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Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.5 no.1 Rio de Janeiro July 2005

 

Artigo Científico

 

O Conceito de potencial múltiplo da inteligência de Howard Gardner para pensar dispositivos pedagógicos multimidiáticos

 

The concept of intelligence multiple potential according Howard Gardner to reflect on pedagogical multimedia devices

 

 

Edna Gusmão de Góes BrennandI; Giuliana Cavalcanti VasconcelosII

I Universidade Católica de Louvain, UCI, Bélgica;
II Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil

 

 


RESUMO

O surgimento do ciberespaço e sua utilização em processos de aprendizagem, quer presenciais ou a distância, tem exigido a formação de equipes transdisciplinares para pensar uma nova engenharia para o processo ensino-aprendizagem. A discussão sobre uma nova ecologia cognitiva passa a fazer parte das agendas de todos os países que buscam modernizar seus projetos educativos. Este artigo registra um estudo teórico sobre a cognição a partir da obra de Howard Gardner. A pesquisa está sendo desenvolvida num contexto interdisciplinar (www.ead.ufpb/grupodepesquisa) e objetiva a construção de perspectivas teóricas sobre interatividade e processos de aprendizagem humana. Discute o conceito de potencial múltiplo da inteligência na tentativa de articula-lo à relação conhecimento-tecnologia e aos processos de construção da ergonomia de softwares e plataformas produzidas com fins educativos, isto é, como facilitadores de formações abertas e cooperativas e, conseqüentemente, de sujeitos mais críticos, autônomos e abertos a aprendizagens permanentes ao longo de suas vidas. © Ciências & Cognição 2005; Vol. 05: 19-35.

Palavras-chave: potencial múltiplo da inteligência; aprendizagem cooperativa; software educativo.


ABSTRACT

Human relations have been showing new social roles, which are played taking into account the biopsychological aspect that mankind owns. To understand hidden mysteries of the mind it is useful to carry on a continuous study. Thus, as a strategy to reach such understanding, one was interested in interpreting the origins and limits of cognition. Theoretically, Howard Gardner's studies were adapted, concerning to "multiple intelligences". The method used to think the investigation was the philosophical hermeneutic, which was theorized by Hans-Georg Gadamer. The relationship between the phenomenon of intelligence and the world of knowledge became evident, which was described taking into account the relation among subject-society species and technology. The invention of the device called cyberspace that combines technology, information and interactivity is confirmed, giving the possibility of several ways of communication in social web life. One observed that this world of knowledge challenges the mankind to change, developing the maximum of its cognition, which showed the need to introduce new ways to think about intelligence into educational processes. © Ciências & Cognição 2005; Vol. 05: 19-35.

Key words: intelligence multiple potential; cooperative learning; educative software.


 

 

1. Introdução

Este artigo é parte da pesquisa teórica sobre processos comunicativos e cognitivos desenvolvida no âmbito do grupo de pesquisa "Estudos Culturais e Tecnologias da Informação e Comunicação" (www.ead.ufpb/grupodepesquisa) do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Esse grupo aglutina pesquisadores do PPGE, do Departamento de Informática e do Departamento de Comunicação da UFPB e do Centro de Ciência e Tecnologia da Universidade Estadual da Paraíba, além de contar com a participação dos professores. André Berten e Pierre Fastrez do Departamento de Comunicação da Universidade Católica de Louvain na Bélgica. O grupo incorpora a participação de alunos de graduação, mestrado e doutorado, cujas pesquisas têm alimentado diversas nuances teóricas sobre temas enfocados em seus debates. Surgiu do interesse dos pesquisadores em formar uma rede de pesquisa interdisciplinar e interinstitucional para uma produção transdisciplinar de pesquisas sobre a relação conhecimento-tecnologia, incluindo processos educativos mediados pelas tecnologias da informação e comunicação.

Desde o ano de 2002, esses pesquisadores se debruçam sobre a implementação de produtos hipermediáticos com aplicações em comércio eletrônico, jogos e entretenimento e, atualmente, com aplicações em educação. A necessidade do debate interdisciplinar surgiu da constatação de que não é possível falar em aplicações em educação sem incluir perspectivas teóricas sobre a interatividade e os processos de aprendizagem. Desse debate surgiu o interesse em buscar novas perspectivas para a (re)engenharia da aprendizagem que incluam estudos transversais sobre a questão.

Este artigo é fruto de tal debate e fundamenta possibilidades do surgimento de aportes teórico-metodológicos reveladores de mudanças na concepção de softwares produzidos com fins educativos, isto é, de ferramentas que facilitam formações abertas e, conseqüentemente, sujeitos mais críticos, autônomos e abertos a aprendizagens permanentes.

 

2. O Ciberespaço e o surgimento de uma nova ecologia cognitiva

Vivemos os primeiros anos do século XXI num "mundo globalizado que, outrora inimaginável, já se tornou possível" (Gardner, 2000, p. 261 e 262). Atualmente, situamo-nos em um mundo organizado em redes de conhecimento que vêm tomando formas desde fins da década de 1960 e se encontram marcadas por novos processos tecnológicos de informação e comunicação, pela re-estruturação da economia, por avanços em todos os domínios do conhecimento e ênfase na biotecnologia.

Vemos que, enquanto "surge uma nova forma de relação social conectada por redes tecnológicas de informação e comunicação" (Gardner, 2000, p. 236), a re-estruturação da economia marca as relações entre os povos através da flexibilidade dos processos de gestão com a descentralização e a organização em rede de negócios e empresas, levando todos a perceberem a necessidade de diversificar a formação das competências humanas. Essa necessidade envolve a formação de um ideal de humano integrado, "capaz de direcionar seus objetivos, valores, pensamentos e ações em relação a uma rede de interatividades que compartilhe a produção de significados e o funcionamento de responsabilidades sociais" (Gardner, 2004, p. 254).

Quanto à biotecnologia, testemunhamos o surgimento de novas formas de vida animal e vegetal, resultantes da combinação de genes manipulados por biólogos, químicos, médicos e agrônomos, e nos vemos provocados a discutir a ética da manipulação da vida (bio-ética).

A informação e o conhecimento têm sido produzidos a uma velocidade nunca antes vivenciada. Já dispomos de microchips, próteses eletrônicas de órgãos, veias e artérias artificiais e biossensores digitais. A cada dia, o conhecimento sobre o genoma avança e ficamos perplexos com tantas maravilhas desvendadas pela inteligência humana.

Produzimos a tecnologia digital que "pode ser usada para colocar qualquer informação social na ponta dos nossos dedos" (Gardner, 1999, p. 48). Estamos vivenciando um novo tempo que nos convida a romper a linha de fronteira territorial da comunicação humana e a viver "o modelo de uma vida social global, onde necessidades e desejos mudam depressa, os conhecimentos surgem rapidamente e somos desafiados a interagir em rede" (Gardner, 2000, p. 261 e 262). Somos desafiados a explorar a nossa inteligência pondo em destaque o potencial múltiplo da inteligência humana de aprender crescentemente.

