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Pensando familias

Print version ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.24 no.2 Porto Alegre Jul./Dec. 2020

 

ARTIGOS

 

O consumo abusivo de álcool entre mulheres rurais e suas relações familiares

 

Alcohol abuse among rural women and their family relationships

 

 

Sandra Beatris Diniz Ebling1, I ; Mara Regina Santos da Silva2, II ; Francisca Lucélia Ribeiro de Farias3, III ; Alessandro Marques dos Santos4, II ; Adriane Maria Netto de Oliveira5, III ; Gabriele Schek6, IV

I Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA Campus Uruguaiana – RS
II Universidade Federal do Rio Grande – FURG – RS
III Universidade de Fortaleza – UNIFOR – CE
IV Faculdades Integradas Machado de Assis – FEMA Campus Santa Rosa – RS

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Objetivo: analisar as relações familiares de mulheres rurais em consumo abusivo de álcool. Método: estudo qualitativo, descritivo, exploratório, cujos dados foram obtidos mediante entrevistas realizadas entre março e agosto de 2018, com 23 mulheres adultas em uso abusivo de álcool, residentes em áreas rurais da região Centro Ocidental do Rio Grande do Sul. Sendo submetidos à Análise textual discursiva, balizada pela Teoria Bioecológica de Desenvolvimento Humano. Resultados: as participantes vivenciam tanto relações familiares fragilizadas como protetoras. As fragilizadas se associam a sentimentos de desamparo e agravamento de conflitos existentes na família. As protetoras envolvem apoio e preocupação por parte dos familiares. Considerações finais: o estudo aponta para a necessidade de políticas públicas que considerem as particularidades das mulheres rurais em consumo abusivo de álcool e que os serviços de saúde, em especial os profissionais psicólogos estabeleçam estratégias que mobilizem as potencialidades das famílias, para reconstruir ou fortalecer as relações familiares.

Palavras-chave: Consumo de bebidas alcoólicas, População rural, Saúde da mulher.


ABSTRACT

Objective: to analyze the family relationships of rural women in alcohol abuse. Method: qualitative, descriptive and exploratory study, whose data were obtained through interviews conducted between March and August 2018, with 23 adult women in abusive use of alcohol, residing in rural areas of the Western Center of Rio Grande do Sul. Discursive textual analysis, guided by the Bioecological Theory of Human Development. Results: the participants experience both weakened and protective family relationships. The fragile are associated with feelings of helplessness and aggravation of conflicts in the family. Protectors involve support and concern from family members. Final considerations: the study points to the need for public policies that take into account the particularities of rural women in alcohol abuse and that health services, especially psychologists, establish strategies that mobilize the potential of these women's families, to rebuild or strengthen family relationships.

Keywords: Alcohol drink consumption, Rural population, Women's health.


 

 

Introdução

Estima-se que, ao redor do mundo, um total de 246 milhões de pessoas fazem uso de drogas ilícitas, sendo que cerca de 27 milhões o uso é problemático (United Nations Office on Drugs & Crime, 2018).  Durante muito tempo o consumo de álcool esteve associado com a população masculina, no entanto, a literatura aponta para o aumento desse problema entre mulheres (Silva et al., 2019). Dados do relatório global sobre álcool e saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que o uso de álcool entre mulheres aumentou entre 2009 a 2014 de 4,6% para 13% (World Health Organization, 2014).

Do ponto de vista fisiológico, o álcool apresenta maior impacto negativo no organismo feminino do que no organismo masculino, tais como complicações físicas, psicológicos e psiquiátricos: traumas, violência doméstica, quedas, neoplasias, infecções sexualmente transmissíveis, cirrose hepática, mortes no trânsito, suicídios, desentendimentos familiares e afetivos, sendo, também, associado a homicídios, agressividade, abandono do trabalho, violências, doenças cardíacas e cerebrovasculares, dentre outros (World Health Organization, 2014).

