas Gerais, mesmo que o aparecimento de diversos movimentos de luta em prol da busca de cidadania para o sujeito com problemas psíquicos graves esteja em circulação há pelo menos duas décadas, sobretudo com o empenho da clínica do sujeito advinda da Psicanálise e da clínica psicossocial oriunda da Reforma Psiquiátrica.

Ainda que exista uma profusão de dificuldades, o trabalho nas oficinas que operam uma coletividade cria tanto um produto, quanto o sujeito que é produzido dentro desse operar. A repetição está tanto na construção da oficina quanto no produto criado. O sujeito também é um produto, porque é ali que ele se articula. O “pipoqueiro” citado é oriundo de um processo criativo, portanto ele é um produto.

Para a operação dessas oficinas, é fundamental que o condutor das oficinas esteja ciente do seu papel e do nível de implicação necessário, porque não é um fazer qualquer. O profissional que se coloca nessa posição interroga o sujeito para imbricá-lo na sua condição, na sua desorganização sintomática. Ele se torna um facilitador e o usuário um ator que constrói diversas possibili¬dades de subjetivar-se. Tendo clareza de sua função, questiona também a própria sistemática de organização das oficinas, que tendem a se cristalizar, a fixar os lugares ocupados pelo profissional e pelo usuário, deixando emergir a repetição.

No decorrer das oficinas a lógica temporal do sujeito, seu tempo lógico, que não é expresso em palavras, vai aparecendo em vários níveis e, concomi¬tantemente, a repetição no seu aspecto diferencial. Num momento, a oficina pode ser somente um espaço de ocupação, fazendo o sujeito se enredar num fazer repetitivo e automático. Em outro, ela pode ter um caráter altamen¬te potente onde o sujeito produz deslocamentos na sua posição subjetiva. As oficinas que operam com essa possibilidade foram denominadas de oficinas de desconstrução do mesmo (da mesmice), pois ao circunscreverem o apare¬cimento do novo e a criação abriram várias perspectivas para refletir o que pode vir a ser o trabalho de oficinas terapêuticas, seja num CAPS, num Centro de Convivência ou em qualquer outro dispositivo.

Para legitimar o trabalho das oficinas terapêuticas e para que realmente elas se constituam em espaço de cidadania para os sujeitos e de construção de laços sociais, a perspectiva é trabalhar com a criação. A arte é um recurso, pois ela significa invenção, o novo. Os ensinamentos de Deleuze (2006) nos mostram que a arte não imita, porque ela repete e repete todas as repetições, a partir de uma potência interior. Ela imprime sempre a marca do novo. É no fazer novo que o mais genuíno do sujeito pode aparecer. Uma produção original se dá a partir do estranhamento, do estranho/familiar (FREUD, 1919), induzindo a novos pensamentos, a novas reflexões, a novas criações. Através de um “fazer” repetitivo o trabalho de oficinas pode contribuir para o resgate do lugar de sujeito, seja usuário ou profissional, visto que o ato que se repete continuamente traz a dimensão da diferença, da criação, da possibilidade do novo e da transgressão. A criação representa um meio de o sujeito restabelecer seus laços com o mundo, e o que vai sendo tecido a partir de constantes repetições durante o “fazer” artístico ou não conduz os envolvidos a tornarem-se artistas da própria vida e do próprio discurso.

 

 

REFERÊNCIAS

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. 2. ed. Rio de Janeiro-RJ: Graal, 2006.         [ Links ]

FIGUEIREDO, Ana Cristina Costa. Vastas confusões e atendimentos imperfeitos: A clínica psicanalítica no ambulatório público. 3. ed. Rio de Janeiro-RJ: Relume-Dumará, 2002.         [ Links ]

FREUD, S. (1914). Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II) In: ___ (Ed.). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Ed. Standard Brasileira. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1980.         [ Links ]

___. O estranho (1919). In: ___. (Ed.). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Ed. Standard Brasileira. Vol. XVII. Rio de Janeiro-RJ: Imago, 1980.         [ Links ]

___. Além do princípio do prazer (1920). In: ___. (Ed.). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Ed. Standard Brasileira. Vol. XVIII. Rio de Janeiro-RJ: Imago, 1980.         [ Links ]

GUERRA, Andréa Máris Costa. A lógica da clínica e a pesquisa em psicanálise: um estudo de caso. Agora, v. 4, n. 1, p. 85-101, jan./jun. 2001. Disponível em: http// www.scielo.com. Acesso em: 15 Jan. 2009         [ Links ]

KIERKEGAARD, Sören. In: ___. (Ed.). Vino Veritas. La repeticion. Madrid: Ediciones Guadarrama, 1975.         [ Links ]

LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2. ed. Trad. MD Magno. Rio de Janeiro-RJ: Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

 

 

Artigo recebido em: 17/8/2009
Aprovado para publicação em: 22/12/2009

 

 

1 Lacan, ao descrever o estágio do espelho em 1936 e depois em 1949, afirmou que a relação inicial de uma criança com quem ocupa a função materna é uma relação dual, caracterizada pela alienação. A criança é tomada pelo Outro materno na posição de seu objeto de desejo, de falo, numa dimensão narcísica, especularizável, sendo necessário que um terceiro interdite essa relação para que o sujeito tenha acesso ao seu próprio desejo. Para que isso se cumpra é preciso uma operação de separação, possibilitada pela mãe ao desviar seu olhar de desejo da criança para um outro lugar, por exemplo, o marido, o trabalho, etc.
* Psicóloga Clínica e Psicanalista, Especialista em Clínica Psicanalítica e Mestre em Psicologia Aplicada pela Universidade Federal de Uberlândia, Rua Francisco Antônio Oliveira, 935 Bl. G – Apto 304, bairro Santa Mônica, CEP: 38408-258, Uberlândia-MG, telefones: (34) 3219-3438/ (34) 9976-6301, e-mail: margophdomingues@yahoo.com.br
** Psicanalista, Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Doutor em Saúde Mental pela Universidade Estadual de Campinas, Professor Adjunto da Graduação e Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, Av. Uirapuru, no 938, CEP: 38412-166, Uberlândia-MG, telefones: (34) 3210-4472/ (34) 9976-3360, e-mail: paravidini@ufu.br paravidini@ufu.br

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