No campo da educação, essas inovações são incorporadas de forma mais lenta. As instituições educacionais incorporam lentamente novos processos e metodologias, levando educadores e aprendentes e se desafiarem mutuamente na compreensão dessas novas realidades. A incorporação das tecnologias da informação e comunicação nos processos educacionais, em todos os níveis, tem sido o desafio de pesquisadores e docentes no que se refere à compreensão de processos cognitivos que incorporem o conhecimento interdisciplinar.

 

3. As conexões possíveis do ciberespaço

O surgimento do ciberespaço e sua utilização constante em processos de aprendizagem, quer presenciais ou a distância, tem exigido a formação de equipes transdisciplinares para pensar uma nova engenharia para o processo ensino-aprendizagem. A discussão sobre uma nova ecologia cognitiva passa a fazer parte das agendas de todos os países que buscam modernizar seus projetos educativos. A concepção de ciberespaço incorpora uma compreensão de espaço fluido, em rede, que está reconfigurando novas formas de aprender.

O termo ciber vem de cibernética (vindo do grego kibernêtes: arte de governar) que estuda o movimento das conexões de sistemas de comunicação em organismos vivos, máquinas de calcular e comandos eletromagnéticos em cérebros eletrônicos, aparelhos teleguiados etc. O termo espaço engloba os pontos em que as coisas se localizam ou abrange as relações que ocorrem entre objetos físicos.

O ciberespaço pode ser definido como o espaço de comunicação aberto e mantido pela interconexão de dispositivos tecnológicos digitais como computadores, satélites e telefones celulares que permitem a realização de interações sincrônicas de informações entre emissores e receptores. Isso quer dizer que o ciberespaço pode ser considerado como o reflexo de uma rede unimídia que entrelaça nós de confluência entre pontos que dispõem informações, representando uma reunião gestora de diferentes mídias digitais que trocam e articulam sinais, abrindo possibilidades para reprodução, multiplicação e modificação dessas informações.

Como podemos entender a relação do ciberespaço com processos cognitivos e ações educativas? Como pensar estratégias de aprendizagem articuladas às muitas transformações e criações dos vários dispositivos de aprendizagem?

A emergência do ciberespaço vem abrindo janelas e portas de comunicação com o mundo que, em outrora, nos foram apenas fictícias (Gibson, 2003). Se este é um espaço que une mídias, a visão panorâmica, de suas janelas e portas, aponta possibilidades de experenciar processos de interatividade, novas dimensões das relações sociais informativas, comunicativas, lúdicas e multiculturais.

Podemos pensar que o ciberespaço surge como um lugar extraordinário de interatividade comunicativa entre seres humanos e de interatividade entre os indivíduos com inteligências artificiais como os softwares (interação homem-máquina). Se o ciberespaço une mídias, ele reserva não só a possibilidade de produzirmos novos sinais que revelem informações somáticas com imagens como "a piscada de uma paquera". A arquitetura dessa tecnologia da rede é tal, que permite ligar informações somáticas, midiáticas e digitais num mesmo sistema de produção de informações sociais.

É importante salientar que, para navegar, interagir e aprender no ciberespaço precisamos produzir saberes continuamente e, para isso, somos desafiados a desenvolver o potencial biopsicológico de nossa inteligência para processar informações e agir criativamente na solução de problemas e na produção de novos conhecimentos.

Esse espaço cognitivo exige a formação de competências múltiplas e o uso permanente da inteligência para lidar com situações diferentes do cotidiano e com problemas inusitados que possam surgir dessa arquitetura tecnológica de organização social em rede. Precisamos, neste contexto, re-estruturar a nossa maneira de ver a inteligência humana e as projeções que fazemos dos processos educativos e dos espaços de formação.

Nessa perspectiva, os processos educativos, tomando como exemplo os que façam uso de dispositivos multimidiáticos, assumem a "posição-chave" de um outro ideal, o de proporcionar oportunidades de formação que promovam o desenvolvimento do potencial humano de lidar com a inovação. Falamos de dois ideais: a formação de sujeitos que produzem saberes úteis à organização social em rede e a promoção de oportunidades pedagógicas nas quais esse sujeito possa desenvolver seu potencial cognitivo.

Com esse entendimento, questionamos: de qual maneira podemos melhor compreender a inteligência no sentido de colaborar para projeções de processos educativos e dispositivos multimidiáticos que promovam o desenvolvimento do seu potencial múltiplo?

 

4. Sobre o método

Ao longo da pesquisa teórica, que baliza este estudo, pudemos perceber que o domínio das pesquisas sobre a inteligência evoluiu dos grupos de especialistas de visão psicométrica para uma discussão interdisciplinar. Os estudos sobre Inteligência Artificial (IA) e a interação homem-máquina abriram espaços interessantes para pensar a inteligência. Como o objetivo deste artigo não é levantar o estado da arte sobre a questão, nos limitaremos a discutir a pertinência do conceito de potencial múltiplo desenvolvido por Gardner para pensar a possibilidade de novas ergonomias cognitivas para produção de dispositivos multimidiáticos para fins educativos.

Reconhecemos que a pergunta diretriz dessa investigação, já antes explicitada, permitiu-nos visualizar inúmeros sentidos e, até mesmo, experimentá-los no decurso de buscas, reflexões e elaborações de significados. Foi com o gosto de experimentar esses sentidos que acabamos desenvolvendo a "conversa" com Gardner que aqui apresentamos. Esta conversa tomou como princípio metodológico a hermenêutica.

Nossa leitura foi fundamentada na hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer. No decorrer do estudo, fomos percebendo a pertinência entre os fundamentos do método escolhido para compreender como Howard Gardner trabalha sobre o fenômeno da inteligência humana. Entrecruzamos saberes que perpassaram conceitos teóricos múltiplos, como conseqüência, foram traçadas relações epistemológicas que precisam ser ampliadas em outras investigações a fim de melhor discutir a pertinência da hermenêutica filosófica no estudo do potencial múltiplo da inteligência humana. Este artigo foi desenvolvido a partir do princípio da conversa proposto por Gadamer.

Mas, o que é a conversa na ótica hermenêutica de Gadamer (2002)? É um processo que tenta compreender o que anunciamos. A conversa é, portanto, uma ação mental que representa uma linguagem de entendimento,uma compreensão comum sobre um estado de coisas que anuncia um"acordo". Quer dizer que, quando na nossa individualidade, tentamos compreender o mundo, há, por trás de nossos pensamentos, representações e conceitos de múltiplos significados. Então, o que interpretamos desse mundo são aprendizagens (informações que acomodamos na memória) que nos permitem elaborar conhecimentos e aplicá-los.

Por isso, quando conversamos com um autor, estamos interpretando, aprendendo e elaborando conhecimentos que são pertinentes à linguagem que nos reúne ao mundo. Isto posto, é importante argumentar que conseguimos conduzir essa conversa com Gardner porque estivemos conscientes da relação entre nossos interesses teóricos e nossas ações no fazer educativo cotidiano. A trajetória nos conduziu a pensar sobre nosso potencial cognitivo de conversar. Nessa perspectiva, nossa conversa com o autor nos permitiu compreender a noção de potencial múltiplo da inteligência para pensar processos educativos emancipatórios.

