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Estudos e Pesquisas em Psicologia

On-line version ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.8 no.1 Rio de Janeiro Apr. 2008

 

ARTIGOS

 

Família e psicose: reflexões psicanalíticas e sistêmicas acerca das crises psíquicas graves

 

Family and psychosis: systemic and psychoanalytical reflections on serious psychic crisis

 

 

Ileno Izídio da Costa

Professor Adjunto do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, MA em Filosofia e Ética da Saúde Mental (Inglaterra)
Doutor em Psicologia Clínica (Universidade de Brasília, Warwick/Inglaterra)
Coordenador da Clínica Escola de Psicologia (Universidade de Brasília) e do Grupo de Intervenção Precoce nas Psicoses (GIPSI)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho apresenta algumas reflexões psicanalíticas e sistêmicas sobre o sofrimento psíquico grave em família, ou seja, sobre psicose e transtornos correlatos e relacionamento familiar. Para tanto, serão percorridos alguns conceitos básicos das duas teorias/abordagens além de questionados os conceitos de psicose e esquizofrenia, com o objetivo de levantar algumas posturas mínimas sobre o como entender e como fazer para lidar com a complexidade inerente ao sofrimento psíquico grave a partir do relacionamento familiar.

Palavras-chave: Família, Psicose, Psicanálise, Sistêmica, Crises psíquicas graves


ABSTRACT

This paper shows some psychoanalytic and systemic reflections on serious psychic suffering in family, i.e., about psychosis and related mental disorders and family relationship. To do so, some basic psychoanalytic and systemic concepts will be presented and queried as well as schizophrenia and psychosis concepts. This aims build some basic attitudes about how to understand and to deal with the complexity of serious psychic suffering from family relationship.

Keywords: Family, Psychosis, Psychoanalysis, Systemic, Serious psychic crisis


 

 

Família e Psicose: Reflexões psicanalíticas e sistêmicas acerca das crises psíquicas graves

O presente trabalho apresenta algumas reflexões psicanalíticas e sistêmicas sobre o sofrimento psíquico grave em família, ou seja, sobre psicose e transtornos correlatos e relacionamento familiar. Para tanto, serão percorridos alguns conceitos básicos das duas teorias/abordagens além de questionados os conceitos de psicose e esquizofrenia, com o objetivo de levantar algumas posturas mínimas sobre o como entender e como fazer para lidar com a complexidade inerente ao sofrimento psíquico grave a partir do relacionamento familiar.

É fundamental, desde o início, afirmar que a família é o encontro de dois eixos estruturantes: o diacrônico (dinâmico, histórico, aprofundado e mais voltado para o funcionamento inconsciente; portanto psicanalítico) e o sincrônico (do “aqui-e-agora”, do modo de funcionamento concreto, imediato e lida com a dimensão consciente da relação; portanto sistêmico).

Podemos dizer que Freud (1977), por exemplo, afastou-se do enfoque individual no final de sua obra, ao analisar a sociedade em "O Futuro de uma Ilusão” (FREUD, [1927], 1977-c), "O Mal-estar na Civilização” (FREUD, [1929], 1977-d), “Por que a guerra” (FREUD, [1933], 1977-e) e “A questão de uma Weltanschauung” (FREUD, [1933], 1977-f). Mas, ao fazê-lo, não levou em conta a questão do parentesco, ou seja a organização familiar em si. Apesar disto, no entanto, pode-se enfatizar que o tema família sempre esteve presente na descrição ou na consideração freudiana do psiquismo humano, mesmo que indiretamente, quando nos brindou, por exemplo, com os casos de Dora (FREUD, [1905], 1977-a) e do pequeno Hans (FREUD,[1909], 1977-b), onde o Complexo de Édipo foi pedra angular.

