Services on Demand
article
Indicators
Share
Pensando familias
Print version ISSN 1679-494X
Pensando fam. vol.17 no.1 Porto Alegre July 2013
ARTIGOS
A peregrinação messiânica de casais inférteis pelas clínicas de reprodução humana assistida
The pilgrimage through messianic infertile couples clinics of assisted human reproduction
Gustavo Presídio de Oliveira1; Marjory dos Santos Passos2; Eliana dos Santos Leal2; Dioene Carneiro Nascimento2
Faculdade Nobre – FAN / BA
RESUMO
A Fertilização In Vitro (FIV) é uma das técnicas da Reprodução Humana Assistida (RHA) que, juntamente com o uso de óvulos doados, favorece as mulheres que apresentam certa incapacidade física em gerar óvulos saudáveis para fertilização. O objetivo desse estudo é compreender, a partir das teorias psicanalíticas e grupanalíticas, em especial dos autores franceses – Kaës e Anzieu, o processo e o funcionamento psíquico dos casais em busca de tratamento para suas infertilidades através da FIV com uso de óvulos doados. Esse estudo envolveu livros, artigos e teses científicas concernentes à temática aqui apresentada. Concluiu-se que o casal infértil, que utilizou-se da FIV com ovodoação, desenvolve um movimento de cunho esperançoso e de caráter estritamente messiânico, caracterizado por uma ilusão grupal acerca da figura do profissional médico e da clínica, de que estes seriam uma espécie de messias, capazes de salvá-lo, solucionando seus dilemas com a infertilidade.
Palavras-chave: Casal, Fertilização in vitro, Ilusão grupal, Psicanálise.
ABSTRACT
Fertilization In vitro (FIV) is one of Reproduction Human Assisted (RHA) techniques which along the use of donated ova, favors women who have certain physical inability to engender healthy ova for fertilization. This study aims to understand, from group analytics and psychoanalytic theories, specially the French author Anzieu, the psychic process and functioning of couples whose are seeking treatment for their infertility, through FIV using donated ova. Certainly, this study involved books, articles and scientific thesis concerning the issue presented here. It was concluded that the infertile couple, which was used FIV with donated ova, develops a hopeful movement, a kind of “messianic movement”, characterized by a group illusion about the doctor figure and the clinic. These would be a kind of messiah, who can save him, solving their dilemmas concerning the infertility.
Keywords: Couple, Fertilization in vitro, Group illusion, Psychoanalysis.
Dentre as tantas técnicas de Reprodução Humana Assistida (RHA), destaca-se, pela complexidade e pelo uso em tratamentos de origem tubária, a Fertilização in Vitro (FIV), utilizada desde 1978, quando se mostrou bem sucedida após o nascimento de Louise Brown na Inglaterra, o primeiro 'bebê de proveta' do mundo. Seis anos depois, em 1984, nasceria Ana Paula, o primeiro 'bebê de proveta' brasileiro (Souza, Moura & Grynszpan, 2008). A FIV tem como objetivo retirar os óvulos das trompas e, em laboratório, fecundá-lo com o espermatozóide, para que depois sejam recolocados no útero da mãe. No entanto, há mulheres com alguma incapacidade física de gerar óvulos ou que possuam óvulos não saudáveis para a fertilização. A necessidade de obtenção de algum óvulo de outra mulher (doadora) para que venha a ser fecundado pelo espermatozóide do marido da que vai gestar (receptora) este filho no ventre, torna-se uma alternativa plausível para seu tratamento, sendo que, no Brasil, a doação é anônima e totalmente sem benefício econômico (Andrade, 2001). Essa associação das técnicas de ovodoação e FIV ocorre, então, quando há disfunção ovulatória, ou seja, quando a mulher não possui função clínica ovariana natural. Nesse caso, primeiro tenta-se o estímulo dos ovários por uso de medicamentos e, quando não há resultado, propõe-se a ovodoação (Lopes et al., 2008). Ou seja, a FIV é uma técnica de alta complexidade no tratamento médico e seu uso com óvulos doados é a última alternativa clínica sugerida aos pacientes, quando ocorre não êxito de outras técnicas anteriormente. Decerto que por esse motivo, bem como por ser uma área de atuação médica ainda muito recente, tal técnica pode ser considerada um campo fértil para pesquisas que contribuam no esclarecimento sobre as reações não somente físicas em relação ao tratamento, mas, também, no que concerne aos aspectos emocionais vivenciados pelos pacientes (Cambiaghi, 2002).