Na perspectiva social, tradicionalmente, seja homem ou mulher, a pessoa em consumo abusivo de álcool é vista como irresponsável e incompetente, mas quando se trata de mulheres nesta condição, o preconceito é ainda maior (Ebling & Silva, 2020). Isso ocorre em virtude que o papel social da mulher ainda é de gestora dos cuidados da família, no entanto, quando o alcoolismo atinge a mulher esse papel se fragiliza e quando outras pessoas precisam apropriar-se dessas funções, comumente, surgem os conflitos familiares, pois aquela que deveria ser a cuidadora encontra-se incapaz, devido ao alcoolismo (Santos & Silva, 2012). Vários sentimentos tomam conta da mulher mais facilmente do que do homem, como vergonha, culpa, medo e baixa estima. Por essa razão, muitas delas tentam evitar que alguém descubra sua condição de alcoolista (Silva & Lyra, 2015). Essas questões trazem consequências em relação aopapel social da mulher o qual associa-se ao cuidado da família e ao trabalho.

Quando se trata da mulher rural em consumo abusivo de álcool, essas questões se intensificam, pois, as relações por elas no trabalho e na família assumem formas particulares. Desde muito jovem, a mulher rural dedica-se predominantemente ao trabalho na agricultura e a atividade doméstica (Tonet et al., 2016). Quando ela desenvolve a dependência ao álcool, o papel social se perde e começa então a vivenciar conflitos nas relações familiares em virtude muitas vezes, da mulher ter dificuldade de compreender o alcoolismo como doença (Santos & Silva, 2012).

Por outro lado, não se pode negar que as relações familiares também podem proporcionar apoio para o enfrentamento de situações difíceis e promover um ambiente incentivador, seguro e protetor, no qual as pessoas que nele estão inseridas possam desenvolver autoconfiança. Esses tipos de relacionamentos interpessoais entre os membros da família são definidos na literatura como promotores de adaptação, principalmente das pessoas que vivem em condições adversas, como o consumo abusivo de álcool (Silva et al., 2012).

Embora as famílias de alcoolistas tendem a vivenciar conflitos, capazes de reduzir a convivência entre os familiares e resultar em consequências tais como comportamentos agressivos, baixa autoestima e ansiedade (Pillon et al., 2014), por outro lado, essas interações são citadas em estudos como aspectos que podem promover o ajustamento de relações, daquelas que vivenciam o alcoolismo parental (Silva et al., 2012; Silva; Padilha & Araujo, 2014).

Ainda que as relações sejam comprometidas quando um dos membros é dependente de álcool, paralelamente, essas relações são apontadas na literatura como fatores capazes de produzir a adaptação positiva das pessoas, principalmente daquelas que vivem em condições adversas, como é o caso do alcoolismo (Silva et al., 2012; Sanches et al., 2018).  A presença de algum membro da família alcoolista não desfaz os potenciais das famílias e de seus membros, os profissionais dos serviços de saúde necessitam trabalhar no sentido de reconhecer e estimular esses potenciais e articulá-los nas atividades em saúde.

Este estudo se apoia nas concepções da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano, que permite a análise do fenômeno por meio de quatro núcleos interligados: processo–pessoa-contexto–tempo. De acordo com a teoria, o processo de desenvolvimento envolve a fusão e a dinâmica de relação entre o indivíduo e o contexto; a pessoa, como seu repertório individual de características biológicas, cognitivas, emocionais e comportamentais; o contexto do desenvolvimento; o tempo envolve as dimensões múltiplas da temporalidade (tempo ontogênico, tempo familiar e tempo histórico) (Bronfenbrenner, 2011). A seleção desse referencial partiu da necessidade de olhar a mulher em consumo abusivo de álcool residente no contexto rural em sua singularidade, contemplando principalmente as relações familiares.

Em busca realizada na literatura encontrou-se poucos estudos a esse respeito, o que caracteriza uma lacuna em relação ao conhecimento sobre consumo de álcool pelas mulheres rurais, mais especificamente acerca de suas relações familiares, uma vez que os conflitos entre seus membros se refletem particularmente nas relações. Outro fator que justifica este estudo, está sustentado nas ações em saúde que envolvem essas mulheres, particularmente na identificação das relações positivas entre os membros de uma família, o que é de fundamental importância, uma vez que são estas que habilitam as pessoas a bem administrarem as experiências negativas vivenciadas ao longo da vida (Silva et al., 2012). Assim, faz-se necessário pensar em ações em saúde particularizadas que contemplem as potencialidades das famílias e das mulheres rurais em consumo abusivo de álcool para amenizar as consequências negativas do alcoolismo. Considerando a importância das relações familiares no processo de viver de mulheres rurais em consumo abusivo de álcool, este estudo tem como objetivo analisar as relações familiares de mulheres rurais em consumo abusivo de álcool.

