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Print version ISSN 1679-4427On-line version ISSN 1984-980X
Mental vol.11 no.20 Barbacena Jan./June 2017
ARTIGOS
Pressupostos epistemológicos da saúde mental e trabalho em teses brasileiras
Epistemological assumptions of mental health and work in brazilian theses
Presupuestos epistemológicos de la salud mental y el trabajo en las tesis brasileñas
Adélia Augusta Souto de OliveiraI; Juliano Almeida BastosII
IProfessora associada na Universidade Federal de Alagoas. Docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia. Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
IIMestre em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas. Doutorando no Programa de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
RESUMO
O presente estudo realizou uma pesquisa qualitativa de tipo bibliográfica utilizando o método da metassíntese. Objetivou-se conhecer e analisar os pressupostos epistemológicos que alicerçam as teses desenvolvidas na área da saúde mental e trabalho no âmbito da pós-graduação brasileira. A investigação foi desenvolvida em cinco fases: exploração, refinamento, cruzamento, descrição e análise. A análise de 16 teses consolida a metassíntese e apresenta os seguintes resultados: a área de conhecimento da saúde mental e trabalho fundamenta-se nos pressupostos epistemológicos do campo da saúde do trabalhador. Observa-se, porém, um hibridismo de conceitos com implicações políticas e ideológicas. Assim, faz-se necessário investigar e assumir uma posição política. Caso contrário, o uso indevido de conceitos pode ser interpretado como uma incoerência epistemológica; ou seja, expressar uma postura, mas assumir outra, em sentido contrário. Os conceitos ocultam, portanto, um posicionamento político implícito no desenvolvimento da pesquisa. É, pois, o campo da saúde do trabalhador que alicerça a produção científica da área da saúde mental e trabalho; essa coerência epistemológica é condição imprescindível para o êxito nos processos investigativos e, consequentemente, nos resultados apresentados por essa área do conhecimento.
Palavras-chave: saúde mental e trabalho; conhecimento; metassíntese; teses brasileiras.
ABSTRACT
The present study carried out a qualitative research of the bibliographical type using the meta-synthesis method. The objective was to know and analyze the epistemological assumptions that underpin the theses developed in the area of Mental health and work within the Brazilian postgraduate education. It was developed in five phases: Exploration, Refinement, Crossing, Description and Analysis. The analysis of 16 theses consolidates the meta-synthesis and shows the following results: the Mental Health and Work area of knowledge is based on the epistemological presuppositions on the field of Occupational Health. It is observed, however, a hybridism of concepts with political and ideological implications. Therefore, it is necessary to investigate and take a political position. Otherwise, the misuse of concepts can be interpreted as an epistemological inconsistency, in other words, they express a posture, but assume other, in the opposite direction. They mask, therefore, an implicit political positioning in the research. It is because the field of Occupational Health underpins the scientific production Mental Health and Work area that this epistemological coherence is essential to the success in investigative processes and, consequently, the results presented by this area of knowledge.
Keywords: mental health and work; knowledge; meta-synthesis; brazilian theses.
RESUMEN
En este estudio se llevó a cabo una investigación cualitativa de tipo bibliográfica utilizando el método de Metasíntesis. El objetivo fue conocer y analizar los presupuestos epistemológicos que sustentan las tesis desarrolladas en el ámbito de la Salud mental y trabajo, en el nivel de post graduación brasileña. La investigación se desarrolló en cinco fases: Exploración, Refinamiento, Cruzamiento, Descripción y Análisis. El análisis de 16 tesis consolida la metasíntesis y muestra los siguientes resultados: el área de conocimiento de la salud mental y el trabajo se basa en los presupuestos epistemológicos de la esfera de la salud del trabajador. Se observa, sin embargo, unos conceptos híbridos con implicaciones políticas e ideológicas. Por lo tanto, es necesario investigar y tomar una posición política. De lo contrario, el uso indebido de los conceptos puede ser interpretado como una inconsistencia epistemológica, o sea, expresan una postura, pero asumen otra en la dirección opuesta. Los conceptos ocultan, por lo tanto, un posicionamiento político implícito en el desarrollo de la investigación. Es debido a que, el campo de la salud en el trabajo, sustenta la producción científica en el área de la salud mental y trabajo, que esta coherencia epistemológica es condición esencial para el éxito en los procesos de investigación y, por consiguiente, los resultados presentados por esta área del conocimiento.
Palabras clave: salud mental y trabajo; conocimiento; metasíntesis; tesis brasileñas.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo toma por objeto um conjunto de investigações específicas, cujos estudos desenvolvidos têm como objetivo compreender os fenômenos que emergem da relação entre o trabalho e a saúde mental. Trata-se da área do conhecimento que no Brasil vem sendo chamada de saúde mental e trabalho, e se situa numa região de fronteiras entre várias disciplinas, o que a caracteriza marcadamente como multidisciplinar.
Ao mesmo tempo em que enriquece a produção científica ao articular as contribuições de diferentes campos do saber, tal característica de multidisciplinaridade também traz consigo o risco de se utilizarem matizes epistemológicas não só diferentes, mas antagônicas, o que, invariavelmente, implica a produção de um conhecimento atravessado por problemas de ordem ética e política, passível, portanto, de questionamentos.
A área da saúde mental e trabalho constitui-se a partir da articulação de duas categorias amplamente investigadas pelas ciências da saúde e pelas ciências sociais, a saber: o trabalho e a saúde mental. Categorias que, estudadas isoladamente, já trazem em si um histórico de debates no âmbito acadêmico/científico, e também técnico/prático, tendo em vista as repercussões sociais que a adoção dos conceitos produzidos a partir do estudo dessas categorias acarreta. Postas em relação, então, o debate se adensa, assim como a necessidade de demarcar claramente o arcabouço epistemológico que sustenta a produção do conhecimento advindo dos estudos que tomam a relação entre trabalho e saúde mental como objeto.