Através da doação de óvulos, pode-se favorecer um grande número de mulheres com incapacidade de gestar naturalmente um filho, assim como aquelas que apresentam menopausa fisiológica, prematura ou incipiente, ou ainda as que são portadoras de doenças genéticas, dentre outras. De acordo com Pina et al. (2008), o sucesso obtido com a utilização de oócitos doados mediante FIV pôs fim a um atraso de 99 anos em relação à utilização de gametas masculinos com fins reprodutivos. Porém, há uma grande dificuldade de se conseguir doadoras de óvulos, uma vez que ocorre “invasividade e pesadas manipulações do corpo feminino – implicadas nas diferentes etapas do ciclo FIV, tais como a hiperestimulação hormonal, punção e coleta de óvulos, a superprodução de embriões, etc.” (Corrêa, 2001, p. 75). Além disso, em algumas clínicas, os custos financeiros para o uso de medicamentos e assistências médicas ficam a cargo daquela que se disponibilizou a doar seus próprios óvulos. De acordo com Papp (2002), “o conceito de 'óvulo de doadora' é capaz de espantar a imaginação. Inicialmente, a maioria dos casais rejeita a ideia por considerá-la inaceitável” (p. 127). Contudo, após as diversas tentativas de engravidar, as quais levam a um grande desgaste físico, emocional e financeiro, a opção de receber óvulo de outra mulher torna-se, aos poucos, aceita.
Importante ressaltar que, diante das adversidades vividas ao longo do tratamento da infertilidade e seus malogros, os casais podem acabar aceitando o uso de óvulos doados sem ter tempo suficiente para refletir a respeito dessa decisão, e as consequências podem surgir no futuro, em relação à maternidade (biológica) do filho, ao preconceito de alguns familiares e amigos, ao vínculo afetivo do casal, entre outros. Ou seja, para Corrêa (2001) e Borlot e Trindade (2004), o desejo de ter um filho é hiperinvestido do narcisismo de alguns desses pais, a tal ponto que acabam aceitando essa técnica após já terem experimentado outros tratamentos infecundos. Assim sendo, a possibilidade de não realização desse desejo poderá causar eventos traumáticos em alguns desses genitores e/ou na própria relação conjugal. Segundo Gasparini (2007), quanto maior o avanço nas maneiras de gerar um filho, maiores as repercussões e problemáticas em relação à sexualidade, ao conceito de família e a sua subjetividade imperativa nas vinculações de seus integrantes (cônjuge, família, entre outros).
Desejar um filho e concebê-lo despertam profundos sentimentos, anseios, medos e expectativas conscientes e inconscientes que devem ser analisados com cuidado, contemplando-se as particularidades de mulheres e homens. A investigação da experiência de ser pai ou mãe em um contexto de sofrimento pela infertilidade e necessidade de tratamento, como o da RHA, coloca a psicologia, portanto, diante de um novo desafio. Para Meira (2006), quando utilizada a técnica de FIV com ovodoação tem-se um agravante em decorrência da impossibilidade da transmissão da carga genética por parte da mãe. Surge então uma especial provocação: será que, mesmo podendo gerar o filho, após a experiência angustiante de não o conceberem de forma natural, os casais ainda sofrem afetivamente? Nessa perspectiva, esta investigação converge sua atenção para o campo da subjetividade dos laços afetivos conjugais e filiais, bem como para as fantasias que eclodem a partir do procedimento de receptação de óvulos e da técnica de FIV. Certamente, a pesquisa voltou-se para o grupo especial (casal), uma vez que os processos mentais inconscientes apresentam características grupais em suas estruturas. Sendo assim, o enquadre matrimonial torna-se um aparelho psíquico grupal com suas peculiaridades, no que diz respeito aos processos mentais inconscientes.