 

5. Explicitando o conceito de potencial múltiplo da inteligência

Para Gardner (2000, 47) a inteligência humana, como "um potencial biopsicológico, pode ser ativada para processar informações, solucionar problemas ou criar produtos que sejam valorizados numa determinada cultura". Pode ser ativada, dependendo das condições biológicas do indivíduo, dos valores de uma cultura específica, das oportunidades disponíveis na sociedade e de experiências, reflexões, criatividade e decisões individuais tomadas por cada ator social. Essa noção de potencial biopsicológico remete a caminhos conceituais confluentes que condicionam a vida humana e que, em nosso estudo, nos conduzem à compreensão da inteligência, são eles: a noção de que vivemos na condição de espécie, existência em sociedade e necessária valorização e investimento na formação das condições de vida individual.

 

5.1. A linguagem do cérebro

A interpretação de processos naturais de desenvolvimento na condição de espécie humana leva em conta a flexibilidade do desenvolvimento do sistema nervoso e a sua capacidade de ativar operações e desempenhar funções cognitivas específicas. Segundo Gardner (1994), os mistérios biológicos da mente foram explorados através de estudos sobre:

    a) o que a "decodificação do nosso material genético pode revelar de comum" (Gardner, 1994, p. 25);

     

    b) a manifestação da inteligência de outros animais que pode ser comparada à manifestação da inteligência humana;

     

    c) descrições anatômicas que podem ser feitas de cérebros mortos de animais e de humanos talentosos;

     

    d) e agora, mais recentemente, sobre imagens do funcionamento do cérebro em ação obtidas a partir de tecnologias como tomografia computadorizada e ressonância magnética (que tornaram possível ver e interpretar detalhes anatômicos da estrutura e dos processos de funcionamento do cérebro), eletro-encefalografia e magno-encefalografia (que nos permitem detectar ondas elétricas e magnéticas do funcionamento do cérebro).

As descobertas da genética preenchem um requisito importante no levantamento de hipóteses acerca da cognição humana, mas "as explicações sobre a hereditariedade genética dessas capacidades forneceram poucas respostas" (Gardner, 1994, p. 27). Segundo o autor, estudos demonstram que a inteligência é dotada de uma herança genética, mas não somente dessa condição biológica. O desenvolvimento da inteligência depende também das interações dos indivíduos com o ambiente natural e social nos quais vivem. A inteligência, portanto, se forma a partir da hereditariedade genética bem como de valores culturais que a sociedade transmite através de seus modelos econômicos, morais, educacionais e comunicativos.

Na escola, na igreja, nas ruas e através do contato com bens culturais como a música e a mídia, os indivíduos lidam com valores e desafios de sobrevivência que lhes motivam manifestar comportamentos condicionados pela disposição biológica de seu organismo. Mas, a aprendizagem depende da forma como nos relacionamos com o mundo. Assim, reconhecemos que a decodificação de nosso material genético, se ainda não nos permitiu identificar o gene da inteligência, pode contribuir para estudos sobre a sua manifestação.

As pesquisas da genética têm nos permitido, por exemplo, que interpretemos a estrutura de um organismo determinado pelas implicações genéticas de seus progenitores - o "genótipo" (Gardner, 1994, p. 26), e que interpretemos as características observáveis do organismo conforme estejam expressas dentro de um determinado ambiente natural e social - o fenótipo. Podemos saber, a partir da decodificação do material genético de um organismo, a que espécie ele pertence e pensarmos, hipoteticamente, quais são as pré-disposições biológicas que tem, como necessidades e potencialidades. Mas, quando nos referimos à identificação de potencial da inteligência de um indivíduo, ainda não é possível determinar qual o gene que assegura o desenvolvimento de uma dada capacidade, inteligência e competência que se expressa fenotipicamente.

Podemos saber sobre a inteligência genotípica, comum de uma espécie, e supor as características fenotípicas dessa inteligência, mas ainda não podemos identificar especificamente, pela decodificação genética, qual e como uma inteligência se revela fenotipicamente. Quer dizer que, quando nos referimos à inteligência humana, ainda ignoramos seu componente genético combinado com sua manifestação fenotípica.

Da genética também podemos fazer inferências a partir da variedade de traços que compartilhamos com as relações sexuais interfenotípicas (entre brancos, negros, asiáticos etc.) que tendem a tornar-se invisíveis ou a desaparecerem totalmente com a contínua miscigenação desenvolvida no modelo de vida social em rede. Esses estudos da genética podem contribuir para "documentarmos a variedade da natureza humana" (Gardner, 1994, p. 28) e, também, podem servir como parâmetros para projeção de processos educativos que promovam o desenvolvimento de competências necessárias e desejáveis ao amplo mundo de conhecimentos que temos produzido.

 

5.2. Conexões do sistema nervoso

Nos últimos cinqüenta anos, o conhecimento do sistema nervoso vem se acumulando tão rapidamente, que já tem mostrado importantes contribuições para a compreensão da manifestação da inteligência humana. De maneira surpreendente, já sabemos que o comportamento humano é organizado, programado e integrado, embora o próprio indivíduo não se dê conta disso, a partir do que dispõe biologicamente e de suas relações com o ambiente externo.

Os avanços do estudo do cérebro permitiram que o conhecimento do comportamento humano se ampliasse. Ao invés de conhecermos apenas a anatomia cerebral, já podemos descrever e compreender aspectos fisiológicos e químicos do sistema nervoso, que agem de modo biologicamente programado quando nos relacionamos com o mundo.

Certamente, hoje já podemos obter descrições de imagens do funcionamento do cérebro em ação interpretadas a partir de tecnologias. Tais descrições têm contribuído para a interpretação do funcionamento da cognição humana. Sendo assim, nos interessa entender o processo de flexibilidade do sistema nervoso humano que gera os princípios teóricos de canalização e plasticidade, elementares no processo de interatividade e aprendizagem.

A canalização refere-se à disposição natural do sistema nervoso de seguir vias de desenvolvimento programado, no qual, cada etapa processual estabelece redes neurais que procedem as etapas seguintes. Observa-se que a constituição das células dos neurônios obedece a uma regularidade cronometrada que, longe de serem aleatórias ou acidentais, seguem sua programação inicial de compor o cérebro e a espinha dorsal do corpo humano, seguindo até a constituição do sistema nervoso de um adulto. Esse é um acontecimento biológico que "pode ser observado ao longo da vida das espécies animais" (Gardner, 1994, p. 29).

O desenvolvimento do sistema nervoso segue uma seqüência de etapas processuais, as quais são formadas por operações de conexões entre as células neurais formando uma associação que pode ser denominada de rede neural. Essas redes funcionam como circuitos nervosos que adquirem características morfológicas e químicas que possibilitam a formação de novas redes neurais a partir de novos processos de comunicação com outras células neurais.

