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Ciências & Cognição
On-line version ISSN 1806-5821
Ciênc. cogn. vol.8 Rio de Janeiro Aug. 2006
Artigo Científico
Da produção de sentido ao gerenciamento de informações: uma análise das implicações das neurociências e biotecnologias sobre a subjetividade
From the meaning construction to the information management: understanding some effects of the neurosciences and biotechnologies over subjectivity
César Pessoa PimentelI; Fernanda Bruno I, II, III
IPrograma de Estudos Interdisciplinares de Comunicação e Ecologia Social (EICOS), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Rio de Janiero, Brasil;
IIPrograma de pós-graduação da Escola de comunicação;
IIIInstituto de Psicologia (IP), UFRJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
Resumo
O presente artigo aborda a vinculação contemporânea entre vida e informação no campo das biotecnologias e neurociências, explorando suas implicações do ponto de vista da subjetividade. Nesse domínio, tratamos, mais especificamente, do papel do pensamento para o governo de si. Partindo da arqueologia foucaultiana, aponta-se a articulação entre vida e linguagem no âmbito das ciências humanas como eixo fundamental no qual o pensamento assume função ético-política. Em seguida, observa-se que os domínios referidos - vida e linguagem - sofreram notáveis transformações com o desenvolvimento da biologia molecular, biotecnologias e neurociências. A vida não seria apenas representável à consciência, mas está se tornando linguagem informacional, de modo que o pensamento passa de atividade interpretativa a gerenciadora de informação. Assim, cabe problematizar os novos contornos que o pensar assume na contemporaneidade, procurando entender os dispositivos de saber e poder presentes em dois âmbitos: os testes de pré-disposição genética e a hipótese do marcador somático. © Ciências & Cognição 2006; Vol. 08: xxx-xxx.
Palavras chave: informação; neurociências; biotecnologias; subjetividade.
Abstract
The following paper focus the contemporary link between biological rationalities and the subjectivity, understanding the historical changes that life and language pass since modernity till nowadays. To accomplish our goals, we take the conceptions used by Foucault in "The words and the Things", where the birth of the man in the modern knowledge is linked with three fields: work, language and life, with it being is temporally articulated. The last two fields- life and language - have suffered changes as molecular biology, biotechnologies and neurosciences have developed. Now, life seems to be not only something that the conscience must represent, but has turned into a kind of informational language. Such equivalence between life and information overwhelm the boundaries between nature and culture, giving new forms to the activity of thinking, that passes through a interpretative modality to a resolve other, that try to foresee the future. © Ciências & Cognição 2006; Vol. 08: xxx-xxx.
Keywords: information; neurosciences; biotechnologies; subjectivity.
A importância da informação em nossa cultura é um dos tópicos bastante ressaltados nas análises da sociedade contemporânea, abrangendo os mais diversos âmbitos, incluindo as compreensões e práticas sobre o corpo. Este último domínio será o objeto de discussão do presente artigo, que pretende explorar as implicações da equiparação neurocientífica e biotecnológica entre organismo e sistema de informações sobre a função do pensamento. Visto sob uma perspectiva genealógica1, o pensamento na modernidade ocupava uma função ético-política de monitoramento do que pode comprometer o controle de si, que tem uma de suas faces predominantes na sexualidade. Deste modo, pensar se vinculava a uma decifração do desejo, a um estar atento ao mundo interior. Se essa configuração não desapareceu, ela não ocupa mais posição central, na medida em que o campo das biotecnologias e neurociências está submetendo os perigos monitorados pelo pensamento a transformações. O cuidado com o corpo está sendo vinculado ao risco, e o pensamento, se ocupa de decidir.
As raízes dessas práticas se encontram, no entanto, já estabelecidas na modernidade, quando sujeito e corpo foram articulados pelas ciências humanas. Em "As Palavras e As coisas", Foucault (1987) argumenta que o homem, enquanto objeto científico, é uma das figuras mais recentes da história do saber ocidental. Seu nascimento no saber é uma derivação da constituição de ciências que historicizam seus objetos, a saber, a biologia, a economia política e a filologia. Ao ser colocado na posição de objeto de ciência é descoberto em sua aproximação com os animais, com as organizações sociais e com as estruturas lingüísticas. Deste modo, o sujeito perde a transparência a si mesmo, e a consciência é mergulhada em um campo extenso de determinações O indivíduo moderno é temporalizado segundo os diferentes ritmos das alteridades aos quais se conecta: as da vida, do trabalho e da linguagem.
