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Vínculo

Print version ISSN 1806-2490

Vínculo vol.17 no.1 São Paulo Jan./June 2020

https://doi.org/10.32467/issn.19982-1492v17n1p75-96 

ARTIGOS

 

AproximaçãO entre família e escola: pensando experiência grupal em ambiente escolar público

 

Family-school approach: thinking group experience in public school environment

 

Aproximación entre la familia y la escuela: pensado acerca de la experiencia en grupo en el ambiente de la escuela pública

 

 

Guilherme Faria RibeiroI; Tales Vilela SanteiroII; Neftali Beatriz CenturionIII

IMestrando em Psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e Psicanalista em formação pela Associação Clínica Freudiana de Uberlândia. Membro do Grupo de Pesquisa Clínica psicanalítica (Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil; CNPq/Lattes). E-mail: guilhermefariaribeiro@hotmail.com (34)99994-9233
IIPsicólogo. Mestre e Doutor em Psicologia pela PUC-Campinas. Professor Associado do Departamento de Psicologia, Coordenador Substituto e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Líder do Grupo de Pesquisa Clínica psicanalítica (Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil; CNPq/Lattes). E-mail talesanteiro@hotmail.com
IIIDoutoranda em Psicologia pela FFCLRP-USP. Mestre pelo IP-UFU e graduação em Psicologia pela UFTM. Membro do Laboratório de Pesquisas em Práticas Dialógicas e Colaborativas - Dialog/USP. E-mail. neftalicenturion@gmail.com

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é apresentar um relato de experiência de um grupo operativo realizado com professoras e mães de alunos da quarta série do Ensino Fundamental de uma escola pública, situada em um município de pequeno porte do interior do Estado de Minas Gerais. O grupo surgiu a partir da demanda da escola, que relatou dificuldades de aprendizagem de alunos, ausência dos pais às reuniões, mau comportamento dos alunos, entre outros. Foram realizados dois encontros de aproximadamente uma hora. Participaram 3 professoras e 10 mães. Estes grupos foram mediados pelo psicólogo da Secretaria Municipal de Educação da cidade, que têm como função acompanhar todas as escolas e creches do município. As experiências grupais ressaltaram: sobrecarga de trabalho das professoras, limitação de infraestrutura para o ensino e ausência de tempo dos pais para se dedicarem ao cuidado dos filhos. A culpabilização das professoras para com as mães e destas para com as professoras foi outro aspecto observado. Nesse contexto os grupos se mostraram como uma ferramenta de construção de estratégias dialógicas que favoreceram a compreensão das demandas apresentadas.

Palavras-chave: inclusão escolar; instituições educacionais; grupos operativos; pesquisa-ação.


ABSTRACT

The aim of this paper is to present an experience report of an operative group carried out with teachers and parents of students of the fourth grade of elementary school in a public school, located in a small municipality in the interior of the state of Minas Gerais. The group emerged from the demand of the school, which reported learning difficulties of students, absence of parents to meetings, student misbehavior, among others. Two meetings of approximately one hour were held. Three teachers and 10 mothers participated. These groups were mediated by the psychologist of the city's Municipal Secretariat of Education, whose function is to accompany all schools and kindergartens in the municipality. The group experiences highlighted emerging as: workload of the teacher and limitation of infrastructure for teaching; lack of time for parents to devote themselves to caring for their children. The culpability of teachers to mothers and mothers to teachers was another aspect observed. In this context, the groups proved to be a tool for constructing dialogical strategies that favored the understanding of the demands presented.

Keywords: school inclusion; educational institutions; operative groups; action research.


RESUMEN

El objetivo de este texto es presentar un relato de experiencia de un grupo operativo realizado con maestros y padres de estudiantes del cuarto grado de una escuela pública ubicada en un pequeño municipio en el interior del estado de Minas Gerais. El grupo surgió de la demanda de la escuela, que informó dificultades de aprendizaje de los estudiantes, ausencia de los padres a las reuniones, mal comportamiento de los estudiantes, entre otros. Se celebraron dos reuniones de aproximadamente una hora. Participaron tres maestras y 10 madres. Estos grupos fueron mediados por el psicólogo de la Secretaría Municipal de Educación de la ciudad, cuya función es acompañar a todas las escuelas y jardines de infancia del municipio. Las experiencias grupales resaltaron: la sobrecarga de trabajo de los profesores, limitación de infraestructura para la enseñanza y falta de tiempo para que los padres se dediquen al cuidado de sus hijos. La culpabilidad de los maestros a las padres y de las madres a los maestros fue otro aspecto observado. En este contexto, los grupos demostraron ser una herramienta para construir estrategias dialógicas que favorecieron la comprensión de las demandas presentadas.

