Services on Demand
article
Indicators
Share
SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas
On-line version ISSN 1806-6976
SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.2 no.1 Ribeirão Preto Feb. 2006
ARTIGO ORIGINAL
Vínculos e redes sociais de indivíduos dependentes de substâncias psicoativas sob tratamento em CAPS AD
Vínculos y redes sociales de individuos dependientes de sustancias psicoactivas bajo tratamiento en un CAPS AD
Bonds and social networks among individuals dependent on psychoactive substances under treatment at a CAPS AD
Jacqueline de SouzaI; Luciane Prado KantorskiII; Fernanda Barreto MielkeIII
I Enfermeira graduada pela Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia da Universidade Federal de Pelotas. Mestranda do Programa de Enfermagem Psiquiátrica da EERP/USP.
II Profª. da Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia da Universidade Federal de Pelotas. Doutora em Enfermagem pela EERP/USP.
III Acadêmica da Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia da Universidade Federal de Pelotas. Bolsista de Iniciação Científica.
RESUMO
Trata-se de estudo qualitativo realizado com indivíduos dependentes de substâncias psicoativas com a finalidade de identificar redes sociais de apoio e vínculo desses sujeitos. O estudo foi desenvolvido a partir de grupos focais. Os resultados apontaram para um grave comprometimento da rede de suporte desses sujeitos e indicam necessidades que devem ser focadas com maior zelo nas intervenções que objetivam a reabilitação psicossocial desses indivíduos.
Palavras-chave: Redes sociais, Vínculos, Drogas.
RESUMEN
Se efectuó un estudio cualitativo con individuos dependientes de sustancias psicoactivas, con objeto de identificar redes sociales de apoyo y vínculo de esos sujetos. El estudio se desarrolló a partir de grupos focales. Los resultados señalaron un serio comprometimiento de la red de soporte de esos individuos e indicaron necesidades que deben ser enfocados con mayor devoción en las intervenciones que tienen por objeto la rehabilitación psicossocial de estos individuos.
Palabras clave: Redes sociales, Apoyo, Vínculos, Drogas.
ABSTRACT
This qualitative study aimed to identify social support networks among individuals dependent on psychoactive substances and to characterize the bonds that form these networks. The study was developed by means of focal groups. The results showed that these persons support networks are seriously compromised and indicated needs that should receive greater attention in the interventions aimed at the psychosocial rehabilitation of these individuals.
Keywords: Social networks, Support, Bonds, Drugs.
INTRODUÇÃO
Os adventos científicos e a rápida evolução tecnológica, voltados para um mundo cada vez mais globalizado, paradoxalmente tem contribuído para o isolamento social do homem que, mediante as novas demandas do mundo atual, busca novos modos de enfrentamento para as situações de estresse, insegurança e solidão.
Nossa sociedade, organizada nos moldes capitalistas, responsáveis pela crescente desigualdade social, também se configura no cenário de uma tendenciosa mudança de valores voltada para a competitividade, individualismo, estética e consumo. Em uma sociedade regida pelos imperativos do consumo, o uso das drogas é considerado a maximização de oportunidades de obtenção de prazer e a evasão de sofrimentos para indivíduos que buscam soluções que são meras tentativas de escape, apesar de tal atitude estar embutida pela faceta de contestação e/ou transgressão às normas vigentes(1).
Uma análise antropológica da sociedade ocidental pós-moderna(2) mostra que essa tem preconizado, nos últimos tempos, a maximização da vida, a exacerbação da sensualidade e a intensificação do prazer; e é nesse contexto que se enquadra o surgimento de drogas cada vez mais potentes e a complexidade do uso abusivo de substâncias psicoativas.
Considerando que esse fenômeno tem repercussões negativas na saúde (física e psíquica) e no âmbito social (família e comunidade), é fundamental a análise do contexto familiar e sociocultural, identificando os fatores de risco e de proteção para subsidiar ações efetivas de caráter preventivo ou de intervenção(3).
