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Mental

Print version ISSN 1679-4427On-line version ISSN 1984-980X

Mental vol.13 no.23 Barbacena Jan./June 2021

 

ARTIGOS

 

O futebol como exercício de convivência entre frequentadores de um CAPS e a comunidade

 

Football as an exercise of coexistence between attenders of a CAPS and the community

 

El fútbol como ejercicio de convivencia entre asistentes de a CAPS y la comunidad

 

 

Tania Inessa Martins de ResendeI; Henrique Campagnollo Dávila FernandesII

IPsicóloga Clínica e Bacharela em Psicologia (UnB), Mestre em Psicologia Clínica e Doutora em Psicologia Clinica e Cultura (UnB), Profa. e supervisora de estágio em Saúde Mental (UniCEUB), nos cursos de graduação de Psicologia, Enfermagem e Medicina e de especialização em Teoria Psicanalítica
IIPsicólogo (UniCeub), Mestre em Psicologia Clínica e Cultura (UnB) e especialista em Psicologia Clínica de Base Fenomenológico-existencial (IFEN), Prof. do Centro Universitário do Planalto Central Aparecido dos Santos (UniFACIPLAC) e Psicólogo da Medicina do Trabalho do Hospital das Forças Armadas

 

 


RESUMO

No campo da atenção psicossocial a prática desportiva contribui não só para a melhora da condição clínica, como favorece o desenvolvimento de processos envolvidos no movimento de reforma psiquiátrica de nosso país. O presente trabalho refere-se à temática do cuidado em Saúde Mental dentro da perspectiva da desinstitucionalização. O objetivo foi apresentar a oficina de futebol desenvolvida em um Centro de Atenção Psicossocial do Distrito Federal na ótica da clínica da Convivência. Para isso, foi utilizada a metodologia qualitativa, com ideias do método cartográfico, considerando-se o engajamento no território e a disponibilidade à experiência. Os dados foram registrados através de diários de campo, que foram apreciados por meio da Análise de Conteúdo. Com base no referencial teórico da clínica da Convivência e de autores do campo da saúde mental, chegou-se às seguintes categorias: "desinstitucionalizar: palavra de ação para o futebol", "futebol no CAPS: exercício de convivência", e "possibilidades de caminhos: relação e reinserção na comunidade". Os encontros do grupo possibilitaram diversas aprendizagens e contribuíram para o processo de recuperação em saúde mental. Ressalta-se a importância da organização de atividades pautadas pela ótica da Convivência nos serviços de saúde mental, para que a lógica desinstitucionalizadora seja alcançada de forma concreta nas práticas profissionais.

Palavras-chave: Assistência à Saúde Mental; Desinstitucionalização; Futebol.


ABSTRACT

In the field of psychosocial care, the practice of sports not only contributes to the improvement of the clinical condition, but also favors the development of processes involved in the psychiatric reform movement in our country. The present work refers to the theme of Mental Health care within the perspective of deinstitutionalization. The objective was to present the football workshop developed in a Psychosocial Care Center from the perspective of the Coexistence clinic. For that, the qualitative methodology was used, with ideas of the cartographic method, considering the engagement in the territory and the availability to the experience. Data were recorded through field diaries, which were evaluated through Content Analysis. Based on the theoretical reference of the Coexistence clinic and authors of the field of mental health, the following categories were reached: "deinstitutionalization: word of action for soccer", "soccer in CAPS: exercise of coexistence", and "possibilities of paths: relationship and reintegration into the community". The meetings of the group enabled diverse learning and contributed to the recovery process in mental health. It is important to point out the importance of organizing activities based on the perspective of Coexistence in mental health services, so that the deinstitutionalizing logic is concretely achieved in professional practices.

Keywords: Mental health assistance; Deinstitutionalization; Soccer


RESUMEN

En el campo de la atención psicosocial, la práctica de deportes no solo contribuye a la mejora de la condición clínica, sino que también favorece el desarrollo de los procesos involucrados en el movimiento de reforma psiquiátrica en nuestro país. El presente trabajo hace referencia al tema de la atención de la Salud Mental en la perspectiva de la desinstitucionalización. El objetivo fue presentar el taller de fútbol desarrollado en un Centro de Atención Psicosocial desde la perspectiva de la clínica da la Convivencia. Para ello, se utilizó la metodología cualitativa, con ideas del método cartográfico, considerando el compromiso en el territorio y la disponibilidad a la experiencia. Los datos fueron registrados a través de diarios de campo, que fueron apreciados por medio del Análisis de Contenido. En el marco del referencial teórico de la clínica de la Convivencia y de autores del campo de la salud mental, se llegó a las siguientes categorías: "desinstitucionalizar: palabra de acción para el fútbol", "fútbol en el CAPS: ejercicio de convivencia" , y "posibilidades de caminos: relación y reinserción en la comunidad". Los encuentros del grupo posibilitaron diversos aprendizajes y contribuyeron al proceso de recuperación en salud mental. Se resalta la importancia de la organización de actividades pautadas por la óptica de la Convivencia en los servicios de salud mental, para que la lógica desinstitucionalizadora sea alcanzada de forma concreta en las prácticas profesionales.

Palabras-clave: Atención a la salud mental; Desinstitucionalización; Fútbol.