O reconhecimento do trabalho como categoria constituinte da subjetividade e, ainda, a sua contribuição nos processos de saúde/doença mental têm dado forma aos estudos que são desenvolvidos pela área da saúde mental e trabalho.
Os primeiros estudos que se voltaram para a relação entre saúde mental e trabalho, surgiram nos anos 1920 nos Estados Unidos da América. Traziam uma concepção de homem, de organização e de trabalho bastante diferenciada da que hoje se tem na área da saúde mental e trabalho no Brasil (SATO; BERNARDO, 2005; SELIGMANN-SILVA, 2007, 2011).
De modo geral pode-se dizer que essas investigações pioneiras tinham como objetivo alocar, ou adaptar, o trabalhador ao trabalho de forma tão harmoniosa que dessa relação não surgisse nenhum problema. E, caso algum aparecesse, sua origem não poderia estar associada à outra coisa senão à própria condição do trabalhador: seu corpo, sua família, ou ambiente em que vive fora do trabalho (SATO; BERNARDO, 2005; SELIGMANN-SILVA, 2011).
[...] buscavam a gênese dos problemas de saúde mental dos trabalhadores no universo intra-individual, sendo o trabalho, suas condições e sua organização mero pano de fundo. Assim, ao abstrair as condições concretas de trabalho e, principalmente as relações de trabalho, contribuíram para construir a explicação que "culpabiliza a vítima" (SATO; BERNARDO, 2005, p. 870).
A tendência principal nos estudos sobre transtornos mentais, surgidos em empregados dos vários setores, foi a de procurar causas individuais associadas a eventos externos ao trabalho, a fatores hereditários e a experiências da fase infantil e da vida familiar (SELIGMANN-SILVA, 2011, p. 39, grifo da autora).
Num movimento contrário a essa tendência, os estudos sobre a relação entre saúde mental e trabalho no Brasil surgiram num contexto de profundas transformações e rupturas epistemológicas relacionadas aos processos de saúde/doença e trabalho.
O que hoje se denomina saúde mental e trabalho pode ser compreendido como uma área do conhecimento que se propõe a investigar a repercussão do trabalho sobre os processos de saúde/doença mental da pessoa que trabalha. Além disso, reconhece e enfatiza a complexidade inerente aos processos de trabalho e de saúde mental, buscando compreender de forma ampliada os fenômenos que emergem dessa relação.
Codo, Soratto e Vasques-Menezes (2004) ressaltam a contemporaneidade das articulações teóricas e metodológicas que configuram as principais abordagens de estudo da área da saúde mental e trabalho. Jacques (2003) aponta, ainda, dois importantes aspectos que ajudam a compreender o interesse crescente pela relação entre saúde mental e trabalho nas últimas décadas no Brasil: o aumento do número de transtornos mentais e do comportamento associados ao trabalho, apontados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS); e a realização, na década de 1980, da VIII Conferência Nacional de Saúde (VIII CNS) e da I Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador (I CNST), cujas mudanças propostas favoreceram a aproximação da psicologia ao campo da saúde do trabalhador.
A relação entre saúde mental e trabalho tem se tornado um interesse crescente de pesquisadores que empreendem seus esforços para o desenvolvimento de estudos em diferentes perspectivas, consolidando-se como uma profícua e abrangente área de conhecimento.
Ao longo das últimas três décadas, essa área apresentou uma produção acadêmica caracterizada, eminentemente, por uma diversidade de concepções teóricas e metodológicas, tornando difícil o exame das diferentes maneiras de pesquisar a relação entre saúde mental e trabalho (CODO; SORATTO; VASQUES-MENEZES, 2004).
Diante do volume de pesquisas produzidas no Brasil, faz-se premente compreender de que forma essa produção se apresenta. Nesse estudo propõem-se identificar e analisar os pressupostos epistemológicos presentes em teses que alicerçam as pesquisas desenvolvidas na área da saúde mental e trabalho no Brasil.
2 MÉTODO
Adota-se uma perspectiva qualitativa de pesquisa do tipo bibliográfica (FLICK, 2009), utilizando-se a metassíntese como método. Com essa estratégia, tem-se o objetivo de alcançar uma compreensão abrangente do objeto em estudo, já que se trata de um procedimento de revisão utilizado para analisar em detalhe teorias, métodos de investigação e resultados obtidos em abordagens qualitativas de pesquisa (NOBLIT; HARE, 1988 CITADO POR ESPÍNDOLA; BLAY, 2006).
Essa estratégia metodológica proporciona a análise de resultados encontrados em estudos já realizados. Nesse sentido, avança de uma revisão de literatura para a interpretação crítica dos resultados (OLIVEIRA; TRANCOSO; BASTOS; CANUTO, 2015). Tal interpretação proporciona a emergência de aspectos que não estão evidentes quando se toma cada estudo em separado, mas que se apresentam quando tomados em conjunto. Busca-se, portanto, uma integração das informações que possibilite estudar, relacionar, comparar e identificar aproximações e diferenças no material coletado (MATHEUS, 2009).
2.1 Descrição de procedimentos para delimitação da amostra
Com vistas a identificar os pressupostos epistemológicos das pesquisas desenvolvidas em teses, na área da saúde mental e trabalho, foram inicialmente definidos critérios para a composição da amostra. O primeiro deles se refere ao contexto de produção científica a ser investigado: optou-se por investigar a produção acadêmica da pós-graduação, tendo em vista ser esse o espaço por excelência da pesquisa científica no Brasil.
