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Estudos e Pesquisas em Psicologia
On-line version ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. vol.17 no.1 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2017
PSICOLOGIA SOCIAL
Habilidades Sociais e Comorbidades Psiquiátricas de Mulheres Usuárias de Crack
Social Skills and Psychiatric Comorbidities of Women Addicted to Crack
Habilidades sociales y comorbilidades psiquiátricas en mujeres usuarias de crack
Jéssica Limberger*; Ilana Andretta**
Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil
RESUMO
A literatura aponta que características clínicas como a depressão relacionam-se com baixas habilidades sociais. Em mulheres usuárias de crack, tais questões ainda são pouco estudadas. Este estudo objetiva identificar as associações entre habilidades sociais e comorbidades psiquiátricas dessa população. Trata-se de um estudo transversal, quantitativo e correlacional, sendo utilizados como instrumentos: questionário de dados sociodemográficos e de uso de drogas, MINI (Mini International Neuropsychiatric Interview), Inventário de Habilidades Sociais (IHS-Del Prette), Screening Cognitivo do WAIS-III e SCID-II (Structured Clinical Interview for DSM Disorders). Participaram 62 mulheres em internação hospitalar, com média de idade de 33,45 anos (DP=8,14). Mulheres com Episódio Depressivo Maior apresentaram escores significativamente menores no autocontrole da agressividade. Além disso, houve associação entre déficits em habilidades sociais e Transtorno de Personalidade Borderline. Evidencia-se a necessidade de considerar as comorbidades psiquiátricas como um dos fatores que prejudicam o uso das habilidades sociais. Intervenções como o Treinamento em Habilidades Sociais devem ser planejadas a partir de tais comorbidades.
Palavras-chave: mulheres, cocaína crack, habilidades sociais, transtornos relacionados ao uso de substâncias.
ABSTRACT
The literature suggests that clinical characteristics such as depression are related to low social skills. In women users of crack, such issues are still little studied. Thus, the objective of this research is to identify associations between social skills and psychiatric comorbidities in this population. This is a transversal, quantitative and correlacional study, being used as instruments: data questionnaire sociodemographic and drug use, MINI (Mini International Neuropsychiatric Interview), Social Skills Inventory (IHS-Del Prette), Cognitive Screening of the WAIS-III and SCID-II (Structured Clinical Interview for DSM Disorders). Participated 62 women in hospital, with a mean age of 33.45 years (SD = 8.14). Women with Major Depressive Episode had significantly lower scores in self-control aggression. In addition, there was an association between deficits in social skills and Borderline Personality Disorder. It´s evident considering the psychiatric comorbidities as one of the factors that hinder the use of social skills. Interventions as the Social Skills Training should be planned from such comorbidities.
Keywords: women, crack cocaine, social skills, substance-related disorders.
RESUMEN
La literatura sugiere que las características clínicas, tales como la depresión están relacionadas con las habilidades sociales bajas. En mujeres usuarias de crack, estas cuestiones son todavía poco estudiadas. Por lo tanto, el objetivo es identificar asociaciones entre las habilidades sociales y las comorbilidades psiquiátricas en esta población. Se trata de un estudio transversal, cuantitativo y correlacional, siendo utilizados como instrumentos: cuestionario de datos sociodemográficos y el uso de drogas, MINI (Mini International Neuropsychiatric Interview), Inventario de Habilidades Sociales, examen cognitivo de la WAIS-III y SCID-II (Structured Clinical Interview for DSM Disorders). Participaron 62 mujeres en hospitalización, con una edad media de 33,45 años (DE = 8,14). Las mujeres con episodio depresivo mayor tenían puntuaciones significativamente más bajas en autocontrol de la agresividad. Además, hubo una asociación entre los déficits en habilidades sociales y trastorno de la personalidad borderline. La necesidad es considerar las comorbilidades psiquiátricas como uno de los factores que impiden el uso de las habilidades sociales. Intervenciones como el entrenamiento en habilidades sociales deben planificarse desde tales comorbilidades.
Palabras clave: mujeres, cocaína crack, habilidades sociales, trastornos relacionados con sustâncias.
1 Introdução
As habilidades sociais (HS) são apontadas pela literatura como importantes fatores de proteção no desenvolvimento, relacionando-se com o menor risco para o uso de drogas (Seitz, Wyrick, Orsini, Milroy & Kenney, 2013; Torres, Arévalo, Cuevas, & Rodríguez, 2006). Tais habilidades constituem um conjunto de comportamentos emitidos por uma pessoa em seu meio social, na expressão de seus sentimentos, desejos, atitudes, opiniões e direitos, de maneira adaptativa e assertiva, diminuindo a probabilidade de dificuldades futuras (Caballo, 2003).