 

 

1. Introdução

Diversos estudos indicam uma forte correlação entre a prática de atividades físicas e a melhoria das condições de saúde mental de pacientes que fazem tratamento psiquiátrico. Em quadros de ansiedade e depressão, os quais são os mais comuns entre adultos (BOND et al., 2020), a prática regular de exercícios contribui para a redução dos sintomas e ganhos em qualidade de vida (COONEY et al., 2013; ENSARI et al., 2015; STUBBS et al., 2017; MORRES et al., 2018), com evidências que sugerem, inclusive, que ela tem resultados tão positivos quanto os de um tratamento psicológico (NETZ, 2017; ÓLAFSDÓTTIR; KRISTJÁNSDÓTTIR; SAAVEDRA, 2018). Quanto à esquizofrenia, quadro que em 2016 afetava aproximadamente 21 milhões de pessoas no mundo todo (CHARLSON et al., 2018), Firth et al. (2015) afirmaram que, ainda que a prática de exercícios não proporcione redução significativa de massa corporal, 90 minutos de atividades físicas semanais contribuem para ganhos importantes na neurocognição, no funcionamento, e no controle de outras comorbidades.

A melhora da condição clínica tem como consequência a redução de custos para o governo, fato que levou países europeus a adotarem atividades desportivas como estratégia de tratamento em saúde mental. Um relatório de 2016 apontou que tratamentos em saúde mental demandavam da União Europeia um custo de 450 bilhões de euros, sendo esse o campo que colocava em pauta a sustentabilidade do sistema de saúde como um todo, nos estados que dela faziam parte (MARKOU E SARAKINITIS, 2018). E no caso dos esportes coletivos, a literatura aponta outros benefícios, como: o respeito a regras, à alteridade, às individualidades e dificuldades, o senso de pertencimento e o cultivo de valores éticos e sociais (dentre outros), os quais são fundamentais para a formação da cidadania, da identidade e do caráter, e da vida em coletividade (CARON et al., 2017; WIKMAN; ELSBORG; RYOM, 2017; MALDONADO; NOGUEIRA; SANTOS SILVA, 2018; ANDERSEN, OTTESEN; THING, 2019; HAUSER; SILVEIRA; STIGGER, 2020; MAGALHÃES et al., 2020).

Assim como na Europa, os custos com despesas hospitalares médias anuais para o tratamento dos transtornos mentais comuns e da esquizofrenia em nosso país são elevados: US$ 67.216.056,04, sendo o custo médio de internação de US$ 432,58 (CARTERI et al., 2020). Além disso, a nossa política nacional de saúde mental também prevê, dentre outras estratégias de cuidado, o esporte como um recurso social constitutivo da Rede de Atenção à Saúde Mental (BRASIL, 2004). E um dos principais dispositivos de cuidado dessa rede é o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).

O CAPS, como componente da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), procura pautar seu modo de funcionamento alinhado com diretrizes como: a luta contra estigmas e preconceitos; a garantia de acesso e serviços de qualidade que funcionem numa lógica de integralidade e de interdisciplinaridade; diversificação das formas de cuidado; serviços atuantes no território/comunidade; e modo de cuidado baseado na construção de um plano terapêutico singularizado, dentro do conceito de equidade do SUS (BRASIL, 2011).

Tal dispositivo é um modelo de cuidado que tem o intuito de criticar a lógica manicomial e construir práticas que a substituam e ofereçam outras alternativas de tratamento, sendo "dispositivos efetivos de tensão entre as novas práticas e o modelo hegemônico e entre velhos hábitos e lugares que produzem melhorias reais na construção de formas sociais de tratar e cuidar do sofrimento" (FEUERWERKER; MERHY, 2008, p. 187). O CAPS, portanto, constitui-se como modelo substitutivo do hospital psiquiátrico/manicômio e pauta suas ações com base no território e na comunidade, conforme prevê a Lei 10.216 (BRASIL, 2001). Ele foi inspirado na "Psiquiatria Democrática Italiana", que tinha como força motriz a "desinstitucionalização" (DODDS & LIRA, 2018).

"Desinstitucionalizar" foi a palavra de ação decorrente do Movimento de Reforma Psiquiátrica da Itália, que se iniciou em 1961 no hospital psiquiátrico de Gorizia e foi liderado por Franco Basaglia (SERAPIONI, 2019). Ela se tornou um intrincado processo de produção de dispositivos de saúde mental, e teve, como objetivos, retirar o hospital psiquiátrico de cena, transformar as relações de poder entre médico e paciente (redefinindo suas funções), e buscar novas formas de relacionamento "entre doente, médico, equipe hospitalar e sociedade" (BASAGLIA, 2001, p. 117).

Segundo Rotelli et al. (2001), a desinstitucionalização corresponde à transformação não só das formas em que a dimensão do tratamento acontece (relações entre o cuidador e o paciente), mas também à edificação de ações políticas. Ela se inicia com a transformação do manicômio, e tem como foco inventar saúde e reinserir a pessoa na sociedade. É "produção de vida, de sentido, de sociabilidade, a utilização das formas (dos espaços coletivos) de convivência dispersa" (p. 30). Acima de tudo, o processo desinstitucionalizador é terapêutico e destinado a reconstituir a pessoa com sofrimento psíquico grave como sujeito, posto que promove o direito de cidadania e, portanto, de estar no convívio social (ROTELLI et al., 2001).