O domínio da vida é especialmente importante para a modernidade, pois o avançar das pesquisas genealógicas apontou uma matriz política para as ciências humanas, a saber, técnicas que regulam o ser humano, tratando-o como conjunto populacional que nasce, morre, envelhece e reproduz (Foucault, 2005). As técnicas estatísticas, nascentes no século XVIII, ilustram um desses componentes que começam a produzir uma experiência do sujeito como ser biológico. Mais tarde, no século XIX, a compreensão do homem como espécie viva se conecta a uma compreensão individualizante de sua natureza, através da noção de sexualidade. O corpo sexualizado aparece como desafio para o controle do indivíduo sobre si próprio, na medida em que antecede à consciência que temos de nós mesmos e define nossa verdade mais profunda. Essa verdade tem na interpretação seu mecanismo privilegiado de iluminação: trata-se de decifrar o sentido que é produzido a partir do conflito psíquico, fazer das manifestações orgânicas, sinais de uma verdade. Portanto, a experiência do sujeito na modernidade pode ser entendida a partir da articulação entre vida e linguagem realizada em torno da categoria de produção de sentido, que sofre agora deslocamentos através do surgimento de concepções que equiparam o corpo a um sistema de informações. Em linhas gerais, nossa hipótese sustenta que estamos vivendo a passagem de um pensamento interpretativo, atento a uma verdade que, ainda oculta, permanecia aberta e polissêmica, para um pensamento que gerencia informações tendo em vista a adaptação do indivíduo a cenários futuros.
Considerando tanto o sujeito quanto o pensamento experiências históricas, iremos acompanhar suas formatações, contrastando a experiência moderna com a contemporânea. No primeiro registro histórico, apreciaremos a constituição da subjetividade no campo dos cuidados com a sexualidade, para em seguida, tratar desta constituição no âmbito dos testes de pré-disposição genética e da hipótese neuro-científica do marcador somático.
Vida e produção de sentido
A experiência moderna faz do corpo uma referência fundamental para a subjetividade. Foucault (1987) nos ajuda a compreendê-la, ao distinguir entre a noção de finitude que impera no moderno daquela existente no saber clássico. Esta última alude a uma grandeza infinita, a qual o ser humano se encontra submetido: trata-se de uma concepção negativa da finitude, pois não detém seus próprios direitos, sendo definida em relação a uma realidade superior. A finitude humana era, sobretudo, um obstáculo:
"Para o pensamento do século XVII e XVIII, era sua finitude que constrangia o homem a viver uma existência animal, a trabalhar com o suor de seu rosto, a pensar com palavras opacas." (Foucault, 1987: 332)
É somente com o saber moderno que essa relação de submissão se desfaz, liberando-lhe um espaço próprio. Assim, o tempo que constrange os homens a existir historicamente passa a ser a dimensão privilegiada a partir do qual o saber elabora suas teorias. Surgem disciplinas que buscam explicar seus objetos, situando-os no tempo histórico, ou seja, buscando uma origem material para estes. Tal é o caso da economia política, a biologia, e a filologia, disciplinas inaugurais de um estilo histórico de reflexão, no qual o tempo não é apenas um elemento contingente, mas fundamental. Nelas se sustenta um questionamento sobre o indivíduo finito; pois ainda que não sejam propriamente ciências humanas, tratam de questões que requerem o homem sob a forma de ser condicionado pela divisão de classes, pela seleção natural e pela estrutura da linguagem, implicando vida, corpo e existência humana em um nó indissociável.
Mas isto se evidenciará mais profundamente nas recém-chegadas ciências humanas. Tomemos como exemplo dois campos, cujas concepções acerca do papel da natureza e da cultura diferem substancialmente, como a psicofísica e a psicanálise. Apesar de suas evidentes divergências, ambas reconhecem que a existência humana não pode ser referida exclusivamente a uma consciência de si apartada, respectivamente, dos circuitos perceptivos/ neurológicos e da sexualidade. Portanto, ambas examinam a consciência segundo condicionamentos de ordem corporal. Generalizando, chegamos a conclusão que o pensar moderno é enraizado no corpo, na vida, no orgânico.