A importância da participação da família no tratamento do dependente de drogas é um paradigma estabelecido e citado por vários estudiosos(3-6) quando reforçam que, nos últimos anos, têm compartilhado de um pensamento ecológico no qual reconhecem que todos estão interligados e interconectados e, por conseguinte, a mudança em um indivíduo provoca reverberação em todo o sistema.
O contexto de recuperação é favorecido por um conjunto de apoios contextuais como família, grupos e redes de amigos(6). A definição de rede social pessoal é dada como a soma de todas as relações que um indivíduo percebe como significativas ou define como diferenciadas da massa anônima da sociedade(7). Ressalta-se a necessidade submersão na rede de relações do indivíduo, pois essas, em conjunto, dão forma ao verdadeiro corpo do fato da dependência à droga e remete necessariamente, aos vínculos do indivíduo afetado com sua família(8).
A Teoria do Vínculo(9) considera o indivíduo como resultante do interjogo entre indivíduo, objetos internos e externos em constante interação dialética, o vínculo, propriamente dito, consiste de estrutura dinâmica estabelecida na relação sujeito-objeto com características específicas que vão desde aqueles consideradas normais até as interpretadas como patológicas. Pontua ainda que as relações interpessoais de um grupo social estão baseadas num interjogo entre a assunção e adjudicação de vários papéis, isso é que permite a coerência e os vínculos no grupo. Assim, o vínculo é uma relação particular estabelecida entre o sujeito e um objeto, na qual o sujeito exerce uma função frente ao objeto e o objeto, por sua vez, exerce também determinada função frente ao sujeito. Existem vínculos individuais e vínculos grupais, e o conceito de papel pode ser estendido também aos grupos, pois, à medida que um papel é adjudicado ao outro e esse o recebe se estabelece o vínculo, a partir dessa concepção de que o estabelecimento dos vínculos se dá através do interjogo entre assunção e adjudicação de papéis, e considerando que a comunicação se estabelece no vínculo uma boa comunicação entre dois sujeitos é concebível a partir do momento em que ambos assumem o respectivo papel adjudicado pelo outro.
Assim, associando a Teoria do Vínculo com a prática sistêmica baseada no modelo de redes sociais, evidencia-se que o conjunto de vários vínculos significativos culmina na formação de uma rede que, através de seus diversos membros e respectivos vínculos, farão intersecção com outras redes, influenciando-as e sofrendo influência delas.
O conceito de rede é utilizado para diferentes realidades, porém, a idéia comum é a metáfora de pontos conectados por fios formando a imagem de uma teia(10). No entanto, entre as diversas significações de rede (network), pode-se considerar os conceitos de uma estrutura sem fronteiras, um sistema formado por elos, um sistema de apoio, enfim, um conjunto de participantes autônomos que unem idéias e recursos em torno de valores e interesses compartilhados(11).
Todo o indivíduo pertence a uma rede que é um subgrupo da sociedade global. As redes sociais são conjuntos de intercâmbios ou vínculos entre o indivíduo e as pessoas emocionalmente significativas para ele. Compreende aqueles com quem há interação regularmente e com quem se conversa ou se troca idéias e sinais que tornam os indivíduos reais, podendo envolver: família, amigos, vizinhos, colegas de trabalho, pessoas que pertencem ao mesmo círculo religioso, profissionais da saúde. Tais redes são fontes de recursos, informações e apoio emocional e caracterizam-se por possuir interações freqüentes, afeto positivo e apoio significativo(12).
Num estudo para o entendimento da epidemia do HIV, a partir de modelos dinâmicos e redes sociais, define-se rede como um conjunto de nós conectados, sendo que esses nós podem ser pessoas ou grupos; assim, rede social seria um conjunto de pessoas em uma população e suas respectivas conexões(13).
Os primeiros vínculos que se desenvolvem são os familiares e, com o passar do tempo, essa rede vai se expandindo através do desenvolvimento de novos vínculos na rua, na escola, no trabalho e em outros espaços. O tempo, os acontecimentos individuais ou coletivos, os espaços freqüentados, e as atitudes tomadas frente às diversas situações, fatalmente tendem a fortalecer, enfraquecer e/ou romper vínculos antigos que passam a exercer novas funções e conseqüentemente surge a necessidade de novos vínculos que suprirão as exigências emergentes das mudanças. Assim, as redes são sistemas dinâmicos, cujos vínculos precisam ser nutridos positivamente para a manutenção das funções positivas que exercem sobre o indivíduo.
