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Pensando familias

Print version ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.17 no.1 Porto Alegre July 2013

 

ARTIGOS

 

O abuso sexual infantil e a comunicação terapêutica: um estudo de caso

 

The sexual abuse against children and the therapeutic communication: a case study

 

 

Ana Paula Medeiros1

Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O abuso sexual infantil e suas consequências à vítima e à família têm sido alvo de constantes pesquisas e discussões. Este trabalho objetiva apresentar um estudo de caso de uma criança que sofreu esse tipo de violência, a fim de discutir a comunicação terapêutica do processo e pensar em estratégias de trabalho com esta temática. Ao longo da psicoterapia, pode-se perceber que o paciente demonstrava medo, receio de contato com o outro e percepção de que era uma pessoa sem energia. No entanto, a comunicação terapêutica possibilitou novas formas de expressão, criatividade e espontaneidade. O processo foi prejudicado pelo elevado número de faltas, que pode ser entendido pela dificuldade dos pais da criança em entender a necessidade de psicoterapia para ele. Entende-se que toda a família deve ser engajada neste processo, de forma que as dificuldades familiares também possam ser trabalhadas.

Palavras-chave: Abuso sexual, Comunicação terapêutica, Psicanálise, Estudo de caso.


ABSTRACT

Sexual abuse against children, and its consequences to the victim and family, has been the subject of ongoing research and discussion. This study presents a case study of a child who suffered such violence in order to discuss the therapeutic communication process and think about strategies for working with this theme. Over the course of psychotherapy, one can see that the patient showed fear, apprehension of contact with others and the perception that he was a person nerveless. However, therapeutic communication made possible new forms of expression, creativity and spontaneity. The process has been hampered by the high number of faults that can be understood by the child's parents' difficulty in understanding the need for psychotherapy for him. It is understood that the entire family to be engaged in this process, so that difficulties family can also be worked.

Keywords: Sexual abuse, Therapeutic communication, Psychoanalysis, Case study.


 

 

Introdução: o abuso sexual infantil

O abuso sexual infantil é definido como a exploração sexual de uma criança, sendo ocasionado por uma pessoa que esteja em um estágio psicossexual mais avançado do desenvolvimento (Williams, 2003). A criança, nestes casos, é utilizada como meio para gerar estimulação sexual no outro, não sendo necessária a penetração. Assim, a realização de toques, carícias, sexo oral, ou situações em que não há contato físico, como voyerismo, assédio e exibicionismo, são considerados abuso sexual.

O abuso sexual pode ser intrafamiliar ou extrafamiliar. O primeiro deles é caracterizado quando o abusador é da mesma família da criança, sendo, na maioria das vezes, pai, padrasto ou irmão da vítima. Nestes casos, muitas vezes o abuso ocorre mais do que uma vez. Já no abuso sexual extrafamiliar o abusador não é da mesma família que a vítima, ocorrendo com menor frequência quando comparado ao intrafamiliar (Kristensen, 1996).

Existe uma notável dificuldade em quantificar a frequência desta violência, sendo que isso ocorre devido ao fato de que muitos casos de abuso sexual não são denunciados, seja pelo temor que a vítima tem do agressor, seja envergonhar-se do acontecimento. Quando as crianças são as vítimas o número de denúncias pode ser ainda menor, uma vez que a própria criança pode não relatar aos seus responsáveis o que ocorreu. Pensando no abuso sexual intrafamiliar, há uma dificuldade em denunciar o abusador em consequência das modificações que a família deverá sofrer após a denúncia (Williams, 2003).

Diversos fatores podem influenciar na forma como a criança responderá, ou passará a se comportar, após a ocorrência do abuso sexual. Para Pfeiffer e Salvagni (2005), os fatores que influenciam referem-se à maneira como o abuso ocorreu, quem foi o abusador e qual a sua relação com a criança, a frequência em que ocorreu, se houve outras formas de violência física ou psicológica, a idade da criança, a reação dos familiares e o apoio social recebido após a denúncia.