Orientada por essa perspectiva, uma estratégia de tratamento implantada em um CAPS do Distrito Federal foi escolhida para alinhavar os princípios do cuidado em uma oficina de futebol: a clínica da Convivência (RESENDE, 2015). Tal estratégia se caracteriza, dentre outros aspectos, por uma forma de cuidar e estar disponível nos processos intersubjetivos de modo a qualificar a alteridade conforme o que a torna mais própria. À clínica da Convivência estão atreladas três formas de cuidar: o "estar com", o "fazer junto", e o "deixar ser" (RESENDE E COSTA, 2017, p. 223).

O "estar com" é marcado pela disponibilidade em estar junto às pessoas de maneira atenta e implicada; há uma atitude de abertura, interesse e respeito para com as diferenças. Tal dimensão, segundo Resende e Costa (2017), "potencializa o estabelecimento de relações horizontais, e acima de tudo, afetivas" (p. 227). No "fazer junto", a execução da atividade com os outros participantes se dá respeitando o modo particular de simbolização de cada um. No entanto, isso é realizado tendo-se sempre em vista que a execução da atividade não deve nos afastar/alienar do outro e de seus sofrimentos (RESENDE & COSTA, 2017). E a terceira dimensão, o "deixar ser", suplementa as duas anteriores: permanecer em reserva (como por exemplo silenciar, abrir mão do controle sobre as atividades, deixar o outro fazer a seu modo) de modo a possibilitar que o outro surja – com suas impressões de mundo, idiossincrasias, modos próprios de ser.

No decorrer do texto essas três dimensões serão alinhavadas às experiências vividas com o grupo de futebol. Dessa forma, este estudo teve como objetivo apresentar a oficina de futebol desenvolvida em um Centro de Atenção Psicossocial na ótica da clínica da Convivência.

 

2. Método

2.1 Características gerais

Este estudo é o resultado de uma experiência profissional com um grupo de futebol de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) destinado ao tratamento de pessoas em situação de sofrimento psíquico grave1. Ela foi possível em virtude do acordo existente entre a Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal e o Projeto Interdisciplinar de Extensão em Saúde Mental2 do Centro Universitário de Brasília (PRISME/UniCEUB).

Procurou-se apresentar ideias alinhadas com a perspectiva da desinstitucionalização, a partir da ótica da clínica da Convivência (RESENDE, 2015), que surgiram da reflexão dos autores acerca da integração com o referido grupo ao longo de três anos. Tal experiência serviu como motivação para refletir sobre os efeitos da dinâmica relacional específica dentro do contexto da atenção à saúde mental na rede pública.

A oficina de futebol acontecia uma vez por semana, e tinha uma hora e 45 minutos de duração. Esse tempo contemplava as seguintes etapas: reunião dos participantes e do material que seria levado para o local da prática desportiva (coletes coloridos, bola de futebol, garrafa térmica de água, luvas para os goleiros, copos descartáveis, apito), deslocamento de ida à quadra poliesportiva e de retorno ao CAPS, alongamentos antes e após o jogo, diálogos entre os participantes mediados pelo coordenador da atividade – o coautor desta pesquisa3, que se fez presente em todas as etapas citadas, inclusive como jogador nas partidas de futebol.

Nesse sentido, a cartografia (DELEUZE & GUATTARI, 1995) foi utilizada como instrumento de reflexão crítica sobre a experiência vivida – e não necessariamente como método -, considerando o engajamento dos pesquisadores no território e a disponibilidade às diferentes dinâmicas proporcionadas pela atividade. Adotou-se uma abordagem qualitativa, considerando que tivemos como foco a apreciação dos sentidos atrelados às experiências com o grupo de futebol.

2.2 Caracterização dos locais da pesquisa

O Centro de Atenção Psicossocial escolhido para a escrita desta experiência é de modalidade tipo II (CAPS II), e é destinado a cuidar de pessoas diagnosticadas com transtornos mentais persistentes e graves não decorrentes do uso de álcool e outras drogas, abrangendo um território com população acima de 70 mil habitantes (BRASIL, 2011). Ele se localiza em uma cidade próxima a Brasília e foi fundado na década de 2000. À época da coleta dos dados o acesso era facilitado pela proximidade a pontos de referência da cidade e de transporte público, e sua estrutura arquitetônica era residencial (não havia sido planejado enquanto parte de aparelhos públicos de saúde, como hospitais e postos de saúde, por exemplo).

Esse aspecto, conforme o relato dos participantes da oficina de futebol, promovia uma sensação de bem-estar e acolhimento, o sentimento de "estar em casa". Cabe ressaltar que os elementos do espaço de tratamento podem ser terapêuticos e estimular o processo de "cura" (palavra utilizada aqui no sentido de cuidado), por promover bem-estar psicológico, físico e social (RIBEIRO, 2018; JORGE, 2019), enquanto que o tradicional dos manicômios pode contribuir para a estagnação e/ou o retrocesso no tratamento (AMORIM; SIMÕES; VIANNA, 2019).