A rede social media a comunicação entre o indivíduo e o sistema social, delimita o espaço de atuação do sujeito (território social) e exerce influências nas condutas de tal indivíduo, participando da construção de sua realidade e, portanto, facilitando ou inibindo seu desenvolvimento(12). Assim, de acordo com a característica positiva ou negativa do vínculo (vínculo saudável ou patológico, conforme Pichon-Riviére(9)), a rede social também pode promover a saúde do indivíduo ou funcionar como fonte promissora para comportamentos nocivos a ele.
Partindo do pressuposto que a construção da identidade está baseada nas interações com os outros, depreende-se que a rede social pessoal contribui para o próprio reconhecimento do indivíduo e desenvolvimento de sua auto-imagem(7).
Por serem fontes de apoio social, as redes sociais estão relacionadas diretamente à saúde física e mental do indivíduo; destarte, quanto mais diversificadas as relações e quanto mais contextos abrangerem, maiores e mais variados serão os recursos psicossociais dessa rede social. Portanto, tal sujeito estará menos vulnerável frente a uma situação de crise(12).
Conforme já evidenciado em estudo recente(10), a pobreza de relações sociais consiste num fator tão nocivo à saúde quanto o fumo ou a obesidade, por exemplo.
Faz-se perceptível, portanto, a importância da prática sistêmica baseada no princípio de redes sociais para intervenções efetivas junto aos portadores de sofrimento psíquico dentro da proposta de re-inserção social e resgate da cidadania, preconizada pelos princípios da Reforma Psiquiátrica, pois uma terapia focada no domínio sociocultural promove a criação, manutenção e fortalecimento das redes sociais. A análise da estrutura dessas redes tem importância relevante para orientação à reabilitação e tratamento das pessoas em sofrimento psíquico; as redes constituem-se em importantes objetos de intervenção, pois permitem a organização das experiências pessoais e grupais que, depois de estudadas, propiciarão modos de intervenções mais adequados aos diferentes contextos(7,12).
Cogita-se que todas as estratégias éticas que proporcionam maior conhecimento do sujeito que requer cuidados contribuem positivamente para intervenções terapêuticas mais abrangentes e efetivas. Portanto, a terapia de rede consiste em riquíssima contribuição para a prática da enfermagem na psiquiatria/saúde mental.
O termo empowerment diz respeito ao aumento da capacidade dos indivíduos se sentirem influentes nos processos que determinam suas vidas, assim, numa discussão sobre redes, apoio social e empowerment, destacam o saber e o poder que os pacientes adquirem quando organizados em comunidades e movimentos, e o quanto podem interferir tanto em suas próprias condições de saúde como no funcionamento dos serviços de saúde; num estudo sobre uma associação de pacientes portadores de HIV/AIDS - a partir dos conceitos de rede social, apoio social e empowerment concluiu-se que o fortalecimento dessa associação, enquanto rede contra o isolamento e até mesmo rejeição da família e amigos, proporcionou o acolhimento essencial para a retomada dos laços sociais. Tal estudo ressalta também que o sentimento de participar de uma comunidade, de se sentir importante e parte de alguma ação social foram fatores que promoveram a elevação da auto-estima e recuperação de algum sentido para continuarem vivendo(10).
Refletindo sobre esse estudo, pode-se visualizar que o ambiente de casa que os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) buscam construir, através de sua estrutura física e também de suas propostas de atividades, bem como a Associação dos Usuários do CAPS são fatores que favorecem o surgimento do sentimento de pertencer a uma comunidade que, outrora, foi perdido pelos usuários em decorrência do estigma de louco ou drogado/ viciado que tais sujeitos carregam por determinação da sociedade. Além disso, os novos espaços de intervenção sugeridos pela proposta de Reforma Psiquiátrica consistem em contextos que devem exercer a função, enquanto rede, de apoiar, promover saúde e proporcionar a criação de novos vínculos bem como propiciar a intersecção com outras redes sociais dentro da comunidade.