A formação dessas redes marca a definição de cada etapa processual com uma rápida sucessão de novas redes até atingir a constituição do sistema nervoso do indivíduo adulto. É esse período de contínuas e rápidas sucessões de etapas que chamamos de desenvolvimento do sistema nervoso.

Esse desenvolvimento confere a "identificação da formação de determinadas regiões do cérebro que são ativadas de acordo com o comportamento do indivíduo" (Gardner, 1998, p. 149), como a manifestação da inteligência e de emoções. É também nesse período que as células neurais adquirem formas, propriedades específicas e amadurecem tornando-se relevantes para o funcionamento de cada rede neural.

Logo, as células excedentes que não adquiriram função em nenhuma conexão neural são, por programação biológica, podadas ou eliminadas do sistema nervoso. Após a ocorrência da poda, cada célula das redes neurais atinge a sua maturidade e passa a ocupar e a ajustar-se em "espaços do encéfalo onde progride formando sinapses" (Gardner, 1994, p. 34).

Essa é uma nova fase da vida do sistema nervoso que se faz com comunicações (interações químicas ou fisiológicas) integradas entre neurônios.Trata-se de uma unidade ou um chip biológico de estrutura microscópica de contato entre um neurônio e qualquer outra célula. É nesse chip que se realizam as computações de que os neurônios são capazes de fazer, como decodificar informações do ambiente natural e social, amplificar o efeito dessas informações, armazená-las, adicioná-las, bloqueá-las etc. Isso é possível, somente a partir do contato sensível dos indivíduos com o ambiente.

Mesmo que a programação biológica do sistema nervoso siga seqüências desenvolvimentais, a relação do indivíduo com o mundo amplo que o envolve pode determinar influências ambientais que alterem o caminho, mas não a finalidade dessa programação que é a formação de um organismo natural, a condição de espécie.

Essas influências ambientais são interações e intervenções inesperadas que promovem o que chamamos de plasticidade neural. Caso a programação biológica do sistema nervoso, durante as seqüências desenvolvimentais, seja acometida de algum dano, acidente ou privação, naturalmente, "as células neurais tendem a regenerar o seguimento de suas finalidades" (Gardner, 1994, p. 28).

Então, a plasticidade refere-se ao "potencial das células neurais de regenerar, em caso de dano, acidente ou privação, o caminho regular de alcance de finalidades que já são biologicamente programadas" (Gardner, 1994, p. 30). Mas, essa plasticidade é mais eficaz nas seqüências biológicas iniciais do desenvolvimento. Pois, após os neurônios atingirem o ponto máximo da maturidade de suas conexões, e com o envelhecimento humano, essa plasticidade tende a declinar continuamente. Um indivíduo que, por exemplo, tenha sido desapossado de parte de um dos hemisférios do cérebro tende, tragicamente, a condicionar-se à gravidade do declínio das células neurais.

Entretanto, quando falamos que um determinado caminho nervoso se regenerou, ou se plasmou, "essa plasticidade deve ser qualificada porque ela varia entre os indivíduos de uma mesma espécie" (Gardner, 1994, p. 31), em função das diferentes influências ambientais, a condição individual. Nenhum indivíduo passa por quaisquer circunstâncias de modo precisamente homogêneo. Apesar de pertencermos a uma mesma espécie, somos biopsicologicamente individuais, interpretamos o mundo e aprendemos de maneira singular. Somos espécie, sociedade e indivíduo.

Essa qualificação da plasticidade do sistema nervoso deve ser assegurada nos limites de comportamentos do indivíduo que atestam suas reações a estímulos ambientais. Portanto, a plasticidade é individual, ocorre diferentemente em cada organismo. O que podemos generalizar, nos limites de nossa interpretação, é que a plasticidade é um potencial tendencialmente comum a todos os sistemas nervosos da espécie humana, e que, seu desenvolvimento programado, propenso a toda espécie, desenvolve-se individualmente a partir do código genético e das implicações ambientais resultantes de processos interativos. Isso quer dizer que, em função de estímulos ambientais, os potenciais neurais de cada indivíduo se diferenciam.

Assim, interpretamos essa programação biológica, regulada por tendências de plasticidade, reconhecendo cinco princípios biológicos do desenvolvimento do sistema nervoso que se transformam ao longo do desenvolvimento da vida.

 

5.3. Princípios biológicos do desenvolvimento do sistema nervoso

O sistema nervoso transforma-se ao longo do desenvolvimento da vida. O processo embrionário, a maturidade neural, o envelhecimento e a morte celular do cérebro conferem seqüências gerais da vida do sistema nervoso.

O que acontece é que durante o desenvolvimento neural, as células tendem a crescer rapidamente atingindo o máximo de conexões, sucedendo a etapa de eliminação dos circuitos celulares excedentes que não são úteis à vida do sistema nervoso e passando a atingir o que podemos chamar de maturidade neural. Em seguida, após um longo período de suposta estabilidade da vida adulta, que ainda é envolvida por mudanças micro-estruturais e funcionais dos circuitos neurais, que são decorrentes dos processos de interação humana com o ambiente natural e social, o sistema nervoso lentamente degenera e morre.

Com isso, podemos entender que o processo embrionário e a maturidade neural, circunstancialmente, revelam circuitos neurais que nos permitem, a partir de "achados interpretativos do sistema nervoso", compreender os princípios biológicos da plasticidade que se sucedem e complementam-se até a formação da pessoa adulta. Na verdade, esses princípios representam qualidades biológicas que implicam no processo de aprendizagem e no potencial do indivíduo de revelar sua inteligência.

  • Princípio um: o sistema nervoso que, porventura, sofra alguma violação, tende a delinear uma via alternativa de conexão neural, cumprindo "o processo natural de desenvolvimento programado e de distribuição de interconexões neurais no espaço do cérebro" (Gardner, 1994, p. 30). Esse processo alternativo de conexão neural pode ser chamado de plasticidade regenerativa, que é a possibilidade de reposição espontânea de células neurais afetadas por alguma lesão.
  • Princípio dois: durante o desenvolvimento há uma fase de grande plasticidade chamada de "período sensível ou crítico" porque, embora o sistema nervoso possa delinear vias alternativas de conexão neural, ele também tende a restringir-se ante a gravidade do dano, acidente ou privação, resultando na "irreversibilidade da conexão neural" (Gardner, 1994, p. 31) que seja constituída. É uma fase da infância na qual o sistema nervoso está mais disposto a transformar-se a partir de estímulos originados da interação do indivíduo com o ambiente natural e social, gerando o "estabelecimento de características neuropsicológicas do indivíduo" (Gardner, 1994, p. 31).
  • Princípio três: a plasticidade "difere de acordo com a região do sistema nervoso afetada" (Gardner, 1994, p. 31) por alguma violação, pois algumas regiões que se desenvolvem mais tarde na infância são mais flexíveis que outras que tenham se desenvolvido nos primeiros dias de vida.
  • Princípio quatro: o sistema nervoso possui programas de desenvolvimento biopsicológico que contam com "determinados estímulos sensoriais, emocionais e cognitivos" (Gardner, 1994, p. 34) (visuais, auditivos, olfativos, comunicativos etc.) que devem ocorrer durante o período crítico do desenvolvimento. Por exemplo: "crianças que sejam privadas da aprendizagem de algumas habilidades cognitivas como a codificação lingüística e a codificação matemática, quando na vida adulta são submetidas a essas aprendizagens, tendem a sofrerem terríveis dificuldades" (Lent, 2004, p. 144), é como se a possibilidade de aprendizagem dessas habilidades se esgotasse na infância.