Para Williams (2003), é extramente importante conhecer quais são as possíveis consequências que o abuso sexual pode acarretar, sobretudo porque o evento pode desencadear problemas na vítima a curto e a longo prazo. O estudo de Pelisoli e Dell´Aglio (2008) concluiu que uma criança com bom suporte familiar e bom desenvolvimento emocional antes do abuso tende a sofrer menos efeitos negativos. No entanto, muitos são os sintomas que podem ser desenvolvidos após a violência, destacando-se: a baixa autoestima, dificuldades de relacionamento, comportamento sexualizado, ansiedade e tristeza constante (Azevedo, 2001). Para Kendall-Tackett, Willians e Finkelhor (1993), os sintomas apresentados são também influenciados pela idade das crianças quando ocorre o abuso, a saber: crianças violentadas sexualmente entre os zero e seis anos sofrem com ansiedade, comportamento sexual inapropriado e dificuldades do sono, enquanto que crianças de sete a 12 anos tendem a apresentar medo, comportamento regredido para a idade e agressividade.

A literatura aponta ainda para a importância de se notar mudanças de comportamento em crianças, uma vez que isso pode ser indicativo de que houve abuso sexual. Dentre essas mudanças, destaca-se a sexualidade precoce ou inesperada para a idade, medo de contato e isolamento. Além disso, deve-se atentar para possíveis marcas corporais que indiquem algum sinal de violência (Brino & Williams, 2003). Em um contexto de psicoterapia, é comum que a criança que foi abusada sexualmente faça desenhos de figura humana que tenha ênfase nos órgãos sexuais, mas que não apresente mãos e pernas, ou que estas estejam em tamanho menor quando comparado ao restante do corpo (Azevedo, 2001).

Brino e Williams (2003) pesquisaram o conhecimento de professores a respeito dos sinais apresentados por crianças que sofreram abuso sexual, além de investigar a conduta do grupo diante de alunos que passaram por essa violência. Os resultados indicam que há carência de informações a respeito do tema e que os professores não relatam condutas adequadas frente ao quadro, como, por exemplo, a denúncia a órgãos competentes. Esse estudo reflete um despreparo para lidar com a temática e que deve ser visto em um contexto mais amplo, englobado também as áreas da saúde e jurídica (Amazarray & Koller, 1998).

Um maior preparo das diversas instâncias relacionadas ao tema poderá diminuir as consequências e também a frequência deste tipo de violência, uma vez que a literatura aponta para uma multicausalidade que origina o problema. Segundo Habigzang, Koller, Azevedo e Machado (2005), o aumento do consumo de drogas e álcool, do desemprego e da desigualdade social e econômica estão entre as maiores causas para a disseminação da violência sexual contra crianças. Araújo (2003) destaca que, além destes fatores, a não garantia do atendimento às necessidades básicas de toda a população e a falência de instituições que seriam responsáveis por garantir a integridade das relações sociais também são fatores que contribuem para o aumento no número de casos de abuso sexual infantil.

A partir da apresentação destes dados, é preciso pensar estratégias que auxiliem as crianças vítimas de abuso sexual, de forma que estas não tenham consequências negativas e prejuízos em seu desenvolvimento. A pesquisa de Santos e Dell´Aglio (2009) revela que os efeitos negativos podem ser diminuídos quando a criança recebe apoio familiar, quando seus pais confiam em seu relato e quando a vítima possui maior resiliência, ou seja, capacidade para lidar com eventos adversos. Além destes fatores, para Araújo (2003), é necessária uma intervenção plural, com diversos profissionais que possam abarcar os aspectos terapêuticos, legais e de proteção à criança.

É neste contexto que se insere a importância da psicoterapia, que poderá ajudar a criança a ressignificar o acontecimento, recuperar experiências perdidas e retomar seu desenvolvimento emocional. Para Azevedo (2001), a psicoterapia de orientação psicanalítica pode auxiliar a criança a lidar com os sentimentos e com a dor da invasão sofrida. Além do trabalho com a criança, é importante que o restante da família também seja cuidado, uma vez que é comum a dificuldade em lidar com a situação. Para Santos e Dell´Aglio (2009), as mães podem sofrer diversas consequências após a descoberta da violência, destacando-se a depressão e o transtorno do estresse pós-traumático. Além disso, as mães podem sentir-se culpadas pelo acontecido e ter dificuldade em aceitar o relato do filho, como em uma tentativa de negar a violência (Azevedo, 2001).