Esta pesquisa compreendeu as vivências emocionais dos casais que se submeteram à FIV com uso de óvulos doados, por vezes peregrinando nas clínicas especializadas em RHA, como se estas fossem Messias – salvadores e solucionadores de suas infertilidades. Para tanto, nesse estudo foi necessário articulação da teoria psicanalítica freudiana e comentadores, além de autores franceses da psicanálise de grupo, para embasarem a compressão dos processos psíquicos emergidos pelos casais em relação ao tratamento com FIV e ovodoação. Utilizaram-se os conceitos de 'compulsão', 'transferência' e 'grupo como um sonho'. Para tanto, empregou-se um desenho metodológico que contemplou a pesquisa bibliográfica, de caráter exploratório e análise de dados qualitativo. Tal técnica proporciona ao pesquisador maior contato com o arcabouço teórico atualmente publicado, permitindo que o mesmo possa analisar, manipular e atualizar as pesquisas científicas.
Esse estudo envolveu livros, artigos e teses científicas concernentes à temática aqui apresentada, buscando-se encontrar o que tem sido publicado em língua portuguesa e espanhola para composição da revisão de literatura. Para tanto, foram pesquisadas revistas e teses científicas indexadas na Biblioteca Virtual de Saúde nas bases de dados LILACS; PePSIC; SCIELO; MEDLINE e BVS-PSI. Os critérios de inclusão das obras literárias para compor a revisão bibliográfica foram estudos publicados a partir do ano 2000 que relatassem os aspectos emocionais vivenciados pelos pacientes submetidos ao tratamento de RHA com uso de óvulos doados, ainda que a priori não desenvolvessem um entendimento desses aspectos, a partir da teoria psicanalítica. Foram utilizados os seguintes critérios de exclusão: estudos que não abordassem casais que utilizaram óvulos doados na RHA; que não apresentassem nenhuma vivência subjetiva destes pacientes em seus resultados e estudos anteriores ao ano de 2000. Para a delimitação e foco da pesquisa frente à temática, foram utilizados cinco descritores norteadores: Doação de óvulos; Reprodução assistida; Novas tecnologias reprodutivas; Fertilização in Vitro; Família. Não obstante, a busca sistematizada por meio de sequências utilizadas em cada base de dados separadamente, obteve a quantidade de artigos que podem ser observados na tabela 1 (ver anexo), atendendo aos critérios de inclusão e exclusão para a delimitação dos artigos que foram utilizados.
De tal modo, essa investigação científica perpassa as experiências subjetivas de casais que se submeteram a FIV com óvulos doados e particularmente analisa a busca incessante desses pacientes pelas clínicas médicas especializadas no tratamento da infertilidade. Essa proposta poderá oferecer aos profissionais da área da saúde, os quais trabalham com essa demanda, uma escuta diferenciada dos processos psíquicos desses casais durante o tratamento e, possivelmente, dos sofrimentos psíquicos que podem acometê-los.
Modelo alternativo de concepção na RHA diante do desejo da parentalidade
O processo de parentalidade é um marco crucial, um projeto de ser, na vida de um casal que sonha e planeja ter filhos. Expectativas são criadas e o desejo inconsciente de perpetuação da espécie e manutenção do Eu numa geração posterior, de alguma forma, reverbera no mundo psíquico do casal. Conforme Oliveira (2010), “o desejo de ter um filho origina-se e permanece vinculado ao desejo de imortalidade do Eu” (p. 54). Tal projeto de família, permeado por intenso investimento e movimento libidinal, “é recheado de investimentos narcísicos, visto que é fantasiar no outro (o bebê) uma parte de si ou a parte do casal em jogo, com a possibilidade de dar continuidade à cadeia geracional da qual faz parte” (p. 54).
Entretanto, por razões que fogem ao controle do casal (de ordem biológica, por exemplo), este sonho torna-se impossível do ponto de vista considerado natural, razão essa que provoca uma série de conflitos intrapsíquicos e, por vezes, estremece o sonho do casal. O ideal de imortalidade e perpetuação sofre um duro revés. Na busca por tal realização, muitos casais decidem ir à procura de métodos alternativos e a RHA assume o lugar de solução para o dilema (Meira, 2006). Nesse processo de busca pela realização da concepção, o médico assume uma posição central de agente solucionador do problema (na visão do casal). “Assim, a medicina tenta assegurar a paternidade e maternidade biológicas, colocando-os em termos genéticos” (Monteiro & Teixeira, 2011, p. 97).