Princípio cinco: a plasticidade do sistema nervoso tende, no caso de alguma violação, a formar conexões neurais imediatas de efeitos em longo prazo, mas elas "podem ser falhas no surgimento posterior de alguma habilidade cognitiva necessária" (Gardner, 1994, p. 32). Isso quer dizer que nem sempre a plasticidade neural, após uma lesão, é compensatória ao funcionamento de determinadas habilidades cognitivas. Ao contrário, a plasticidade também pode revelar "resultados danosos aos circuitos neurais dependendo da região cerebral lesada" (Lent, 2004, p. 162 e 163). Esses princípios nos mostram que não podemos prever com certeza quais sejam todas as capacidades biológicas que o potencial da espécie humana pode desenvolver.

A maturidade do sistema nervoso é caracterizada como um momento que sucede a poda das conexões neurais extras que, também, é posterior ao período de desenvolvimento rápido. E é esse período que confere momentos de acelerados crescimentos neurais, nos quais muitas conexões são feitas; inclusive em caso até mesmo de lesões. Mas, com o alcance da maturidade, essas conexões que foram feitas, mas que são inúteis ao funcionamento do sistema nervoso, são eliminadas e apenas "as células funcionais são mantidas em contínua atividade" (Gardner, 1994, p. 34).

Mesmo que o desenvolvimento neural obedeça a uma programação biológica e ofereça importantes flexibilidades (como a canalização e a plasticidade), a aprendizagem não ocorre apenas nesse período, ela é contínua na vida humana. As conexões neurais, que permanecem em funcionamento durante a maturidade, tendem a especificar redes que possibilitam a aprendizagem de habilidades específicas como a linguagem, a reflexão e as emoções.

A plasticidade dos neurônios contribui para entendermos que a aprendizagem se dá ao longo da vida humana a partir da capacidade do cérebro de alterar-se continuamente. Isso quer dizer que, ao passo que aprendemos, o cérebro reage a nossas interações com o ambiente natural e social. Reage a mudanças internas, biologicamente programadas, que se prolongam até a maturidade neural, mantendo-se estável até o início da velhice ou até o declínio de suas atividades com a morte do indivíduo.

 

6. A bio-psico-identidade da potência múltipla da inteligência humana

Como vimos nas seções anteriores, Gardner nos leva a pensar a inteligência humana como um potencial múltiplo que decorre do fato de que o cérebro é dotado de uma flexibilidade biológica que lhe permite executar vários tipos de conexões neurais. A flexibilidade do sistema nervoso possui uma potencialidade biológica tão rica que nos permite dispor de plasticidade neural no desenvolvimento dos processos cognitivos.

O espantoso é que, ao reconhecermos essa plasticidade, vemos que temos disposição para interagir e aprender o que queremos e, até mesmo, para desenvolver diferentes tipos de inteligência a partir da maneira como nos relacionamos com o ambiente natural e social. Mas como ocorre a aprendizagem e o desenvolvimento de diferentes tipos de inteligência?

Aos passos nos quais o cérebro se desenvolve, as conexões neurais se tornam mais complexas, suportando comportamentos mais sofisticados. Isto é, conforme o desenvolvimento neural avança, surgem novas funções cognitivas que se revelam com os comportamentos a partir de experiências individuais e de processos educativos que a sociedade oportuniza e valoriza, a necessária condição social.

Mesmo que nossa condição biológica siga seqüências desenvolvimentais, o que aprendemos depende de como nos relacionamos com o mundo, e depende também dos elementos culturais que constituem essa relação. Por isso, não podemos excluir "as influências culturais da maneira como cada indivíduo desenvolve seu potencial intelectual" (Gardner, 1994, p. 47). Portanto, a hipótese de que temos um potencial biopsicológico não limita a noção de inteligência humana a aspectos biológicos. Isso porque desenvolvemos nosso cérebro sob influências de um mundo cultural, com significados determinantes e oportunidades sociais projetáveis, combinadas com o acaso e com as incertezas do ambiente natural.

Nesse sentido, podemos, na inseparabilidade das condições humanas que são biológicas e ao mesmo tempo culturais ou sociais, enumerar oito critérios que servem como parâmetros para a compreensão do potencial múltiplo da inteligência de desenvolver-se de maneira singular e de revelar inteligências diferentes, capazes de mostrar comportamentos criativos e valorizados como competências intelectuais.

 

6.1. Critérios propostos por Gardner para compreender a Inteligência

Para entendermos melhor as inteligências que o potencial cognitivo da mente pode revelar, vejamos quais são os critérios que Gardner (1994, p. 47-50) utiliza como assertivas para compreender as diferentes inteligências a partir do potencial biopsicológico que lhe confere a própria condição.

  • Primeira assertiva: a observação em seres humanos com faculdades intelectuais prejudicadas por dano cerebral, se uma dada inteligência se manifesta ou não. Com estudos acerca do funcionamento do cérebro, é possível perceber que determinadas potências da mente, em caso de lesões cerebrais, podem ser destruídas isoladamente sem danificar o restante do cérebro, ou, ao contrário, podem ser isoladas de um dano grave que afete uma parte maior do cérebro. Esse isolamento de uma potência cognitiva é que serve como assertiva para a identificação de uma inteligência.
  • Segunda assertiva: interpretar uma história da evolução de determinadas capacidades da mente que são identificadas noutras espécies animais. Tomando como referência que as raízes da inteligência humana datam de milhões de anos, sendo manifestas, também, por outras espécies animais, é necessário localizar e descrever os antecedentes evolutivos, como capacidades mentais, que aparecem de modo distinto nos seres humanos. É necessário considerar que a pré-história da humanidade pode ter conferido mutações entre as espécies e forneceram vantagens cerebrais específicas para a espécie humana. Os estudos acerca do homo sapiens e da seleção das espécies são contundentes para a compreensão da inteligência humana.
  • Terceira assertiva: interpretar se uma dada inteligência se manifesta com processamentos de informação que atendam a um sistema neural específico. A partir de processos de interpretação do funcionamento da mente demonstrados em comportamentos humanos, é possível observar e descrever atitudes que são tomadas e que desencadeiam uma série de outras atitudes, cujo processo de informação põe em funcionamento um sistema central de operações programadas, resultantes de uma dada aprendizagem. Como assertiva para identificar uma inteligência, é preciso identificar capacidades que lhes sejam específicas ou centrais que, supomos, funcionarem como esquemas neurais específicos.
  • Quarta assertiva: interpretar o sistema simbólico que uma dada inteligência especificamente incorpora. Considerando que o laço de união entre os seres humanos ao mundo é a linguagem, é preciso identificar o sistema de símbolos que representa a valorização e a contínua manifestação de uma determinada inteligência no mundo social. Linguagem matemática, desenhos, letras e fonemas constituem símbolos tantos sociais quanto individuais (subjetivos) que unem o humano ao mundo, o qual motivam o significado de cada símbolo.