Se essa determinação é um fato, este, no entanto, não é irrevogável, de modo que a consciência pode se apropriar daquilo que a condiciona e ampliar o grau de liberdade da ação. Neste interstício, se evidencia o papel ético-político da consciência e da reflexão. O pensamento não é mais concebido como atividade representativa, tampouco instrumental, de forma que pensar, na experiência moderna, já é agir. A técnica psicanalítica ilustra com acuidade a inseparabilidade entre pensar e ação sobre si (Bruno, 1997). A noção de verdade aí em jogo aponta para a liberação, ainda que parcial, do sujeito em relação aos constrangimentos impostos pelas vicissitudes de sua sexualidade. Tal verdade provém do conflito entre instâncias psíquicas, no qual o corpo como fonte da sexualidade limita o conhecimento de si. Daí a importância da noção de conflito e de sintoma para a compreensão do sujeito, pois uma das características fundamentais do humano na modernidade é uma tensão entre um saber de si e o um não saber que o constitui. O sintoma se forma pelo fato de haver conflito psíquico: embora possa se manifestar fisicamente, como nas paralisias histéricas, trata-se se um fenômeno de sentido, pois os mecanismos que presidem sua formação envolvem processos semelhantes aos da linguagem. É o que destacam Laplanche & Pontalis (1970: 624) no pensamento freudiano:
"Freud deduz da particularidade das imagens e dos sintomas uma espécie de 'linguagem fundamental' universal."
E, assim, a interpretação do sintoma deve buscar seu sentido no conflito, refazendo o caminho pelo qual foi construído.
Generalizando, podemos dizer que a experiência moderna do sujeito gravita em torno de um tipo particular de articulação entre vida e linguagem, expresso pela noção de produção de sentido. Em outros termos, a singularidade do ser humano é concebida pela capacidade de configurar e reconfigurar a realidade doada por sua imersão no campo da linguagem. Este campo funciona pela polissemia, legando ao trabalho interpretativo uma gama infinita de possibilidades. Disto deriva que a história individual não é simplesmente uma coleção de fatos, mas uma narração possível que confere contornos próprios à experiência de si. Podemos dizer que há sujeito, porque os jogos de sentido são múltiplos e exigem a remissão a um outro capaz de certas delimitações semânticas. Ao contrário da informação, a produção de sentido faz apelo a uma incompletude do sentido que pode ser decifrado ilimitadamente.
Vida e gerenciamento de informações
Vida e linguagem conhecem uma outra espécie de aproximação provocada pelo prestígio alcançado pela noção de informação nos mais diversos âmbitos da cultura contemporânea. Esta categoria, no caso das biociências e biotecnologias, opera a conversão da vida em código objetivo, misturando natureza e tecnologia dentro de um funcionamento bioquímico, ao invés de polissêmico e suposto a técnicas hermenêuticas. Podemos situar o nascimento dessa convergência na compreensão dos mecanismos da hereditariedade efetuada por Crick e Watson no século XX. Por trás desta compreensão, temos uma terminologia que migra da descrição das atividades comunicativas entre seres humanos para o campo da biologia (Dupuy, 1993). A informação no caso da biologia molecular corresponde à ordem dos radicais nucléicos - uma espécie de texto - que, através de um complexo trabalho de tradução, sintetiza proteínas.
No entanto, tal texto não faz qualquer demanda por técnicas hermenêuticas. Quando a vida aparecia como determinação irrevogável para a consciência, a linguagem funcionava como uma forma de representar, ampliando a transparência do sujeito a si próprio. No entanto, a migração das idéias cibernéticas e da teoria da comunicação para a biologia funda um horizonte epistemológico, onde as distâncias entre vida e linguagem se estreitam. Quando estas se faziam ainda presentes, aparecia o que é próprio da subjetividade moderna: uma interioridade, que, por princípio, se furta à observação. Se havia texto no corpo moderno - como nos casos diagnosticados pela psicanálise de histeria conversiva-, se tratava sempre de efeitos de sentido, possibilitados pela disparidade fundamental entre a consciência e o impensado. Uma das diferenças entre o corpo moderno e o corpo contemporâneo é a natureza desse texto e de como o sentido é trabalhado. Se há sentido no corpo informacional, ele está relacionado a mecanismos bioquímicos que não pressupõem intencionalidade e, por conseguinte, qualquer estrato profundo do psiquismo (Bruno e Pimental, 2005). Para modificá-lo não se faz mais necessário o trabalho hermenêutico, já que a intervenção sobre o código genético pode ser feita diretamente através de tecnologias como a engenharia genética ou a terapia gênica. Trata-se, portanto, de um texto destituído de sentido oculto, integralmente visível e desdobrável na exterioridade. Neste aspecto, o corpo biotecnológico é um corpo que se abre e se torna informação, quantificação e distribuição de dados.