A RHA constitui-se num conjunto de técnicas utilizadas para promover uma fecundação quando esta não pode ocorrer por vias naturais. Segundo Silva (2006), a mesma consiste em um “conjunto de técnicas que favorecem a fecundação com o objetivo de combater a infertilidade . . . Essas técnicas possibilitam o surgimento da filiação para pessoas que não podem ter filhos pelos métodos convencionais” (p. 37). De acordo com Luna (2005), as técnicas relacionadas à RHA atuam como substituto da relação sexual convencional em termos de reprodução biológica, o que repercute na transformação radical dos moldes tradicionais de concepção. Ela proporciona um leque de possibilidades conceptivas, a exemplo de FIV, doação de óvulos, espermatozóides e embriões, utilização de um útero de substituição, a chamada 'barriga de aluguel', ou maternidade substitutiva.
Vale ressaltar também a contribuição da RHA para aqueles casais que protelam, em função de investimentos profissionais, pessoais e outros, ter filhos. De acordo com Oliveira e Terzis (2011), “os avanços na ciência médica, em especial, relacionados à RHA, têm contribuído não somente para o tratamento da infertilidade dos casais, como também favorece aqueles que decidiram ter seus filhos tardiamente” (p. 7). As mudanças nas constituições familiares, nos arranjos amorosos, nos investimentos pessoais e as novas formas de concepção têm provocado reverberações na forma de expressão da sexualidade, na maneira como se concebe um filho e, consequentemente, na própria visão de família.
Os avanços espetaculares em biologia molecular e embriologia incentivados por convicções científicas deterministas que envolvem os aspectos genéticos, faz com que, em primeiro lugar e antes de tudo, não se tenha uma reprodução biológica com significados socioculturais. Isso tem demonstrado em outros lugares que a demanda bem estabelecida para a reprodução assistida é, normalmente, respondida pelo desejo poderoso e moderno do ocidente em que deseja a paternidade biológica através de uma maternidade tecnológica (Stolcke, 2010, p. 19).
De fato, torna-se crucial atentar-se para uma análise acurada sobre os diversos aspectos psicológicos que permeiam a atitude de muitos desses casais, por vezes com características maníacas em repetirem diversas vezes o tratamento em torno de seu projeto familiar e sua busca incessante por clínicas especializadas para a realização desse sonho. Questões podem ser suscitadas a partir da análise desse fenômeno: de que maneira as condições psicológicas perpassam o investimento e busca incessante desses casais, que insistem em enfrentar os dilemas de uma possível infertilidade, e encontram na RHA a “salvação” e solução de suas demandas? Como essa peregrinação de caráter messiânica envolve o universo intrapsíquico dos cônjuges? Para discutir essa questão, podemos recorrer aos conceitos de transferência e compulsão.
De acordo com Kupermann (2008), desde a sua descoberta por Freud no século XIX, em Estudos sobre a Histeria, o conceito de transferência surgido juntamente à noção de resistência, sofreu diversas modificações no decorrer da história da psicanálise até chegar aos dias atuais. Não obstante, hoje é um dos termos mais empregados da literatura psicanalítica e considerado como o modus operandi da clínica. Inicialmente fora abordada como forma de resistência ao tratamento, enquanto forma específica de enamoramento da paciente por seu médico, cuja gênese remonta a uma relação antiga experimentada com as imagos parentais e deslocada para a figura do analista (Freud, 1893-1895/1996). Logo após, reconhece a importância da transferência para o tratamento analítico, associa-a ao conceito de repetição e a redimensiona como sendo um fragmento da repetição dessas imagos parentais depositados sobre a figura do analista, agregando-a a uma resistência a lembrar de um passado esquecido. Assim, postula-se que “enquanto o paciente se ache em tratamento não pode fugir a essa compulsão à repetição; e no final compreendemos que esta é a sua maneira de recordar” (Freud, 1912/1996, p. 166-167). Mais adiante, complementa que “repete sob as condições da resistência... tudo o que já avançou a partir das fontes do reprimido para sua personalidade manifesta – suas inibições, suas atitudes inúteis e seus traços patológicos de caráter” (Freud, 1912/1996, p. 166-167). Posteriormente, desvincula a ideia da transferência como restrita a um inconveniente entrave ao tratamento analítico, ao relatar que “na verdade, uma relação de dependência afetuosa e dedicada pode, pelo contrário, ajudar uma pessoa a superar todas as dificuldades de fazer uma confissão” (p. 116), admitindo, portanto, que é possível que essa transferência possa servir como facilitadora do processo. Sendo assim, na medida em que se estabelece essa divisão entre a transferência positiva e negativa, que respectivamente correspondem a sentimentos afetuosos e hostis, postula que, a transferência positiva erótica consiste em uma poderosa aliada do médico no tratamento.
