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Estudos e Pesquisas em Psicologia

On-line version ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.13 no.1 Rio de Janeiro Apr. 2013

 

ARTIGOS

 

Constituição e significação de família para idosos institucionalizados: uma visão histórico-cultural do envelhecimento

 

Establishment and meaning of family to institutionalized elders:  a historic-cultural vision on aging.

 

 

Edna Martins*

Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, Guarulhos, São Paulo, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O envelhecimento tem sido objeto de muitas pesquisas visto o significativo aumento do quociente de idosos numa perspectiva mundial. O artigo apresenta pesquisa que buscou compreender, à luz da perspectiva  histórico-cultural, a significação dada ao envelhecimento e os sentidos atribuídos à família em seu processo de constituição e manutenção. Para tal, foram realizadas quatro entrevistas, com idosos entre 75 e 95 anos, que vivem em instituição de longa permanência. Os resultados indicaram que a significação do envelhecimento é subjetivada em cada história de vida, independentemente da idade ou estado de saúde do idoso. Na visão dos entrevistados, a família moderna atual tem se transformado tanto em sua estrutura como em suas relações, contudo, a convivência familiar e a vinculação do idoso ao seu grupo familiar aparecem como uma das formas privilegiadas do idoso se relacionar com o mundo, nas múltiplas formas de se construir como homem no mundo social.

Palavras-chave: Família, Idoso, Envelhecimento, Institucionalização.


ABSTRACT

Aging has been the subject of many studies since the significant increase in the ratio of elderly people in a worldwide perspective. From the historical-cultural perspective, the research aimed to understand from interviews with four elderly between 75 and 95 years, living in a long-term institution, the meaning given to the aging process itself and the meanings attributed to family in their process of formation and maintenance. The results showed that the significance of the aging process is subject to every life story, regardless of the age or health status of each elderly. In the view of the interviewees, the modern family today has transformed both its structure and  their relationships, yet the family life of the elderly and their contact with their family group appears as a  privileged form of the elders' relationship with the world, in multiple ways of building himself as a member in the social world.

Keywords: Family, Elder, Aging, Institutionalization.


 

 

1 Introdução

Este trabalho objetivou compreender a significação dada pelo idoso ao próprio processo de envelhecimento, bem como o sentido que ele atribui atualmente à sua família, desde a sua constituição até o seu modo de funcionamento, ressaltando-se o discurso apoiado na memória de idosos internados em instituição de longa permanência.  Vale dizer que a partir da psicologia histórico-cultural o fenômeno do envelhecimento não pode ser estudado de forma isolado, pautado apenas em questões de ordem biológica, mas há toda uma gama de fatores a serem considerados, principalmente com relação ao grupo a que pertencem os idosos, ao local onde vivem e passaram a maior parte de suas histórias e a um conjunto de relações de produção entrelaçadas que, só são possíveis de serem compreendidas a partir de um olhar histórico, cultural e dialético.

Historicamente, a família vem sofrendo uma série de alterações, desde a sua estruturação até as suas formas de funcionamento. Essas mudanças ocorrem obedecendo as características sociais, culturais e econômicas da humanidade, dentro de cada momento histórico. A historiografia da família (POSTER, 1979; ARIÉS, 1981) aponta a compreensão e a definição de tipos de famílias e suas composições, assim como transformações ocorridas em sua estrutura, em função dos múltiplos fatores próprios e decorrentes das relações entre grupos humanos. A estrutura das relações familiares, natureza de parentesco e outros laços, tais como os existentes entre marido e esposa, pais e filhos e entre irmãos também têm sido foco de muitos estudos (COUTINHO, 2010; FALCKE; WAGNER, 2005; LISBOA; FÉRES-CARNEIRO; JABLONSKI, 2007).

Outros trabalhos como os de Martins e Szymanski (2004) apontam para as mudanças que estão ocorrendo no seio da família, incluindo principalmente as alterações no papel da mulher e, consequentemente, nas práticas educativas das famílias, o que têm contribuído para o enfraquecimento do suporte às crianças e idosos.

Atrelado às mudanças que ocorrem na família, o envelhecimento também tem sido objeto de interesse de muitos pesquisadores, sobretudo, porque nas últimas décadas houve um aumento significativo de idosos (FALCAO; BUCHER-MALUSCHKE, 2009; PEREIRA; RONCON, 2010). Esses trabalhos têm buscado uma definição do "velho" e do envelhecimento não apenas a partir de fatores biológicos, mas levantando sempre a questão do contexto sócio-histórico em que o idoso encontra-se inserido.

Secco (1999) fez importante apanhado histórico do tema, apontando as mudanças políticas e sociais e suas influências nas formas de se conceber o envelhecimento desde a Grécia antiga, passando pela Idade Média e Renascimento. O trabalho discute o valor que se tem dado à juventude, à força e à aparência atlética em detrimento da velhice em todas as sociedades. Salienta a questão da produtividade e da força de trabalho que já não fazem parte da pessoa envelhecida, o que a faz ficar à margem dos meios de produção das sociedades capitalistas, restando a esta apenas o ócio.

Outros trabalhos têm demonstrado que nos grandes centros urbanos, onde os membros das famílias estão ocupados em suas obrigações cotidianas, tem aumentado a institucionalização e isolamento de idosos em asilos, casas de repousos e em clínicas em que a pessoa pode ser cuidada por profissionais contratados especialmente para esse fim. Segundo Freire Júnior e Tavares, 2005, muitos idosos que possuem doenças crônicas que necessitam de cuidados específicos, acabam sem condições de permanecerem em suas famílias por não possuírem familiares disponíveis para isso. Nesse processo, o idoso institucionalizado constitui, em sua maioria, um grupo privado de seus projetos de vida, por estar afastado da família, da casa, dos amigos, das relações sociais, nas quais sua história foi construída.