 

Método

Delineamento

Trata-se de uma pesquisa descritiva, exploratória, de abordagem qualitativa (Flick, 2009), balizada pela Teoria Bioecológica de Bronfenbrenner (Bronfenbrenner, 2011). Justifica-se tal teoria pelo fato desta possibilitar compreender as interações entre a mulher rural em consumo abusivo de álcool com a família, com o trabalho na agricultura e com os serviços de saúde.

A pesquisa foi realizada com mulheres adultas, que residem em contextos rurais de um município da região centro ocidental do Rio Grande do Sul. A escolha desse município fundamenta-se por possuir grandes extensões de áreas rurais, fortemente baseadas na agricultura familiar.

A população do município é de aproximadamente 3.419 habitantes (Brasil, 2010). A base de sua economia é a agricultura e a pecuária. Em termos de acesso aos programas e serviços de saúde, o município conta com uma Unidade de Saúde e uma equipe de Estratégia da Saúde da Família (ESF).

Participantes

Para elegibilidade das mulheres participantes do estudo, utilizou-se como critério de inclusão: Ser mulher; ter mais de 18 anos e moradora de áreas rurais do município de estudo, há pelo menos um ano; e histórico de uso prejudicial de bebida alcoólica. Não pertencer a área de abrangência da ESF de referência foi o critério de exclusão.

O primeiro contato com as mulheres rurais ocorreu durante as Visitas Domiciliares realizadas pelos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), considerou-se o histórico de consumo de bebida alcoólica, identificado pelos ACS da Unidade de Saúde (ESF) de referência da região. Após foi aplicado o AUDIT em 32 mulheres. Destas, foram selecionadas para entrevista 23 com escore que indicou consumo de risco, ou seja, escore 16-19 no teste AUDIT.

Instrumentos

A coleta de dados ocorreu entre março e agosto de 2018, em local e horário determinados pelas participantes. Para identificação das participantes em consumo abusivo de álcool, foram utilizadas duas estratégias de forma complementar: Primeiro, a indicação dos Agentes Comunitários de Saúde ACS, da Unidade de Saúde (ESF), considerando a vivência dos (ACS) com as mulheres. Após, para comprovar o consumo abusivo de álcool entre essas mulheres rurais, foi aplicado o teste - Alcool Use Disorders Identification (AUDIT) – ferramenta rastreadora de uso de álcool preconizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), tendo sido realizada a validação da versão portuguesa em 2002. É composto por dez questões e, de acordo com a pontuação, auxilia a identificar quatro diferentes padrões de consumo: uso de baixo risco (consumo que provavelmente não levará a problemas), uso de risco (consumo que poderá levar a problemas), uso nocivo (consumo que provavelmente já tenha levado a problemas) e provável dependência.  O termo “uso problemático” caracteriza os três últimos padrões de consumo da substância.

O teste AUDIT é composto por 10 itens que abrangem três domínios teóricos: 1) Frequência do consumo de álcool, 2) dependência do consumo de álcool e 3) consequências negativas do consumo de álcool. Inicialmente, o participante do estudo é convidado a pensar sobre seu consumo de bebidas alcoólicas nos últimos 12 meses, respondendo aos itens por meio de diferentes escalas de resposta (Babor et al., 2001).

O primeiro item envolve a frequência do consumo e respondido em uma escala de cinco pontos, variando entre 0 (Nunca) e 4 (Quatro ou mais vezes por semana). O item 2, que mensura a quantidade de bebida alcoólica consumida, inclui cinco opções de respostas que se distribuem entre as opções: não bebo (0); 1 ou 2 “doses” (1); 3 ou 4 “doses” 5 ou 6 “doses” (3); 7 a 9 “doses” (4); e 10 ou mais “doses” (5). Para os itens 3, 4, 5, 6, 7 e 8 as respostas podem variar entre os seguintes extremos: Nunca (0) e Todos os dias ou quase todos (4). As questões 9 e 10 apresentam três alternativas de resposta, a saber: Não (0); Sim, mas não no último ano (2); e Sim, durante o último ano (4). Para o cálculo da pontuação total, somam-se os valores referentes a cada resposta, sendo 40 a pontuação máxima da escala (Babor et al., 2001).