Segundo David (1977), o enfoque psicanalítico da família tem sido retomado recentemente, levando em conta "o lugar, o papel e a função do parentesco alargado na sobredeterminação do Complexo de Édipo”. David afirma que:

[...] é a prática psicanalítica das crianças e das psicoses que nos leva a perscrutar a genealogia. Nas crianças somos muitas vezes confrontados com a presença de duas ou três gerações (o filho, os pais, os avós). E a genealogia não é indiferente na gênese das psicoses [...]. É assim que a extensão das investigações e do leque terapêutico nos leva cada vez mais a examinar a complexidade das relações familiares e de parentesco. Por este caminho chegamos à convicção da sobredeterminação da situação edipiana de um indivíduo pela de seus ascendentes (p. 56).

Desta feita, o Complexo de Édipo assume papel fundamental nesta elaboração, onde a relação intrínseca entre o Complexo de Édipo dos pais com o dos filhos se torna essencial. David (1977), citando Dolto, ressalta que esta autora afirma, contundentemente, que "na verdade são os adultos (os pais) cuja relação pré-edipiana e edipiana com seus (próprios) pais não foi ultrapassada e cujos impulsos arcaicos recalcados despertaram em contactos com sua prole (filhos) [que] interdizem verbalmente à criança o prazer que continuam a obter a custa dela" (p. 17).

Neste sentido, o estudo das famílias com membros psicóticos é um campo extenso e de particular importância, que levanta questões teóricas e práticas fundamentais tanto para a psicanálise como para a psiquiatria e para a própria teoria sistêmica.

Representante atual do primeiro eixo (diacrônico), Eiguer (1985) detalha três organizadores fundamentais do relacionamento familiar, baseado nas concepções de Spitz, ao se referir à escolha do objeto (que consiste na escolha inconsciente do parceiro conjugal com base nas experiências edípicas), “pelo jogo duplo do amor intenso e incestuoso e sua proibição, a família prepara o sujeito para investir num outro vínculo, que dará origem a uma nova família” (p. 29-30). O objeto inconsciente de um se entrecruza com o objeto inconsciente do outro e os dois objetos acumulados inauguram um mundo objetal compartilhado, “reunião” nova que adota uma dimensão organizadora. Jürg Willi (1993), por seu turno, cunhou, na mesma direção, o termo “colusão” para denominar o jogo inconsciente dos parceiros. A colusão é a dinâmica emocional e relacional que se estabelece a partir da escolha inconsciente que engendra um jogo particular de gratificações ou não, a partir das experiências infantis, especialmente do Édipo. Eiguer chega a descrever três tipos de escolha objetal: edípica, anaclítica e narcisista. Willi, sendo fiel aos estágios de desenvolvimento pulsional descritos por Freud, fala em colusão narcísica, oral, anal, fálica e genital.

Eiguer (1985), continuando a discutir os organizadores familiares, define o segundo organizador como sendo o “eu familiar”, ou seja, o “investimento perceptual de cada membro da família, que lhe permite reconhecê-la como sua, numa continuidade têmporo-espacial” (p. 38). Este organizador é composto de sub-organizadores tais como o sentimento de pertença ou “familiaridade”, habitat interior e os ideais do ego. Apresenta, como terceiro organizador, a interfantasmatização. Em suas próprias palavras:

[...] ponto de encontro dos fantasmas individuais de cada membro, fantasmas próximos por seu conteúdo. Desejos convergentes, jogo combinatório que é mais que uma adição pura e simples, é a criação de um espaço transicional de intercâmbios, de humor, de criatividade, de relatos referentes à própria história de cada um e dos ancestrais (p. 44-45).

No que se refere ao eixo sincrônico é a teoria sistêmica que se propõe a teorizar sobre e a lidar com a complexidade da dimensão familiar. Família, como defendido anteriormente, é tomada como

um sistema aberto, constituído de subsistemas ou holons (partículas ou partes), caracterizado por um estado interno relativamente constante ou auto-equilibrado que se mantém pela autorregulação (homeostase); composto por hierarquias, fronteiras ou limites, regras, papéis e comunicação; articulados em sua essência pelos segredos e mitos; além de estar, sistemicamente ligado aos macrosistemas (social, econômico, político e universal) (COSTA, 1990, p. 28).

É importante destacar ainda a contribuição da teoria transgeracional que tem seu correlato na psicanálise, quando se fala de transmissão psíquica entre gerações.