Palabras clave: inclusión escolar; instituciones educacionales; grupos operativos; investigación-acción.


 

 

[...] a escola compreendida como instituição que
produz e reproduz as contradições da sociedade na
qual se insere, nem sempre vem assegurando o
exercício de uma cidadania ativa
(Conselho Federal
de Psicologia, 2019, p. 24).

Pensar sobre a escola pública e buscar dizer de seu entorno comunitário e de seus diversos atores é tarefa árdua. Existem muitos obstáculos que influenciam e dificultam a realização de práticas transformadoras nesse ambiente, como os trâmites político-burocráticos, processos administrativos, prazos, entre outros. Para a realização de práticas democráticas, a partipação ativa da comunidade é fundamental, assim como a possibilidade de construir diálogos que permitam o reconhecimento de direitos; porém, usualmente esse é um processo lento, pois lida com conflitos de interesses (de classes, de grupos, de partidos), de valores culturais e de sentimentos (Freire, 1991).

A escola e a família são instituições fundamentais, responsáveis por preparar e encaminhar a vida de seus estudantes e filhos (Saraiva & Wagner, 2013). Esse papel formativo que elas representam pode ser compreendido por diversos enfoques, sendo o psicológico e o sociológico dois deles. Para o sociológico, a responsabilidade dos conflitos se encontra nos condicionantes ambientais e culturais; para o psicológico, por sua vez, um bom desempenho escolar estaria relacionado a uma boa dinâmica familiar (Oliveira & Marinho-Araújo, 2010). Naturalmente, cabe ressaltar que esses condicionantes são interdependentes e que somente faz sentido tratá-los de modo estanque para ganhos didáticos.

Pesquisas indicam que a relação escola-família tem sido palco de difíceis batalhas, tensões e conflitos (Bhering & Siraj-Blatchford, 1999; Marcondes & Sigolo, 2012; Oliveira & Marinho-Araújo, 2010; Polonia & Dessen, 2005; Reali & Tancredi, 2005). Nota-se que essa relação se apresenta muitas vezes de maneira unilateral, marcada pelo poder de orientação da escola sobre as famílias (Albuquerque & Aquino, 2018; Lima & Chapadeiro, 2015). Diante disso, professores têm assumido responsabilidades não somente pelos processos de ensino-aprendizagem, e também pela educação dos alunos. E esse tipo de funcionamento diz não somente de uma escola em especifico, mas de uma lógica de funcionamento social que tem se estabelecido, colocando a escola em lugar de destaque na formação integral dos sujeitos/alunos (Benato & Soares, 2014; Saraiva & Wagner, 2013).

Do lado das famílias, várias formas de configurações coexistem, tais como: famílias recasadas, com pai ou mãe solteiros e multigeracionais (Serralha, 2017). Portanto, não é possível conceber um único tipo de família nos espaços escolares e em seus entornos. Tal dinamicidade que essa instituição vem assumindo pode trazer desafios à escola (Conselho Federal de Psicologia, 2019; Lima & Chapadeiro, 2015).

Dados os conflitos e impasses subjacentes aos papéis desempenhados por estas duas instituições, atividades desenvolvidas por meio do dispositivo grupal podem se tornar ferramentas importantes, especialmente se diálogos e aprendizados coconstruídos entre elas e seus atores puderem ser enfatizados (Pichon-Rivière, 1980/2009). Nas escolas, assim como em outros âmbitos institucionais, o reconhecimento recíproco das subjetividades e o estabelecimento de vínculos passa, assim, a ser uma possibilidade a ser explorada (Fernandes, 2019).