Assim, o fato de nomear a rede social, materializá-la, ou simplesmente falar sobre ela, consiste no primeiro passo para acessá-la com fins terapêuticos e que o conhecimento sistêmico dessa rede, através dos mapas, permite o planejamento de intervenções que podem ser efetivadas também pelo próprio indivíduo, objetivando ativar, desativar ou mobilizar as redes(7).
Corroborando com tais asserções, acredita-se que, ao estudar os vínculos - proporcionando aos indivíduos uma análise sobre os papéis desempenhados por eles - evocando suas histórias, conectando passado, presente e a vivência do sofrimento psíquico, entremeando anseios, motivações e expectativas emergentes, pode-se tecer uma rede na qual suas conexões norteiam para novas possibilidades, cujas lacunas da teia dispõem-se de modo promissor para construção de novas histórias e que sua trama, num conjunto, oportuniza novos caminhos, (talvez lentos, porém, progressivos) de reconstrução e esperança.
O presente estudo objetivou identificar as redes sociais e vínculos estabelecidos por sujeitos dependentes de substâncias psicoativas em tratamento num CAPS ad.
MATERIAIS E MÉTODOS
Trata-se de pesquisa qualitativa do tipo descritiva, desenvolvida num CAPS ad da Região Sul do Brasil. O estudo foi realizado com 6 usuários do referido serviço que concordaram em participar do estudo mediante o prévio consentimento livre e esclarecido. Os critérios para a seleção dos sujeitos foram: idade maior que 21 anos, vínculo com o serviço há pelo menos três meses, ser alfabetizado, não apresentar déficit cognitivo, concordar com a divulgação dos resultados. O projeto foi submetido à avaliação e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas; foram respeitados todos os aspectos éticos previstos pela Legislação e pelo Código de Ética dos Profissionais da Enfermagem.
A coleta dos dados se deu através de grupos focais. Foram realizadas três sessões grupais com os sujeitos do estudo; no primeiro encontro foi realizada a apresentação dos componentes do grupo e breve exposição de alguns conceitos principais. As discussões, nessa primeira sessão, foram focalizadas na temática vínculo/redes sociais.
O segundo encontro do grupo foi centrado na elaboração do ecomapa. O ecomapa é instrumento que permite desenhar a família e o indivíduo associados aos sistemas que fazem parte da vida familiar, permitindo a visualização ecológica/sistêmica, bem como as características das interações e intensidade dos vínculos; mostra também o sistema de suporte da família, as fontes de estresse e fusão e as fontes de cuidado, delineando os relacionamentos dos indivíduos em suas situações de vida(14). Ainda, no segundo encontro, cada sujeito fez a apresentação comentada do seu respectivo ecomapa.
No terceiro encontro, foi apresentada uma síntese dos encontros anteriores para a validação dos dados e foi realizada avaliação grupal sobre as contribuições dos encontros.
As discussões foram anotadas por um observador e somente o primeiro encontro foi gravado. No final de cada encontro as autoras anotavam em diário de campo a síntese do que havia ocorrido naquele grupo, registrando também suas observações, percepções e sentimentos sobre o processo grupal.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas(15) preconiza que a assistência a esses usuários deve ser oferecida em todos os níveis de atenção, privilegiando os cuidados em dispositivos como os Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (CAPS-ad), devendo também estar articulada ao Programa de Saúde da Família, Programa de Agentes Comunitários de Saúde, Programas de Redução de Danos e Rede Básica de Saúde.