Por se tratar de um tema atual e pelas consequências que o abuso sexual pode acarretar na criança e na família em que esse contexto de violência se insere, destaca-se a importância de trabalhos que relatem experiências de atendimento psicoterápico com este grupo, a fim de que sejam pensadas estratégias para minimizar os efeitos adversos para o desenvolvimento do indivíduo e do grupo familiar.

 

Objetivo e Método

O presente trabalho objetiva, por meio da utilização de um estudo de caso, realizar uma análise do processo psicoterápico de uma criança que sofreu abuso sexual. Com isso, pretende-se contribuir com a literatura, oferecendo indícios de estratégias para a comunicação terapêutica com esse grupo, auxiliando seu desenvolvimento e diminuindo as consequências resultantes deste tipo de violência. O paciente atendido é do sexo masculino, tinha seis anos quando o atendimento ocorreu e será chamado pelo nome fictício de Cléber.

Para isso, serão utilizados dados colhidos no decorrer do atendimento psicológico realizado com a criança, bem como transcrições das sessões e registros das supervisões do caso. O atendimento foi realizado em um serviço de clínica-escola de psicologia de uma instituição pública de ensino. Cléber foi atendido por uma estagiária do quarto ano do curso de psicologia, sob responsabilidade e supervisão das psicólogas do serviço.

As supervisões do caso foram realizadas semanalmente, a fim de discutir os acontecimentos de cada sessão realizada. Estas discussões eram permeadas pela orientação psicanalítica, que também fundamentará as reflexões no presente trabalho. Assim, a análise de dados foi realizada a partir de uma análise qualitativa do conteúdo das sessões, procurando entrelaçar os acontecimentos com a teoria norteadora. As transcrições das sessões, bem como os registros de supervisão, foram relidas a fim de aprofundar o conhecimento a respeito do caso, podendo, assim, construir o presente texto, em uma articulação teórico-prática.

Com relação aos procedimentos éticos, a fim de atender as Resoluções 196/96 e 251/97 do Conselho Nacional de Saúde, os responsáveis pela criança atendida assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, no qual autorizam a utilização dos dados obtidos ao longo do processo terapêutico para publicações científicas. Além disso, são utilizadas estratégias de preservação da identidade dos envolvidos, como a utilização de nomes fictícios.

 

Resultados e Discussão

O paciente Cléber foi encaminhado para atendimento por determinação judicial, uma vez que havia sofrido abuso sexual de seus vizinhos. O abuso aconteceu quando os pais da criança estavam trabalhando e ele estava em sua casa com dois irmãos gêmeos, de oito anos. Segundo a mãe de Cléber, que aqui será chamada pelo nome fictício de Verônica, sua vizinha, mãe de um dos abusadores, havia ficado responsável por cuidar de Cléber e de seus irmãos. No entanto, esta não teria cumprido o combinado, deixando as crianças sozinhas com seus filhos. Após ter sido realizado o Boletim de Ocorrências, a criança foi encaminhada para um serviço de assistência a atendimento de vítimas de abuso sexual, sendo, posteriormente, encaminhada para atendimento psicológico.

O atendimento psicoterápico foi norteado pela orientação psicanalítica, fazia uso de caixa lúdica com diversos brinquedos e ocorreu com frequência semanal. Inicialmente, foi realizado um encontro com a mãe, Verônica, a fim de que ela contasse sobre a história de vida de seu filho e de sua família. De maneira geral, ela se mostrou pouco disposta a levar o filho para atendimento por acreditar que ele reviveria o abuso sexual e que isso o prejudicaria. Ao ser explicado sobre a importância da terapia, Verônica pareceu mais disposta, mas, ao mesmo tempo, preocupada com as sequelas que Cléber poderia ter em decorrência do acontecido.