Nesta direção, a partir dos desafios encontrados na relação estabelecida entre escola e família, a contribuição teórico-técnica dos grupos operativos (GO) pode vir a ser uma forma de intervenção que situa a pessoa ou os participantes como protagonistas de seus próprios processos de aprendizagem, que também são aprendizagens socialmente situadas (Pichon-Rivière, 1980/2009). Estudos mostram que o dispositivo dos grupos operativos promove e transforma vínculos em contextos educacionais (Carniel, 2008; Fernandes, 2003; Pereira, 2013; Santos et al., 2016); além disso, ele pode edificar conhecimentos, promover resolução de conflitos, ressignificar experiências humanas (Menezes & Avelino, 2016; Oliveira, Rena, Mendonça, Pereira, Jesus, & Merighi, 2016).

O GO se configura como dispositivo de abertura ao diálogo, com objetivo de identificar problemas de naturezas diversas, não somente no sentido concreto do termo, e de refletir sobre estratégias para resolução deles, ao mesmo tempo em que procura resgatar histórias e experiências pessoais dos próprios participantes enquanto essa movimentação ocorre. Em contraste com um amplo leque de possíveis aplicações dos GO, relatos de experiências sobre aplicação deles em instituições escolares são escassos, sendo os de Silva e Villani (2009), Bock e Sarriera (2013) e Jotz, Seminotti e Fritsch (2015) alguns exemplares.

O estudo de Bock e Sarriera (2013) objetivou verificar a alteração do nível de Burnout em professores de 5ª a 8ª séries. Por meio da aplicação de um teste específico para medir os níveis da Síndrome de Burnout, demonstraram altos níveis de esgotamento emocional e despersonalização desses profissionais. Nos resultados, a intervenção do GO se mostrou importante para sensibilização profissional acerca do trabalho docente, do apoio social entre os docentes como estratégia de prevenção e de enfrentamento da Síndrome de Burnout.

Silva e Villani (2009) buscaram compreender a dinâmica que se estabelece em sala de aula quando são introduzidos trabalhos grupais; analisaram o processo grupal à luz das contribuições de Pichon-Rivière e sua relação com o ensino e a aprendizagem na disciplina de Física e, ainda, a interação alunos-professor. Os resultados evidenciaram que o GO foi uma ferramenta importante para alcance das metas esperadas, no ensino-aprendizagem e no estreitamento dos vínculos, entre os alunos e entre alunos/professor.

Nesta direção, Jotz et al. (2015) desenvolveram GO junto a professores de uma escola pública, com o objetivo de refletir sobre a prática docente e a produção de saúde. Notaram em seus resultados que a reflexão proporcionou efeitos positivos nesses trabalhadores, preconizando que o processo grupal foi uma importante ferramenta na produção de saúde e de satisfação.

Devido a dificuldades de aproximação existentes entre as instituições escolar e a familiar, e frente à relativa escassez de estudos que abordam intervenções de psicólogos na relação escola-família, o objetivo geral deste texto é apresentar reflexões produzidas por meio uma experiência de realização de GO com mães de estudantes e com professoras de uma escola pública, situada em município de pequeno porte, no interior de Minas Gerais. Espera-se, a partir disto, ampliar o cenário das produções com enfoque nas relações família-escola, assim como apresentar o uso do dispositivo grupal enquanto ferramenta útil nesse panorama.

 

Contextualização da Experiência

O GO em questão foi desenvolvido em uma cidade com uma população estimada de 8.000 habitantes, que tem como economia principal a agropecuária (gado e indústria alcooleira), onde lavouras de cana-de-açúcar cobrem quase toda a área territorial rural. O município conta com duas escolas municipais de Ensino Fundamental e uma escola estadual de nível Médio, além de duas creches municipais.

A população municipal é flutuante, com grande parcela advinda do Nordeste, em busca de emprego na usina de cana-de-açúcar, principal fonte de emprego local. As famílias enfocadas neste texto são de baixa renda, cujos pais desempenham trabalhos fisicamente exaustivos durante o dia, e precisam contar com a escola como recurso para cuidados aos filhos. Essa característica da comunidade impacta diretamente as ações propostas pela escola. Nesse quadro, a escola demanda o trabalho de psicólogos, na expectativa de que eles cuidem de questões relacionadas a dificuldades de aprendizagem dos alunos, ausência dos pais às reuniões, mau comportamento dos alunos na escola, entre outras.