A definição do tipo de documento a ser estudado foi o segundo critério estabelecido para a delimitação da amostra: as teses e dissertações foram os documentos escolhidos como representativos da produção acadêmica do contexto da pós-graduação brasileira.
O terceiro critério foi a definição das fontes a serem acessadas (ou seja, onde os documentos seriam buscados), e definiu-se dois bancos de dados virtuais: o Banco de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); e o da Biblioteca Virtual de Saúde – Psicologia (BVS-PSI). O primeiro foi escolhido pela relevância que essa coordenação possui no contexto da pós-graduação no Brasil, em especial no que se refere à promoção e divulgação da produção científica nas mais diversas áreas do conhecimento. A opção pelo segundo justifica-se por se tratar de uma biblioteca virtual especializada, que visa a promover a atualização profissional e o desenvolvimento de pesquisas na área de saúde e da Psicologia.
A partir desses critérios iniciais de delimitação, foram desenvolvidas cinco fases: exploração, refinamento, cruzamento, descrição e análise.
As três primeiras foram realizadas para a conformação da amostra e podem ser entendidas como os primeiros tratamentos em direção ao material a ser disponibilizado para análise.
A fase de exploração constituiu o acesso aos bancos de dados por meio dos descritores de busca, ou palavras-chave, utilizados. Esses foram formatados considerando duas estratégias para a localização dos documentos: abrangência exploratória e precisão temática. Assim, a partir da expressão "saúde mental e trabalho" propuseram-se algumas variações semânticas, como: "sofrimento psíquico e trabalho" ou "psicopatologia e trabalho". Além de variação semântica, foi proposta ainda uma variação sintática para cada expressão, com a utilização dos conectivos e, no e do, como por exemplo: "transtorno mental e trabalho", "transtorno mental no trabalho" e "transtorno mental do trabalho". Com isso, chegou-se a um total de 30 descritores. Nessa primeira fase, foram localizadas 1.425 teses e dissertações, como pode ser observado no Quadro 1, que apresenta em detalhes os resultados obtidos.
Na fase seguinte, a de refinamento, todas as 1.425 teses e dissertações foram analisadas por meio da leitura do título, do resumo e das palavras-chave, com o objetivo de verificar se todas, efetivamente, estavam relacionadas à área da saúde mental e trabalho. Importante ressaltar que não se tratou apenas de encontrar a presença da expressão utilizada nos descritores de busca no título, no resumo ou nas palavras-chave de cada material, mas de analisar tais itens em conjunto, verificando, a partir dessa leitura, se o conteúdo das teses e dissertações catalogadas até então dizia respeito à área de saúde mental e trabalho. Com esse procedimento, chegou-se a um total de 624 documentos, como se pode observar no Quadro 2.
Na sequência, na fase de cruzamento, os documentos foram submetidos a uma análise comparativa, com o intuito de verificar a existência de material em duplicidade. Essa fase conteve três etapas: cruzamento intradescritor, cruzamento interdescritor e cruzamento final. A primeira comparou os documentos capturados por cada descritor em suas três variações sintáticas, ou seja, a partir dos conectivos (e, no e do). Na segunda, os documentos foram comparados entre os descritores, isto é, entre as expressões utilizadas como variações semânticas. A última etapa comparou os documentos localizados pelos dois bancos de dados acessados. Após os procedimentos realizados nessa terceira fase, chegou-se a um total de 219 teses e dissertações. O Quadro 3 apresenta sinteticamente os resultados das três etapas da fase de cruzamento.
Esse conjunto de 219 documentos constitui a amostra utilizada e submetida às fases seguintes, a de descrição e a de análise.
A fase de descrição apresenta um panorama da área da saúde mental e trabalho na pós-graduação brasileira, no qual é possível observar aspectos como: nível de formação, mestrado ou doutorado, a série histórica da produção científica, as áreas do conhecimento a que se vinculam os documentos, a disposição geográfica e a filiação institucional das pesquisas (OLIVEIRA; BASTOS, 2014).
É na fase de análise que se consolida a proposta do presente estudo, pois são os resultados dela que confirmam os achados do artigo. Antes, contudo, apresentam-se os procedimentos realizados para a análise dos documentos.
2.2 Descrição de procedimentos para análise qualitativa
A leitura dos documentos, num contexto de análise como esse, exige do pesquisador um olhar dinâmico que assuma diferentes posições ao se lançar sobre os textos. Essa característica traduz o esforço em compreender o conjunto do material em análise. Assim, o olhar se lança em movimentos distintos: ora numa aproximação, indo ao nível dos detalhes; ora num distanciamento, numa mirada panorâmica, numa tentativa de, visualizando o todo, perceber complementos de um texto em outro ou, ainda, respostas dadas num documento para questões levantadas em outro; ora um olhar em relance, saltando sequencialmente dos elementos catalogados de um texto ao outro, buscando, nesse circuito, centelhas de informações que possibilitem alguma inferência.
Considerando a complexidade exigida, foram estabelecidos alguns critérios quanto aos documentos a serem utilizados. Assim, das 219 teses e dissertações que compõem a amostra, optou-se por analisar as 26 teses localizadas pelo descritor: saúde mental e trabalho.
A escolha deste descritor se justifica pela representatividade apresentada nas fases anteriores, pois em todas se mostrou o mais efetivo na localização de documentos, tanto no aspecto quantitativo quanto no qualitativo. Quanto ao tipo de documento, a escolha por investigar mais detidamente as teses se justifica pela premissa de que esse tipo de documento apresenta uma contribuição teórica de maior relevância, ou seja, entende-se que, por princípio, as teses devem apresentar um aprofundamento conceitual em suas proposições.