Del Prette e Del Prette (2001) nomeiam cinco fatores de habilidades sociais. O enfrentamento com risco indica a capacidade de lidar com situações interpessoais, que necessitam a afirmação e defesa de direitos. A autoafirmação na expressão de afeto positivo compõe-se de habilidades como elogiar e agradecer elogios, defender em grupo outra pessoa e participar de conversa trivial. A conversação e desenvoltura social retrata a capacidade de lidar com situações com risco mínimo de reação indesejável, a partir de normas do relacionamento cotidiano. A autoexposição a desconhecidos e situações novas inclui a abordagem a pessoas desconhecidas, com maior risco de reação indesejável do outro. Por fim, o autocontrole da agressividade a situações aversivas, indica a expressão de desagrado ou raiva de maneira socialmente competente (Del Prette & Del Prette, 2001).
As habilidades sociais são desenvolvidas no decorrer do ciclo vital, sendo que as experiências de aprendizagem positivas são fatores que contribuem para o aumento do repertório de habilidades sociais (Del Prette, Ferreira, Dias, & Del Prette, 2015). Diversos fatores dificultam a utilização das habilidades sociais, como a carência de modelos socialmente habilidosos, as experiências negativas de aprendizagem das habilidades sociais no decorrer do desenvolvimento e características clínicas como a depressão e a ansiedade (Fernandes, Falcone, & Sardinha, 2012; Segrin, 2000).
Dentre as populações clínicas avaliadas, destacam-se as baixas habilidades sociais de usuários de drogas lícitas e ilícitas (Cunha, Carvalho, Kolling, Silva, & Kristensen, 2007; Sintra, Lopes, & Formiga, 2011; Sá & Del Prette, 2011; Wagner & Oliveira, 2015). Revisões sistemáticas sobre o tema apontam que a inabilidade social ocasiona piores respostas frente ao uso de drogas (Vieira & Feldens, 2013; Wagner & Oliveira, 2007). Especificamente em mulheres usuárias de crack, os relacionamentos interpessoais desempenham um importante papel na manutenção do uso de drogas, pois a rede de apoio acaba sendo substituída por relacionamentos entre usuários (Alves, Ribeiro, & Castro, 2011; American Psychiatric Association, 2014; Limberger & Andretta, 2015; Sayago, Lucena-Santos, Ribeiro, Yates, & Oliveira, 2013).
Estudos sobre as habilidades sociais de mulheres usuárias de crack ainda são raros na literatura, conforme aponta uma recente revisão sistemática da literatura nacional e internacional sobre o uso de drogas e as habilidades sociais (Schneider, Limberger, & Andretta, 2016). Além da avaliação das habilidades sociais nesta população, torna-se relevante a avaliação das comorbidades psiquiátricas, tendo em vista que baixas habilidades sociais relacionam-se com a depressão (Feitosa, 2013). Nessa perspectiva, conforme um estudo brasileiro, pessoas com depressão apresentam menor autocontrole da agressividade quando comparadas com pessoas não deprimidas (Fernandes, Falcone, & Sardinha, 2012). Por sua vez, especialmente na população de usuários de crack, há maior prevalência de comorbidades psiquiátricas, que implicam em prejuízos como o aumento da agressividade, maior tempo de hospitalização e recaídas (Essau, 2008; Johnson, O´Leary, Striley, Abdallah, Bradford, & Cottler, 2011; Mundt, Kastner, Larraín, Fritsch, & Priebe, 2015).
Considerando as baixas habilidades sociais de usuários de drogas apontados pela literatura, bem como os prejuízos decorrentes de comorbidades psiquiátricas, hipotetiza-se que baixas habilidades sociais estarão associadas à comorbidades psiquiátricas. Sendo assim, este estudo objetiva avaliar as habilidades sociais de mulheres usuárias de crack e identificar associações entre habilidades sociais e comorbidades psiquiátricas de tais mulheres.
2 Método
2.1 Delineamento
Trata-se de um estudo transversal, quantitativo e de alcance correlacional (Sampieri, Collado, & Lucio, 2013).
2.2 Participantes
O tamanho da amostra foi definido através do software estatístico STATS 2.0, com nível desejado de confiança de 80%. O cálculo foi realizado com base nos dados do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus), considerando o número de mulheres em tratamento no SUS, no ano de 2013, devido ao uso de cocaína/crack, no estado do Rio Grande do Sul (Datasus, 2014). O resultado do cálculo apontou para uma amostra de 62 participantes.
Os critérios de inclusão foram: mulheres com idade entre 18 e 59 anos, abstinentes há pelo menos sete dias, com Transtorno por Uso de Substâncias, tipo crack, de acordo com os critérios diagnósticos do DSM-5 (APA, 2014), que estivessem entre o sétimo e o décimo quinto dia de internação hospitalar para desintoxicação devido ao uso do crack, via Sistema Único de Saúde (SUS). As participantes, em sua maioria solteiras (62,9%; n=39), possuíam média de 33,45 anos (DP=8,14). Grande parte da escolaridade referida foi o Ensino Fundamental Incompleto (50,8%; n=31) e Ensino Médio Incompleto (23%; n=14). De acordo com os Critérios Socioeconômicos Brasil, 32,3% (n=20) das mulheres pertencia à classe C1; 19,4% (n=12) à classe C2; 19,4% (n=12) à classe E e 17,7% (n=11) à classe D. O somatório das classes A e B foi de 11,3% (n=7).