Partindo desse tipo de ambientação e demanda, o psicólogo da Secretaria Municipal de Educação da cidade, que têm como função acompanhar todas as escolas e creches, foi convidado para facilitar as ações que pudessem mediar as relações entre as famílias de seus estudantes e a escola. Nesse sentido, os maiores desafios a serem ponderados pelo profissional envolviam o concatenar as demandas apresentadas pela escola e pelas famílias, sem, contudo, ele ocupar um lugar "definido" por ambas, e a produção de um fazer consonante com a filosofia dos GO (Pichon-Rivière, 1980/2009) e com os parâmetros emanados do conselho profissional de psicólogos (Conselho Federal de Psicologia, 2019).

Para a realização dos encontros grupais, a direção da escola disponibilizou uma sala. O espaço físico era pequeno, mobiliado com cadeiras, lousa e armário de professores.

A direção da escola emitiu convites aos pais dos estudantes do 4° ano do Ensino Fundamental, já que era uma série na qual as professoras estavam com maior dificuldade em desenvolver atividades cotidianas. O convite foi anexado nos cadernos de 25 alunos, número total de matriculados, e foi reforçado por meio de telefonemas. O trabalho contou, por fim, com participação de dez mães e de três professoras.

Com o intuito de responder ao convite formulado pela escola, a estratégia escolhida pelo psicólogo foi a realização de GO com professores e pais. O período noturno foi aquele no qual as mães tiveram maior disponibilidade horária.

Por meio da proposta o psicólogo procurava oferecer espaço e tempo para famílias e escola pensarem sobre suas interrelações e, eventualmente, trabalharem estratégias de fortalecimento recíproco. Esta modalidade de grupo foi escolhida por favorecer a identificação de entraves de comunicação entre os participantes e por fomentar a aprendizagem por meio de estabelecimento de vínculos (Castanho, 2018; Pereira & Santos, 2012; Santos et al., 2016).

Dois encontros grupais foram realizados, com duração média de uma hora cada e com frequência semanal. O primeiro encontro tinha por objetivo proporcionar um espaço catártico de trocas em que todos pudessem ser ouvidos em suas demandas, desde que relacionadas à tarefa explícita pensar a relação família-escola; para tanto, verbalizações foram o recurso utilizado. No segundo encontro dispositivo audiovisual foi utilizado em acréscimo, com intenção de auxiliar os processos dialógicos sobre a relação família-escola.

Quando referência à tarefa explícita proposta ao grupo é feita, trata-se de terminologia pichoniana (Pichon-Rivière, 1980/2009). Para ele, tarefa explícita tem relação com o que integrantes de certo grupo aceitam trabalhar para alcance de objetivos comuns; ela tem relação com aspectos de natureza mais consciente (manifestos). Subjacente à explícita existe a tarefa implícita, que implica em trabalhos de elaboração mais sofisticados do ponto de vista do processo grupal, para alcance delas. Esse segundo nível de tarefa é o produto de movimentos que o grupo constrói, para superação de obstáculos que entravam o próprio processo grupal e que são de tonalidades inconscientes (latentes). Embora essas distinções teóricas sejam esboçadas, os dois tipos de tarefas se interconectam enquanto o processo grupal transcorre.

As tarefas explícitas foram, assim, resultantes do processo de ponderação sobre demandas apresentadas pela escola, sobre características sociodemográficas das famílias alvo das ações e sobre aspectos tratados pela literatura especializada sobre a interseção família-escola. Deste modo, os relatos apresentados no próximo item se referem à resultante de reflexões produzidas por meio dos encontros e diálogos estabelecidos com essas famílias e com essas professoras, tendo-se como tarefa explícita o pensar as relações família-escola.

Diferentemente do que a teoria e a filosofia dos GO propõe (Pichon-Rivière, 1980/2009), na experiência relatada não foi possível contar com a figura de um observador. O trabalho de elaboração que o profissional psicólogo pôde executar ocorreu a posteriori, em atividades de supervisão clínica. Isso posto, os GO embasaram as intervenções, embora o manejo da técnica tenha precisado sofrer alterações.

 

Pensando as Experiências

Mães e professoras: essa relação existe?

No primeiro encontro houve nítida "separação" entre mães e professoras, refletida no distanciamento físico dentro da sala. Certas resistências e insatisfações em estarem participando do grupo eram notadas, como costuma acontecer em "primeiros encontros", embora a participação fosse livre e voluntária. Esta relação de estranhamento pode ser, ainda, compreendida como resultado da inovação que este tipo de intervenção propunha, não só naquela escola, mas no município.