Para Laplanche e Pontalis (2001), a compulsão é um tipo de comportamento que pode se apresentar com pensamentos obsessivos e/ou atos simples e complexos que surgem de uma coação interna. O que estes autores qualificam de compulsivo é quando a sua não realização acarreta aumento de angústia e ansiedade. Decerto que a compulsão é como uma possibilidade, por vezes desesperadora, de satisfazer um desejo, uma vontade e um preenchimento de uma demanda que não se completa com cada experiência. O excesso nas atitudes repetitivas se dá por um ato impulsivo que exige do sujeito uma carga de energia na pretensão de se reconhecer no mundo, através daquilo que acredita ser possível de realizar e que a partir daí vai se identificar. Com base nas explicações de Freud sobre os modos que a compulsão se apresenta, Gondar (2001) caracteriza a compulsão à repetição como:
impulso avassalador ao qual sucumbe o sujeito... é como se ele tentasse organizar o impulso cego segundo os ditames de uma “cena”, buscando conteúdos capazes de preencher uma forma vazia, autônoma, e em última instância irredutível aos seus próprios conflitos (p. 28).
Segundo Oliveira (2011), as repetições e os processos transferenciais dos pacientes que se submetem ao tratamento da FIV com óvulos doados, em relação à clínica e/ou médicos especialistas em RHA, configuram atuações de ordem compulsiva a cada nova tentativa para a gestação. Dessa forma, é inerente e perceptível que haja uma ilusão grupal de cunho onipotente em relação às clínicas, com anseios de obterem êxito para suas demandas de infertilidades. Da mesma forma, a frustração decorrente do fracasso do tratamento promove o deslocamento do aspecto transferencial para outra clínica que possa atenuar o vazio e o sentimento de desamparo pela não realização do desejo da parentalidade do cônjuge e também a si mesmo. O médico assume, nessa condição, a posição de responsável pela garantia da procriação, prefigurando uma condição de onipotência redentora. O papel do marido, nesse momento, pode ser reduzido ao papel de um simples produtor de espermatozoide, enquanto o médico seria uma espécie de Deus e/ou o pai da criança no imaginário do casal. Conforme Seibel (2006) alerta: “os profissionais envolvidos precisam trabalhar em si mesmos a ansiedade e o desejo, permitindo que a paciente seja dona e autora da opção... é frequente que a paciente tente delegar à equipe médica a decisão” (p. 159).
Ilusão messiânica e as clínicas de RHA
Diversos casais que se submeteram a algumas técnicas de RHA vivenciaram grande dispêndio físico, emocional e financeiro em suas inúmeras tentativas frustradas para tratar de suas infertilidades, até o tratamento com uso da técnica da FIV com receptação de óvulos doados (Oliveira, 2011). De tal modo, para Corrêa (2000), os pacientes lançam-se sobre a instituição (clínica), projetando nela a salvação e a resolução para suas demandas de infertilidade. Em outras palavras, promove-se um deslocamento dos investimentos libidinais para a instituição como se esta fosse um grupo que proporcionaria um acolhimento atenuante dos sofrimentos físicos, emocionais e financeiros, em função da não realização da concepção via meios naturais. O grupo (a instituição – Clínica de RHA), nesse sentido, assume a condição de realizadora do desejo do cônjuge, da mesma maneira como o sonho é uma realização de um desejo. Conforme Anzieu (1967/1993), tal desinvestimento objetal corresponde, em termos econômicos, a uma transposição libidinal para a única realidade presente no aqui e agora, ou melhor, o grupo se torna este objeto libidinal, aspecto que necessita de uma observação e interpretação a partir da teoria construída por Anzieu (1967), é que tais casais tendem a vivenciar com a clínica uma espécie de ilusão grupal, a qual corresponde a um desejo intrínseco de proteção e de preservação da unidade egóica do casal que está naquele momento ameaçada pelo diagnóstico de infertilidade.