A entrevista semiestruturada foi realizada com 23 mulheres selecionadas, utilizou-se um roteiro organizado por cinco eixos: (1) Caraterização das participantes; (2) Interação da mulher com o álcool; (3) Interação da mulher alcoolista com a família; (4) Interações sociais com ênfase na relação da mulher com o trabalho e (5) Interações com os serviços de saúde. Neste artigo são apresentados os resultados da análise dos dados relativos às etapas um e três. As entrevistas ocorreram nos domicílios das participantes conforme solicitação das mesmas com agendamento prévio duraram, em média, 50 minutos, o material foi devidamente gravado e transcrito. Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e nenhuma se recusou a participar da entrevista.

Análise de Dados

Para análise dos dados utilizou-se Análise Textual Discursiva, adotando as etapas delineadas por Moraes e Galiazzi (2016), constituída em torno de quatro focos: a desmontagem dos textos, o estabelecimento de relações, a captação do emergente e o processo auto-organizado. Dos procedimentos de análise aplicados resultaram dois agrupamentos temáticos, assim denominados: (1) Relações familiares fragilizadas; (2) Relações familiares protetoras.

Foram respeitados os preceitos da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466/12. A fim de preservar o anonimato, as participantes foram identificadas com um código formado pela letra maiúscula “M” de mulher, seguido de um numeral que indica o a sequência de participantes. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande - FURG, CAAE 82277118.0.0000.5324.

 

Resultados

Caracterização dos Sujeitos do Estudo

Dentre as 23 mulheres que participaram do estudo, 11 residem em áreas rurais e 12 residem em assentamentos rurais. A faixa etária variou entre 21 e 66 anos, sendo que dez mulheres têm entre 21 e 30 anos; seis tem entre 31 e 39 anos; cinco tem entre 41 e 56 anos e duas tem entre 57 e 66 anos. São mulheres procedentes de diferentes regiões do Estado do Rio Grande do Sul, mas no momento da coleta de dados estavam residindo em áreas rurais do município do Capão do Cipó - RS. Têm em média três filhos, com exceção de uma mulher que não teve filhos. A maioria (18) são católicas, (3) são evangélicas e (2) declaram-se não praticantes.

Quanto ao estado civil, uma é viúva, 16 são solteiras, cinco casadas e uma separada. Residem com os pais as que se declararam solteiras e separada. As casadas moram com companheiro e filhos. E, a viúva mora sozinha. A renda das participantes variou entre um e dois salários-mínimos e 12 recebem adicionalmente o benefício Bolsa Família, do Governo Federal. No que se refere à ocupação, 13 mulheres trabalham em suas próprias lavouras; três são assalariadas em granjas; duas em leiteiras; duas se declaram donas de casa e três não trabalham. Todas dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde.

Relações Familiares Fragilizadas

Esta categoria inclui relações fragilizadas, as quais associam-se a sentimentos de desamparo e agravamento de conflitos já existentes na família, no entanto esses conflitos intensificam-se com o consumo de álcool da mulher rural.  Para M12, M14, M21 estão associados à desunião e rejeição entre membros da família.

Ah, assim, eu me sinto um pouco rejeitada, parece que eu servia só quando a nossa mãe estava doente, para cuidar dela (M12). [sic]

Eu não sei, eles [irmãos] são muito desunidos, acho que eles não têm muito amor, sabe! As minhas irmãs nunca me ligam, se não é eu ligar as vezes, ninguém me liga (M14). [sic]

Às vezes eu sou bruta, eu sou revoltada. Quando eu embrabeço, é complicado, porém meu irmão não fica para trás, a gente explode, porém dali a pouco está tudo bem (M21). [sic]

Para M17 o consumo abusivo de álcool de qualquer um dos membros familiares, causa desamparo e ruptura do núcleo familiar.