Sobre a  importância do vínculo do idoso com sua família, Bosi (1994) afirma que o grupo familiar possui uma intensa força de coesão. Para a autora, não há nenhum outro espaço social no mundo em que o lugar do indivíduo é tão fortemente destinado e onde a personalidade tenha tamanho relevo. Pode-se mudar de país, de estado civil, de papéis, de profissão ou de posição social, contudo o vínculo que ata uma pessoa à sua família é irreversível. "Se, como dizem, a comunidade diferencia o indivíduo, nenhuma comunidade consegue como a família valorizar tanto a diferença de pessoa a pessoa". (p. 425)

Uma visão idealizada de família, tende a  levar  a compreensão de que o vínculo de um indivíduo com sua família pode significar um porto seguro, demonstra ser uma fonte de apoio irreversível, mas que no processo de envelhecimento pode sofrer influências segundo as disposições da família para assegurar condições de desenvolvimento e cuidados diários ao indivíduo. Estudos de Perlini et al (2007) e de Pestana e  Espirito Santo, (2008) apontam as razões pelas quais a família resolve buscar uma instituição para internação de um idoso. Essas pesquisas concluem que a velhice em sua fase mais avançada preocupa os familiares quando percebem que a pessoa idosa pode necessitar de ajuda em suas tarefas diárias, no espaço doméstico, apresentando limitações para realizar atividades cotidianas e na própria administração domiciliar, como prover alimentação, pagar água, luz, ir ao banco, entre outros. Estes motivos podem se apresentar de forma isolada ou estarem associados entre si, agravados quando o idoso se mostra doente. Telles Filho e Petrilli Filho (2002) apontam dentre os principais fatores de risco para a institucionalização do idoso: a necessidade de cuidados especiais, uma maior incidência de demências e deterioração cognitiva e física, mudanças na dinâmica e nos papéis da família e a inexistência de apoio domiciliar.

Se para a família é difícil lidar com a situação de se separar de um idoso, buscando para os seus cuidados diários a internação em uma casa de repouso, há uma preocupação também sobre os sentimentos que perpassam a vida do velho que deixa a sua família, sua casa, seus objetos e é colocado em um ambiente onde pouca coisa lembra a sua individualidade. Ainda que buscar o auxílio de uma instituição para o cuidado dos idosos seja uma das últimas opções da família, pesquisas têm demonstrado que esses locais de internação por um longo período de tempo, como apontam Silvestre e Costa Neto, (2003) representam um modelo excludente, que pode causar aos idosos, deterioração na capacidade funcional e autonomia para lidar com questões do cotidiano. Com relação a ideia que o idoso faz da instituição, estudos de Mazza e Lefreve, 2004, realizados em regiões metropolitanas, apontam que, na maioria das vezes, a internação é vista como negativa pelos próprios idosos como também pelos seus familiares, independente de  condições  financeiras.

A maioria das pesquisas sobre envelhecimento aparecem ligadas à área da saúde física. Revistas do campo da medicina, geriatria e enfermagem são, de um modo geral, as que mais trazem dados sobre o assunto. Outros trabalhos contribuem, sobretudo, buscando respostas para questões socioeconômicas e de políticas públicas que atendam para a saúde do idoso. Há, porém, escassos estudos sobre os aspectos psicológicos que envolvem a condição de ser idoso, sua subjetividade e sua percepção com relação ao meio em que está inserido, como sua construção histórica e social.

 

2 Uma visão histórico-cultural do envelhecimento

Segundo as ideias de Vygotsky (2002, 2004), ao humanizar-se o homem inscreve-se no tempo e na história de forma singular e específica. Para que o filhote do homem possa tornar-se humano de fato, insere-se invariavelmente em um universo social, desde o nascimento e, assim, a partir de seu desenvolvimento e crescimento, dia a dia diminui o seu tempo de vida. Segundo Paula e Cupolillo (2005), alicerçados na abordagem histórico-cultural, a temporalidade é vista como um aspecto da constituição da subjetividade humana. Dessa forma, o homem e a sua subjetividade devem ser compreendidos em sua historicidade, a partir de suas vivências, sua história, sua relações com os outros, seu imaginário e seus afetos marcados pelo tempo vivido.

Para Bosi (1994), o envelhecimento se constitui como categoria social. A autora afirma que a rejeição ao velho destitui o idoso de sua obra, pois devido às mudanças históricas que se aceleram, aquilo que foi construído por ele acaba por ser destruído. Ao perder sua força de trabalho, o idoso já não faz mais parte da rede de produção e, portanto não é produtor nem reprodutor daquilo que se valoriza numa sociedade de consumo.. Desse modo, "O velho de uma classe favorecida defende-se pela acumulação de bens. Suas propriedades o defende da desvalorização de sua pessoa" (BOSI, 1994, p.77).

Pensar o idoso imerso numa sociedade capitalista em que as relações de produção e o valor dado ao trabalho exclui e descarta tudo o que é velho, em que o novo, o útil e o viril é sempre o mais respeitado é essencial para compreender a visão de homem, de família e de sociedade constituinte da subjetividade de cada idoso entrevistado. Ao respeitar as lembranças do idoso pode-se dar voz a uma historicidade engendrada em uma teia de relações que só são passíveis de compreensão a partir de uma análise histórico-cultural, em que se concebe o envelhecimento como um processo de desenvolvimento contínuo e singular de cada sujeito humano.

Em uma perspectiva histórico cultural, pode-se pensar a velhice ou o envelhecimento humano, não como categoria universal, mas como fenômenos construídos histórica e socialmente no transcorrer da evolução da humanidade. Desse modo entende-se que o envelhecimento constitui-se em categoria elaborada diferentemente e simbolicamente por cada pessoa em desenvolvimento e em cada momento histórico diferente.

Ainda que Vygotsky e seus colaboradores não estivessem interessados ou não tivessem tido tempo hábil para estudar o envelhecimento humano, as reflexões a respeito desse fenômeno parte de suas ideias sobre desenvolvimento, na medida em que faz uma crítica ao processo de biologização do entendimento do ser, independente da fase de evolução na qual o sujeito se encontra. Partindo de suas premissas, o envelhecimento ocorre numa interação entre  fatores endógenos e exógenos da vida humana, entendendo que os últimos tem caráter de superação dos primeiros. Sendo assim, embora a biologia tente explicar o envelhecer humano, os aspectos sociais e históricos nos quais vivem os indivíduos não podem deixar de ser pensados como determinantes nos processos de desenvolvimento dos sujeitos.

Pautado no Materialismo-histórico-dialético, Vygotsky (2002, 2004) aponta que para entendermos o funcionamento psíquico é necessário uma análise do fenômeno humano a partir de três princípios. Esses princípios, sinteticamente, seriam: 1- Análise dos processos e não objetos; 2- Análise explicativa e não descritiva do fenômeno; pois a mera descrição não revela as reais relações dinâmicas que originam um objeto, não passando de uma análise baseada nas suas características externas, suas manifestações externas e aparências comuns; 3- Análise do desenvolvimento que permite explicar o fenômeno com base na sua origem.