Todavia, para Oliveira (2011), a ilusão proveniente do grupo demonstra o interessante funcionamento de um Eu Ideal nos grupos, substituindo o Eu Ideal de cada qual, por um Eu Ideal comum. Daí a ênfase postada, sobremaneira, sobre o caráter caloroso das relações entre os membros, na reciprocidade da fusão de uns com os outros e na proteção e coesão produzidas por esse grupo aos seus integrantes. Por certo, é perceptível a dinâmica dessa ilusão de grupo à medida que o casal experiencia sentimentos de esperança com o médico da clínica ou a instituição como um todo, colocando-os na posição de salvador – fantasia onipotente. Nesse sentido, busca-se a melhor clínica, com tradição e referência na área atuante, com médicos conceituados e de excelência em suas especialidades e especificidades profissionais, entre outros, ainda que não os conhecesse, criando-se um sentimento de ilusão utópica, algo da ordem de um Eu Ideal. Essa ilusão é importante para criar ou motivar o enfrentamento da perda ou falta, o que, por conseguinte, remete ao provérbio socrático: “o mal estar esperançoso”, ou seja, a procura de um salvador, médico ou remédio, para aplacar o mal estar que tanto angustia e desespera alguns desses casais.
Conforme Bion (1961/1975), reações de ordem regressiva e infantil surgem no grupo (casal), no qual se busca o objeto perdido, ou seja, o seio materno. Logo o grupo torna-se, para seus integrantes, uma família, já que esta se constitui em uma fonte especial da qual despertam os mais primitivos sentimentos. De acordo com o mesmo autor (1961/1975), em relação ao pressuposto básico do grupo acasalamento, os integrantes creem em um salvador que suprirá todas as necessidades e prazeres que o casal deseja. Alguém do grupo ou o próprio líder trará, no futuro, o messiânico que os salvará, fazendo com que, a qualquer momento, sejam afastados os sentimentos de agressividade e de perda, ameaçadores do grupo e seu processo de desenvolvimento. O salvador, na figura do médico ou clínica como um todo, é projetado e será o responsável por salvar o casal do sofrimento e da angustiante condição de impossibilidade de conceber uma criança.
Considerações finais
Conclui-se, desse estudo, que os casais que se submeteram ao tratamento de RHA com uso da técnica de FIV com ovodoação vivenciaram momentos de intenso sofrimento físico, psíquico e financeiro para realização do desejo da concepção. Para além da intervenção realizada em seus corpos, mediante altas doses hormonais e constantes exames físicos ao se submeterem ao tratamento médico (Geber & Sampaio, 2005), também se nota uma regressão de ordem tópica representada pela ilusão de um exacerbado sentimento produzido pelo cônjuge em relação à clínica ou ao conhecimento científico do médico a despeito das técnicas de RHA. Este processo, de direção regressiva, possui como efeito uma transferência positiva para com estes objetos e propicia o abrandamento do estado emocional desses casais, ou melhor, a ansiedade com resultados não positivos. Destarte estes casais projetem na clínica, particularmente na figura médica, a capacidade suficiente para o acolhimento das suas aflições e a realização do sonho do tão almejado filho. Tais fantasias de onipotência na instituição médica apontam para as vivências da primeira infância, mais precisamente da fase oral, na qual os pais protegem e saciam as necessidades prementes do filho. Esse estado emocional de regressão à dependência paternal/maternal faz com que a figura do médico torne-se semelhante a do 'salvador', a fim de atenuarem-se as angústias pela não obtenção do êxito na tentativa de procriar. Salienta-se, portanto, a existência de um movimento de cunho esperançoso e de caráter estritamente messiânico, em que o casal desenvolve uma ilusão acerca da figura do profissional médico, de que este seria uma espécie de messias, ou melhor, aquele capaz de salvá-lo, solucionando seus dilemas com a infertilidade. A ilusão construída através de projeções de um futuro promissor possibilita um estado psíquico de menor aflição e insegurança ao casal. Decerto que, quando a clínica ou médico não correspondem de imediato às suas demandas, provoca-se uma desilusão desse casal com a instituição como um todo e, doravante, um movimento fugaz da mesma. Essa peregrinação de uma clínica em direção à outra retrata uma busca interminável, incansável, resoluta, obstinada e maníaca dos cônjuges de terem um filho, amenizando sobremaneira a angústia proporcionada pelo não êxito na realização de seu projeto-comum de vida, destacado nesse estudo como fenômeno ilusório de cunho messiânico.