Aplicados os critérios estabelecidos, foi tomado para análise o total de 26 teses. A busca por estas na íntegra se deu por meio de pesquisa on-line e, ainda, em contato com os autores por e-mail, o que resultou num total de 16 documentos.
Optou-se pela leitura em sequência cronológica, com o objetivo de compor um painel histórico e, assim, identificar as rupturas e permanências de aspectos relacionados à investigação científica acerca da relação entre saúde mental e trabalho.
A análise desse conjunto de documentos proporcionou a identificação de aspectos relativos à tradição epistemológica que fundamentam as pesquisas desenvolvidas. Nesse sentido, exigiu uma leitura atenta quanto a esses aspectos.
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
A história dos estudos sobre a relação entre os processos de saúde/doença e trabalho no Brasil pode ser abordada a partir de duas perspectivas: saúde ocupacional e saúde do trabalhador. Nesse sentido, é importante expressar aqui a dificuldade de síntese enfrentada, tendo em vista tratar-se de tema expansivo que requer perícia e aprofundamento para uma devida apropriação. As publicações que contam essa história atestam tal afirmativa e explicam, de forma precisa, o porquê da existência dessas duas abordagens; por essa razão, algumas foram diretamente retomadas. A seguir apresenta-se uma caracterização sumária de cada uma.
A saúde ocupacional representa o discurso hegemônico que, comprometido com os interesses do capital, produz conhecimento ancorado numa lógica de adaptação do ambiente ou das condições de trabalho a um protótipo de trabalhador. Reproduz, portanto, uma visão mecanicista de homem.
A referida abordagem desenvolve estratégias de controle dos processos de saúde/doença numa perspectiva de causa e efeito, atuando numa sistemática de contínua adequação entre ambiente, condições de trabalho e trabalhador. O corpo do trabalhador é o foco da atenção e este não comparece para as análises promovidas enquanto sujeito (LACAZ, 1996, 2007; MINAYO-GOMES, 2011; MINAYO-GOMES; THEDIM COSTA, 1997; SATO; BERNARDO, 2005). Como afirma Lacaz (2007):
O trabalho é apreendido pelas características empiricamente detectáveis mediante instrumentos das ciências físicas e biológicas [...] atua sobre indivíduos, privilegiando o diagnóstico e o tratamento dos problemas de natureza orgânica a partir da visão positivista e empirista trazida da clínica (LACAZ, 2007, p. 759).
Esse mesmo autor, ao resgatar a história da relação entre saúde e trabalho, enquanto objeto de estudo no Brasil, consegue compor um inventário monumental, no qual se observam os vários discursos que sustentam os atuais pressupostos da saúde ocupacional. Essa trajetória narrativa produzida contribui, sobremaneira, para a compreensão de como tais pressupostos, apesar do arcaísmo ideológico que carregam, atravessaram o tempo e se atualizaram (sob um pretexto técnico-científico), para fundamentar os estudos nessa abordagem. Expressões como "neutralidade", "higienismo" e "preventivismo" constituem o eixo dessa história, que se estrutura para atender à necessidade premente do capital quanto à questão da relação saúde/doença e trabalho, qual seja, a de manter a capacidade de produção do trabalhador (LACAZ, 1996).
Nessa perspectiva, é sobre o trabalhador que recai a responsabilidade sobre o processo de adoecimento no trabalho. Cabe a ele a adoção de uma postura vigilante quanto à sua própria saúde, pois a autoridade instituída aos profissionais que atuam na saúde ocupacional exime o capital dessa responsabilidade. Ao restringir a análise das condições essenciais de trabalho àquelas passíveis de apreensão a partir das relações que se estabelecem no contexto de trabalho, a saúde ocupacional, não sem razão, confere amplo controle do trabalho ao capital (LACAZ, 2007; MINAYOGOMES; TEDHIM COSTA, 1997; SATO; BERNARDO, 2005).
Diante desse cenário, surge, a partir da década de 1980, uma abordagem desenvolvida com vistas a superar o discurso hegemônico sobre o estudo da relação entre os processos de saúde/doença e trabalho. Ao confluir os questionamentos de diversos atores inseridos em diferentes espaços (academia, políticas públicas e movimentos sindicais), forjou-se um movimento que passou a expor os limites epistemológicos e políticos da saúde ocupacional, constituindo-se numa abordagem contra-hegemônica denominada de saúde do trabalhador (LACAZ, 1996, 2007; MENDES; DIAS, 1991; MINAYO-GOMES, 2011; SATO, LACAZ e BERNARDO, 2006).
Lacaz (2007) assim caracteriza a saúde do trabalhador:
[...] é campo de práticas e conhecimentos cujo enfoque teórico-metodológico, no Brasil, emerge da Saúde Coletiva, buscando conhecer (e intervir) (n)as relações trabalho e saúde-doença, tendo como referência central o surgimento de um novo ator social: a classe operária industrial, numa sociedade que vive profundas mudanças políticas, econômicas, sociais. Ao contrapor-se aos conhecimentos e práticas da Saúde Ocupacional, objetiva superá-los, identificando-se a partir de conceitos originários de um feixe de discursos dispersos formulados pela Medicina Social Latino-Americana, relativos à determinação social do processo saúde-doença; pela Saúde Pública em sua vertente programática e pela Saúde Coletiva ao abordar o sofrer, adoecer, morrer das classes e grupos sociais inseridos em processos produtivos (LACAZ, 2007, p. 757-758, grifos do autor).