O alcoolismo, ele termina com a família, a família fica desamparada. Tanto pela parte do homem quanto pela parte da mulher, acaba com a família (M17). [sic]

Já M5 e M23, atribuem o consumo de bebidas alcoólicas aos conflitos existentes na família, e quanto a M23, não se reconhece como dependente e também utiliza os problemas familiares como justificativa para continuar bebendo.

Eu bebia bastante, era uma válvula de escape, beber e fumar, para esquecer um pouco, o que eu passava em casa[brigas], daí eu descontava na bebida muitas e muitas vezes, mas não era doente (M5). [sic]

Eu na verdade me incomodava muito no meu casamento, sem motivos, daí eu bebia, eu tomei, mas não era alcoólatra, eu queria desabafar (M23). [sic]

Os relatos revelam negação da dependência, reconhecem o consumo abusivo de álcool, porém não se consideram doentes e também acham que não precisam de ajuda. O depoimento de M23 “não era alcoólatra” caracteriza a negação de doença e, ainda, buscam justificativas nas dificuldades do contexto familiar para o próprio consumo de álcool.

Relações Familiares Protetoras

Esta categoria inclui relações familiares protetoras, as quais estão associadas ao apoio as mulheres rurais em consumo abusivo de álcool nos momentos difíceis que a doença provoca. Entre as manifestações estão incluídos apoio, preocupação e companheirismo. Para M18 o apoio recebido por sua mãe é caracterizado no sentido de enfrentar os dias difíceis de abstinência. Da mesma forma, os cuidados realizados pela mãe manifestavam-se através de conselhos, apoio e incentivo.

A família é um apoio que a gente tem, somos bem companheiros. (M20). [sic]

“Tive o apoio da família, [me falavam], porque tu não podes [continuar bebendo], tu nunca foste assim. Sempre estavam falando, vinham aqui para casa e estavam sempre me ajudando. Me falavam, tu precisas chupar bala, quando sentir vontade de beber, coloca uma bala na boca, só que essas balas não adiantam muito, mas foi melhorando, acho que o apoio e a força da família foram importantes”. (M18). [sic]

Quando questionadas se alguém já se preocupou com o seu uso de álcool e quem são essas pessoas, a maioria das participantes responderam que é sua família de origem, composta por pai, mãe e irmãos, como relataram:

“Eu falo muito com minha mãe, por que ela teve um longo processo para me aceitar, mas daí ela aprendeu a me ouvir. Então, quando eu estou com muita vontade de beber, eu falo com minha mãe, eu converso com ela. Meu Deus hoje estou com muita vontade de beber, não sei o que fazer, daí minha mãe me distrai”. (M3). [sic]

Ele [irmão] é muito importante, representa tudo [para mim], pai, irmão, um companheiro sempre me ouve e conversa comigo sobre a bandida [cachaça] (M21). [sic]

Eu disse para meu irmão: eu não vou mais beber. Eu via as outras pessoas olharem e acharem feio uma mulher beber. Daí todos eles[familiares] me ajudam, graças a Deus, a gente tem uma família muito unida, um apoia o outro, um ajuda o outro, eu agradeço a Deus pelos irmãos (M23). [sic]

Os relatos da M3, M21 e M23 demonstram sentimentos de escuta/união e apoio da mãe e irmãos, os quais foram decisivos na tentativa de minimizar os efeitos negativos do alcoolismo das mulheres rurais. Os depoimentos revelam num exercício diário proteção, (re)criam seus vínculos e se apoiam. Cabe ressaltar que nos depoimentos não surgiram relatos por parte das mulheres o papel que cumprem companheiros e filhos, o que nos remete a pensar que o apoio é fortalecido por parte de mães, pais e irmãos.

 

Discussão

Neste estudo, os resultados mostram que as relações familiares de mulheres em consumo abusivo de álcool são fragilizadas, as quais se relacionam a sentimentos de desamparo e agravamento de conflitos já existentes. Corroborando o resultado de outros estudos, os impactos que a dependência do álcool gera na vida dessas mulheres e de seus familiares podem originar sentimentos de desamparo e frustração, bem como, o agravamento de conflitos, instabilizando a relação familiar (O’Farrell & Clements, 2012).