Referências
Anzieu, D. (1993). O grupo e o inconsciente: O imaginário grupal. São Paulo: Casa do Psicólogo. (Original publicado em 1967). [ Links ]
Bion, W. R. (1975). Experiências com grupos: Os fundamentos da psicoterapia de grupo. São Paulo: Editora Universidade São Paulo. (Original publicado em 1961). [ Links ]
Borlot, A. M. M., & Trindade, Z. A. (2004). As tecnologias de reprodução assistida e as representações sociais de filho biológico. Estudos de Psicologia, 9, 63-67. Recuperado em 13 abril de 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/epsic/v9n1/22382.pdf. [ Links ]
Cambiaghi, A. S. (2002). Fertilização um ato de amor. São Paulo: Edicon. [ Links ]
Corrêa, M. V. (2000). Novas tecnologias reprodutivas: Doação de óvulos. O que pode ser novo nesse campo? Cad. Saúde Pública, 16(3), 863-870. Recuperado em 13 de abril de 2012. Disponível em: http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2000000300036&lang=pt [ Links ]
Corrêa, M. V. (2001). Novas tecnologias reprodutivas: Limites da biologia ou biologia sem limites?. Rio de Janeiro: UERJ. [ Links ]
Freud, S. (1996). Estudos sobre a histeria. In Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (E.S.B.), v. II. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1893-1895). [ Links ]
Freud, S. (1996). A dinâmica da transferência. In Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (E.S.B.), v. XII. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1912). [ Links ]
Gasparini, E. V. R. (2007). Experiências com casais inférteis que utilizam a medicina reprodutiva: Um estudo psicanalítico. Campinas/SP, 202 pp. Tese (Doutorado). Instituto de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Centro de Ciências da Vida. [ Links ]
Geber, S., Sampaio, M. Avaliação dos efeitos do estradiol e do FSH nos níveis de leptina em mulheres com supressão da função hipofisária. Rev. Bras. Ginecol. Obstet. 27(4), 216-221. Recuperado em 13 de abril de 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-72032005000400009&lang=pt [ Links ]
Gondar, J. (2001). Sobre as compulsões e o dispositivo psicanalítico. Revista Ágora, 4, 25-35. [ Links ]
Kupermann, D. (2008). Presença sensível: a experiência da transferência em Freud, Ferenczi e Winnicott. Jornal de Psicanálise, 41, 75-96. [ Links ]
Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (2001). Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Lopes, J. R. C. et al. (2008). Doação de óvulos. In M. C. B. Souza, M. D. Moura, D. Grynszpan, (Orgs.). Vivências em tempo de reprodução assistida: O dito e o não dito. Rio de Janeiro: Revinter Ltda. [ Links ]
Luna, N. (2002). Maternidade desnaturada: uma análise da barriga de aluguel e da doação de óvulos. Cadernos Pagu, 19, 233 - 278. Recuperado em 13 de abril de 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332002000200010&lang=pt [ Links ]
Luna, N. (2005). Natureza humana criada em laboratório: Biologização e genetização do parentesco nas novas tecnologias reprodutivas. Hist. Cienc. Saúde-Manguinhos, 12(2), 395-417. Recuperado em 13 abril de 2012.Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-9702005000200009&lang=pt. [ Links ]
Meira, A. R. (2006). Doação compartilhada de óvulos: Reflexões bioéticas. Reprod. Clim. 21, 29-31. Recuperado em 13 de abril de 2012. Disponível em: http://bases.bireme.br/cgi-bin/wxislind.exe/iah/online/?IsisScript=iah/iah.xis&src=google&base=LILACS&lang=p&nextAction=lnk&exprSearch=462413&indexSearch=ID [ Links ]
Monteiro, C. F. A., & Teixeira, L. C. (2011). Família e tecnologias reprodutivas: Considerações sobre a transmissão psíquica geracional. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 63(2), 92-101. Recuperado em 21 de março de 2012. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/arbp/v63n2/10.pdf. [ Links ]
Oliveira, G. P. (2010). O desejo do casal de ter um filho: Possíveis percalços na instauração da parentalidade. In A. Terzis (Org.), Psicanálise aplicada na América Latina – Novos contextos grupais. São Paulo: Via Lettera.