Assim, do ponto de vista da teoria sistêmica da família podemos afirmar que o problema cria um sistema. Ou seja, a família se estrutura e se torna realidade objetiva a partir das problematizações que se desenvolvem em seu ciclo de vida. A família, assim, se estrutura em torno de como as diferentes etapas de seu desenvolvimento vão se estabelecendo.

Podemos afirmar, portanto, que “cada família é uma família”, sem redundâncias ou circularidades, na medida em que cada sistema ou estrutura familiar cria seus problemas particulares e poieticamente organiza suas formas específicas de lidar uns com os outros, com suas próprias percepções sobre este universo e com o mundo externo, concreto, além de seus vínculos. Afirmamos, anteriormente, (COSTA, 2003) que não existem famílias, mas configurações vinculares íntimas que dão sentimento de pertença, habitat, ideais, escolhas, fantasmas, limites, papéis, regras e modos de comunicar que simbolicamente podem (ou não) se diferenciar das demais relações sociais do indivíduo humano no mundo.

Palazzoli (1988), sistêmica da primeira hora e de primeira grandeza, contribuiu de forma decisiva ao teorizar, pesquisar e refletir sobre os jogos psicóticos da família. Ela afirma que era como se “aos poucos, os arcos individuais começassem a ligar-se numa única grande espiral cujo perfil ia surgindo: o processo interativo que dá origem à psicose” (p. 198). Portanto, este grupo sempre direcionou sua abordagem e intervenções para a família enquanto sistema, tendo como premissa modificar a sua forma de organização.

Em sua concepção, os jogos psicótico, “sujos”, são aqueles que se revelam quando se empregam artimanhas sutis, mentiras disfarçadas, falsidades, manipulações, seduções, promessas e enganos, em que os verdadeiros propósitos destas ações estão escondidos ou disfarçados, e nunca admitidos e, quando revelados, negados. Para estes pesquisadores, a hipótese da conduta psicótica do indivíduo está intimamente ligada a este jogo sujo (COSTA, 2005, p. 233).

Assim, como se pode depreender, para além dos sintomas evidentes ou características familiares, o que envolve a psicose é um padrão relacional que é (co) construído com a participação efetiva de todos os atores (Costa, 2005, p. 235). Chegamos, deste modo, ao contexto das crises psíquicas (sejam individuais ou relacionais).

Quando falamos em crises psíquicas graves, estamos nos referindo a todas as situações em que, no curso do crescimento e desenvolvimento do ser humano, ocorrem vivências conflituais básicas que marcam definitivamente o sujeito e sua história. Referem-se, na nossa teorização, às psicoses e transtornos correlatos. Assim, uma crise se caracteriza pela emergência de um elemento novo, que afeta o estado psíquico, desencadeando um estado de desordem, que exige mudança de posição, conseqüentemente, a aquisição (ou não) de novas posturas e condutas. No entanto, nem sempre é isto que acontece. Muitas vezes as crises servem para estabilizar, senão cronificar, estados complexos de sofrimento. Geralmente é quando são manifestos sintomas de ordem psíquica e/ou orgânicos. Eis quando surge a crise psíquica grave, ou psicose.

Assim, uma crise é o mesmo que um conflito psíquico, onde a subjetividade está implicada, cabendo a cada qual interpretar, compreender, se adaptar (ou não) às novas situações e/ou eventos significativos dos quais não se pode escapar. Neste sentido, as críticas aos conceitos de psicose, loucura, esquizofrenia e doença mental se faz necessário para não nos aprisionarmos às imprecisões e limitações da linguagem, “nevoeiros” muitas vezes impossíveis de serem superados (COSTA, 2003-a).

Neste contexto, as psicoses e/ou seus primeiros sinais (pródromos) são manifestações complexas de um sofrimento individual, familiar e social intenso. Por esta delimitação, não entendemos as psicoses e seus transtornos correlatos como entidades fechadas, objetivamente delimitadas e facilmente identificáveis (COSTA, 2005). Ao contrário, diante das crises, o máximo que se consegue é buscar entender contextos estruturais e estruturantes, seja a nível individual (psicanalítico?) ou relacional (sistêmico?).