Ainda neste encontro inicial, outro aspecto importante observado foi o fato de que, ao se propor falar sobre educação infantil, somente mulheres participaram dos encontros, mães e professoras. Ferreira, Isaac e Ximenes (2018) apontam, ao debaterem cuidados a idosos, que papéis de gênero são construções sociais moldadas pela cultura, para cada sexo. Apesar da lutas das mulheres ao longo da história, estas ainda parecem ser vinculadas aos cuidados da casa, da família e dos filhos; o ato de cuidar ainda se atrela à função "de mulheres", o que também se espelha na experiência relatada.

Quanto ao desenvolvimento do grupo, diversas queixas foram apresentadas, tão logo o encontro se iniciou. Por parte das professoras, havia necessidade de conversarem e exporem suas dificuldades sobre o quanto elas eram cobradas enquanto profissionais. Afirmavam que até aquele momento não haviam encontrado espaços nos quais pudessem compartilhar suas angústias e vivências diárias.

Elas puderam dizer às mães sobre como têm se sentido quanto às cobranças por alcance de bons resultados junto aos estudantes; e que nas suas práticas laborais essas cobranças se expandiam para fora dos portões da escola, incluindo demandas do entorno comunitário. As professoras apontaram que a presença maior dos pais/responsáveis na vida escolar dos filhos poderia promover melhor desempenho escolar (o termo "sucesso escolar" era recuperado com insistência), no que diz respeito à superação de dificuldades de aprendizagem e ao comportamento dos estudantes.

O descontentamento, a desmotivação e a desvalorização permeavam constantemente as narrativas das educadoras. Esse tipo de vivência, de modo geral, e não apenas a daquelas dogrupo proposto, também é relatado na literatura e costuma estar associado à desistência profissional, devido a fatores como o desgaste e o estresse (Bock & Sarriera, 2006). Contudo, a partir disso e de modo concomitante, as colocações feitas pelas profissionais parecia trazer à tona aspectos que as mães aparentemente desconheciam sobre a realidade laboral delas, na relação com os seus filhos, o que era observado por suas reações de surpresa e até mesmo de incompreensão. Isso era vivido pelas mães de modo temeroso e parecia fomentar, por conseguinte, que se "afugentassem" do encontro proposto, por eventualmente se sentirem penalizadas pelas professoras. Nesse sentido, a movimentação para todos lidarem com a tarefa explícita parecia ser colocada em risco, exigindo atenção do psicólogo.

A sobrecarga das docentes se articulava, assim, à excessiva responsabilidade que costuma ser atribuída ao trabalho delas na escola, e também, a outros fatores como o aumento da carga horária de trabalho, à ausência de apoio social e institucional, à baixa remuneração e à ausência de plano de carreira. Fatores estes que potencializam os riscos à saúde e que são debatidos por estudiosos (por exemplo, Jotz et al., 2015), porém que ali, no encontro, apenas constituíam um rol de condições vividas e que não eram ditas, a despeito de estarem presentes. Esses não ditos endereçados às mães, se por um lado caracterizavam movimento inevitável, parecia, por outro, ganhar tons de ameaça no modo como as mães os recebiam.

Essas condições de trabalho das quais as professoras se ocupavam em seus relatos têm levado muitos docentes a executarem um ritmo laboral excessivo, optando em muitos momentos por três turnos diários, pondo em risco a sua saúde, a qualidade de sua prática e o consequente alcance comunitário dela (Jotz et al., 2015). Dessa forma, condições para compreender quem é a comunidade do entorno escolar, quem são seus alunos e famílias, o que tem ali que poderia melhorar a prática escolar dentro da sala de aula, algo tão fundamental de ocorrer em situações como as vividas e relatadas, progressivamente pareciam comprometidas. Refletir sobre isso se mostrava fundamental, porque impactava diretamente sobre os trabalhos ali desenvolvidos e ora compartilhados com as mães. Todavia, o rumo e o tom das conversas permitiam isso?