Nesta perspectiva, Paula e Cupolillo (2005), tomam a investigação da família e das relações dos idosos com seus familiares a partir da compreensão da complexidade da subjetividade de seus membros, que é marcada por um contexto histórico-cultural específico. Estudar a família é, portanto, meio importante para a compreensão dos sentidos e dos significados de se envelhecer. No enfoque histórico-cultural, o fenômeno familiar só pode ser compreendido levando em conta a análise dos processos nos quais se fazem e se engendram as relações humanas, considerando sua dinâmica interna e às vezes não aparente , tendo como base o comportamento e subjetividade dos sujeitos em sua história de construção social e cultural.

 

3 O estudo a partir da memória de velhos

Um dos trabalhos mais importantes da Psicologia do envelhecimento é o de Bosi (1994), em que a pesquisadora faz um apanhado de lembranças de velhos, analisando  elementos da memória de seus entrevistados. A autora salienta que realizar o estudo das lembranças de pessoas idosas é ter a possibilidade de apreender uma história social bem desenvolvida, pois os idosos já atravessaram um determinado tipo de sociedade, com muitas características desenvolvidas e marcadas. Viveram também quadros de referência familiar e cultural reconhecíveis e, portanto, suas lembranças desenham-se sobre um pano de fundo muito mais definido do que a memória de um jovem. A pesquisadora ainda acrescenta que:

Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. […] Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas ideias, nossos juízos de realidade e de valor (p. 55).

O estudo aqui apresentado de natureza qualitativa, fundamentado na perspectiva histórico-cultural, foi construído a partir de relatos de idosos que viviam em uma instituição de longa permanência, e busca a explicação do fenômeno do envelhecimento por meio do seguinte recorte: a significação que o idoso dá ao próprio processo de envelhecimento e que sentidos atribui para a família em seu processo de constituição e manutenção.

A pesquisa foi realizada em uma casa de repouso particular da zona sul da Cidade de São Paulo. A instituição com mais de 40 anos no ramo, possui aproximadamente 60 idosos que pagam uma quantia mensal de setecentos a mil e duzentos reais, dependendo da acomodação. A parte física compreende três casas e um apêndice, três salas de espera, uma cozinha que abastece todas as casas, doze banheiros e vinte e dois quartos (para uso de um a cinco idosos).  O quadro de funcionários consta de dois administradores, um médico, uma enfermeira, um nutricionista, um terapeuta ocupacional, dez técnicos de enfermagem, cinco cuidadores, oito serviços gerais, duas cozinheiras e uma ajudante de cozinha. A casa ainda conta com convênios com Universidades e outras Associações e recebe estagiários de várias áreas da saúde.

Ressalta-se que embora o estudo não tenha a pretensão de esgotar ou generalizar as explicações com relação à compreensão de idosos sobre tais questões, contribui com caminhos para a reflexão sobre o processo de envelhecimento e traz subsídios para que se possa encontrar possibilidades de compreender a questão da família e suas relações com o envelhecimento no atual momento sócio-histórico.

Os quatro participantes de ambos os sexos foram entrevistados a partir de roteiros semi-estruturados, em horários e dias agendados previamente. Cada entrevista foi gravada e teve a duração aproximada de uma hora e meia, possibilitando o levantamento de informações por intermédio do discurso livre dos sujeitos.

Utilizou-se como critério de inclusão da amostra idosos que estivessem internados há mais de 6 meses na instituição, tivessem nível funcional adequado e se voluntariassem a fazer parte da pesquisa. Todos os entrevistados assinaram o termo de consentimento livre e eslarecido concordando com as questões da pesquisa. Participaram do estudo os seguintes idosos, descritos com nomes fictícios, assegurando a questão ética no sigilo das informações.

1. Marilena - 80 anos, internada há 6 meses na instituição. Morava com a única filha, depois de ficar viúva, mas quando sofreu um derrame foi levada para a casa de repouso. Não consegue andar e perdeu o movimentos de uma das mãos. Estudou até a Segunda série do ensino fundamental e trabalhou quando jovem como empregada doméstica. Passa dias a fio deitada sobre uma cama. Divide o quarto com outra senhora.
2. Gilson - 75 anos, vive há 9 anos na casa de repouso. Estudou o curso técnico em desenho mecânico e trabalhou na área até se aposentar. Depois que a mulher desenvolveu o  mal de Alzheimer e foi internada na mesma casa de repouso, ele foi morar com o filho e visitava a mulher todos os dias. Depois de um tempo acharam conveniente ele também se internar. Gilson ficou no mesmo quarto que a esposa e vivenciou sua morte há dois anos. Depois disso resolveu ficar na instituição. Ele é um dos únicos que possui quarto individual com televisão.
3. Cleonice - 95 anos, há 7 anos na instituição. Estudou apenas os primeiros anos do ensino fundamental. Morou um tempo com o filho depois que ficou viúva, mas ela mesma relata que pediu ao filho que gostaria de ir para uma casa de repouso. Ela estava perdendo à visão por conta de um glaucoma e não gostava de pensar na possibilidade de incomodar o seu único filho e esposa. Quando chegou à instituição ainda enxergava um pouco, então foi aprendendo tudo sobre a localização dos objetos e do espaço físico da casa. Hoje é completamente cega, mas totalmente independente.
4. Cássia - 88 anos, há 2 anos na instituição. Estudou até o ensino médio, fez curso técnico em enfermagem e trabalhou por alguns anos em hospital. Depois de perder o marido, foi morar com o filho. Com o passar do tempo começou a ter dificuldades para fazer as tarefas do dia-a-dia e a cair com frequência em casa, então ficou internada em outra casa de repouso. Diz preferir ficar internada, pois não gosta de depender dos filhos e netos. Ela divide o quarto com dona Cleonice.

Com relação à análise dos dados, vale ressaltar a visão de Minayo e Sanches (1993) sobre a linguagem e a prática humana como matérias primas ou objetos privilegiados da análise qualitativa nos estudos sociais e na área da saúde. "A fala humana possui a função essencial de transmitir, através de um porta-voz (o entrevistado), representações de grupos determinados em condições históricas, socioeconômicas e culturais específicas". Dessa forma, a fonte de análise, partindo de uma abordagem histórico-cultural é a própria palavra que expressa a fala cotidiana, seja nas relações afetivas, no discurso de vivências triviais, nas histórias de vida ou nas lembranças de uma memória já quase apagada.