Apesar dessa preocupação, a mãe da criança relata que ela e seu marido desconfiam do depoimento do filho. Segundo ela, Cléber confirma que o abuso ocorreu, mas o médico não confirmou que tenha havido penetração. Esse comportamento dos pais pode indicar que seu filho é sem voz dentro das relações da família, além de dificultar ainda mais o processo de elaboração a respeito da violência sofrida pela criança, processo esse fundamental para que ele não tenha prejuízos ao seu desenvolvimento emocional. Além disso, pode-se entender essa desconfiança como estratégia de negação do acontecido, fato que é frequente em mães cujos filhos sofreram abuso sexual (Azevedo, 2001).

Com relação à história de vida da criança, a mãe lembra-se pouco de sua primeira infância e relata que ela e o marido são ausentes, porque trabalham muito. Ela conta que o filho não foi desejado e que ela tentou abortá-lo várias vezes, mas que não conseguiu. Para Milbradt (2008), esse fato demonstra que a criança tem muita força vital, desde o momento de sua concepção, mas, ao mesmo tempo, pode representar que a criança sofrerá privações de ordem emocional na sua relação com os pais. Verônica mostra-se bastante confusa ao tentar lembrar de fatos significativos da vida de seus filhos, não se lembrando das idades deles e dizendo várias vezes que tem quatro filhos, embora tenha cinco no total.

Logo após a entrevista com a mãe, o atendimento de Cléber foi iniciado. A psicoterapia teve duração de um ano, mas foram realizadas apenas 17 sessões. Com relação à evolução do caso, pode-se dizer que houve dificuldade em estabelecer vínculo entre a estagiária e o paciente, uma vez que este demonstrava medo, inclusive podendo ser apontado como consequência do abuso sexual. Além disso, as constantes faltas dificultavam a continuação do processo terapêutico, prejudicando assim o processo de melhora do paciente.

Ao longo das sessões, o paciente optava por jogos estruturados, tais como dama, ludo e pega-varetas. Muitas vezes, a criança parecia estar desvitalizada: pouco falava, apenas apontava para os jogos escolhidos, olhava para o chão a maior parte do tempo, sendo que o olhar parecia ultrapassar para o que estava olhando. Em algumas sessões, optou por realizar desenhos e suas produções pareciam refletir o seu sentimento de ausência de energia, como em uma das sessões em que desenha um sol preto.

Apesar disso, é possível entender que a criança uso o desenho como forma de se comunicar e de expressar os sentimentos que tem a seu respeito e a respeito do mundo, o que indica que ela tem objetos internos preservados, o que pode ser um auxílio no processo psicoterápico, auxiliando a retomar o seu desenvolvimento emocional (Lescovar, 2004).

Os desenhos produzidos pelo paciente são primitivos e pouco diversificados, podendo indicar uma regressão a estágios anteriores de seu desenvolvimento, como se quisesse revivenciar momentos primitivos, como seu nascimento (Sei, 2008). Esse modo de funcionamento pode indicar que a criança quer reviver momentos significativos para sua vida, para ressignificá-los ou recuperar experiências perdidas (Sei, 2008). Além disso, o paciente pode estar tentando comunicar à terapeuta o quanto ele se sente sem voz no ambiente familiar, relembrando o fato de que os pais desconfiam de sua versão sobre o abuso.

Ao longo de todo o processo psicoterápico notou-se também uma tentativa da criança em preservar a figura da terapeuta. Isso é dito tanto pelas tentativas da criança em deixar a psicóloga ganhar os jogos de competição (como damas, por exemplo) e também por Cléber se comunicar pouco, não relatando suas dificuldades. O fato pode refletir uma percepção sua de que não é uma pessoa boa e que se aproximar da terapeuta pode afastá-la ou fazer mal a ela. Neste sentido, a presença constante da psicóloga pode ajudá-lo a perceber que essa forma de pensar está incorreta, de que ele tem elementos bons e que a aproximação não prejudicará a terapeuta, beneficiando ao paciente também (Winnicott, 1971/1984).