O local escolhido para a realização das partidas foi uma quadra de futebol de salão localizada a menos de um quilômetro do CAPS, no seio da comunidade, e de fácil acesso. Tal escolha levou em consideração pressupostos da Lei de Reforma Psiquiátrica (BRASIL, 2001) – que serão discutidos na parte referente aos resultados deste estudo -, sentimentos de valência emocional positiva e também os de valência emocional negativa em relação ao hospital psiquiátrico (onde os participantes da oficina se trataram em períodos de sofrimento agudo, quando eles não conheciam o CAPS enquanto possibilidade de cuidado). As características desse local possibilitavam a circulação e a participação de estudantes de instituições de ensino, habitantes, comerciantes e trabalhadores locais, e pessoas que estavam de passagem pela cidade e decidiam interagir com nossa atividade de alguma forma (assistindo, jogando e torcendo, dentre outras).

2.3 Participantes

Participaram deste estudo 12 frequentadores do CAPS (11 homens e uma mulher), sendo que fatores como idade, raça/etnia/cor, condição socioeconômica, religião, e diagnósticos foram variados. Cabe ressaltar que tal atividade já era realizada há algum tempo no CAPS, e que o grupo foi criado a pedido de alguns frequentadores do serviço. Todos eles eram moradores de cidades do Distrito Federal que faziam parte do território de abrangência e atuação do CAPS, e haviam passado por internações e tratamentos no manicômio de referência da cidade. À época em que as experiências descritas neste texto aconteceram, apenas dois eram acompanhados nos deslocamentos pela cidade por familiares ou acompanhantes terapêuticos.

2.4 Instrumentos e Procedimentos para a Coleta dos Dados

O recurso utilizado para a apreensão das experiências foi o diário de campo, instrumento que, segundo Medrado, Spink e Méllo (2014), se caracteriza como uma prática discursiva que produz e constrói intensidades "materializadas em conceitos" (p. 279), e representa movimentos que se constituem em afetos; apesar de ser uma narrativa ficcional, o diário de campo é uma construção que possui efeitos de verdade. Os dados que compuseram os diários de campo foram coletados por meio de um bloco de notas e um gravador de voz, utilizados após o final de cada encontro, pelo pesquisador. As anotações e os áudios foram transcritos para o formato de diário de campo.

O tempo contemplado para a confecção dos diários foi de seis meses, e chegou-se a um total de 20 encontros/diários. Cada diário de campo produzido ao longo desse tempo contém narrativas de acontecimentos, impressões dos pesquisadores, falas literais dos participantes (registradas por meio de rememoração – utilizando-se memória de médio prazo), diálogos, trocas de experiências e interações entre os integrantes do grupo, entre outras informações julgadas necessárias para as reflexões e análise dos pesquisadores.

2.5 Procedimentos de Análise dos Dados

Os diários foram analisados por meio da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2016), e organizados segundo o referencial teórico da clínica da Convivência (RESENDE, 2015) e de autores e pesquisadores do campo da saúde mental – os quais serão apresentados ao longo da parte referente aos resultados e discussão. A análise ocorreu dentro de um processo que envolveu três etapas: a) leitura e releitura de todos os diários; b) análise do material, tendo como objetivo levantar possibilidades de temas e as similaridades nas narrativas que nos permitissem chegar a agrupamentos; c) reunião de recortes e organização em categorias.

Chegou-se, assim, às seguintes categorias: "desinstitucionalizar: palavra de ação para o futebol", "futebol no CAPS: exercício de convivência", e "possibilidades de caminhos: relação e reinserção na comunidade". Em algumas delas procurou-se apresentar recortes dos diários com o intuito de favorecer a compreensão dos conceitos e noções que decorreram da experiência de campo.

2.6 Procedimentos Éticos

As experiências foram registradas com anuência dos participantes do grupo, dentro dos princípios regidos pela Resolução nº 446/12 do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2012).  Para resguardar o sigilo dos participantes foram utilizados nomes fictícios e omitidos outros dados pessoais. Além disso, este estudo foi aprovado pela CONEP por meio do CEP/FEPECS/SES nº 024/12.

 

3 Resultados e Discussão

3.1 Desinstitucionalizar: Palavra de ação para o futebol

Os participantes do grupo tinham o futebol como elemento que despertava uma série de significados positivos em suas vidas - como por exemplo as brincadeiras da infância, boas relações com familiares, o pertencimento a um grupo social (dentre eles as torcidas organizadas) e a superação de limites. Isso os "conectava" aos seus universos culturais, fator esse que amplia as criações na clínica e os modos de cuidado em saúde mental (GALVANESE et al., 2016), e que constitui-se, portanto, como recurso terapêutico (COSTA & BRAGA, 2013).

A proposta do grupo era oferecer a possibilidade de um maior convívio e integração social, por meio do jogo de futebol em espaços externos ao CAPS e pertencentes à comunidade, por mais temerosa e difícil que fosse essa possibilidade para parte dos integrantes da oficina. Especialmente no início, portanto, se fez presente o movimento de não jogarmos no hospital psiquiátrico (que continha em seu interior um campo de futebol de grama em dimensões oficiais, aspecto esse muito atrativo para todos), e sim o de reintegrar-se à comunidade, "desinstitucionalizar". Isso porque, para se tornar instrumento de transformação da experiência da loucura, o CAPS deve criar formas para se organizar, funcionar e se articular com o território (CÉZAR & MELO, 2018).