O procedimento de análise dos dados consistiu de transcrição integral das entrevistas e posteriormente a organização descritiva do fenômeno de maneira que se pudesse buscar as questões mais relevantes para a explicação do problema estudado. A partir de várias leituras, construiu-se categorias específicas, respeitando a condição de apresentarem um panorama da realidade pesquisada, buscando o diálogo permanente com a teoria proposta. Passo a passo, buscou-se a construção da representação do fenômeno em temáticas que pudessem ser discutidas num processo de abstração e de superação da mera aparência e da descrição empírica.

 

4 A significação do próprio processo de envelhecimento

De acordo com Leontiev (1978), a significação é aquilo que faz a mediação do homem com o mundo social e pode ser compreendida como o reflexo da realidade que foi elaborada no transcorrer da história da humanidade sob a forma de saberes, conceitos, atitudes e modos de agir. "É a forma ideal, espiritual da cristalização da experiência e das práticas sociais da humanidade" (p. 94).

Cupertino, Rosa e Ribeiro (2007) destacam a partir de falas de idosos a heterogeneidade e multidimensionalidade nas definições sobre o processo saudável de envelhecimento. As dimensões física, social, emocional, econômica, cognitiva dentre outras estão presentes nos significados que os idosos apontam para o próprio processo de envelhecimento.

Observando o fenômeno do envelhecimento à luz de uma perspectiva dialética as falas dos idosos refletem a significação construída sobre o próprio envelhecimento, destacando-se a saúde física como um dos aspectos mais relevantes neste processo. Embora, todos os relatos apontem para as perdas corpóreas que ocorrem com o passar dos anos e os comprometimentos com a saúde física como aspectos importantes na compreensão dos processos de envelhecimento, evidencia-se a partir da interpretação das construções históricas de vida de cada um dos idosos que a significação do processo de envelhecimento depende de uma apreciação individual, ou seja, é subjetivada em cada história de vida, independente da faixa etária de cada entrevistado. Parece haver uma infinidade de maneiras de sentir e avaliar o próprio sentido de envelhecer e, dessa forma, é possível compreender as contradições existentes no processo de construção individual e social de cada ser humano sobre o mesmo fenômeno. Nesse sentido, pode-se afirmar que é, portanto, quase impossível definir o que vem a ser o envelhecimento, na medida em que essa categoria ocupa diferentes dimensões para cada sujeito.

Alguns entrevistados demonstraram uma atitude e uma visão bastante positivas com relação ao envelhecer atrelado à própria saúde e o significado de ser e estar saudável, apesar de todos apresentarem algum comprometimento na saúde física. O relato de dona Marilena, por exemplo, reflete essa questão, já que ela está acamada há alguns meses. Ela veio para a instituição, depois de um acidente vascular cerebral que a deixou com várias sequelas motoras, e apesar de não poder andar, em suas falas é possível reconhecer que o significado de envelhecer, está mais ligado as perdas referentes a sua ação no mundo, do que por um sentimento de sofrimento com relação a saúde física. Talvez por isso, apareça em seu relato uma certa contradição quando aponta que apesar de não poder nem andar e nem se sentar como antes, ela acredita estar envelhecendo sem problemas, pois não sofre com nenhuma dor:

Ah, antes, quando eu era mais nova eu não sofria nada, tinha só a perna dura, mas a perna até hoje, graças a Deus, não me dói […] antes bendizer eu não tinha nada. Acho que eu tenho saúde, por que não me dói nada, eu tenho porque tem gente que é doente, dói aqui, dói ali, tem problemas, agora eu não. Até hoje não deu problemas, só não ando e não sento. (MARILENA, 80 anos)

Assim como dona Marilena, outros idosos têm uma visão ainda mais positiva do envelhecimento, mesmo com a saúde comprometida. Dona Cleonice demonstra em sua fala uma capacidade de compreender com clareza as diferenças e as perdas que os anos trazem. Ela veio para a casa depois de descobrir que ficaria completamente cega, mas compreende o envelhecer como um processo a ser enfrentado.

[…] quando eu entrei aqui eu tinha oitenta e poucos anos, a idade vem vindo e os anos vão, pensa que os anos não vão? Vamos envelhecendo […] O tempo pesa. Pesa porque você vai sentindo mais cansada, você vai sentindo mais cansadinha e aquilo que você fazia mais rápido, você vai levar mais tempo […] vem o cansaço, vem. Os anos pesam, mas para mim não, porque sou determinada […] Para mim não, eu faço tudo sozinha (CLEONICE, 95 anos).

A visão de envelhecimento acompanhado da doença corresponde a uma outra forma de compreender o desânimo e o cansaço vindo com o passar do tempo. Por menor que seja o comprometimento físico, outros sentem-se doentes e descrevem o envelhecer atrelado a um estado psicológico. Quando se envelhece, mas não se perde a harmonia com as outras pessoas ou a alegria de viver, tudo fica mais fácil, entretanto essa é uma difícil realidade já que ao adoecer fisicamente, o funcionamento psicológico também se altera. Para dona Cássia envelhecer significa a perda gradual da saúde física que consequentemente traz a perda da alegria.

Envelhecer é perder a saúde […] Ter saúde pra mim é uma coisa muito boa, que eu não tenho […] eu tenho osteoporose em último grau […] Saúde se você tem saúde você tem mais alegria, mais ânimo. Agora se você tem um problema de saúde que nem eu […] Eu tenho dor no corpo inteirinho, eu tenho artrose, reumatismo, eu tenho há 11 meses, uma coceira que não sara […] (CÁSSIA, 88 anos).

O envelhecimento também pode ser sentido com o peso dos anos e envolve perdas diversas. Relembrar de uma época em que se podia ir e vir, por exemplo, para alguns como dona Cássia pode ser algo bastante doloroso, imprimindo um significado árduo e pesaroso para o envelhecimento.

Sair daqui eu não quero […] Nem passear, eu não quero, eu não quero porque eu já me acostumei, se tu saiu pra rua, tu começa recordar o que você era e o que você ficou agora (CÁSSIA, 88 anos).