É sob uma perspectiva de análise distinta da proposta hegemônica da saúde ocupacional que se funda a saúde do trabalhador como campo contra-hegemônico de estudos da relação entre trabalho e saúde/doença. Diz-se "contra" porque, ao exercer a crítica, avança sobre os limites epistemológicos e, nesse movimento, expõe o comprometimento político-ideológico presente nas análises anteriores.
O contexto sócio-histórico brasileiro teve fundamental importância no surgimento e na consolidação do campo da saúde do trabalhador. A conjuntura de profundas transformações que caracterizou o período compreendido entre as décadas de 1970 e 1980 e as relações estabelecidas entre estas e as questões da saúde/doença e do trabalho foram tomadas como foco de análise da saúde coletiva, o que favoreceu a emergência de propostas de análise que ampliaram o olhar sobre os fenômenos decorrentes da relação trabalho e saúde/doença (LACAZ, 1996, 2007; SATO; BERNARDO, 2005).
Nesse sentido, o conceito de processos de trabalho pode ser compreendido como o marco diferencial e de superação do modelo dominante, pois é a partir dele que o sujeito que trabalha (e as relações que estabelece com e no trabalho) comparece, não apenas como foco de análise, mas também como agente capaz de inferir, de forma assertiva, sobre as proposições analíticas que o campo passa a construir (MINAYO-GOMES, 2011; MINAYO-GOMES; THEDIM COSTA, 1997; SATO, LACAZ E BERNARDO, 2006). Assim:
A apropriação do conceito de "processo de trabalho" como instrumento de análise possibilita reformular as concepções ainda hegemônicas que, ao estabelecerem articulações simplificadas entre causa e efeito, numa perspectiva uni ou multicausal, desconsideram a dimensão social e histórica do trabalho e da saúde/doença (MINAYO-GOMES; THEDIM COSTA, 1997, p. 27).
A adoção desse conceito torna possível compreender o trabalho sob uma nova mirada, a partir da qual se pode analisar sua dimensão histórica, social e política, conferindo também aos trabalhadores um novo espaço. Ou seja:
[...] a saúde do trabalhador considera o trabalho, enquanto organizador da vida social, como espaço de dominação e de submissão do trabalhador pelo capital, mas, igualmente, de resistência, de constituição, e do fazer histórico. Nessa história os trabalhadores assumem o papel de atores, de sujeitos capazes de pensar e de se pensarem, produzindo uma experiência própria (MENDES; DIAS, 1991, p. 347).
Assim, além das consequências mais visíveis, diretas e específicas das condições e ambientes de trabalho sobre a saúde, decorrentes da ação de agentes de natureza, física, química e biológica, também importa desvendar as mediações entre trabalho e subjetividade (SATO; LACAZ; BERNARDO, 2006, p. 283).
Com a premissa de que as pesquisas que investigam a relação entre os processos de trabalho e saúde/doença no Brasil podem ser compreendidas a partir da sua vinculação epistemológica aos campos da saúde ocupacional ou da saúde do trabalhador, a leitura dos textos tornou possível entender como esses campos estão definidos e direcionam as formas de desenvolvimento de pesquisas na área da saúde mental e trabalho no país.
As teses analisadas apresentam, explícita ou implicitamente, a vinculação com um dos campos: saúde do trabalhador ou saúde ocupacional. No entanto, em algumas observa-se uma justaposição de pressupostos característicos de cada campo, o que revela uma contradição epistemológica, pois os dois apresentam diferenças consistentes na análise que empreendem sobre a relação entre os processos de trabalho e saúde/doença.
Parece-nos que é o caso, por exemplo, da tese "O silêncio como metáfora: o uso de agrotóxicos e a saúde de agricultores do município de Igarapé-Açu". A despeito de adotar uma noção abrangente de saúde (em que se articulam as concepções sociais, biológicas e psicológicas) e de ressaltar a cultura como determinante para a compreensão dos processos de saúde/doença, a tese aponta que é no ambiente que estão os "elementos precipitadores" para as alterações no estado de saúde dos trabalhadores (LOBATO, 2003, p. 127). Nessa perspectiva, destaca o externo e o concreto como agente etiológico único, operando numa lógica de causa e efeito, pressupostos característicos do campo da saúde ocupacional.
A investigação em questão objetivou, ainda, traçar o perfil de morbidade, bem como o regime de uso e de exposição, dos agricultores do referido município aos agrotóxicos, a partir de um recorte de gênero e faixa etária, evidenciando os agrotóxicos utilizados, relacionando-os com a composição química e a cronologia do uso (LOBATO, 2003, p. 28).
Capítulo especial se coloca nesta relação com o ambiente, onde grande parte das medidas preventivas deveriam acontecer em virtude dos elementos precipitadores alojados neste. Questões relacionadas ao saneamento, a contaminação do solo, do ar e dos recursos hídricos na sua grande maioria por resíduos químicos, altas doses de partículas radioativas, a exalação de gases através da queima inadequada do lixo (LOBATO, 2003, p. 127).
No mesmo texto, algumas passagens parecem legitimar uma concepção vinculada ao campo da saúde do trabalhador:
Fez-se relevante ainda, no sentido de instrumentalizar os sindicatos e associações aos quais estão vinculados os agricultores, acerca desta questão, a fim de que incluam em suas agendas, medidas preventivas no que tange as intoxicações, bem como, estratégias coletivas de racionalização do uso dos agrotóxicos no município. Apresentou relevância também, no sentido de trazer ao cenário político do município, as intoxicações por agrotóxicos como um problema de saúde pública, demandante de um programa específico de prevenção e tratamento voltado para esta população alvo (LOBATO, 2003, p. 29).