O CAPS-ad é um serviço de atenção psicossocial para atendimento de pacientes com transtornos decorrentes do uso e dependência de substâncias psicoativas. Conforme preconizado pelo Ministério da Saúde(16-17), o CAPS-ad oferece atendimento diário a pacientes que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas, permitindo o planejamento terapêutico dentro de uma perspectiva individualizada de evolução contínua. Esse serviço deve ser apoiado por leitos psiquiátricos em hospital geral e outras práticas de atenção comunitária (internação domiciliar, inserção comunitária de serviços etc.). Funciona das 8 às 18 horas, de segunda a sexta-feira, tendo, diariamente, um profissional de plantão para acolhimento. As atividades desenvolvidas nesses serviços vão desde o atendimento individual (medicamentoso, psicoterápico, de orientação) até atendimentos em grupo ou oficinas terapêuticas e visitas domiciliares e devem oferecer condições para o repouso, bem como para a desintoxicação ambulatorial de pacientes que necessitem desse tipo de cuidados e que não demandem por atenção clínica hospitalar.
O presente estudo aponta que, de fato, alguns vínculos familiares são rompidos em decorrência do processo de dependência de substâncias psicoativas como o álcool ou outras drogas; não obstante, tal realidade se mostrou muito mais complexa e funesta do que o esperado, tendo em vista que os vínculos com a família nuclear (esposa e filhos) desses sujeitos, em sua maioria, foram rompidos e os que ainda mantêm vinculações familiares (com pais e irmãos) os vínculos estão permeados por ambigüidade e estresse, ou seja, tais famílias encontram-se desgastadas e desacreditadas em decorrência de todo o processo de dependência às substâncias psicoativas e às recorrentes recaídas típicas durante o tratamento desses indivíduos.
Durante a implementação de um programa para dependentes químicos, alguns autores(18) também observaram que a rede familiar era a única com a qual o paciente realmente contava e, por outro lado, as famílias descreviam-se como desgastadas com a patologia do paciente.
Os sujeitos partícipes do atual estudo tiveram dificuldades em classificar certos vínculos como só apoiador, só forte, tendo em vista que muitas vezes esses mesmos vínculos são fontes de estresse ou assumem característica diferente de acordo com a situação que os sujeitos vivenciam. Realmente, as relações dos pacientes com o mundo são mistas, portanto, nenhum deles apresenta um único tipo de vínculo, pois estabelecem diferentes tipos de relações e condutas com cada membro do seu grupo familiar(19).
Quanto aos amigos, esses não tiverem papel central na rede social dos sujeitos, mesmo os colegas com quem compartilhavam o álcool e a droga não foram apontados como vínculos significativos, tendo em vista que o tratamento no referido CAPS-ad, voltado, basicamente, para a abstinência total, enfatiza o afastamento desse círculo de amigos como necessários para a manutenção da abstinência e, também, devido aos diversos fatores que envolvem a complexidade do processo de dependência às drogas. Esses indivíduos têm sérias dificuldades em estabelecer novos vínculos; destarte as atividades de lazer desses sujeitos encontram-se muito comprometidas, sobretudo a dos homens que, culturalmente, consideram freqüentar o bar como lazer e espaço de socialização com os amigos.
O rompimento dos vínculos com o trabalho surgiu como fator causal ou como conseqüência do processo de dependência às substâncias psicoativas isto é, alguns sujeitos passaram a fazer uso abusivo de álcool ou outras drogas quando foram demitidos ou afastados do trabalho, outros perderam seus trabalhos devido ao uso abusivo dessas substâncias. O fato aponta que tal realidade tem, no mínimo, duas facetas, uma que o indivíduo vai aos poucos comprometendo suas condições físicas, psicológicas e sociais na medida em que o álcool ou outras drogas passam a ter prioridade em suas vidas, outra situação se refere ao estigma que esses indivíduos carregam, dificultando a oportunidade de uma vaga de trabalho ou mesmo a permanência num emprego. Além disso, o desemprego como um problema mundial consiste também em fator desestruturante da organização familiar e pode, portanto, desencadear crises e sofrimento psíquico. Num estudo sobre a classe trabalhadora urbana, afirma-se que os trabalhadores não só dependem de seu próprio trabalho para a reprodução social como expressam nessa condição sua marca precípua de auto-identificação positiva(19).
Por fim, com relação à religião, os sujeitos apresentaram vínculos muito superficiais ou mesmo a inexistência de vínculos religiosos. Isso faz um chamamento à reflexão sobre o papel que a igreja tinha outrora quanto à integração das pessoas, formando uma irmandade e fortalecendo o senso de comunidade.