Dona Cássia, assim como as outras duas mulheres entrevistadas estavam na instituição, pois os filhos não tinham como cuidar delas em casa. Elas dividiam quarto com outras idosas e não tinham nenhum privilégio como uma televisão no quarto ou algo do tipo.  Ao contrário delas, o sr. Gilson, ficava num quarto sozinho, com poltrona, televisão e objetos individuais. Para isso, sua família pagava bem mais caro. Analisando aspectos econômicos, é possível notarmos grandes diferenças na forma como cada pessoa significa o próprio processo de envelhecimento.

Outro aspecto que merece destaque nessa análise é a questão de gênero. Diferentemente das mulheres, o sr. Gilson traz uma forma de compreender a velhice bem arraigada a sua identidade masculina. A maneira como ele conduziu a maioria das suas falas em todo o transcorrer da entrevista diz respeito a um envelhecimento que necessita da presença de uma companheira. Ele dá um valor muito grande a possibilidade de exercer a sua sexualidade falando de suas tentativas de fazer amizades com as enfermeiras e com outras profissionais e estagiárias que passam instituição. Embora, suas falas apontem para a lembrança de sua falecida esposa e também para uma perda das relações sociais, demonstra uma certa vivacidade no vislumbrar de planejamento de projetos para o futuro.

Mesmo depois do derrame, não me sinto velho […] Sabe porque que eu quero uma companheira? […] Vamos supor, com todo respeito, que você fosse minha companheira […] e que nós estaríamos juntos, estaríamos conversando, trocando ideias, entende? […] então, eu falo assim: a segunda feira vai numa agência de turismo vê se arranja uma viagem pra nós fazermos […] fazermos uma viagem de turismo, que nem minha esposa fazia isso, sabe? […] Você vai numa agência arruma um lugar pra gente fazer uma viagem, sai, vai passear, isso que eu quero, isso que eu quero viu? Não quero mais nada não (GILSON, 75 anos).

Enfim, a significação do próprio processo de envelhecimento para esses idosos encontra respaldo nas ideias de Gonzáley Rey (2003), quando aponta que os sentidos têm sua fonte no mundo dos significados, assim como no mundo sócio-cultural de cada sujeito. Esses sentidos são construções que se dão a partir da experiência pessoal e singular de cada sujeito.

 

5 A construção de significados sobre o envelhecer: tempo de recolhimento

Neste trabalho, os idosos relatam que aos poucos foram perdendo vínculos com a família, que passaram a visitá-los com menos frequência. Apontam também, com pesar, a perda simultânea de seus objetos pessoais, como casa, móveis e pequenas recordações construídas com o tempo.

Os quatro entrevistados parecem relutar contra a ideia de que foram levados para as casas de repouso por vontade dos próprios filhos, e em suas falas tentam demonstrar que estão lá por vontade própria porque não queriam atrapalhar a vida dos filhos e se sentiam muito mal em morar em uma casa que não era a deles. Esses idosos viram os filhos crescerem, tornarem-se independentes. Além disso, necessitaram trabalhar fora durante o dia todo. O cuidado necessário para com o idoso fica comprometido, na maioria dos casos, pois os filhos nem sempre possuem condições  de oferecê-los,  como aponta o sr. Gilson:

A minha filha já falou pra mim: - pai a hora que o senhor  enjoar, não quer ficar mais aqui, eu arranjo um lugar lá na minha casa, o senhor  vai morar comigo. Mas, eu não quero […] eu não quero porque ela trabalha, ela sai de manhã, eu fico sozinho lá na casa dela, não tenho companhia, pior do que aqui. Aqui tem as enfermeiras, sou muito bem querido aqui. O paciente que mais recebe visita aqui sou eu […] já falaram isso para mim. Eu recebo visita aqui […] ontem tinha dois  senhores aqui, que ficaram conversando comigo, sabe? (GILSON, 75 anos).

Segundo Bosi (1994), a moral acentua e cobra o respeito ao velho, entretanto quer convencê-lo a ceder seu lugar aos mais jovens, afastá-lo delicadamente, mas firmemente dos postos de direção. Os conselhos dos mais velhos passam a ser menosprezados e o velho deve se resignar a um papel passivo. A maioria dos adultos acaba privando o idoso da liberdade de escolha, insistindo na sua dependência. Alguns tomam conta de suas vidas, os obrigando a mudar da casa onde vivem, administrando o seu dinheiro ou aposentadoria, e, muitas vezes, os submetem à internação em instituição hospitalar. Para a autora, "A tolerância com o velho é entendida como uma abdicação do diálogo" (BOSI, 1994, p.78).

No relato da sra. Cleonice de 95 anos, ela mesma pedia ao filho que gostaria de ir para uma casa de repouso. Por conta de um glaucoma, a idosa foi perdendo aos poucos a visão e se diz preocupada com o fato de ter que passar o resto de seus dias na dependência do filho e da nora. Gostaria de ser independente. Então, começou a pedir ao filho que conseguisse algum lugar para ela ficar. Até que descobriu a casa onde está até hoje. Ao todo são sete anos. Antes de perder a visão, preocupou-se em aprender sobre o espaço físico da casa, já pensando no dia em que não poderia ver mais nada. Assim foi se adaptando ao local e às pessoas.

Eu estava fazendo tratamento já há uns três, ou quatro anos, quando meu filho disse: "Não mãe, agora a Sra. tem que vir para São Paulo, vai morar comigo". Eu vim, fiquei um ano com ele, mas eu não me dei, não me senti bem morando junto […] eu pensava comigo: – Ai, é melhor ficar sozinha, com alguma pessoa. Comecei a pensar essas coisas, ai pensei numa casa de repouso […] procurei, procurei, eu pedia muito pro meu filho: "Edgar eu quero ir para uma casa de repouso" […] ele não queria que eu viesse pra cá, até hoje ele não gosta (CLEONICE, 95 anos).

Vygostky (2004) ao tratar do desenvolvimento humano e das formas de socialização e humanização afirma que na ausência do outro, o homem não se constitui como tal. Com base nisso, pode-se pensar a vida na instituição como um processo restrito de contato com o outro, em que poucas relações são estabelecidas e a vinculação entre os iguais se torna cada vez mais difícil e rara. Por mais pessoas que passem pela instituição durante todo o dia, dentre eles, médicos, enfermeiros, cuidadores e os próprios idosos, o que se constata nas falas dos entrevistados é que em alguns momentos sentem uma imensa solidão, como aponta o senhor  Gilson de 75 anos: "Porque eu tenho uma solidão danada, sabe o que é ficar o dia inteirinho aqui? Eu posso sair só, posso sair quando quiser, mas eu não saio" (GILSON, 75 anos).