Ih, os cara chegaro aí dizendo que hoje só vamo jogá se pagá dez conto.
- Fala de integrante do grupo

Essa passagem representou um momento crucial no esforço de modificar as relações da comunidade com os frequentadores do CAPS. Como espaço público, a quadra de futebol é aberta a todos, e, por serem cidadãos, todos eles têm os mesmos direitos e deveres. Conversamos com o líder do time da comunidade e dissemos que iríamos jogar, pois a quadra era um espaço para todos sem distinção, e tivemos uma resposta positiva. Um dos integrantes do nosso grupo vibrou: "Aê cara! Vamos jogar mesmo? Você conseguiu! Mas não temos dinheiro!". Iniciou-se então um breve diálogo sobre cidadania e direitos – movimento necessário e importante para o tratamento clínico (SANTOS; DUARTE; RESENDE, 2016). Daquele dia em diante, o receio de jogar quando os rapazes da comunidade estavam na quadra foi diminuindo, pois conseguíamos participar com o nosso time.

Com o passar do tempo, foi possível jogar com equipes mistas, ou seja, com times compostos por pessoas da comunidade e frequentadores do CAPS. À medida que os participantes foram ganhando confiança e desprendimento para jogarem com pessoas externas à oficina de futebol, e uma maior vinculação do coordenador a eles foi acontecendo, iniciou-se um processo de "mediação de autonomia", o qual, segundo Dutra, Bossato e Oliveira (2017, p. 6), consiste em uma "assessoria pessoal para o sujeito, reunindo segurança, suporte e proteção, sem retirar o poder de controle da própria vida, que é do sujeito".

Assim, alguns participantes começaram a ter ganhos em autonomia, que se expressou, por exemplo, quando começaram a se deslocar a um CAPS de outra localidade para jogar futebol. Ou mesmo quando jogavam em suas comunidades, "desprendendo-se" do nosso grupo nos dias em que a atividade não estava prevista. Nesse sentido, Lobosque (2003) defendeu uma clínica no campo da saúde mental voltada para a independência e autonomia do sujeito, em substituição à clínica que procurava exercer controle sobre os indivíduos através de procedimentos técnicos.

A desinstitucionalização não deve se pautar somente à questão do tratamento, mas também por meio de ações políticas e sociais, em uma espécie de "clínica em movimento" – que não caminha por si só, mas através da combinação e articulação com o que se movimenta e se transforma na cultura, "na vida, no convívio entre os homens" (LOBOSQUE, 2003, p. 21). Em nosso país, para que a política da desinstitucionalização seja efetivada, é fundamental que redes comunitárias substitutivas aos hospitais se estabeleçam no território (FERNANDES et al., 2020).

O CAPS, como componente dessas redes (BRASIL, 2011), é um dispositivo potente de reinserção social (FIOCRUZ, 2015). Para que essa consideração fique mais clara, apresentaremos a seguir dimensões relacionadas à atividade do futebol realizada nesse serviço e que, por meio do exercício de convivência, se constituiu em uma possível via de inteligibilidade e concretização da desinstitucionalização.

3.2 Futebol no CAPS: Exercício de convivência

A convivência é uma condição inexorável da vida cotidiana. Na medida que melhoramos a qualidade de nossas relações interpessoais e sociais, aperfeiçoamos nossas competências para gerar soluções benéficas para problemas comuns e aprimoramos a qualidade de vida na perspectiva de melhorá-la para todos (BROTTO, 2013, p.19).

Essa passagem apresenta alguns efeitos que decorreram da atividade do futebol. O grupo tinha como características basilares o "estar com", o "fazer junto" e o "deixar ser", dimensões que, segundo Resende (2015) e Resende e Costa (2017) são fundamentais para o cuidado, já que permitem que o indivíduo seja acolhido, reconhecido e interpelado conforme a medida de sua necessidade.  Essas dimensões estruturaram experiências que promoveram o desenvolvimento do grupo e abriram possibilidade para o processo de recuperação.

Tal processo, conhecido mundialmente como "recovery", surgiu na década de 1970 e se firmou nos anos 80 em alguns países, através de iniciativas de usuários do sistema. Ele se pauta pela busca de elementos como o resgate da esperança, a melhora da qualidade de vida, e a reaquisição de algo que tenha se perdido com o adoecimento, e se efetiva através da atuação de fatores internos (pessoais) e externos (serviços de saúde mental) (BACCARI; ONOCKO CAMPOS; STEFANELLO, 2015).

Algumas das experiências que promoveram o desenvolvimento do grupo e abriram possibilidade para o processo de recuperação serão descritas a seguir, e foram organizadas a partir de aspectos que Resende (2015) elencou como essenciais para a clínica da convivência – pois se propõem à desinstitucionalização: "combate à formalização", "potencialização dos vínculos a partir da afetividade" e "mutualidade no cuidado".

- Combate à formalização

Esse aspecto diz respeito à flexibilização de algumas regras de funcionamento das atividades no interior do serviço, as quais eram praticadas no decorrer de todas as dinâmicas do nosso grupo. Isso tinha início já no café da manhã, quando os participantes pegavam os alimentos e os serviam aos outros, sem auxílio de algum profissional. Após esse momento, eles auxiliavam os coordenadores do grupo a organizarem o material a ser levado para a quadra e, inclusive, cobravam deles a presteza para saírem logo do CAPS. Essa troca de papéis possibilitou a horizontalização dos saberes, questão que Resende (2015) destacou como fundamental para o cuidado.