Saúde então, como caminho historicamente trilhado, socialmente circunscrito, biologicamente demarcado, psicologicamente experienciado. De forma insidiosa se forja a concepção holística de saúde. O homem percebido como um todo, "biopsicossóciohistóricamente" constituído, passa a ser então o sujeito e o objeto da saúde. Um sujeito/objeto em processo de mutação constante, sendo a saúde um contínuo estado de vir a ser, um devir (LOBATO, 2003, p. 125).
Essa imprecisão parece se instaurar a partir de uma tentativa de assumir uma postura epistemológica que avance sobre a abordagem hegemônica. No texto, é possível perceber um esforço para superar uma lógica cartesiana de corpo e da exposição desses agentes etiológicos externos, o que configura um modelo explicativo de causa e efeito.
Os procedimentos adotados para a coleta de dados, no enquadre metodológico da Pesquisa Clínico Qualitativa corroboram esse esforço. Ao utilizar Observação Participante e Entrevistas de Avaliação Psicológica, a tese possibilita a emergência de informações que conduzem ao reconhecimento de aspectos mediadores entre a causa (exposição prolongada aos agrotóxicos) e o efeito (sintomas de ansiedade e depressão). O reconhecimento e a análise desses aspectos mediadores poderiam conduzir a uma ruptura com a proposta da saúde ocupacional, e, consequentemente, avançar para uma perspectiva de estudo da relação entre trabalho e saúde/doença inserida no campo da saúde do trabalhador.
Apesar de afirmar que a pesquisa se insere no campo da saúde ocupacional e reiterar essa inserção em vários pontos do texto, o que se observa, como já apontado, é uma oscilação entre elementos característicos das duas tradições epistemológicas, configurando um hibridismo de conceitos que carregam em si implicações políticas e ideológicas.
Tal hibridismo talvez decorra do que Lima (2013, p. 92) aponta como o maior obstáculo para o campo da saúde mental e trabalho: "A prevalência da ideia de uma causalidade linear entre transtorno mental e trabalho, e junto com ela, a exigência de se estabelecer o peso exato das experiências pessoais em relação às experiências de trabalho".
Ressalta-se, aqui, a armadilha que a imprecisão epistemológica pode carregar, pois os resultados alcançados por um processo investigativo que não esteja devidamente delimitado quanto aos pressupostos que o sustentam podem incorrer em respostas inadequadas às demandas para as quais se voltam. Os fenômenos de saúde mental e trabalho exigem uma compreensão dos contextos de trabalho que possibilite intervenções em favor do trabalho, (SATO; BERNARDO, 2005) o que, a depender do ponto de partida, implica favorecer o trabalhador ou o capital.
A tese defendida por Lobato (2003), apesar de levantar informações fecundas para o desenvolvimento de uma análise que pudesse inserir-se no campo da Saúde do trabalhador, considerando o processo de trabalho (e, nesse sentido, a subjetividade do trabalhador frente à compreensão do que se estabelece na relação deste com o trabalho), não supera a força hegemônica do discurso da Saúde Ocupacional.
As pesquisas desenvolvidas por Sales (2009) e Poletto (2010) também carregam características de um hibridismo epistemológico. Em Sales, (2009), logo na apresentação, pode-se ler:
Este estudo apresenta uma discussão sobre o tema Assédio Moral no Trabalho, um assunto cada vez mais debatido no cenário nacional e internacional, haja vista as implicações traduzidas em sofrimento físico e psíquico para os trabalhadores e as repercussões jurídicas para as empresas.
Vivenciar situações de humilhação, perseguição e ameaças no cotidiano de trabalho pode representar um risco para o desenvolvimento de transtornos mentais comuns, a exemplo de sintomas de nervosismo, ansiedade e diminuição da concentração (SALES, 2009, p. 9, grifo nosso).
A leitura atenta desse trecho explicita um caráter dúbio do problema em estudo. Se, por um lado, se expressa uma preocupação com a saúde do trabalhador, simultaneamente se observa um cuidado em proteger a empresa de eventuais prejuízos advindos de reclamações trabalhistas.
As questões relativas à ocorrência do assédio moral no trabalho e dos transtornos mentais comuns relacionados ao trabalho, para serem estudadas, apresentam uma configuração que parece circunscrever-se no arcabouço teórico-metodológico do campo da saúde do trabalhador. Apesar disso, o estudo em análise parece não dar conta de uma referência epistemológica única, visto que, pela presença de alguns aspectos (como a adoção de perspectiva estritamente quantitativa de pesquisa, a proposição de uma relação linear de causa e efeito e o reconhecimento, pela própria autora, das limitações que tal desenho de pesquisa impõe), percebe-se nele uma heterogeneidade de pressupostos.
O estudo realizado por Poletto (2010) é aberto com a seguinte sentença: "Esta pesquisa se refere à área da saúde ocupacional e investigou os fatores relacionados ao processo de trabalho que podem contribuir para os problemas de saúde mental (...)" (POLETTO, 2010, p. 19). Aqui, mais que um hibridismo, percebe-se uma contradição, pois, como já exposto, o conceito de processo de trabalho é o núcleo teórico-metodológico do campo da saúde do trabalhador. É nele que se ancora toda a abordagem que faz ante o discurso do campo da saúde ocupacional.
O desenho da pesquisa, as análises e respectivas discussões e a forma como apresenta os resultados indicam uma abordagem correspondente ao campo da saúde do trabalhador. Ou seja, sem desconsiderar os determinantes externos da relação entre trabalho e saúde/doença, buscou-se compreender o processo de trabalho a partir de várias fontes, inclusive do conhecimento que os trabalhadores possuem sobre o seu próprio trabalho. Os trechos abaixo ilustram essa caracterização da pesquisa.