Mas as biotecnologias não são o único domínio em que a sintonia entre vida e informação está se tornando visível. Podemos igualmente explorá-la no campo das neurociências, mais particularmente na hipótese de que a cognição nos âmbitos pessoais e sociais necessita do corpo para ser eficaz. Tal hipótese é formulada pelo neurocientista Antonio Damásio (1998) e se encarna na noção de marcador somático, que considera as emoções promotoras de mudanças na paisagem corporal, capazes, assim, de fornecer indícios para que o indivíduo opte entre um conjunto de hipóteses. O termo parte de uma equiparação entre afetos e comunicação: as emoções são entendidas como fonte de informação que permitem ações rápidas. Para o seu melhor entendimento, deve-se levar em conta que o raciocínio é considerado pelo autor um processo voltado para a ação futura, atingindo seus objetivos através de planejamentos:
"o raciocínio e a decisão ocupam-se desse processo esgotante e incessante de manufatura de planos." (Damásio, 1998: 197)
Se a natureza do raciocínio é o planejamento, seu objetivo final é a decisão. Decidir tem por base três elementos: o conhecimento da situação; o conhecimento de um conjunto de alternativas de ação, e, o conhecimento das conseqüências dessas ações no futuro. Baseando-se em suas experiências com pacientes com lesões pré-frontais que apresentavam dificuldade para decidir acerca de atividades cotidianas, Damásio postula a necessidade de um estreitamento das hipóteses utilizadas em decisões sociais e pessoais. O fator responsável por isso seria exatamente a emoção2. Considerando-a peça essencial à regulação biológica, o autor infere que o aparato cerebral geralmente associado aos processos elevados de raciocínio (neo-córtex), foi construído evolutivamente a partir, ou seja, com o auxílio, das estruturas límbicas associadas às emoções mais básicas.
Sua tese, em suma, postula que se deve sempre considerar as conseqüências de uma ação possível, e nesse sentido são formuladas hipóteses expressas, sobretudo, através de cenários visuais, que podem ser os mais diversos. O que impede a proliferação indefinida de hipóteses é, geralmente, o desconforto originado no corpo, que serve como um sinal de alerta paras as conseqüências negativas de algumas dessas hipóteses. Daí a importância do corpo para o pensamento, pois este retém, nos mais variados pontos de sua extensão, uma sabedoria inata depositada pela seleção natural, mas também adquirida através da experiência individual. Assim, o pensamento é visto como uma atividade em rede e essa capilaridade serve ao princípio da eficácia, pois possibilita uma acumulação ampla e uma recuperação rápida das informações.
O corpo a que temos acesso através dos testes pré-disposição genética impõe o mesmo desafio: optar entre um conjunto de hipóteses, entre probabilidades, tendências. Pensar significa decidir o que fazer de si: tornar-se responsável por uma parte considerável do destino do corpo ou desta não se responsabilizar. Atualmente, as pesquisas genômicas se inclinam para estudos multifatoriais, permitindo a análise genética dos riscos envolvidos em estados patológicos correntes como doenças cardíacas, acidentes vasculares cerebrais e diabetes (Keller, 2004). Importante ressaltar que, apesar do conhecimento dos fatores de risco, é precária a compreensão dos mecanismos que ligam efetivamente os genes ao desencadeamento desses estados Entretanto, isto não invalida que no âmbito das práticas cotidianas o monitoramento de nossa saúde seja hoje realizado primordialmente como um controle de riscos. E nesse sentido, as tecnologias de exame genético mais promissoras, tanto do ponto de vista do diagnóstico quanto da terapêutica, girem em torno da temática da suscetibilidade individual, ou seja, tratem das probabilidades de desenvolvimento de doenças com base no mapeamento das variações genéticas individuais, e não simplesmente em relação a perfis gerais de risco (Rose, 2001).