Em relação às mães, nesse primeiro momento também puderam se expressar. Como educar os filhos? se apresentava como preocupação urgente. Até que ponto a agressão física seria permitida ou poderia ser exercida, para os filhos entenderem os limites que gostariam de ver respeitados? Ao exporem esse tipo de dúvida quanto ao modo como gostariam de exercer seus papéis parentais, apresentavam, de modo concomitante, aparente temor de que o Conselho Tutelar pudesse intervir em suas relações familiares. E a partir disso, uma possível perda de guarda poderia ser colocada em pauta? Ademais, na sequência as mães verbalizavam o quanto a ausência de tempo e de capacitação educacional para acompanhar os filhos em suas tarefas escolares era uma justificativa apresentada diante das demandas apresentadas pelas professoras.

Esse tipo de narrativa das mães parecia culpabilizar as professoras. Conforme algumas mães insistiam, o mau comportamento dos filhos, narrado pelas professoras, não acontecia dentro de casa, "o professor deve tolerar e dar conta do seu estudante, pois foi a profissão que escolheu". Esse tipo de tensão relatada parecia reproduzir questões muito antigas que são debatidas pela Psicologia Escolar: "quem é culpado pelo quê?" E, de fato, o trabalho a ser vivido ali, conjuntamente, precisaria caminhar numa direção distinta.

Nesses momentos de tensão o psicólogo procurava assinalar a tensão vivida e o quanto ela era importante de ser explicitada, ou, contrariamente, pensar em novas formas para lidar com o verbalizado não seria possível. O enfrentamento do que constituía a tarefa explícita parecia estar em pleno andamento e sinais de que a implícita estava em processo de elaboração podiam, assim, ser notados.

Frente a este tipo de movimento e aos desencontros entre o que mães e professoras apresentavam, Lima e Chapadeiro (2015) ressaltam a importância de problemas relacionados à educação serem vistos de maneira dinâmica. Todos devem procurar entender os fenômenos escolares a partir do funcionamento deste sistema, considerando escola e família em sua interrelação. Se isso for obtido pode-se construir a responsabilização compartilhada sobre o que ali se processa. O papel do psicólogo no GO era o de promover espaço no qual os conflitos pudessem ser explicitados e ouvidos. Além disso, possíveis resoluções eventuais desses mesmos conflitos precisariam ser produzidas pelo próprio grupo, após as tensões terem sido expressas, ainda que de modo "torto".

No primeiro encontro, a relação família-escola estava imersa pelo movimento de culpabilização mútua, unidirecional, e não de responsabilização compartilhada. Portanto, sobressaltava-se uma relação meramente institucional, instrumentalizada, na qual mães e professoras não se reconheciam integrantes do processo de educação em sua lógica comunitária; ambas eram atrizes isoladas em suas potências (Lima & Chapadeiro, 2015).

As ansiedades despertadas pelo encontro pareciam ser, centralmente, aquelas de natureza persecutória apontadas por Pichon-Rivière (1980/2009), quando ele debate dificuldades que se colocam no processo grupal, impedindo ou dificultando a obtenção de aprendizados mais genuínos (a superação de situações dilemáticas). Se professoras e mães procuravam se defender de ataques vindos das respectivas direções contrárias, como buscar alternativas para enfrentamento construtivo do que se apresentava?

Face aos eventos vividos no encontro e ao tipo de queixas apresentadas pelas professoras, a literatura tem apresentado que, apesar de estas afirmarem a ausência maciça dos pais e a falta de interesse deles na educação dos filhos, este olhar acaba por ter função de culpabilizar as famílias. Por conta da formação profissional específica que os professores têm, as tentativas de aproximação e de melhoria desta relação devem partir, preferencialmente, da escola, pois transferir esta função à família poderá reforçar sentimentos de ansiedade, vergonha e incapacidade nos pais, uma vez que eles não são especialistas em educação (Lima & Chapadeiro, 2015; Oliveira & Marinho-Araújo, 2010).

Independentemente de qual lógica de responsabilização venha a ser seguida, entretanto, acredita-se na potencialidade de intervenções que promovam diálogos e encontros humanos. Ou punição física aos filhos e estudantes, intervenção de Conselhos Tutelares e perda de guarda de filhos se tornarão alternativas mais plausíveis na forma de famílias e de instituição escolar pensarem sobre suas realidades?

Ao fim do primeiro encontro, uma imagem que marcava a mente do profissional era: família de um lado e escola do outro, separadas por um muro. Nesse sentido, pensar o segundo encontro parecia requerer auxílio de mediadores complementares à força das palavras apresentadas num primeiro momento. Linguagens artísticas poderiam ser úteis?