Por outro lado, tomando como referência a Teoria Bioecológica de Desenvolvimento Humano, o consumo abusivo de álcool em mulheres rurais pode ser compreendido a partir do conjunto de interações dessa mulher com seu viver. Envolve, portanto, além dessas vivenciadas no contexto de vida familiar e relações sociais, também as caraterísticas pessoais dessa mulher (biológicas/genéticas e sócio demográficas.

No contexto rural, as relações vivenciadas pela mulher, no trabalho e na família assumem formas específicas. A mulher rural realiza atividades produtivas, como o plantio e a colheita da produção para o autoconsumo da família e comercialização de produtos agrícolas (Herrera, 2012), além de atividades com o cuidado à família.  Quando a mulher se torna dependente do álcool é necessário ficar atento não apenas aos problemas clínicos, mas também, as repercussões diretas que o alcoolismo gera nos papéis que a mulher exerce no meio familiar. Socialmente ainda é atribuída à mulher maiores responsabilidades no contexto familiar e quando outras pessoas necessitam assumir essas funções, geralmente, surgem os conflitos familiares (Santos & Silva, 2012).

O alcoolismo é uma doença silenciosa em que o sujeito alcoolista e seus familiares não a reconhecem como tal, ne­gando sua presença e os transtornos trazidos por ela. Com o tempo da dependência, essas consequências começam a provocar mudanças nas relações familiares, e tanto a família como o próprio alcoolista acabam sofrendo (Soares et al., 2014). Assim, conhecer o cotidiano das mulheres rurais em uso problemático de álcool possibilita compreender como o envolvimento com o álcool causou mudanças na vida, tanto para elas como das pessoas à sua volta.

Estudo realizado por Santos e Velôso (2008), quando entrevistaram familiares de alcoolistas, identificaram que os problemas vividos no meio familiar foi um dos principais motivos para o desenvolvimento do alcoolismo de um dos integrantes do grupo familiar. Por outro lado, mesmo com a existência de relações conflituosas, as mulheres deste estudo ao serem questionadas se alguém se preocupou com o consumo abusivo de álcool e quem são essas pessoas, a maioria das participantes responderam que é sua família de origem, composta por pai, mãe e irmãos.

Os resultados deste estudo confirmam a preocupação da família diante dos momentos complexos que o consumo abusivo de álcool ocasiona, manifestada por relações familiares protetoras expressas por sentimentos de apoio, proteção, escuta, diálogo, preocupação e companheirismo. Esses são os sentimentos que caracterizam apoio e levam a reflexão sobre a maneira como a família exerce força as mulheres rurais que, mesmo o álcool sendo algo do cotidiano e que ocasiona, intensifica relações conflituosas já existentes, essa mesma família é um fator de proteção e apoio, nos momentos difíceis da dependência. Nesse contexto, as relações familiares podem exercer influência na pessoa e no grupo familiar ao longo do tempo no qual a pessoa tem vivido (2011).

Assim, no contexto familiar há trocas, algumas trocas ocasionam proteção e apoio; outras, podem refletir no uso abusivo de álcool. Contudo, embora o alcoolismo seja uma condição capaz de provocar inúmeros problemas, incluindo sentimentos de raiva, culpa e ansiedade, a pessoa que bebe é capaz de manter seu papel de pai, mãe e de interagir de forma positiva com os familiares, expressando afetos e preocupações (Silva et al., 2012), como no caso das mulheres rurais em estudo, e não apenas como uma pessoa que causa problemas/danos aos outros.

Portanto, é possível presumir que a família pode ser um fator de proteção quanto ao uso abusivo de álcool por meio das relações vivenciadas, ou seja, laços familiares fortalecidos e relações familiares saudáveis (Soares et al., 2014), são considerados elementos potentes e protetores quanto ao uso abusivo de álcool, além de contribuírem de maneira positiva na reabilitação da dependência. Em contrapartida, situações de desamparo e conflitos podem direcionar as mulheres rurais ao consumo abusivo de álcool.