Pensando na forma como a relação terapêutica ocorre, é possível entender quais são as estratégias utilizadas pela criança para se comunicar. Primeiramente, pode-se ressaltar o quanto a terapeuta sentia-se cansada ao longo das sessões, o que parece ser uma forma de Cléber demonstrar, por meio da transferência, como ele se sente e como se percebe como alguém desvitalizado e sem forças. Essa percepção da criança pode ser uma resposta à violência sofrida por ele, fazendo entender que o abuso sexual sofrido retirou parte de sua energia vital.

Além disso, o paciente utiliza duas formas de comunicação terapêutica: os jogos e os desenhos. Com relação aos jogos, a criança parece escolhê-los como maneira de manifestar suas dificuldades e necessidades sem ter que se expressar de forma mais direta e mantendo a terapeuta distante. Em diversas sessões, durante o jogo "Dama", a criança relata que precisa fazer uma parede para se proteger dos inimigos, indicando uma alusão ao temor de contato com o próximo, até mesmo para evitar que ele sofra novamente um abuso sexual.

Com relação aos desenhos, em uma das sessões, Cléber faz uma figura humana com a cabeça extremamente pequena, desproporcional ao corpo e cheia de rabiscos. Esse desenho pode ser indicativo de insegurança e também uma forma da criança demonstrar que tem muitas coisas dentro de si e que não consegue externalizar, prejudicando assim o contato com o mundo e o seu desenvolvimento (Arteche, 2006).

Em outra sessão, Cléber desenha uma árvore morta, representando o quanto ele se sente frágil, tóxico pelo abuso sofrido e sem vida. Após a intervenção da psicóloga, que faz um desenho de uma árvore viva, o paciente apaga seu desenho e diz que "aquela árvore não existe mais, mas tem outra no lugar" [sic], fazendo então o desenho de uma árvore viva e colorida. Esse momento da psicoterapia demonstra uma capacidade de integração da criança, de perceber o potencial que tem para retomar seu desenvolvimento, além de entender que a psicoterapia pode ajudá-lo.

No mesmo sentido, em outra sessão, o paciente faz o desenho de um caracol, animal frágil e bastante lento, que pode ter sido escolhido para representar a maneira como a criança se sente. Logo após realizar esse desenho, Cléber faz um macaco em cima de árvore e comendo bananas, ou seja, um animal ágil e que tem vida. Essa segunda figura pode indicar o seu ideal de ego e, mais uma vez, a percepção que tem energia para se desenvolver e para atingir a força almejada.

Ao longo do processo terapêutico a criança mostra-se diferente e mais viva, investindo em outras atividades. Apesar disso, ele inicia a todas as sessões com um jogo estruturado (dando preferência à dama e ludo). Esse modo de funcionar parece ser uma forma que o paciente encontrou para estabelecer contato e retomar a confiança na terapeuta, dando continuidade à psicoterapia. Essa ausência de confiança nos inícios da sessão pode ser reflexo de suas diversas faltas, que acabam por prejudicar a noção de continuidade da psicoterapia.

Nota-se que, ao adquirir maior segurança na relação, a criança consegue fazer uso de outros modos de comunicação, como a utilização da família lúdica. Em um desses momentos, Cléber encena um acidente com os bonecos da família, dizendo que eles precisam ir para a ambulância. Após isso, a criança diz que eles já foram cuidados, mas que todos ficaram com cicatrizes. A partir desta brincadeira, nota-se uma forma de comunicação mais direta com relação ao abuso sexual, mostrando sua percepção de que, não apenas ele, mas os outros familiares, também sofreram consequências e precisam de cuidados por isso.

Logo após essa brincadeira, o paciente escolhe jogar quebra-cabeças, pela primeira vez desde o início do processo terapêutico. Pensando na função deste jogo, é possível entender que a criança busca integrar momentos de sua vida, como se estivesse unindo acontecimentos. Assim, há uma tentativa de ressignificar seu passado, o abuso sexual sofrido e o processo psicoterápico.