O termo comunidade remete a um universo de relações complexas e densas entre indivíduos que estabelecem nela marcos de sociabilidade, entendida como cooperação e reciprocidade(20). Porém, a racionalização utilitária do capitalismo e o espírito exageradamente competitivo, estimulado pelo mercado, agravam muito as condições entre os homens, diminuem a importância das velhas formas tradicionais de comunidade, criando situações de solidão, desenvolvendo frustrações e espalhando muita agressividade e insegurança(21).
A principal rede operante dentre as vinculações desses sujeitos, sem dúvida, se constitui na figura do CAPS-ad. A rede operante é conceituada como aquela parte da rede social com a qual o sujeito foco obtém apoio, ajuda material, serviços e contatos sociais(12).
No entanto, cabem algumas ressalvas quanto ao papel que deve exercer na socialização e reinserção social dos usuários como um todo. As visitas domiciliares e intervenções comunitárias, embora previstas pela Legislação(22-23) que regulamenta o funcionamento dos CAPS*, não eram realizadas pelos profissionais do CAPS ad a que pertencem os sujeitos deste estudo. A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras drogas preconiza que as ações de prevenção e reabilitação a estes indivíduos sejam planejadas de modo a minimizar os fatores de risco e fortalecer os fatores de proteção pensa-se que sem visão prévia e algum tipo de intervenção diretamente no meio que o indivíduo sob tratamento convive, há prejuízo na identificação efetiva desses fatores de risco e de proteção e, portanto, constitui-se ineficaz qualquer forma de trabalho de prevenção de recaída focando apenas o indivíduo.
Atualmente há confusão entre intervenções comunitárias e serviços regionalizados. O fato dos serviços estarem distribuídos de forma regionalizada não significa necessariamente que intervenções diretas na comunidade estão sendo feitas; acredita-se que as ações restritas ao âmbito do serviço continuam sendo práticas institucionalizadas, das quais toda a proposta de Reforma Psiquiátrica está se contrapondo.
Num estudo sobre a desinstitucionalização, focando os programas de acompanhamento intensivo dos pacientes dentro de uma proposta alternativa à hospitalização, consta que, na Itália, o programa conta com equipes volantes que realizam visitas domiciliares regulares (número equivalente ao de consultas ambulatoriais) visando: monitorar o estado dos pacientes, identificar possíveis crises, treinar habilidades cotidianas e sociais com os pacientes, verificar a adesão ao tratamento medicamentoso e detectar conflitos interpessoais e as insatisfações dos pacientes. O modelo Madison (EUA) preconiza o acompanhamento individualizado diário e por tempo ilimitado, conta com equipe multidisciplinar de profissionais de saúde mental e realiza intervenções em todas as dimensões da vida do paciente na comunidade, realizando o treinamento de habilidades cotidianas e sociais in vivo (nos próprios locais onde elas são desempenhadas), têm atuação assertiva e diretiva (vão ao encontro dos pacientes para ensiná-los, assegurar que eles executem e encorajá-los) e realizam também intervenções junto aos agentes sociais (pessoas da comunidade, família, patrão). De acordo com o estudo, a confrontação do resultado de numerosas pesquisas apontou como conclusão o fato de que a freqüência de contatos com o paciente está diretamente relacionada com a diminuição de re-hospitalizações, também que os ingredientes ativos responsáveis pelo efeito do programa no funcionamento dos pacientes são:
- a própria equipe fornecer os serviços que o paciente necessita, trabalhar in vivo;
- o fato de ter um número baixo de pacientes para cada membro da equipe (1 para 10);
- haver médico na equipe;
- fornecimento e controle da medicação e compartilhamento dos casos entre os membros da equipe(24).
Um trabalho multiprofissional que estimule a adesão medicamentosa ao tratamento e ao serviço, o fortalecimento do vínculo entre usuário e equipe, reconhecimento e vínculo com a rede social do paciente são fatores que contribuem para que de fato o indivíduo opte por romper com o círculo vicioso movido pela dependência química.