Segundo relatos como o do senhor  Gilson, não há na casa, nenhum trabalho interacional para a formação de vínculos dos idosos com seus companheiros e muito menos atividades que ocupem o tempo de maneira prazerosa e produtiva. O que se percebe é que muitos ficam isolados em seus quartos, em poltronas, cadeiras de rodas, pelos cantos e, em último caso, alguns recorrem à televisão coletiva em uma sala grande e fria. À noite, o movimento da casa é encerrado pelo silêncio, e para alguns é um momento de experimentar a verdadeira solidão. Os entrevistados dizem sentir falta de uma boa companhia para as horas monótonas e solitárias e, a tristeza é um sentimento que perpassa suas vidas.

 

6 O tempo e suas transformações: os significados de família

Zimerman (2000, p.51) afirma que na velhice a família  tem um papel bastante importante. No processo de envelhecimento, a configuração famíliar vai se modificando em suas várias dimensões, principalmente no que refere "a posição de cada membro dentro dela". A família para o velho passa a ser os filhos, netos, bisnetos.  Há, portanto, uma transformação na relação de cuidados, em que o idoso "que já teve filhos sob seu cuidado e dependência, agora é quem necessita de assistência e torna-se mais dependente".

A família, representada na fala dos idosos, ainda que em constante transformação, representa uma instituição bastante importante. As palavras que utilizam nas referências sobre a família, em vários momentos perpassam pela questão da afetividade, cuidados de uma pessoa com a outra e vínculos essenciais para que o ser humano possa de fato humanizar-se.

Da família, sinto falta da companhia […] Da companhia eu acho até hoje, que quando a gente tinha uma cozinhona grande, fogão à lenha, aí o meu pai e a minha mãe sentava num bancão comprido que tinha lá e, ficava contando história deles também de criança e, nós ficávamos assim escutando ali, eu sinto uma saudade disto que você tem que ver, e na hora na mesa também, na hora da comida, lá eles não punha a mesa não, cada uma pegava o seu prato e sentava assim, conversando […] era uma delícia, viu (MARILENA, 80 anos).

Outros, como é o caso do Sr. Gilson, afirmam que sua família foi, aos poucos, se desfazendo e, vêem nos membros das famílias de seus filhos, sobretudo netos e bisnetos, a herança familiar humana que podem ter ainda contato. Valorizam essa nova geração, contando orgulhosos os seus feitos.

Bom a minha família, são meus filhos e meus netos, porque o resto eu não tenho mais ninguém, tenho minha sobrinhada lá de Jundiaí […] que é muito importante pra mim […], é minha neta, meu neto que neto começou a trabalhar comigo também […] e gostou do que eu estava fazendo, ele foi na faculdade, se formou […] a mesma profissão que eu, só que ele é um pouquinho mais do que eu […] que eles fez mecatrônica, ele é eletrônico também […] é um grau a mais (GILSON, 75 anos).

Os idosos, de um modo geral, demonstraram em suas falas muito das memórias das relações familiares de suas infâncias. Quando perguntado sobre família ou o seu significado, muitos referiam-se à sua infância e não ao grupo familiar que construíram depois de adultos. Relembravam com falas emocionadas e entusiasmadas sobre as relações com seus pais, comemorações festivas, almoços e jantares com seus irmãos, tios e avós.

E enquanto nós tínhamos que tocar, ele arrumava o pinheirinho com a minha mãe, botando as velinhas pra acender porque naquela época se acendia as velinhas […] a minha família foi ma-ra-vi-lho-sa, pena que eu não tenho pra te mostrar meu pai. Juntava toda a família […] e as avós traziam o leitão assado no forno de fora de tijolo, com a cabecinha cheinha de alface em volta, outra trazia as mesas maravilhosas. Eram dois perus e dois leitões sempre tinha. Essas festas era o que mais tinha, as pessoas que tocam, hoje não tem mais isso. […] Hoje a família não é mais a mesma. Família muito pouco existe (CÁSSIA, 88 anos).

Alguns idosos lembraram com saudades do tempo em que sua família da época de criança saía para os passeios. Atividades como pescarias e outras brincadeiras e traquinagens típicas da infância foram revisitadas, como no caso de Gilson (75 anos), que consegue se lembrar de seus brinquedos e brincadeiras e até mesmo de bichos de estimação: "Nós tínhamos um gato amarelo, sabe como era o nome do gato? Fubá".

Alguns falaram de uma família que não existe mais e da impossibilidade de existir, fazendo referências à influência negativa da televisão nos lares atuais e as mudanças nas formas de interação entre as pessoas que vivem na mesma casa, mas que não tem mais tempo para se encontrar, devido a "velocidade" da sociedade pós-moderna.

[…] eu sou contra televisão, eu nem gosto televisão acredita? Eu acho que família tem que ficar unido junto, não é? Às vezes não fica. Só atrás de televisão, almoça e cada um tem o seu quarto, nós era tudo num quarto só, e era outra vida, e dava muito bem. Agora cada um tem o seu quarto, sua televisão, acaba de almoçar ou jantar, o que for, corre vai sentar na frente da televisão, eu sou contra (MARILENA, 80 anos).

Cássia fala orgulhosa da maneira como ela e seus irmãos foram educados e questiona a educação que as famílias da atualidade têm oferecido às suas crianças. A troca de valores é uma tópica interessante em seu relato, pois na sua visão, a família de hoje não é verdadeiramente família, e o que se dá aos filhos de hoje são bens materiais e objetos oferecidos pelo dinheiro e isso, segundo ela, não é nada perto dos ensinamentos e virtudes apreendidas na família de outros tempos.

Hoje há muita falta de educação em casa […] Agora ela escuta Padre Marcelo, mas antigamente criança com três anos já sabia rezar pai nosso, com 5 anos sabia rezar o credo. Isso aí sim é família. Agora esta família que pensa em pagar colégio, dar roupa e pagar faculdade, é família? Não é ou não tem tempo. Ou é aquele que não se importa, botou o filho no mundo para quê? A família de antigamente era a família (CÁSSIA, 88 anos).