Oliveira, G. P. (2011). Experiências com casais que receberam óvulos doados: Um estudo psicanalítico. Tese apresentada no Curso de Pós-graduação Stricto Sensu do Instituto de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Centro de Ciências da Vida. Campinas, SP. [ Links ]
Oliveira, G. P., & Terzis, A. (2011). O narcisismo dos casais que se submeteram à fertilização in vitro com receptação de óvulos doados: uma pesquisa bibliográfica. Revista da SPAGESP - Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo, 12, 5-13. Recuperado em 29 de março de 2012. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rspagesp/v12n1/v12n1a02.pdf. [ Links ]
Papp, P. (2002). Casais em perigo: Novas diretrizes para terapeutas. Porto Alegre: Artmed Editora. [ Links ]
Pina, H. et al. (2008). Doação de óvulos. In M. C. B. Souza, M. D. Moura, D. Grynszpan (Orgs.). Vivências em tempo de reprodução assistida: O dito e o não dito. Rio de Janeiro: Revinter Ltda. [ Links ]
Schneider, I. (2006). Ocyte donation for reproduction and research cloning û the perils of comodification and the need for European and international regulation. Revista Derecho Genoma Humano, 25, 205-241. Recuperada em 13 de abril de 2012. Disponível em: http://pesquisa.bvsalud.org/regional/resources/ibc-72007 [ Links ]
Schuffner, A. (2003). A eficiência do programa de doação de óvulo em pacientes com reserva ovariana diminuída. Rev. Méd. Paraná; 61(2), 23-25. Recuperada em 13 de abril de 2012. Disponível em: http://pesquisa.bvsalud.org/regional/resources/lil-387543 [ Links ]
Seibel, D. (2006). Pensando a ovodoação – dilemas e desafios. In J. Quayle, J., & R. M. M. Melamed, R.M.M. (Orgs.). Psicologia em reprodução assistida: experiências brasileiras. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Silva, E. M. (2006). A filiação em face da reprodução humana assistida. Revista da ESMESC, 13, 9-16. Recuperado em 30 de março de 2012. Disponível em: http://www.esmesc.com.br/upload/arquivos/2-1247232309.PDF. [ Links ]
Souza, M. C. B., Moura, M. D.; Grynszpan, D. (2008). Vivências em tempo de reprodução assistida: O dito e o não dito. Rio de Janeiro: Revinter Ltda. [ Links ]
Stolcke, V. (2010). Homo clonicus: ¿entre la naturaleza y la cultura? Revista de Antropologia Social, 11(2), 9-34. Recuperado em 13 de abril de 2012. Disponível em: http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/campos/article/view/26090/17359. [ Links ]
Endereço para correspondência
Gustavo Presídio de Oliveira
E-mail: gustavo.presidio@terra.com.br
Recebido em: 04/06/2012
Revisado em: 04/06/2012
Revisado em: 12/02/2013
Aceito em: 08/04/2013
1 Docente do curso de Psicologia da Faculdade Nobre – FAN / BA e Coordenador do grupo de pesquisa: 'Interpretação das formações psíquicas presentes em figuras sociais que tem sido vítimas de exclusão: um estudo psicanalítico'. Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-Campinas/SP; Mestre em Psicologia Clínica (UniMarcos - SP); Especialista em Psicanálise, Grupalidade e Intervenção nas Instituições (CEFAS - Campinas/SP); Especialista em Psicologia Hospitalar (Hospital Albert Einstein-SP); Especialista em Sexualidade Humana (Hospital das Clínicas - USP / SP); Especialista em Psicologia Clínica (Conselho Federal de Psicologia - CFP) e Especialista em Docência do Ensino Superior (UNIFACS-BA). Autor dos livros: 'Aversão Sexual na Contemporaneidade' (2008) e 'Psicanálise Aplicada na América Latina: Novos Contextos Grupais' (2010).
2 Acadêmicos do curso de graduação em Psicologia da Faculdade Nobre (FAN), Bolsistas de Iniciação Científica do Projeto de Pesquisa: 'Interpretação das formações psíquicas presentes em figuras sociais que tem sido vítimas de exclusão: Um estudo psicanalítico'.