Risco e pensamento
É exatamente, a estipulação dos riscos que promove uma modificação sobre a função do pensamento. Se o corpo é considerado um texto a ser decodificado, sua natureza objetiva implica novas formas de monitorar ameaças ao controle de si. As técnicas que permitem visualizar a natureza genética, por exemplo, podem tornar a consciência contemporânea do orgânico sem o trabalho de elaboração do passado que singularizava o pensamento moderno. Nesse caso, é possível trazer ao olhar o que somos sem interpretar; trata-se literalmente de acessar a informação e utilizá-la: observando-se o diagnóstico, o corpo exposto, já se está diante do campo de decisões formulado. Deste modo, o tempo da elaboração, o perigo de se constituir em face do inconsciente diminui, senão se dilui, pois a linguagem não é mais um recurso para a consciência se emancipar, mas a própria objetividade em que o corpo se apresenta: como código para as biotecnologias, como alerta de perigo para a neurociência. Em relação a esta linguagem, trata-se de gerenciá-la, de escolher ou não a hipótese que favorece a sobrevivência individual.
Desse alinhamento entre vida e informação, podemos extrair duas importantes conclusões para o governo de si. Em primeiro lugar, o que era natural, foco de resistência à ampliação da cultura por desafiar a soberania do sujeito sobre si próprio muda de estatuto. Ao invés do corpo perturbar o autocontrole do indivíduo, as neurociências e biotecnologias apostam em seu papel colaborador. Podemos encontrar um indício dessa conversão, na forma com que Damásio aborda o problema da previsão do futuro em relação a patologias. O risco para a ordem social é transferido daqueles assolados pelas paixões, como os perversos, onanistas e histéricas para os indivíduos frios, ou que não antecipam o futuro: os psicopatas e os irresponsáveis 3. Como o corpo está se tornando um campo visível que favorece a cognição, a desconexão com este é que se torna o perigo primordial.
O corolário dessa fusão é o indivíduo ser convocado de forma muito mais intensa a se responsabilizar por si próprio. Acontece uma acentuação dos cuidados com a prevenção, antecipação e simulação de futuros, pois o corpo é quase integralmente um domínio a nossa disposição. A doença genética, que há algumas décadas era vista sob a perspectiva do fatalismo, passou a integrar o campo de nossas escolhas com o desenvolvimento das pesquisas genômicas dando subsídios para o desenvolvimento de testes de pré-disposição genética. Se não está facultada ainda sua eliminação, torna-se possível gerenciá-la, através de métodos como o aconselhamento genético (Novas e Rose, 2001). Podemos apontar a mesma tendência com relação ao sentimento, visto agora, em geral, como elemento facilitador dos processos cognitivos 4 Os métodos empregados para governar o corpo se alteram: ao invés de decifração, elaboração do passado, figuram a simulação, previsão, antecipação de cenários possíveis, ou seja, recursos que pressupõe um estoque de conhecimentos, que deve ser administrado.
Considerações finais
Para aprofundar o entendimento da função contemporânea do pensamento é interessante abordar a noção de risco. Historicamente, o termo tem seu aparecimento em cenário social marcado pelo aumento da capacidade técnica de interferir na ordem social e natural (Bauman, 1998). Quando, por exemplo, os danos sofridos pelo trabalhador entraram na ordem e cálculos da administração estatal, oferecia-se um aparato de seguridade social, e, em contra-partida, requisitava-se a responsabilidade do indivíduo pela ordem social. Temos assim, o cuidado e o controle da vida plenamente fundidos nas instituições características do Estado Nacional, tais como as políticas públicas de saúde e de segurança.
Cabe ressaltar que existem descontinuidades entre esse cenário inicial e o contemporâneo. Se, a princípio, o controle técnico sobre a vida se detinha em face de fenômenos que escapavam à intervenção humana, esse domínio se estendeu de tal forma que as regiões deixadas de fora são igualmente referidas às nossas ações, surgindo, o que Giddens (2000) denomina, riscos fabricados. Estes riscos, que marcam a contemporaneidade, são criados "pelo próprio impacto de nosso crescente conhecimento sobre o mundo" e, portanto, são da inteira responsabilidade humana (Giddens, 2000: 36). Assim, o risco contemporâneo estende a responsabilidade para âmbitos que eram antes considerados 'naturais' e por isso escapavam à capacidade de intervenção técnica. Além disso, o cenário político em que esses mecanismos são empregados é caracterizado pelo recuo da intervenção estatal e a concomitante delegação do controle dos riscos aos indivíduos (Rose, 2001).