 

7 A constituição da família: a simbologia do casamento

Historicamente, a constituição da família nuclear em nossa sociedade se deu a partir de um modelo legitimado pelo casamento. Partindo de um ritual ou cerimônia, a instituição familiar se fazia por meio da união de um homem com uma mulher, privilegiando a reprodução e, portanto, a manutenção de descendentes. Movimentos sociais como o feminismo que contribuiu para o reconhecimento dos direitos legais e autonomia das mulheres; o acesso à contraceptivos e a liberação do divórcio que alterou as relações conjugais são fatores que contribuíram substancialmente para mudanças na constituição de formas familiares.  Sendo assim, no atual momento histórico, as famílias vão se configurando de várias formas. Rios e Gomes (2009) apontam que a família tradicional aos poucos foi cedendo espaços a outras novas configurações familiares que se tornaram mais visíveis, exigindo da sociedade tanto legitimação, quanto maior aceitação de suas peculiaridades. Atualmente a família configura-se em nuclear, monoparental, homoparental, recomposta, desconstruída ou ainda gerada artificialmente, dentre outras formas de organização.

Aos poucos, na família, o pai foi perdendo a tradicional função de provedor, haja vista o novo papel que as mulheres têm ocupado nessa nova organização. A forma de se relacionar com os pais da noiva e os rituais impostos pelas famílias mais antigas é relembrada pelos idosos de forma clara, demonstrando a normatização e a rigidez com que foram construídas as suas próprias famílias.

Fui falar com o pai dela, pensa que foi fácil? Não foi fácil não viu?, quando eu entrei lá na sala estava as irmãs e os irmãos dela, […] eu enfrentei e falei: seu Alberto eu estou entrando aqui pra pedir permissão pro Sr. pra namorar com a sua filha, ele falou: tá bom, não tem problema, eu só quero uma coisa eu […] você pode entrar aqui namorar a minha filha tudo, mas não quero que fique parado no portão, de jeito nenhum, não quero que fique no portão, pode ficar aqui até a hora que você quiser, mas a hora  que você vai embora a minha filha fica aqui  e o Sr. sai, não quero que fique no portão. E eu obedeci, não tinha problema nenhum, e assim foi meu namoro, tão bacana, viu? (GILSON, 75 anos)

Nas organizações das sociedades de outrora existiam certos ritos de passagem que demarcavam a transição dos jovens para a idade adulta. Até pouco tempo, a entrada do jovem no mundo do trabalho, o cumprimento do serviço militar para os homens e o casamento constituíam momentos importantes para a transição para o status de adulto. Atualmente os rituais são mais escassos e os aspectos que delimitam as fronteiras entre as idades da vida são bem mais fluidos e descontínuos.

No relato do sr. Gilson pode-se ver também que a imagem da mulher e a forma como a esposa era percebida na época de seu casamento, mudou bastante de seu  tempo para o atual momento histórico. O pensamento machista parece estar presente na forma como ele concebe a figura da mulher estabelecendo critérios explícitos para a compreensão e a reflexão sobre os papéis de homem e mulher, de marido e esposa, como também das mudanças ocorridas no seio das famílias nas últimas décadas.

[…] eu casei, eu estava com 25, ela tava com 23. […] Ah, e outra coisa, ela se dava ao respeito, naquele tempo não usava calça comprida, saia né? Ela sentava já puxava o vestido. Nunca se trocou na minha frente, se ela tinha que tomar um banho ela pedia licença pra mim falava: olha eu vou tomar banho, você me dá licença? Eu falava: - pode tomar banho, eu respeitava muito sabe? (GILSON, 75 anos)

Nas sociedades capitalistas, o casamento formal e juridicamente legal, com todas as suas regras, práticas e valores tem sido historicamente apontado como o rito necessário para a formação da família. Na maioria dos casos tem sua indissolubilidade reforçada pela força da instituição religiosa. O vestido branco, a flor de laranjeira, assim como  a missa que se fazia presente no ritual, demonstrava-se tão importante quanto a definição de papéis sociais, as atividades do dia-a-dia e se constituía em norma social prescrita para aqueles que apresentassem condições legais de efetivá-lo.

[…] acabei casando […] Teve vestido branco, sapato branco, um vestido muito bonito, feito por costureiro, toda a minha roupa foi feita por costureiro. Foi na casa do meu irmão Sergio, ele fez um altar, e a igreja do São João Batista mandou alguns Santos e pos no Altar, ficou uma beleza, uma almofada muito linda pra ajoelhar, tapete. Estava muito lindo! (CLEONICE, 95 anos).

Por um longo período na história brasileira, a mulher só tinha duas escolhas, ou casava com um marido escolhido pelo pai, muitas vezes com alguém que ela mal conhecia ou sequer gostava, ou seguia pelo caminho do celibato e da religião. O casamento era entendido como um contrato, sem término de validade, em que  não se concebia a separação. A mulher, depois do casamento, assumindo o  sobrenome do marido, passava a ser propriedade do marido, e este por sua vez, tinha o papel de  sustentar e proteger a mulher e aos filhos. Todos os direitos, assim como as obrigações advindas do matrimônio como os  filhos e a proteção dos bens da família era de responsabilidade exclusiva do marido.  O século XX trouxe várias revoluções no papel da mulher que, por sua vez, ocasionaram consequencias irreversíveis na concepção de família. Mudanças em relação ao tratamento jurídico familiar (processos de separação e divórcio), como também alterações nas relações domésticas e cuidados com os filhos foram essenciais para a constituição dessa nova família.

As exigências das famílias para a escolha dos maridos e esposas é tópica importante colocada nas afirmações dos entrevistados. A questão econômica aparece claramente em seus relatos sobre constituição familiar.

E meu pai não queria que eu casasse com ele, porque o meu pai adotivo era de dinheiro, era rico […] Então ele achava que, ele não podia me sustentar, e o meu pai: "Ah você vai casar com ele e vai ser infeliz, porque ele não pode dar o que você tem hoje" (CLEONICE, 95 anos).

Outro relato de uma das entrevistadas evidencia a forma como as relações familiares foram se alterando. A história também se faz a partir de mudanças nas leis e no comportamento das pessoas, contudo a mera alteração das leis não muda efetivamente as relações entre os indivíduos. A estruturação da família com base na autoridade e comando supremo do pai, ou o chefe de família foi durante muito tempo no Brasil, uma dura realidade. A escolha do marido ideal para as filhas ia desde critérios econômicos até a étnicos, onde o preconceito e a intolerância ocupava lugar de destaque, como afirma dona Cássia.