Muros entre escola e família: recursos para superação de conflitos podem ser pensados?

A partir do desenvolvido no primeiro encontro, no segundo e último encontro foi possível pensar em recursos de fomento às possíveis transformações e mudanças no cenário anteriormente apresentado. O psicólogo propôs como potencializador das conversas o curta-metragem Quando a escola vai à comunidade e a comunidade vai à escola,que traz relatos de quais ferramentas uma escola pública em Belo Horizonte/MG utilizou para efetivar uma melhor aproximação entre a escola e as famílias. No filme as valorizações do território e do saber popular das famílias e da comunidade em questão eram enfocadas.

Por meio dessa atividade procurou-se instigar olhares reflexivos sobre a importância da escola observar potencialidades e vulnerabilidades que a comunidade apresentava, considerando o saber popular como parte do processo de ensino-aprendizagem, em lugar de aviltar o dilema de quem temmais ou menos razão que o outro. O exercício buscado, por meio do uso do recurso fílmico, era, destarte, o de ressaltar o papel da escola como criadora de ferramentas de ensino com enfoque na realidade do estudante e de sua família (Freire, 1991). Tais ideias foram dialogadas a partir de reflexões trazidas pelo psicólogo e pelo filme exibido. O grupo, por sua vez, construiu sugestões de atividades que as famílias pudessem participar com seus filhos na escola, como oficinas de alfabetização de familiares que apresentassem dificuldade em ajudar seus filhos nas tarefas escolares.

Outro aspecto dialogado a partir da exibição do filme foi a contínua transformação do papel da família na sociedade. Nesse sentido, a necessidade de considerar novos desenhos e novas formas de organização dessa instituição, atravessada por contextos históricos e sociais que determinam a função social dela nos dias de hoje, foi contemplada (Benato & Soares, 2014; Serralha, 2017).

Trazer à baila, por meio do filme, a abertura para se discutir os arranjos familiares, a territorialização e o saber popular com as professoras foi importante para que houvesse aproximação a partir da diversidade vivida em grupo. Nem professoras de um lado, nem famílias de outro, isoladamente. Estava claro que aprender mutuamente sobre quem era quem se tornava um imperativo inegável. E, desta maneira, para além de a proposta ter como filosofia de base os GO, a movimentação proporcionada e desenvolvida conjuntamente parecia lançar o grupo, a despeito de todas as limitações inerentes à proposta, a patamares mais operativos que os observados quando do primeiro encontro.

A exibição do curta oportunizou falas e expressões das professoras em relação às dificuldades encenadas nele, como sendo delas também. As intervenções das mães, por conseguinte, ecoavam sensibilização perante as dificuldades narradas pelas educadoras. O movimento dialógico entre mães e professoras propiciou certa aproximação entre os dois segmentos, ao ampliarem consciência das dificuldades que cada uma dessas partes enfrentava.

O assinalamento de ter havido sensibilização não é feito para demonstrar que houve mudanças profundas nas relações aqui descritas, porém para reafirmar a importância da produção de espaços de encontro e de diálogo que permitam construções relacionais diferentes das já estabelecidas (Fernandes, 2019). O segundo encontro se mostrou fundamental para a retomada dos processos iniciados no anterior e para buscar aprofundamentos nas reflexões trazidas naquele momento. E o filme utilizado como recurso mediador parece ter prestado papel central, especialmente porque atrelava-se à tarefa explícita.

Nessa acepção, procurou-se dar continuidade ao processo de trabalho de promoção à saúde no ambiente escolar, tornando-o, para uso de terminologia pichoniana, mais operativo, mais permeável ao trânsito relacional que poderia haver entre famílias e escola. Esse esforço, por sua vez, implicava em acolher imprevisibilidades e em tentar colocar em análise coletiva o que era "produzido no cotidiano [...] da escola, favorecendo a experimentação de outro tempo menos acelerado, mas talvez mais inventivo, para dar conta do que não conhecemos, do que suscita problemas porque foge às expectativas e à ordem vigente" (Conselho Federal de Psicologia, 2019, p. 33-34).

 

Considerações Finais

A experiência relatada oportunizou espaço para expressão de diferentes pontos de vista de pessoas ocupando lugares sociais e institucionais igualmente diversos. Propiciou, assim, interações entre a escola e as mães que aderiram ao convite e ao trabalho proposto.