Os deslocamentos eram feitos a pé, e alguns preferiam trocar de roupa na quadra onde o jogo era realizado  – ocasiões essas repletas de trocas sobre diversos assuntos, medicações, relacionamentos e situações vivenciadas, dentre outras. Esse ponto ilustra a ideia da convivência ser um dispositivo terapêutico (TENÓRIO, 2001; RESENDE, 2015; RESENDE & COSTA, 2017): espaços que não foram idealizados ou que não são característicos do tratamento – como pátios, corredores, e varandas, por exemplo – permitem que as pessoas permaneçam por certo tempo juntas, sem "compromisso", o que acaba por facilitar a ocorrência de relatos e falas relevantes para o tratamento.

A convivência, nesse sentido, por construir um espaço de familiaridade diferente de dispositivos terapêuticos tradicionais configura-se como um dispositivo sob medida de cuidado, isto é, respeitando as particularidades e singularidades daqueles que acompanhamos (RESENDE, 2015; RESENDE & COSTA, 2017). Nessa perspectiva, a atividade do futebol, entendida como um dispositivo de convivência, acabou favorecendo o aparecimento de momentos potencialmente terapêuticos nos mais diversos espaços.

Além disso, os deslocamentos pelas ruas, repletos de trocas de experiências entre as pessoas, nos remete ao conceito da "clínica peripatética" de Lancetti (2008): realizada em movimento, possibilita a ocorrência de diálogos que nos levam a entender vivências do sujeito, o exercício da escuta e da fala. Ou seja, as ruas e percursos pela comunidade acabavam se tornando "settings altamente férteis para a produção de subjetividade e cidadania" (p. 21). Lancetti (2008) relata que essa forma de fazer-se presente, "esse estar-aí-junto e em movimento" (p. 30), provoca uma maior disposição da pessoa se comparado ao setting tradicional (espaço "reservado" do consultório).

No grupo não existia a obrigatoriedade da pessoa jogar, respeitando-se a disposição de cada um para  "estar ali" como achar melhor. Assim tínhamos manifestações das mais diversas: pessoas jogando, andando na quadra, falando sozinhas, conversando, ou sentadas. Esse trabalho consistia em desenvolver no território o território de cada um (DELEUZE & GUATTARI, 1995), ou seja, o território existencial, onde o ser habita em si mesmo, e se multiplica nos demais. Assim ele se desterritorializa, pela possibilidade do devir que o contato com outros frequentadores gera, e reterritorializa-se quando influencia outro frequentador com sua presença. É um "devir-João de José, e devir-José de João" (grifo nosso).

Isso porque todos nós somos seres inacabados, qualidade que é própria da nossa vida, e como tais estamos em um processo social contínuo de busca (FREIRE, 1996). Ou como preferiu Demo (2005), "o jeito de ser como vir a ser não é ser menos, é a maneira própria de ser" (p. 82). Cada pessoa possui uma certa incompletude, referente a um inacabamento que é caracterizado pelos constantes fluxos e refluxos da vida. Eles desvelam possibilidades, conflitos e desafios que ampliam a existência, e isso se torna possível através da convivência entre as pessoas, pois aí podem conhecer os limites de si e das outras, e mediar doses de dependência e independência. Algumas situações, em especial, nessa experiência, desvelaram a concretude e potencialidade de um espaço como o da oficina de futebol: que a pessoa podia se expressar na forma própria de ser.

- Potencialização dos vínculos a partir da afetividade

Os participantes se relacionavam em torno de um objeto mediador, a bola, e as próprias regras do jogo (divisão de tarefas dentro dos times, passes, e chutes, entre outros). A atividade de futebol se enquadrava não só como esporte, mas também dentro da perspectiva dos jogos cooperativos, que são contextos extremamente valiosos para a convivência social e para o desenvolvimento pessoal (BROTTO, 2013; RODRIGUES & BECKER, 2020). Ela permitiu que as pessoas se expressassem conforme seus modos de ser, sem proposta de desempenho ou rendimento. O objetivo era de estarem juntas e se unirem, compartilhando suas vivências, dentro da noção de que os jogos cooperativos "reforçam a confiança pessoal e interpessoal, uma vez que, ganhar e perder são apenas referências para o contínuo aperfeiçoamento de todos" (BROTTO, 2013, p. 68).

As habilidades de relacionamento acabaram sendo potencializadas pela atividade. Alguns afetos estiveram implicados e levaram à construção de sentidos e aprendizagens de convivência, com o respeito às limitações e potencialidades do outro, como na cena a seguir:

Em uma disputa de bola, Raúl acabou pisando no pé de Gilvan, que caiu no chão reclamando. Raúl explicou que foi sem querer, mas Gilvan não entendeu e, irritado, preferiu sair da quadra. Conversamos um pouco sobre o que aconteceu, no lado de fora da quadra, e ele me relatou que sempre que dividia bola com Raúl acontecia-lhe algo, e que desse jeito não jogaria mais. Disse o que presenciei, e chamei Raúl para explicar-lhe de novo. Mais calmo, Gilvan aceitou as desculpas e retornou para o jogo. Chegaram até a brincar sobre a situação quando Gilvan fez um gol ao final da atividade.