A composição da equipe do CAPS ad, a alta demanda de usuários e a falta de recursos são justificativas comuns para a não realização de visitas domiciliares (outras intervenções comunitárias nem são cogitadas); de fato são fatores que influem para a dificuldade de realizar um projeto de intervenção comunitária, porém não justificam a ausência de qualquer iniciativa nesse sentido. A conjuntura atual exige maior articulação com os demais dispositivos sociais e da saúde para a consolidação da rede de atenção a esses usuários, inclusive buscando trabalhar em conjunto com o Serviço de Redução de Danos que consiste em riquíssimo recurso de acessibilidade às comunidades mais gravemente afetadas pelo problema em questão.
CONCLUSÃO
O estudo aponta que alguns vínculos familiares são rompidos em decorrência da dependência química ou se encontram fragilizados, permeados pelo descrédito frente às sucessivas recaídas. Em contrapartida, a principal rede operante dentre os vínculos desses sujeitos é o CAPS ad.
Tendo em vista que a Reforma Psiquiátrica e, portanto, o modo psicossocial é uma proposta consideravelmente nova em detrimento com a vigência do modo asilar e até mesmo do Sistema Capitalista, tem se destacado a falta de engajamento de alguns profissionais que não estão inteiramente sensibilizados com a proposta e tiveram sua formação completamente voltada para o modelo médico e hospitalocêntrico; quando, então, se conformam com um modelo excludente por desacreditarem da possibilidade de assistência mais humana dentro da sociedade atual (que é quase completamente desumanizada) em virtude de desconhecerem novos modos de fazer. Isso repercute no funcionamento do serviço, nas formas de intervenção e, conseqüentemente, interfere na eficácia da reabilitação dos usuários.
Partindo dessa premissa final, acredita-se que se faz urgente a necessidade de capacitação dos profissionais, bem como alteração nos moldes do ensino das diferentes disciplinas no intuito de que saberes e práticas caminhem num mesmo ritmo e que os profissionais tenham visão mais abrangente quanto à atuação comunitária e, sobretudo, voltada para esse novo modelo estabelecido pela Reforma Psiquiátrica. O CAPS-ad, como a principal rede operante desses indivíduos, literalmente excluídos de uma vida social digna, necessita, sobretudo, de intervenções que enfoquem também a dificuldade que eles têm em estabelecer e manter vínculos saudáveis e duradouros. Além disso, a rede social na qual eles estão inseridos (no caso a família) precisa urgentemente de suporte a fim de modificar a estrutura vulnerável, na qual as redes estão constituídas em decorrência de todas as conseqüências do processo de dependência das substâncias psicoativas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 Luis, M.V., organizadora. Uso e abuso de álcool e drogas. Ribeirão Preto (SP): Legis Summa, 2000 [ Links ]
2 Duarte LFD. O império dos sentidos: sensibilidade, sensualidade e sexualidade na cultura ocidental moderna. In: Heilborn ML (organizadora). Sexualidade. O olhar das ciências sociais. Rio de Janeiro (RJ): Jorge Zahar Editor, 1999. [ Links ]
3 Schenker M, Minayo MCS. A importância da Família no Tratamento do Uso Abusivo de Drogas: uma revisão da literatura. Cad. de Saúde Pública, junho 2004 [ Links ]
4 Figlie NB, Pillon SC. Orientação Familiar em Dependência Química. In: Focchi GRA, Leite MC, Laranjeira R, Andrade AG. Dependência Química: novos modelos de tratamento. São Paulo (SP): Roca, p.125/42 2001 [ Links ]
5 Scivoletto S. Tratamento Psiquiátrico de Adolescentes UD. In: Focchi GRA, Leite MC, Laranjeira R, Andrade AG. Dependência Química: novos modelos de tratamento. São Paulo (SP): Roca; p.65-85.2001 [ Links ]