Quinta assertiva: interpretar uma história do desenvolvimento de uma inteligência que seja identificável na potencialidade de qualquer ser humano. É necessário interpretar e descrever a história de uma dada inteligência que represente aspectos comuns das fases de desenvolvimento de qualquer humano, focalizando situações onde essa inteligência ocupe um papel central numa perspectiva transcultural, considerando que uma inteligência pode manifestar-se em sociedades que exibam culturas, papéis, situações e sistemas de valores muito diferentes. É preciso provar que é possível identificar indícios universais de que indivíduo, que desenvolve uma dada inteligência, passa por níveis de competência mais elevados, tanto em indivíduos com talento incomum (prodigiosidade ou criatividade), quanto em outros com uma formação direcionada por processos educativos projetados.

  • Sexta assertiva: observar em prodígios, idiots savants e outros indivíduos excepcionais, se uma dada inteligência se manifesta precocemente, ou se é poupada de desempenhos medíocres ou retardados. Essas situações, de observação e descrição de uma determinada inteligência, podem estar ligadas a condições de desenvolvimento genético.
  • Sétima assertiva: interpretar estudos experimentais que mostrem formas específicas de identificação de uma inteligência. Com a interpretação de estudos empíricos, é possível estudar detalhes do processamento de informações de uma dada inteligência a partir de tarefas que mostrem formas de memória, atenção e percepção que possam ser estimuladas. Os testes experimentais, que não são objetivamente psicométricos porque envolvem atitudes e reações comportamentais subjetivas, podem fornecer apoio convincente para o entendimento de que determinadas capacidades e competências manifestadas são reflexos de uma dada inteligência.
  • Oitava assertiva: interpretar estudos psicométricos que testem formas específicas de manifestação de uma inteligência. Os resultados de testes de QI podem servir como fonte de informações que mostre indícios relevantes para a identificação de uma inteligência, principalmente uma capacidade que não esteja sendo objetivamente testada.

Esses oito critérios podem servir como parâmetros para a interpretação e delimitação do conceito de uma inteligência. É a partir deles que Gardner descreve as onze inteligências que podem ser experimentadas a partir do desenvolvimento do potencial biopsicológico da mente humana.

 

6.2. As inteligências que sabemos

Certamente, as inteligências que descrevemos a seguir, são formulações conceituais propostas por Gardner que atendem aos critérios indicados na seção anterior, mas não de maneira completa. Algumas delas podem ser observadas a partir das disposições biológicas do indivíduo, especificamente, no que se refere às capacidades perceptivas que são dispostas no cérebro. Elas são justificadas dentro de condições neurais e culturais, mas outras só podem ser explicadas, ainda, a partir de elementos culturais e do que valorizamos socialmente.

A partir das pesquisas de Gardner, a inteligência representa a capacidade do humano de criar a partir do que aprendeu culturalmente e do que desenvolveu em seu cérebro. Então, o que significa o potencial múltiplo da inteligência humana? Essa capacidade de criar é múltipla porque pode revelar diferentes habilidades intelectuais ou competências cognitivas. A inteligência é um potencial múltiplo porque representa a potência biológica e cultural que pode se multiplicar, dando vez ao surgimento de outras habilidades e competências. Isso é comum a qualquer indivíduo. Como esse potencial pode desenvolver diferentes inteligências?

O segredo está nos processos educativos que os seres humanos vivenciam, na formação moral e na orientação para a vida. Então, a inteligência é um potencial múltiplo porque pode se fazer e refazer culturalmente, e revelar-se de multiplas formas.

Gardner pode identificar quais inteligências?

 

6.2.1. A inteligência lingüística

É um potencial que revela a capacidade do indivíduo de aprender noções dos códigos lingüísticos, guardá-los na memória e aplicá-los criativamente.Traduz o valor da competência de escrever, interpretar e aplicar palavras e frases em situações de comunicação. Essa inteligência está relacionada às oportunidades que o indivíduo tem de vivenciar aprendizagens sobre a linguagem.

A inteligência lingüística se revela no domínio da palavra, tanto representada por códigos escritos marcados em papéis e pedras, quanto na expressão oral da fala. É um tipo de inteligência que se desenvolve nas interações iniciais da vida do indivíduo, com a aprendizagem da linguagem. Floresce na infância com as primeiras representações mentais e com as primeiras expressões comunicativas.

Assim como acontece a aprendizagem motora, a aprendizagem que possibilita o desenvolvimento da linguagem ocorre comumente "com crianças de todas as culturas, mesmo crianças surdas aprendem e criam códigos comunicativos" (Gardner, 1995, p. 25). A inteligência lingüística é um potencial que não depende de nenhum órgão sensorial especificamente, depende da complexidade de como é disposta no cérebro e da forma como interagimos com o ambiente natural e social.

 

6.2.2. Inteligência matemática

É um tipo de inteligência que se revela na capacidade mental do humano de guardar, na sua memória, informações de representações de quantidade e de aplicar essas informações no cotidiano, resolvendo problemas. A inteligência matemática é um potencial que revela a capacidade do indivíduo de criar soluções factíveis, com base em representações numéricas. Essas "soluções são rapidamente formuladas pela mente e apresentam coerência antes mesmo de serem representadas materialmente" (Gardner, 1995, p. 25). Isso quer dizer que o indivíduo resolve o problema sem necessitar de contato material, ele reflete e formula a solução representando-a numericamente em sua mente, depois que já alcançou a resposta é que ele registra isso materialmente.

Como exemplo de revelação desse tipo de inteligência, basta observarmos diferentes idiots savants que, mesmo acometidos de deficiência em alguma área cerebral, podem executar cálculos extraordinários, desde que o dano não seja em regiões importantes para o desenvolvimento de tal inteligência.

 

6.2.3. Inteligência musical

Trata-se de um potencial que revela a capacidade do indivíduo de aprender sons e ritmos e de interpretá-los, concebendo novos contornos melódicos com arranjos musicais. Há evidências de que "certas áreas do hemisfério direito do cérebro são ativadas no desempenho da percepção e da produção de músicas" (Gardner, 1995, p. 23). É como se o indivíduo tivesse "som na cabeça" (Gardner, 1994, p. 75), como se o seu córtex cerebral tivesse uma superfície musical. Quer dizer, "em algum lugar perto da consciência, o indivíduo estaria continuamente detectando sons, ritmos e padrões musicais" (ibidem), adquirindo informações auditivas e criando a partir delas.