O trabalho que a escola, as professoras e as famílias têm adiante permanece desafiador. Mas expor nos dois encontros alguns dos não-ditos dessa relação permitiu encontrar algum grau de expressão e continência recíproca. Contudo, cabe aqui ressaltar que o trabalho desenvolvido pelo psicólogo não procurou ser curativo ou remediador. Houve, isso sim, preocupações em coordenar as atividades relatadas, ponderando-se sobre limites e alcances desse tipo de dispositivo grupal oferecido em resposta ao convite formulado pela escola.

O processo grupal relatado se revelou, ainda, como recurso promotor de saúde mental, por ter constituído espaço no qual as distintas singularidades, das mães e das professoras, puderam se encontrar em suas demandas, ainda que com tensionamentos de naturezas diversas. A filosofia pichoniana se mostrou essencial, para repensar as práticas de ensino-aprendizagem nessa instituição escolar.

O GO relatado permitiu que as participantes se aproximassem dos problemas enunciados por ambas as partes, pois a partir do que emergiu do grupo eles puderam ser reconhecidos e dialogados. O próprio grupo pode criar, ou ao menos vislumbrar, alternativas para modificações que viesse a conceber como necessárias. O trabalho contemplou, assim, possibilidades para professoras e mães pensarem conjuntamente sobre a vida escolar de seus estudantes e filhos.

Nessa direção, a construção do espaço de escuta para mães e professoras permitiu efetivar interações e aprendizados. Houve concretização de tentativa de o trabalho grupal ser o início de um diálogo mais duradouro entre escola e famílias. O psicólogo sugeriu que os encontros grupais pudessem ocorrer mensalmente, para que ambas as partes pudessem compartilhar suas angústias e também pensassem em futuras parcerias e projetos. Aproximações entre essas duas instituições, para além do que os dois encontros relatados permitiram viver, seriam possíveis a partir dali?

Contribuições pichonianas permitem vislumbrar que intervenções grupais promovem aprendizagem de novas maneiras de existir, com enfoque na mudança e na reflexão. Quem aprende ensina e quem ensina também aprende, o que também subjaz às propostas de Paulo Freire.

Muitos limites foram vividos na condução do GO relatado, como o pequeno número de encontros possíveis e a presença de apenas um coordenador mediando os encontros. Esta última característica tem relação com os limites do quadro funcional de psicólogos do município onde o trabalho foi desenvolvido.1 A participação de um observador/copensor seria fundamental para se atingir uma atenção mais ampliada diante das movimentações grupais; contudo, optou-se pela presençapossível do profissional, como eventual facilitador do processo relatado, que procurou ser responsivo ao que fora demandado pela escola.

Os diálogos do profissional convidado com as instâncias que lidam com necessidades de trabalhos psicológicos nos ambientes escolares do município permanecem em andamento. Nessa medida, o trabalho relatado, além de ter propiciado diálogos e aproximações entre escola e família, também se mostrou importante para o psicólogo conhecer e aprofundar o olhar que direcionava à comunidade na qual estava inserido; ele procurou aprender com as mães e com as professoras. Os processos de transformação pessoal e profissional decorrentes ainda instigam reflexões; e produzir este relato é, também, lidar com eles.

Isso posto, as duas perguntas organizadoras da experiência relatada podem ser reapresentadas: Mães e professoras: essa relação existe? e Muros entre escola e família: recursos para superação de conflitos podem ser pensados? As respostas possíveis neste momento são, assim como o próprio processo grupal vivido, transitórias: a relação família-escola existe, embora, tal como constatado na literatura e amplificado pelas experiências relatadas, muros de diversas naturezas e tamanhos se constituam em obstáculos a serem transpostos e/ou, no mínimo, reposicionados. Para tanto, recursos podem e precisam ser pensados e implementados, mas sempre atrelados às políticas educacionais e de atenção às populações desfavorecidas e vulneráveis do ponto de vista socioeconômico.

 

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1 Cabe frisar que este texto foi redigido num momento no qual a Lei 13.935/2019, que garante a presença de psicólogos e assistentes sociais em redes públicas de educação básica, havia sido recém-publicada no Diário Oficial da União, trazendo esperança de dias melhores ao cenário de integração do fazer do psicólogo nas instituições escolares (cf. http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.935-de-11-de-dezembro-de-2019-232942408).

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