Assim, a convivência proporcionada pela atividade não suscitou apenas sentimentos e situações agradáveis, mas também acontecimentos e emoções conflituosas - que representam riscos. Tais questões possibilitam às pessoas o desenvolvimento de habilidades sociais e estratégias para lidar com situações que inevitavelmente surgem na vida (COPE et al., 2016; DUZ & ASLAN, 2020). Foi comum também alguns participantes "copiarem" o estilo de outros companheiros mais experientes e seguirem suas orientações durante as partidas, fatos que possibilitaram o desenvolvimento de habilidades físicas (como dribles e outros movimentos corporais) e cognitivas (busca de melhores posicionamentos na quadra, criação de opções de jogo) – aspectos esses que indicam ganhos relacionados à psicomotricidade, e que são benéficos à saúde mental (FRIEDRICH & MASON, 2017; MARTINS et al., 2018).

Mas o principal elemento foi a livre expressão de emoções, que ocorria, por exemplo, quando um gol acontecia, e era comemorado com gritos de alegria e palavras motivadoras: "Parabéns Getúlio! Tu fez um golaço cara, levanta o braço pra comemorar e põe pra fora! Aêêêê! Golaço cara!". Getúlio, assim como outros participantes, tinha dificuldades em expressar as emoções, e a convivência com o grupo possibilitou uma abertura em relação a esse aspecto, em diversas situações de vida. Eles passaram a falar sobre suas emoções, e a participar mais ativamente de atividades propostas pelo CAPS (como por exemplo nas oficinas de música e dança). Assim, a relação entre eles na quadra sempre trazia aprendizados e alternativas de se relacionarem de outros modos.

- Mutualidade no cuidado

A dimensão do cuidado, aos poucos, foi sendo desenvolvida pelos integrantes do grupo, e traduziu-se em atitudes de atenção e disposição para com o outro, e da preocupação com algo que era compartilhado. Isso foi resultado do envolvimento afetivo entre as pessoas, princípio básico para o cuidado (BOFF, 2012; PRADO & CARDOSO, 2020), como na seguinte passagem:

Nos bancos externos à quadra, antes do jogo, Frederico comentou sobre o desejo de ter relação sexual com uma mulher que viu na rua. Márcio olhou para ele e disse: "vai nada rapaz, tu tá de onda". Quando perguntei a Márcio por que Frederico estaria de onda, respondeu que pelo menos nele as medicações tinham um efeito que "não sobe nada não rapaz". Alguns outros compartilharam dessa fala. Frederico prosseguiu: disse que desde o dia anterior tinha deixado de tomar os remédios para poder ter relação sexual, e que iria conseguir. E aí Augusto o aconselhou a ter cuidado porque poderia ter uma crise.

Vê-se que Augusto procurou cuidar de Frederico, lembrando-o da possibilidade de que, como aconteceu nas outras vezes em que deixou de tomar o remédio, sua saúde poderia piorar. Assim, a dimensão do cuidar envolve a possibilidade de levar "de volta ao sujeito sua própria imagem" (FIGUEIREDO, 2007, p. 18), e acontece quando se presta atenção e se responde ao outro conforme sua necessidade. Ou seja, essa preocupação tem o intuito de devolver o cuidado do outro a ele mesmo; é uma atitude que visa antecipar-se ao sujeito em sua "possibilidade existenciária de ser" (HEIDEGGER, 2012, p. 178), não com a intenção de retirar a possibilidade de satisfazer-se como ser, mas justamente de restituir a noção de transparência consigo e a liberdade para ir ao encontro do seu modo ideal de tratamento – o cuidado de si.

Além disso, estabeleceu-se uma relação de cuidado para com o cuidador, que é uma forma de cuidar que possui eficácia (FIGUEIREDO, 2007), já que, quando o cuidador deixa-se cuidar pelo outro, ele confirma sua significação e potencialidade como ser; isso significa também uma responsabilização do sujeito para o cuidado, e o reconhecimento de sua forma de existir. Uma outra cena deixa essa questão evidente:

Eu não havia dormido bem na noite anterior, e estava visivelmente cansado. No caminho para a quadra, dois deles me perguntaram se estava tudo bem comigo. Respondi que sim, mas que havia dormido mal. Um deles relatou que às vezes não conseguia dormir direito também, principalmente quando acontecia algum problema familiar, e me perguntou se aconteceu algo de ruim para que eu não tivesse dormido direito. Naquele momento senti uma emoção muito grande, por terem se importado comigo; sorri, agradecendo, com uns tapinhas nas costas dele.

Em várias outras situações tivemos esse cuidado, conversando sobre diversos assuntos – relacionamentos afetivos, família, trabalho. Isso foi importante para que todos nos sentíssemos "reconhecidos" dentro de nossas vivências. Essa abertura potencializou as relações, além de ter contribuído para que os membros do grupo pudessem ter tido noção de suas capacidades também como cuidadores, em uma perspectiva de cuidado mútuo.

Assim, a atividade do futebol, enquanto um mediador, possibilitou a construção de um espaço onde o sujeito procurou aconselhar, escutar, aprender, ensinar – residindo aí o potencial terapêutico. Mas isso acontece desde que tenhamos a postura de recusa de uma posição dogmática, de detentor da verdade, como afirmou Freire (1996): "de quem se encontra em permanente disponibilidade a tocar e a ser tocado, a perguntar e a responder, a concordar e a discordar" (p. 134). Assim, o sujeito pode falar e ser escutado, e enfim, o exercício de convivência pode ser realizado entre todos do grupo.