Nesse sentido, a inteligência musical se revela como o potencial do indivíduo para atribuir significados a sons, representá-los e elaborar conhecimentos a partir deles. A criação da música se mostra como uma atividade cultural denominada de composição. "Imagens musicais" (ibidem) são incorporadas, constituídas de emoções e sentimentos. A música é capaz de atingir a sensibilidade de qualquer ouvinte e gerar uma comunicação sensível. Isso significa que a inteligência musical desenvolve-se numa interação ambiental (natural e social) que atinge as emoções, tanto do indivíduo que compõe ou executa a música, quanto de qualquer ser vivo que a escuta.

Quanto à faceta biológica dessa inteligência, foram encontradas evidências de que é no "hemisfério direito, nos lóbulos frontal e temporal, que se localizam redes neurais responsáveis pelo desenvolvimento da potencialidade musical" (Gardner, 1995, p. 92).

 

6.2.4. Inteligência espacial

É uma inteligência que se traduz na percepção dos espaços. O indivíduo é capaz de executar modificações sobre percepções iniciais de espaço, recriando aspectos, mesmo na ausência do contato material. Essa inteligência permite que indivíduos desenhem, mapeiem e visualizem objetos em várias dimensões e representem imagens internas. Jogar xadrez, por exemplo, requer a visualização de ângulos de jogada que o sujeito projeta, ao movimentar as peças com a imaginação antes de cada lance.

Danos em determinadas regiões dos hemisférios direito podem causar "prejuízos na capacidade do indivíduo de se deslocar por espaços que já tenha conhecido, de reconhecer rostos ou cenas, e de observar detalhes pequenos" (Gardner, 1995, p. 26).

 

6.2.5. Inteligência corporal

Essa inteligência, que se revela na capacidade do indivíduo de usar o próprio corpo com habilidades que se expressam nos movimentos. Trata-se de uma competência responsável pelo controle dos movimentos corporais, criando representações possíveis de serem executadas pelo corpo, em espaços e situações diversas. Eis alguns exemplos: o uso do corpo para expressar emoção (dança e teatro); a prática de jogar um esporte; a invenção de produtos para usar no corpo (roupas e sapatos); e o discernimento dos movimentos motores que servem para escalar uma montanha. Estudos mostram que "essa inteligência está localizada no córtex motor do cérebro, com cada hemisfério controlador dos movimentos no lado contra-lateral" (Gardner, 1995, p. 23).

 

6.2.6. Inteligência intrapessoal

É uma inteligência que revela aspectos introspectivos de reflexão e autocompreensão manifestados na interpretação de sentimentos e emoções, relacionando-se a linguagens que servem de base para entender e executar comportamentos. Um indivíduo que desenvolveu essa inteligência revela, em seus comportamentos, o interesse de conhecer a si mesmo e de aprender com seus erros a elaborar novos comportamentos úteis ao grupo social com o qual se relaciona. Ele "possui um modelo viável e efetivo de si mesmo" (Gardner, 1995, p. 28).

A inteligência intrapessoal, como qualquer outra, não se revela sozinha, mesmo considerando que haja deficiência em alguma área cerebral. Assim, para constatá-la, é necessário examinar sua expressividade a partir da linguagem, da música ou de outra forma de expressão que torne possível a observação de sua manifestação. Quanto aos aspectos biológicos, "um dano na região dos lobos frontais provavelmente produz irritabilidade ou euforia, ao passo que um dano nas regiões mais altas produzirá indiferença, desatenção, lentidão e apatia - um tipo de depressão" (Gardner, 1995, p. 25). O autismo e a esquizofrenia exemplificam casos de indivíduos com a inteligência intrapessoal prejudicada.

 

6.2.7. Inteligência interpessoal

É um potencial que revela a capacidade humana de se comunicar, de observar e fazer distinções entre indivíduos quanto às necessidades, desejos e escolhas. Essa é uma inteligência que se manifesta com aprendizagens que envolvem sentimentos de colaboração e interação. Os estudos sobre o cérebro sugerem que "os lobos frontais desempenhamum papel importante no conhecimento interpesssoal. Um dano nessa área pode provocar mudanças na personalidade, como por exemplo, a doença de Pick, uma demência pré-senil, que tem como conseqüência, dentre outras, uma rápida perda das boas-maneiras sociais" (ibidem).

Culturalmente, a inteligência interpessoal é desenvolvida nas relações maternas, na escola e entre amigos e é bastante valorizada nas relações sociais que requerem criatividade para interagir com cooperação, liderança e organização grupal.

 

6.2.8. Inteligência naturalista

Trata-se de um potencial da inteligência que é demonstrado em comportamentos criativos, que associam saberes adquiridos no cotidiano do senso comum a conhecimentos adquiridos com métodos científicos que sejam relacionados, não só à vida social, mas também, ao ambiente natural. A inteligência naturalista aplica informações sobre as condições biológicas da natureza na compreensão da vida no mundo amplo. Ela é compreensível quando reconhecemos que, "na história da evolução das espécies, a sobrevivência de um organismo depende da habilidade de distinguir entre espécies semelhantes, evitando as predadoras e investigando as que podem servir de presa e brinquedo" (Gardner, 2000, p. 66).

O potencial naturalista é valorizado culturalmente, tanto no senso comum, quanto na esfera da ciência. Por exemplo, assim como o indivíduo que vive em ambientes rurais lida com situações de agricultura, baseado em informações que são transmitidas nas relações do cotidiano e age criativamente junto à natureza, também, o cientista que decodifica o DNA lida com informações que tendem a repercutir na natureza, inclusive no modo como o senso comum lida com a agricultura, como no caso da fabricação de alimentos transgênicos. Ambos, o cientista e o agricultor, desenvolvem a inteligência naturalista e aprendem a lidar com elementos que implicam na relação humana com a natureza.

6.2.9. Inteligência espiritual

Essa inteligência é demonstrada como a capacidade do indivíduo de compreender fenômenos que não são pura matéria ou física, mas que constituem abstrações que são valorizadas em diferentes sociedades. A inteligência espiritual revela a competência do indivíduo para lidar com informações que não são adquiridas em relações materiais, mas constituem mundos sobrenaturais e abstratos: "o cosmos que se estende para além do que podemos perceber diretamente, com o mistério de nossa própria existência e com experiências de vida e de morte que transcendem o que lidamos rotineiramente" (Gardner, 2000, p. 71).

Nessa perspectiva, a inteligência lida com a aprendizagem contínua de significados que, não só propiciam a compreensão do que é imaterial, mas proporcionam o alcance de estados de compreensão da existência individual, que se configuram como estados psicológicos incomuns, de sensações extras (fisiológicas e cerebrais). Mas, essa capacidade espiritual pode se revelar a partir de estimulantes químicos como drogas alucinógenas ou por experiências sensoriais como ouvir música, nadar num rio, fazer sexo, amar, parir um filho e subir uma montanha.