Esta pesquisa permitiu, com a AET, compreender o processo de trabalho por meio de observação, entrevistas, diálogo e falas dos agricultores. Observou-se que tanto fatores físicos como mentais presentes nas atividades de trabalho podem favorecer o sofrimento psíquico do trabalhador agrícola familiar, comprovando os ditos do referencial teórico (POLETTO, 2009, p. 164).
Durante as entrevistas e observações, verificou-se que as duas famílias que apresentam problemas de saúde mental não estão satisfeitas com o trabalho agrícola, e a sua permanência na propriedade está condicionada à presença dos filhos. As famílias que não apresentam problemas de saúde mental demonstram estar satisfeitas com sua vida e trabalho na agricultura, mesmo que os filhos migrem para as cidades (POLETTO, 2009, p. 167).
Já a tese Saúde mental em trabalhadores apresenta uma breve referência ao campo da saúde do trabalhador. O autor afirma:
Na América Latina, a partir dos anos setenta, estrutura-se uma abordagem sobre a saúde do trabalhador fortemente apoiada pelas Ciências Sociais, o que lhe dá características distintas daquelas da medicina clínica. Nesta nova abordagem, o estudo da relação saúde-trabalho aprofundou as questões relativas à determinação e ao caráter do processo saúde-doença coletiva (BENVEGNÚ, 2005, p. 5).
No entanto, logo em seguida apresenta algumas considerações acerca de como o conceito de processo de trabalho é compreendido na tese; compreensão que se aproxima de uma abordagem característica da saúde ocupacional: "O processo de trabalho manifesta-se através de seus três elementos: o objeto, que é matéria a ser transformada; a tecnologia utilizada para a transformação do objeto; e a atividade desenvolvida pelo trabalhador" (BENGVEGNÚ, 2005, p. 7). O mesmo autor afirma:
Neste estudo as cargas de trabalho são classificadas de acordo com a sua origem: do ambiente, ou da atividade desenvolvida; e de acordo com a sua natureza (físicas: ruído, calor, vibração; fisiológicas: movimentos repetitivos, monotonia, atenção constante, responsabilidade, posição incômoda) (BENVEGNÚ, 2005, p. 7-8).
Nesse trecho, pode-se observar a presença do conceito de cargas de trabalho numa perspectiva restritiva. Situando-se, portanto, no âmbito da ergonomia tradicional, pois não considera os esforços mentais "que por sua vez compreendem os cognitivos e os psicoafetivos (mobilização de sentimentos, controle emocional). Estes últimos constituem a carga psíquica" (SELIGMANN-SILVA, 2011, p. 85). Nesse sentido opera o conceito de carga de trabalho de forma reducionista. Atribui, unicamente, aos aspectos físicos e fisiológicos as causas explicativas para o fenômeno decorrente da relação entre trabalho e saúde/doença no contexto explorado.
Os procedimentos adotados na configuração metodológica da pesquisa, "questionário padronizado, análise univariada e análise fatorial" (BENVEGNÚ, 2005, p. 16-17), não abrem espaço para que o trabalhador seja parte atuante na construção da compreensão do fenômeno relacionado ao trabalho e saúde/doença mental. E esse é um pressuposto imprescindível para uma análise que se pretenda inserida no campo da saúde do trabalhador.
As demais teses apresentam-se integralmente vinculadas ao campo da saúde do trabalhador. Seus objetos, objetivos e configuração teórica e metodológica demonstram, mesmo não estando explícitos no texto, uma vinculação aos princípios norteadores da saúde do trabalhador. Um dos autores explica:
A dimensão psicossocial do trabalho envolve fatores relativos principalmente ao conteúdo e a forma de organização do trabalho [...] Entre os fatores de risco psicossocial são relevantes o alto ritmo, a sobrecarga, a falta de controle sobre o próprio trabalho, os estilos de mando inadequados, a falta de participação na tomada de decisões, a ausência de apoio social, a comunicação escassa e o conteúdo do trabalho empobrecido [...] (AMAZARRAY, 2010, p. 21).
O Estudo II teve por objetivo geral investigar e compreender como os trabalhadores experenciam o assédio moral no trabalho, a partir de suas vivências no papel de vítima, testemunhas e agressores. [...] Objetivou-se também, compreender o significado que as testemunhas de assédio moral atribuíam a esse fenômeno, o apoio prestado às vítimas e as possíveis identificações com os papéis de vítima e agressor (AMAZARRAY, 2010, p. 139).
No fragmento de tese acima, embora não se apresente no texto referência direta, é possível perceber, a partir dos conceitos utilizados para compreender a relação entre o trabalho e os processos de saúde/doença, a vinculação ao campo de conhecimento da saúde do trabalhador. Os primeiros elementos teóricos apresentados expressam uma proposta de análise ancorada no conceito de processos de trabalho. Em outro momento do texto, ao definir os objetivos de um dos estudos realizados, o autor aponta o protagonismo do trabalhador no processo de construção da compreensão do fenômeno em estudo.
A tese apresentada por Freire (2011) traz uma pesquisa de cunho bibliográfico. Em todo o texto verificam-se referências ao conceito de processos de trabalho como o elemento chave para o desenvolvimento dos estudos que tomam como foco de análise a questão do assédio moral. Essa autora, embora não apresente uma discussão a respeito do campo da saúde do trabalhador, utiliza de forma coerente essa expressão, inclusive no título que utiliza para identificar a sua tese: Assédio moral: lesão aos direitos humanos e à saúde do trabalhador.