[…] aí meu pai disse para mim que ele preferia me ver uma vagabunda do que casar com  brasileiro […] ele dizia que eu podia casar com negro, alemão ou polonês, mas menos com brasileiro (CÁSSIA, 88 anos).

Pensando a fala de dona Cássia mediada por uma perspectiva histórico-cultural, pode–se afirmar que apesar do grande crescimento socioeconômico do Brasil, levando em consideração todas as conquistas da mulher frente o advento dos novos códigos jurídicos, a família ainda não deixou de ser regida ainda que parcialmente pelo sistema patriarcal do passado. Na atualidade, tantos os direito como os deveres no seio da família foram, em certa medida, igualados para homens e mulheres, entretanto seu relato denuncia o que ainda se guarda no aconchego dos lares muito daquilo que os nossos idosos viveram há décadas. O movimento da história é lento e as mudanças políticas e sociais demoram a se consolidar, deixando arraigada nas mentalidades das famílias, a difícil tarefa de imprimir efetivamente o principio da igualdade entre homens/mulheres, adultos/crianças e jovens/idosos.

 

8 Considerações finais

Reconhecidamente a família tornou-se, com o desenrolar da história humana, um espaço que, ao mesmo tempo em que é entendido como físico, enquadra-se também em lugar simbólico e de relações sociais. Sendo assim, pode-se dizer que as diversas estruturas compreendidas como família, consistem num lócus privilegiado de construção social da realidade. Em sua dinâmica e heterogeneidade, a família está longe de ser entendida como algo acabado, mas passa por constantes transformações atreladas a uma infinidade de variáveis, como por exemplo, o momento histórico, a geografia, o grupo social e a cultura. A essas variáveis e inconstâncias cada pessoa pode atribuir múltiplos significados e sentidos a sua própria família.

Simultaneamente às mudanças na família e na sociedade, a evolução ontogenética do humano também oferece uma gama de significações para serem pensadas à luz de teorias que possam dar conta de uma melhor compreensão da realidade social. No Brasil, assim como na maioria dos países em desenvolvimento o número de idosos tem aumentado significativamente e a questão do cuidado com essa população tem movimentado pesquisadores em busca de dados científicos visando à organização de políticas públicas mais humanas de atendimento.

Na maioria das grandes cidades brasileiras, a questão da institucionalização do idoso é preocupante, principalmente pelas mudanças ocorridas no seio da família, nos papéis exercidos pela mulher e na tradição do cuidado dos mais velhos pelos mais jovens. Ao saírem de casa para o trabalho em busca da sobrevivência, filhos e possíveis cuidadores, acabam por não darem conta de oferecer infraestrutura necessária para que o idoso possa ser cuidado pela própria família, recorrendo na maioria das vezes à institucionalização.

Na compreensão do fenômeno do envelhecimento, assim como das representações de família para esses idosos, que vivem atualmente em instituição na grande cidade, o que se percebe é que essas pessoas valorizam a agência familiar, tem lembranças saudosas da vida em família e parecem viver uma espécie de luto por conta dos vínculos perdidos.

Realizar uma conceituação universal do processo de envelhecimento é, sobretudo, partir de um construto determinista, em que se perde o caráter e a representação da psique humana sem a sua dimensão complexa, dialógica e dialética. Nas falas dos entrevistados, ficam claros os sentidos e as significações do envelhecer atrelados à subjetividade, que remete à própria condição do homem como sujeito ativo e interativo; como ser histórico, que se constitui dialeticamente, abrangendo presente, passado e futuro, num processo de constante transformação física, psíquica e social.

Os dados desta pesquisa permitem a constatação de que a família moderna atual está visivelmente em modificação, representando na visão dos idosos entrevistados um dos maiores motivos para a internação na casa de repouso. A família significada pelos idosos apresenta-se como uma família de outrora, como modos de funcionamento muito diferentes dos de hoje. Embora alguns relatos tenham mostrado uma família ainda muito ligada a valores religiosos pouco vistos e a costumes e maneira de se viver em família quase desaparecidos, como o jantar na mesa e os contatos mais afinados entre pais e crianças, mostraram também a existência de rituais de constituição de família por meio do casamento que são vistos em grande medida ainda hoje, até mesmo nas grandes metrópoles.

As relações familiares foram relembradas com detalhes e com muita emoção, ressaltando a ideia da verdadeira família, muita pautada na família da infância dos idosos. Quando questionados sobre a família atual, os idosos não se referiam à família construída por eles de forma direta e procuravam descrever a condição de seus netos com certo orgulho pelos seus feitos.

Com relação ao envelhecimento e institucionalização há pelo menos dois grupos de respostas. Alguns relataram ter ido pela própria vontade para a casa de repouso, pois não queriam incomodar os filhos ou sentiam-se sozinhos quando todos saíam para suas atividades cotidianas, enquanto outros idosos colocam a instituição como um local pouco agradável para se viver, demonstram sofrimento por estarem longe de suas casas e filhos e não conseguirem formar vínculos com outros moradores da instituição, que se encontram na mesma condição.

De um modo geral, é clara a ideia de que embora idosos institucionalizados mereçam ter acesso a uma rede de apoio em saúde interdisciplinar, é necessário, ainda, ressaltar a urgência na organização de serviços de atendimento à essa população, sem que para isso seja preciso retirá-lo da convivência familiar, do contato com seus filhos, netos, amigos e objetos individualizados que fizeram e fazem parte de sua construção sócio-histórica.

Embora o desenvolvimento urbano e industrial, responsáveis pelo processo acelerado de crescimento das grandes cidades como São Paulo, no século XX, associado as grandes transformações ocorridas nos núcleos familiares obrigaram as famílias a recorrerem à instituições para o cuidado com os seus idosos, permanece viva a ideia de que a convivência familiar e a valorosa vinculação de homens e mulheres ao seu grupo de origem ainda é a forma privilegiada de se viver e de se relacionar com o mundo, nas múltiplas formas de se construir como sujeito social.

 

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Endereço para correspondência
Edna Martins
Estrada do Caminho Velho, 333. Bairro dos Pimentas, CEP 07252-312, Guarulhos, SP, Brasil.
Endereço eletrônico: emartinsunifesp@gmail.com

Recebido em: 14/02/2011
Reformulado em: 28/07/2011
Aceito para publicação em: 08/08/2011
Acompanhamento do processo editorial: Eleonôra Prestrelo

 

 

Notas

* Dra. em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora da Universidade Federal de São Paulo - Campus Guarulhos.