Certamente, a inteligência espiritual é a capacidade de desenvolver estados mentais que se encontram, singularmente, com "verdades às quais apenas quem seguiu um determinado caminho pode ter acesso" (Gardner, 2000, p. 74).

 

6.2.10. Inteligência existencial

Essa inteligência surge da capacidade humana de "se situar em relação aos limites extremos do mundo como o infinito e o infinitesimal" (Gardner, 2000, p. 78). Esse "situar" ocorre em relação à condição humana de existir e representar o mundo com significados sobre a vida, a morte, o destino do mundo, o porquê do amor e o significado da felicidade. É um tipo de inteligência que lida com informações sobre a condição humana, criando conhecimentos que implicam na orientação da vida social. Indivíduos que desenvolvem esse tipo de inteligência são atuantes em sistemas filosóficos, científicos e religiosos; lidam com a elaboração de princípios que orientam sociedades; buscam desconstruir paradigmas com a elaboração de novas noções que validem os acontecimentos sociais, como por exemplo, a instituição de direitos. Assim "como a linguagem, a capacidade de pensar criativamente a própria existência é um traço distintivo dos seres humanos, um domínio que nos distingue das outras espécies" (Gardner, 2000, p. 81).

 

6.2.11. Inteligência moral

Explicitar uma inteligência moral requer um estudo aprofundado na esfera da moralidade que inclua uma investigação sobre "personalidade, individualidade, desejo e sobre a realização mais elevada da natureza humana" (Gardner, 2000, p. 99). Mas, isso não quer dizer que não é possível elaborar uma noção de inteligência moral partindo das disposições biológicas e da condição social que determina nossa existência. Pensar numa inteligência moral se torna aceitável quando passamos a interpretar que o sentimento de justiça direciona decisões, aplicação de leis e reconstroem modos de convivência. É possível constatar, por exemplo, que ao longo de nossa evolução, lidamos com a moral como qualidade essencial da vida humana. Refletimos e elaboramos conhecimentos tendencialmente preocupados com o que é "próprio e impróprio, certo ou errado, justo ou injusto" (Gardner, 2000, p. 95). Elaboramos noções de direito e normalidade social e condenamos os indivíduos que não se comportam conforme princípios, leis e máximas que condicionam uma sociedade.

Desde criança, já tendemos a desenvolver sensos morais e aprendemos a aplicar informações elementares que possam justificar nossa existência e implicar na vida adulta. Aprendemos a importância de perceber a sociedade, de contextualizá-la e de exercitar relações colaborativas que nos conduzam ao alcance da "compreensão do verdadeiro, do belo e do bom" (Gardner, 1999, p. 300) que constitui a vida. É possível constatar que "aos dois anos, a maioria das crianças já desenvolveu alguma noção de certo e errado, e durante a infância, esse senso moral percorre uma trajetória de desenvolvimento característica" (Gardner, 2000, p. 92). O comportamento criativo, que se revela com a inteligência moral, surge do potencial do indivíduo "de ir além de abordagens convencionais para a criação de novas formas ou novos processos que regulem as interações humanas" (Gardner, 2000, p. 91).

 

7. À guisa de uma (in)conclusão

O estudo que até agora desenvolvemos nos leva a concluir, concordando com o autor, que nenhuma dessas inteligências se desenvolve de maneira independente das demais. Pelo contrário, o potencial da inteligência humana é múltiplo porque se propaga entre diferentes inteligências e se desenvolve a partir da flexibilidade do sistema nervoso para gerir aprendizagens a partir de interações ambientais com a sociedade e a natureza. Talvez, seja possível falarmos de outras possíveis inteligências ou do desdobramento de um leque de inteligências.Os indícios biológicos e culturais, como valores e papéis sociais, nos levam a interpretar que essas inteligências são interdependentes, e que é possível que cada ser humano disponha da manifestação mais marcante de uma, duas ou três... como conseqüência de suas interações com o ambiente social e natural.

Assim, entendemos que os dispositivos multimidiáticos para fins educativos não podem prescindir de uma engenharia cognitiva que considere a possibilidade de incorporar o conceito de potencial múltiplo da inteligência. Os processos interativos não poderão ser pensados e implementados sem levar em conta as especificidades culturais. Não poderão ser pacotes universais produzidos a partir de uma concepção universal do indivíduo sem articular a possibilidade do desenvolvimento do potencial de aprendizagem dos aprendentes a seus contextos culturais.

Consideramos que a atividade cognitiva preenche diversas funções para os indivíduos: conhecer as informações veiculadas, focalizar idéias relevantes para seu contexto de vida, motivar para novas aprendizagens e revelar inteligências. A cognição, enquanto processo, é distribuída através dos objetos culturais, dos instrumentos de trabalho, dos currículos escolares, enfim, através de todos os tipos de artefatos de uma cultura dada. Cada pessoa desenvolve sua capacidade cognitiva através de processos simbólicos que lhe são próprios.

Assim, os fundamentos da arquitetura de um software de aprendizagem multimídia deverão comportar um equilíbrio de possibilidades de desenvolvimento de múltiplas aprendizagens. Um dispositivo pedagógico multimidiático deve oportunizar ao sujeito, no processo interativo, um favorecimento de construção de representações pertinentes e construção de diferentes significações. Deverá ser concebido de maneira que passe da possibilidade de simples aquisição de conhecimentos, bem como, toque as esferas de atitudes e comportamentos importantes para viver em uma sociedade em permanente evolução.

Os desdobramentos dessa pesquisa favorecem um diálogo interdisciplinar entre Engenheiros de Softwares, Pedagogos, Sociólogos e Programadores no momento de produção de arquiteturas de plataformas e softwares no âmbito do projeto, "WEB e Televisão Digital Interativa - Aplicações em Educação" acerca da inteligência humana no sentido de favorecer a construção de dispositivos mais voltados para um processo de aprendizagem aberto e multifacetado. Resultados de pesquisas neste domínio confirmam largamente que muitos softwares à moda do ensino tradicional, como tutoriais, não aportam benefícios no sentido de ampliação de competências múltiplas.

 

8. Referências Bibliográficas

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Lent, R. (2004). Cem bilhões de neurônios: conceitos fundamentais de neurociência. São Paulo: Atheneu.         [ Links ]

 

Endereço para Correspondência

E.G.G. Brennand é professora e pesquisadora dos cursos de mestrado e doutorado em educação da Universidade Federal da Paraíba (UFP) na área de concentração de Comunicação, Cultura e Cognição. Atualmente realiza seu pós-doutoramento em Comunicação e Cognição na Universidade Católica de Louvain - UCl, Bélgica; E-mail para correspondência: ebrenna2@uol.com.br.
G.C. Vasconcelos (Mestre em Educação - UFP) é professora e pesquisadora do programa de pós-graduação do Centro Universitário de João Pessoa na área de concentração de Educação e Cognição. E-mail para correspondência: giuliana.cv@terra.com.br.

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