O interesse dos integrantes do grupo ultrapassou a dimensão do futebol como atividade física e competição, e voltou-se para o estar-junto, o conviver. Nos mais variados relatos e vivências, a atividade contribuiu para que os laços entre os membros fossem estreitados: alguns deles se reuniam ao final da manhã para almoçar juntos ou jogar em outras localidades; outros que não estavam mais no CAPS – por terem recebido alta - compareciam à atividade para reencontrar os amigos.

3.3 Possibilidades de caminhos: Relação com a comunidade

Você viu Henrique, 3 a 1! Cara, 3 a 1! Pô cara, ganhamos!
- Fala de um integrante do grupo

Essa fala ocorreu logo após a primeira vitória sobre o time da comunidade. A satisfação foi grande, e saímos todos orgulhosos por termos trabalhado por um longo período para que esse momento chegasse. Mas o mais importante foi o fato de termos conseguido estabelecer uma boa relação com eles e de jogarmos com times mistos, desconstruindo um pouco a ideia inicial que essa parcela da comunidade tinha do "doente mental". Entenderam que podem conviver e jogar futebol juntos, em um movimento que desvela a potencialidade terapêutica do cotidiano.

Aos poucos a questão do estigma foi sendo quebrada nesse movimento, ainda que de forma muito lenta, e permitiu ao sujeito a possibilidade de se abrir ao outro e ao mundo e a reinaugurar com eles uma relação de dialogicidade. Assim se observa um avanço na construção de sua história e se vive o impulso de sua natureza incompleta, do seu devir (FREIRE, 1996) – fato que não é possível a partir da lógica manicomial.

Para que os esforços de outrora possam realmente fazer efeito no presente, superando o estigma, é necessário que os profissionais da saúde realizem um esforço constante para seguirem um caminho que lhes permita pensar de forma coerente, e agir de forma respeitosa. Isso se torna possível pela exposição às diferenças, recusando posições que o fixem como detentor da verdade absoluta (FREIRE, 1996).

Essa característica fundamental do cuidado/cuidador pode ser realizada por todos os frequentadores do serviço em uma lógica de reciprocidade, e possibilita o surgimento de multiplicidades de e do ser que quebram o fundamento (DELEUZE & GUATTARI, 1995). Isso reverte a lógica biomédica, e contribui para que o exercício da convivência possa ser praticado. É uma tarefa difícil, se considerarmos as relações de poder assimétricas imbricadas na relação cuidador-paciente que temos como herança do sistema manicomial - como mecanismo fundamental para o tratamento do sujeito.

 

4 Considerações Finais

A oficina de futebol, sustentada nos princípios e posturas que acabamos de caracterizar, possibilitou o surgimento de potencialidades relacionais, aprendizagens corporais e emocionais por meio da convivência entre seus membros, a qual se desvelou como uma forma de cuidado a partir do estar com, do fazer junto, e do deixar ser (RESENDE, 2015; RESENDE & COSTA, 2017). Contribuiu, assim, para que os participantes pudessem se reestabelecer enquanto ser, transformassem o sofrimento em vida, e estruturassem seu devir individual a partir da "trama social" (DEMO, 2005). Esses movimentos são característicos não só da desinstitucionalização - enquanto objetivo da nossa política de saúde mental -, como também do processo de recuperação.

Por fim, cabe ressaltar que a experiência aqui relatada se situa em um contexto de precariedade4, afinal o sistema de saúde mental no Distrito Federal possui várias limitações. Os dados comprovam a carência de uma rede de atenção bem estruturada, pela falta de Centros de Convivência e Residências Terapêuticas, de qualificação profissional dentro da lógica da reforma psiquiátrica, e de profissionais da área da saúde. Apesar disso, o CAPS que serviu de base para o relato desta experiência realiza atividades semanais diversificadas que atendem as demandas de cuidado das pessoas.

Ressalta-se a necessidade de que mais atividades dentro desse modelo - que privilegia a convivência e a reinserção no território - sejam desenvolvidas nos Centros de Atenção Psicossociais, para que a lógica desinstitucionalizadora seja aplicada de forma concreta nas práticas profissionais - o que nos parece fundamental para a superação para todos os tipos de manicômios.

 

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1 Segundo Costa (2013), refere-se a "toda manifestação aguda da angústia humana (seja pela linguagem seja pelo comportamento) que não é - ou não tem sido - bem compreendida" (p. 40). O termo "grave" é utilizado tendo em vista a dificuldade de seu manejo (não usual ou "comum", como o autor postulou).
2 Tal projeto tem, dentre os seus objetivos, a ideia de contribuir para práticas substitutivas no campo da saúde mental, através da inserção de estudantes da área da saúde nos serviços. Mais informações em: https://repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/prefix/13439/1/21450656.pdf
3 À época da coleta de dados, o coautor era estudante de psicologia e extensionista do PRIS-ME, mas por ter outra formação de nível superior conduzia a atividade como coordenador, sob supervisão da autora. E depois da conclusão do curso continuou coordenando as atividades da oficina de futebol.
4 Em 2014, segundo o Ministério da Saúde (BRASIL, 2015), o DF tinha 12 CAPS, representando um índice de cobertura de 0,46 para cada 100.000 habitantes, considerado baixo se comparado ao índice nacional (que era de 0,86). Atualmente o DF conta com 15 CAPS, mas esse número ainda não atende a demanda de forma satisfatória e suficiente.

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