Verifica-se uma estreita relação entre assédio moral e danos à saúde mental do trabalhador. A saúde mental do trabalhador é o mais importante indicador da qualidade do ambiente de trabalho. Os efeitos deletérios de um trabalho degradante são notados de imediato. O estresse no trabalho é o principal indicador de que a gestão do trabalho segue um modelo desequilibrado e patológico, que avilta os direitos humanos do trabalhador, e, por conseguinte, sua dignidade, configurando uma forma de trabalho degradante. Destarte, buscou-se demonstrar, no presente trabalho, que o assédio moral é uma das formas de trabalho degradante e que seu corolário mais imediato é o dano ao bem-estar e, portanto, à saúde do trabalhador (FREIRE, 2011, p. 17).
Fatores da organização do trabalho podem determinar o dano à saúde. Uma jornada extensa ou um ritmo acelerado podem acarretar fadiga ao trabalhador, que se vê, desse modo, exposto a uma maior probabilidade de acidentar-se. Os excessivos níveis de supervisão e vigilância podem terminar por desconcentrar o trabalhador de sua tarefa. Outro fator importante é a clareza das ordens de trabalho e a coerência entre os diferentes níveis hierárquicos (FREIRE, 2011, p. 105).
O assédio moral nas relações de trabalho perpassa a organização do trabalho e se caracteriza pela degradação crônica e deliberada das condições de trabalho, normalmente provocado por condutas e atitudes tiranas repetitivas dos chefes em relação aos seus subordinados. Constitui per si um risco psico-organizacional sendo um fenômeno invisível e abstrato, mas com efeitos nocivos bastante concretos que podem variar da insônia ao suicídio.
O assédio moral é uma experiência subjetiva que acarreta danos à saúde do trabalhador, principalmente à sua saúde mental, cujos danos mais notórios são depressões, angústias, dentre outros problemas que tanto comprometem sua qualidade de vida (FREIRE, 2011, p. 114).
A análise desse aspecto gerou um grande esforço de identificação de elementos nos textos que possibilitassem uma compreensão da relação entre saúde mental e trabalho (objeto do presente estudo) inserida nos campos da saúde ocupacional e da saúde do trabalhador. Por conseguinte, buscou-se evidenciar a vinculação epistemológica assumida implícita ou explicitamente, a partir da qual se pode depreender aspectos ideológicos e políticos que a produção científica carrega.
Diz-se aqui que tal tarefa mostrou-se difícil por exigir do analista um saber amplo sobre os meandros do conhecimento e sobre sua configuração no campo de lutas de poder. Tratar sobre questões epistemológicas requer uma acuidade que se adquire com a experiência do trabalho científico. Nessa medida, a análise apresentada indica um caminho iniciado, um percurso a ser seguido.
Pode-se afirmar então que foi o campo da saúde do trabalhador que possibilitou a emergência da área da saúde mental e trabalho. É sob a referência dos pressupostos desse campo que os estudos que buscam compreender os fenômenos circunscritos no âmbito da relação entre trabalho e saúde mental se sustentam.
4 CONCLUSÃO
No campo do conhecimento dos estudos sobre a relação entre os processos de saúde/doença e trabalho no Brasil convivem, historicamente, duas perspectivas: saúde ocupacional e saúde do trabalhador. Carregam configurações epistemológicas que tencionam o campo de investigação e de práticas mediadas pelas diferentes relações de poder que coexistem.
A análise de teses empreendida nesse estudo permite concluir que, no contexto da pós-graduação no Brasil, são os pressupostos epistemológicos do campo da saúde do trabalhador que possibilitaram a emergência dos estudos voltados para a investigação da relação entre trabalho e saúde mental. Deve-se a consolidação desse campo de conhecimento à ampliação das possibilidades analíticas para as questões referentes à relação entre trabalho e saúde, das quais a adoção do conceito de processos de trabalho, a consideração da subjetividade e o protagonismo do trabalhador no processo de construção das análises mostraram-se fundamentais para o desenvolvimento da área da saúde mental e trabalho.
No entanto, observa-se em alguns estudos uma justaposição de pressupostos do campo da saúde ocupacional e da saúde do trabalhador, o que revela uma imprecisão conceitual e, ainda, as implicações políticas da produção do conhecimento nessa área. Como já discutido, são campos que se voltam para o mesmo objeto, mas que o fazem partir de perspectivas distintas.
Entende-se que estudar a relação entre saúde mental e trabalho no Brasil implica, invariavelmente, assumir uma posição política. O pesquisador que envereda por esse percurso toma uma posição e se esforça para, no enquadre ético que a pesquisa científica exige, produzir um conhecimento que evidencie o que acontece por dentro do trabalho e de que forma esse acontecer afeta o trabalhador.
A despeito das imprecisões conceituais nos estudos analisados, estas podem ser interpretadas como incoerências epistemológicas, ou seja, expressam uma postura, mas assumem outra, em sentido contrário. Mascaram, portanto, o direcionamento para o qual a pesquisa aponta.
É, pois, o campo da saúde do trabalhador que alicerça a produção científica da área da saúde mental e trabalho; e essa coerência epistemológica é condição imprescindível para o êxito nos processos investigativos e, consequentemente, nos resultados apresentados pelas investigações que se acercam dos fenômenos que se apresentam na relação entre a saúde mental e o trabalho.
Por último, considera-se relevante a utilização de investigação do tipo metassíntese, a fim de aprofundarmos e realizarmos a crítica interna e ou externa à produção de conhecimento em campos interdisciplinares. Precisão e imprecisão de argumentos podem levar a consequências desastrosas na dimensão não só acadêmica, mas de subsídio às políticas públicas e à disseminação de conceitos.
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Artigo recebido em: 15/08/2016.
Aprovado para publicação em: 28/10/2016.