Sobre o conceito de psicose, cabe refletir sobre a validade deste conceito do ponto de vista de abrangência da complexidade acima apresentada. Segundo nosso entendimento, a psicose não é uma doença específica, embora seja conceituada classicamente como uma síndrome. Pode-se dizer que a característica central do que se chama psicose é a perda do teste de realidade, como Freud já havia assinalado, o que pode resultar em algum grau de prejuízo do julgamento desta. O estado psicótico, se assim podemos dizer, evidenciar-se-ia pela presença de distúrbios da percepção, como alucinações e distúrbios do pensamento e delírios. No entanto, a insegurança ou a imprecisão deste conceito, a despeito de uma sintomatologia classicamente aceita, não remete a toda gama de possibilidades dos sofrimentos enquadrados nesta classificação.

Falando mais particularmente, costuma-se dizer que a esquizofrenia, transtorno mental que corresponde ao exemplo de psicose mais comumente aceito, “[...] afeta a capacidade da (sic) pessoa distinguir se as experiências vividas são ou não reais. Afeta ainda a capacidade de pensar logicamente, sentir emoções e sentimentos, e comportar-se em situações sociais” (SHIRAKAWA; CHAVES; MARI, 2001, p. 22).

Ao delinear a evolução dos critérios diagnósticos da esquizofrenia, admitem: “[...] a complexidade em se conceituar a esquizofrenia na medida em que este transtorno apresenta-se heterogêneo quanto a sua apresentação clínica, sua etiologia e seu curso” (p. 22). E concluem com clareza que “embora os critérios diagnósticos tenham se aprimorado quanto à sua objetivação e reprodutibilidade, a validade conceitual da esquizofrenia permanece em aberto” (p.20).

A dificuldade em identificar a esquizofrenia como uma entidade clínica única com marcadores patognomônicos e a gama heterogênea de sintomas e apresentações clínicas reforçam a hipótese de que a esquizofrenia é um transtorno heterogêneo.

Sobre isto, em trabalho anterior (COSTA, 2003-b), baseado na crítica filosófica mundial, defendi a inviabilidade científica do conceito de esquizofrenia do ponto de vista filosófico e concreto, concluindo, com Szasz (1978), que não existe a esquizofrenia. Parafraseando Szsaz, dizer que não existe a esquizofrenia não significar afirmar que não existem as pessoas chamadas de “esquizofrênicas”. Nega-se, aqui, um conceito/construto equivocado, impreciso e confuso cientificamente, carecendo de confiabilidade, validade de construto e validade preditiva (BOYLE, 1990; COSTA, 2003-b).

Na proposta de trabalho do GIPSI adotamos o termo “do tipo psicótica” para nos referirmos às características de uma fase prodrômica com o objetivo de apontar para, no mínimo, dois aspectos essenciais: 1) a vivência pode ser intensa, típica de um momento existencial, porém diferente do padrão da própria pessoa, que pode evoluir ou não para uma desorganização maior da atividade psíquica, e 2) neste momento específico ainda estão preservados os potenciais de retorno a uma atividade menos sofrida e, portanto, não necessariamente psicótica à priori.

Finalizando, em nossa concepção, somente com a reflexão conjunta/complexa entre as densas teorias psicológicas, sejam elas psicanalíticas ou sistêmicas, é que poderemos abordar o sofrimento psíquico grave (ou, se assim se definir, as psicoses) de forma mais conseqüente e objetivando uma abordagem mínima desta angústia humana, posto que nenhuma das teorias atuais, sozinhas, provou dar conta do sofrimento psíquico grave. Leia-se, das psicoses em si, se assim se desejar chamar.

 

Referência Bibliográfica

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Endereço para correspondência
Ileno Izídio da Costa
E-mail: ileno@unb.br

Recebido em: 10 de outubro de 2006
Aceito para publicação em: 18 de maio de 2007

Acompanhamento do processo editorial: Deise Mancebo e Sonia Alberti

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