Ao longo do ano em que ocorreu o atendimento foi possível perceber que o paciente conseguiu retomar características que havia perdido, podendo citar a criatividade, a espontaneidade e a possibilidade de ser criança. Nesse sentido, ao final da terapia, Cléber contava piadas para a terapeuta, trapaceava nos jogos estruturados e utilizava todas as cores disponíveis em seus desenhos.

Apesar desses avanços, deve-se ressaltar a dificuldade do contato terapêutico em consequência do elevado número de faltas ao longo do ano. Muitas vezes, percebia-se que a criança sentia receio em se aproximar da terapeuta por temer não poder continuar essa relação. As sessões posteriores às faltas eram, em sua maioria, iniciadas com muito distanciamento e temor de que a psicóloga não ficasse com ele devido às ausências. Essas faltas podem ser vistas como uma resistência da mãe em aceitar o que ocorreu com seu filho, de um temor que ele reviva o acontecimento e também se uma dificuldade sua em se lembrar do que ocorreu. Diante disso, destaca-se a importância de inserir a família no processo, para que auxiliem a criança e que ela sinta-se apoiada (Pelisoli & Dell´Aglio, 2008).

A última sessão do processo é marcada pela entrega de um presente à terapeuta, dizendo a criança: "para que você se lembre de mim, como eu vou lembrar de você" [sic]. Esse fato ressalta a importância da psicoterapia para Cléber, além de demonstrar que a criança consegue, agora, estabelecer relações saudáveis e que possam ajudá-lo a superar suas dificuldades. A continuidade do atendimento psicoterápico faz-se extremamente necessária para que a criança consiga obter ainda mais ganhos. Além disso, existe a possibilidade de que sua mãe passe a entender a importância do acompanhamento terapêutico, sendo que seria muito relevante que ela também se engajasse em uma psicoterapia para si ou em psicoterapia familiar, fato que não foi aceitado por ela no início do processo terapêutico de seu filho.

 

Considerações finais

Fazendo uma análise do percurso psicoterápico, é possível entender que este foi bastante benéfico para Cléber, uma vez que ele pode retomar o seu desenvolvimento, fazendo uso da espontaneidade e criatividade. As limitações da psicoterapia, como o excessivo número de faltas, refletem a forma como a criança está inserida em um contexto ainda maior, que se inicia na família, mas que envolve ainda outras instâncias, como a jurídica, que está tão envolvida neste caso.

Diante deste trabalho, entende-se a possibilidade e necessidade de fazer uso do processo terapêutico para auxiliar as crianças que foram abusadas sexualmente, além de utilizar o espaço como um apoio a suas famílias, que se sentem desamparadas diante do fato. Além disso, é necessária a articulação deste trabalho com outras instituições que estão envolvidas e que interferem diretamente no desenvolvimento emocional da criança abusada, além do desenvolvimento familiar. Neste caso, um acompanhamento realizado pela assistência social e pela escola, por exemplo, poderia ajudar na maior aderência da família ao atendimento psicoterápico de Cléber, de forma que todos entendessem as necessidades da criança e os avanços que ela poderia ter com o acompanhamento.

A partir do estudo de caso realizado, entende-se a necessidade da realização de outros estudos, que possam confirmar ou confrontar os dados apresentados neste artigo, de forma que a discussão a respeito da temática seja aprofundada e contribua para a delimitação de estratégias de trabalho com esse grupo. Faz-se também necessária a realização e divulgação de psicoterapias que envolvam diretamente toda a família da criança que sofreu abuso sexual, uma vez que se poderá entender ainda mais como oferecer apoio aos envolvidos, embasando as ações em trabalhos já realizados.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Ana Paula Medeiros
E-mail: paulla_medeiros@hotmail.com

Recebido em: 02/01/2013
Revisado em: 20/04/2013
Aceito em: 29/07/2013

 

1 Mestranda do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - Universidade de São Paulo.