Essas duas características do gerenciamento dos riscos contemporâneos5 - integração da natureza à cultura e aumento da responsabilidade dos indivíduos por si próprios - se entrecruzam nas concepções biotecnológicas e neuro-científicas do corpo. Se o corpo pôde ser visto como um prolongamento da natureza exterior em nossa humanidade, o aparato biotecnológico já o inclui na História. Por isso, cada vez mais a morte entra no campo das decisões humanas; mesmo que não necessariamente a burlemos através das técnicas de clonagem, o adoecer é todo ele integrado ao que podemos fazer de nós. E os métodos de domínio de nós mesmos referem-se privilegiadamente ao campo da gestão de riscos: previsão diagnóstica, antecipação do surgimento de doenças, mesmo daquelas que jamais virão a se desenvolver, encontrando-se unicamente no plano de possibilidade genética.
De forma semelhante, o entendimento das emoções como fonte de informação assinala o alargamento do campo de operacionalização das nossas porções naturais. Na hipótese do marcador somático, o corpo se oferta como fonte de informações para o pensamento: trata-se de um colaborador que:
"Faz convergir a atenção para o resultado negativo a que a ação pode conduzir e atua como um sinal de alarme automático que diz: atenção ao perigo decorrente de escolher a ação que terá esse resultado." (Rose, 2001: 205)
Daí o valor da emoção: possibilitar uma escolha eficaz de uma ação antecipada hipoteticamente, já que o significado do pensamento é referido ao gerenciamento de riscos: prever, construir cenários futuros de forma que nos adiantemos ao surgimento de problemas.
A promessa de transparência com a qual a iluminação da consciência acenava talvez agora possa ser cumprida, já que o corpo se dispõe ao pensar não mais como uma determinação, mas como um campo moldável pela cultura. No entanto, cabe notar que o pensamento não elabora mais estratos interiores, mas escolhe entre um determinado conjunto de informação previamente organizado, que é exterior e objetivo. Essa situação invoca um paradoxo para a subjetividade: se esse conjunto de dados, sobre o qual se detém o pensar, não se furta mais ao olhar e ao controle do indivíduo, nossa existência migra para exterioridade, recebendo a iluminação que não é mais a do sentido, mas a do gerenciamento de informações. O que há, então, é uma transparência sem fundo, pois prescinde dos jogos de oposições entre aparência e essência que agitaram a experiência moderna do sujeito, mas que ao mesmo tempo lhe concedeu a promessa de uma liberação futura. Nesse sentido o domínio político da subjetividade deve ser articulado ao espaço próprio de sua constituição, no qual se imbricam, mesclam e sobrepõe oposições com as quais estávamos habituados a pensá-la.
Referências Bibliográficas
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Notas
F. Bruno
E-mail para correspondencia: fgbruno@matrix.com.br.
(1) Genealogia refere-se aqui ao domínio de análise que busca delinear historicamente as diferentes práticas envolvidas na produção do sujeito. Foucault (1995) reconheceu três modalidades dessa pesquisa: como o sujeito aparece objetivado segundo práticas de saber, dividido segundo práticas de poder e problematizado eticamente, segundo técnicas de si.
(2) Importante notar que o autor diferencia emoções de sentimentos: emoções são mudanças na paisagem corporal que podem ou não ser notadas pelo indivíduo, quando estas são notadas elas entram no domínio do que Damásio (op. cit.) chama sentimentos. Embora não estejamos respeitando a diferença terminológica, cabe assinalar que o marcador somático está estreitamente ligado aos sentimentos.
(3) Cf. Damásio, (op. cit). O autor se refere aos psicopatas e jogadores compulsivos, como indivíduos que se desvinculam das conseqüências de suas ações, que são, portanto, míopes para o futuro.
(4) Cabe ressaltar que no entender de Damásio, os sentimentos não são sempre facilitadores dos processos cognitivos. O autor nota que estes podem também comprometer a sobrevivência individual, quando assumem a forma de paixões.
(5) Para uma melhor compreensão dessa diferença, cf. Castel (1981). Segundo o autor, na modernidade já se fazia uso de mecanismos de controle de riscos, embora as instituições se pautassem mais sobre a correção dos desvios presentes do que sobre a prevenção de irrupção de perigos. O autor, referindo-se à psiquiatria clássica, aponta dois motivos pelos quais os mecanismos de controle baseados na antecipação e na previsão, que caracterizam a gestão de riscos e que apareciam na noção de periculosidade, foram impedidos de se expandir. Em primeiro lugar as táticas usadas- encarceramento e esterelização - eram muito dispendiosas, do ponto de vista econômico, social e simbólico. Em segundo, os argumentos que sustentavam essas aplicações se mostraram demasiadamente frágeis.