6 Rigotto SD, Gomes WB. Contextos de Abstinência e de Recaída na Recuperação da Dependência Química. Psicologia: Teoria e Pesquisa v.18, n.1, p.95-106, janeiro/abril 2002 [ Links ]
7 Sluzki CE. A Rede Social na Prática Sistêmica: alternativas terapêuticas. São Paulo (SP): Casa do Psicólogo, 1997 [ Links ]
8 Kalina E. Viver sem Drogas. Rio de Janeiro (RJ): Editora Francisco Alves, 1987 [ Links ]
9 Pichon-Rivière E. Teoria do Vínculo. 5.ed. São Paulo (SP): Martins Fontes, 1995. [ Links ]
10 Andrade GRB, Vaitsman J. Apoio Social e Redes: conectando solidariedade e saúde. Ciência e Saúde Coletiva, 2002 7(4): 925/34. Disponível em <http://www.scielo.br>. Acesso em:18 out. 2004. [ Links ]
11 Marteleto RM. Análise de redes sociais aplicação nos estudos de transferência da informação. Ciência da Informação, v.30, n.1, p.71-81, jan./abr. 2001. Disponível em <http://www.scielo.br>. Acesso em: 18 out. 2004. [ Links ]
12 Troncoso M, Alvarez C, Sepulveda R. Redes Sociales, Salud Mental y Esquizofrenia: una revisión del tema. Rev. Psiquiatr, (Chile) 1996; 12(2):67-73. [ Links ]
13 Barbosa MT, Byigton MR, Struchiner CJ. Modelos dinâmicos e redes sociais: revisão e reflexões a respeito de sua contribuição para o entendimento da epidemia do HIV. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.16, suplemento 1, 2000. Disponível em <http://www.scielo.br>. Acesso em: 18 out. 2004. [ Links ]
14 Ross B. & Cobb K.L. Family Nursing: A Nursing Process Approach. Redwood City, California:Addison-Wesley Nursing, 1990. [ Links ]
15 Ministério da Saúde (BR). Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas. Brasília (DF) : Ministério da Saúde; 2003 [ Links ]
16 Ministério da Saúde (BR). Manual do CAPS. Disponível em <http://www.saude.gov.br>. Acesso em: 28 jun. 2005. [ Links ]
17 BRASIL. Portaria GM336, de 19 de fevereiro de 2002. Estabelece CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPS i II e CAPS ad II. Disponível em <http://www.saude.gov.br>. Acesso em: 27 jun. 2005. [ Links ]
18 Pechansky F, Halpern SC, Soilbelman M, Bicca C, Szobot CM, Lima AFBS, Shiba AS. Limites e alternativas para a implementação de um programa para dependentes químicos em risco para infecção pelo HIV utilizando o conceito de Rede Social. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.17, n.1, jan./fev., 2001. Disponível em
19 Duarte LFD. Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas. Rio de Janeiro (RJ) : Jorge Zahar Editor/ CNPq, 1986 [ Links ]
20 Comelles JM. Antropología social y Enfermería Comunitaria. In: Moreno AS, Ramom VA, Bes CG, Alvear LM, Tormos AM, Garcia AS. Enfermería Comunitária, 1: concepto de salud y factores que la condicionan. Aravaca (Madrid) : Mc Graw-Hill Interamericana de España, 2000. 389p. [ Links ]
21 Konder L. O que é Dialética. 4.ed. São Paulo (SP) : Editora Brasiliense, 1981 [ Links ]
22 Ministério da Saúde (BR). Secretaria Executiva. Legislação em Saúde Mental 1990-2002. 3.ed. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2002. [ Links ]
23 Portaria GM nº2197, de 14 de outubro de 2004. Redefine e amplia a atenção integral para usuários de álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde SUS e dá outras providências. Disponível em <http://www.saude.gov.br>. Acesso em: 28 jun. 2005. [ Links ]
24 Bandeira M, Gelina D, Lesage A. Desinstitucionalização: o programa de acompanhamento intensivo. Bras. Psiquiatr, 47(12)627/40, 1998. [ Links ]
Endereço para correspondência
Jacqueline de Souza
E-mail: jacsouza2003@yahoo.com.br
* Portaria SAS nº 305/2002; Portaria GM nº 816/2002; Portaria GM nº 336/2002; Portaria GM nº 2197/2004.