Considerando que o consumo abusivo do álcool pode gerar alterações nas relações interpessoais entre as mulheres rurais e suas famílias e que a assistência oferecida pelos profissionais dos serviços de saúde, mas especificamente da Atenção Primária em Saúde deve contemplar as famílias, entende-se que a melhoria das relações destas mulheres no contexto familiar pode ser um importante aliado para que os familiares sintam-se mais apoiados e possam compreender melhor a problemática do alcoolismo em mulheres rurais. Isto, seguramente, contribuiria para a participação da família no tratamento e, por conseguinte no fortalecimento das relações familiares.

Como exposto por alguns participantes, é comum a sensação de preocupação e impotência por parte dos familiares frente ao consumo nocivo de álcool, no entanto, informações sobre o processo de tornar-se alcoolista podem auxiliar no fortalecimento das relações no contexto familiar (Barik et al., 2015). Os resultados evidenciaram a importância de articular relações familiares para o cuidado da mulher rural que vivencia o consumo abusivo de álcool. O que se faz necessário pensar em ações de saúde orientada para a promoção de interações familiares contínuas e fortalecidas. Para isso, os profissionais de saúde, incluindo o serviço de psicologia precisam entender o processo de viver das mulheres rurais em consumo de álcool e oferecer alternativas que reconheçam as especificidades e as potencialidades das relações familiares.

 

Considerações Finais

Os resultados desse estudo apontam para a necessidade de que as políticas públicas considerem as particularidades das mulheres rurais em consumo abusivo de álcool e que os serviços de saúde estabeleçam estratégias que mobilizem as potencialidades das famílias dessas mulheres, a fim de reconstruir ou fortalecer as relações familiares. Ao levar em conta isso, é decisiva a importância da atuação do psicólogo nessa área acerca da capacitação dos profissionais para esse tipo de trabalho de fortalecimento das relações familiares e para o diálogo com profissionais de outras áreas em equipes multidisciplinares voltadas para esse objetivo.

Este estudo mostra que a problemática do alcoolismo em mulheres rurais não pode ser analisada de forma isolada. O modelo bioecológico de Bronfenbrenner apresentou-se como uma escolha propícia para orientar este estudo, pois, foi possível analisar as relações da mulher rural em consumo abusivo de álcool com a família. Nesse sentido, constata-se que as relações familiares são vistas como parte importante no processo de viver de mulheres rurais em consumo de álcool. Especificamente, este estudo aponta que as relações familiares fortalecidas (escuta e apoio) são protetoras e contribuem na reabilitação da dependência. Por outro lado, situações de desamparo e conflitos já existentes na família podem interferir no consumo de álcool.

Contudo, a presença do consumo abusivo de álcool não extingue as potencialidades das famílias e cada um de seus membros mantém suas competências, e os profissionais dos serviços de saúde necessitam identificá-las e instigá-las para trabalhar a fim de promover a saúde e o desenvolvimento individual e coletivo.

As limitações do estudo estão relacionadas ao caráter regional do estudo, o que pode não representar generali­zação dos achados. Propõe-se a realização de novos estu­dos, em outros contextos rurais, buscando avaliar à rede de atenção para o enfrentamento do alcoolismo nessas localidades, consideran­do-se a complexidade dessa problemática.

 

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Endereço para correspondência
Sandra Beatris Diniz Ebling
E-mail: sandrabebling@gmail.com

Enviado em: 14/01/2020
1ª revisão em: 26/02/2020
2ª revisão em: 25/10/2020
Aceito em: 18/10/2020

 

 

1 Doutora em Enfermagem pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande (2019). Docente titular do Curso de Medicina da Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA Campus Uruguaiana – RS.
2 Doutora em Enfermagem e Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande – FURG – RS.
3 Doutora em Enfermagem e docente titular do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade de Fortaleza – UNIFOR – CE.
4 Doutor em Enfermagem e docente do Curso Superior em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande – FURG – RS.
5 Doutora em Enfermagem e docente do Curso de Graduação em Enfermagem e do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem, da Universidade Federal do Rio Grande – FURG – RS.
6 Doutora em Enfermagem e Coordenadora Adjunta do Curso de Graduação em Enfermagem das Faculdades Integradas Machado de Assis – FEMA Campus Santa Rosa – RS.

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