Foram excluídas participantes com síndrome psicótica (verificada através do Mini International Neuropsychiatric Interview) e com prejuízos cognitivos (verificado através dos subtestes vocabulário e cubos do Screening Cognitivo do WAIS-III). Tais instrumentos serão descritos a seguir.
2.3 Instrumentos
Questionário de Dados Sociodemográficos e sobre o Uso de Drogas
O questionário foi desenvolvido pelo grupo de pesquisa "Intervenções Cognitivo Comportamentais: Estudo e Pesquisa", sendo composto de questões fechadas sobre dados sociodemográficos, Critérios de Classificação Econômica Brasil, da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP, 2015), dados familiares, padrão de uso de drogas (tipo e tempo de uso de cada droga utilizada), além de dados sobre o tratamento e critérios do DSM-5 (APA, 2014) para diagnóstico de Transtorno por Uso de Substâncias.
Mini International Neuropsychiatric Interview (MINI)
Trata-se de uma entrevista clínica padronizada breve, de livre acesso, compatível com os critérios diagnósticos do DSM-IV-TR (APA, 2002). Foi desenvolvida por Sheehan et al. (1998) e validada para o Brasil por Amorim (2000), com índices Kappa satisfatórios, demonstrando confiabilidade nas categorias diagnósticas (0,86 a 1) e para Transtornos Psicóticos (0,62 a 0,95) (Amorim, 2000). A entrevista foi utilizada para avaliar a presença de síndrome psicótica (critério de exclusão) e comorbidades psiquiátricas (Episódio Depressivo Maior, Distimia, Episódio (Hipo) Maníaco, Transtorno de Pânico, Agorafobia, Fobia Social, Transtorno Obsessivo-Compulsivo, Transtorno de Estresse Pós-Traumático, Síndrome Psicótica, Anorexia Nervosa, Bulimia Nervosa e Transtorno de Ansiedade Generalizada), além do risco de suicídio.
Screening Cognitivo do WAIS-III
Trata-se de um teste de uso exclusivo dos psicólogos, desenvolvido por Wechsler (1997) e adaptado e padronizado para o Brasil por Nascimento (2004). O subteste vocabulário (α=0,92) avalia a compreensão verbal a partir de palavras apresentadas ao examinando, que deve definir oralmente. O subteste cubos (α=0,83) avalia a organização perceptual através de um conjunto de padrões geométricos bidimensionais que o examinando deve reproduzir usando cubos de duas cores. A correção deste instrumento foi realizada por dois juízes independentes, sendo acionado um terceiro juiz quando necessário para consenso. A partir da subtração do escore ponderado de vocabulário, para o escore ponderado de cubos, a diferença de três pontos ou mais indicou prejuízo cognitivo, conforme aponta Cunha (1993) e Feldens, Silva e Oliveira (2011). O prejuízo cognitivo configurou-se como critério de exclusão.
Inventário de Habilidades Sociais (IHS-Del Prette)
Desenvolvido por Del Prette e Del Prette (2001) no contexto brasileiro, trata-se de um teste de uso exclusivo dos psicólogos que objetiva caracterizar as habilidades sociais em diferentes situações: trabalho, escola, família e cotidiano. O Inventário é de autorrelato, composto por 38 itens, em escala do tipo likert, com cinco pontos, que variam de nunca a raramente e sempre ou quase sempre. Possui Alfa de Cronbach de 0,75 e estabilidade teste-reteste (r=0,90; p=0,001). A análise fatorial revelou uma estrutura de cinco fatores que reúnem habilidades sociais de: 1) enfrentamento/autoafirmação com risco; 2) autoafirmação de afeto positivo; 3) conversação e desenvoltura social; 4) autoexposição a desconhecidos e situações novas e 5) autocontrole da agressividade. Os resultados foram apurados de forma simplificada, com base na média simples dos valores obtidos, conforme sugere o manual. Valores situados no percentil 50 indicaram posição mediana, acima de 75% indicaram altos fatores em habilidades sociais e abaixo de 25% indicam déficits no repertório de habilidades sociais (Del Prette & Del Prette, 2001).
Structured Clinical Interview for DSM Disorders (SCID-II)
Trata-se de uma entrevista semi-estruturada, utilizada em estudos observacionais e clínicos, que objetiva identificar diagnósticos de acordo com o DSM-IV-TR (APA, 2002). A partir desta entrevista, foram investigados os seguintes Transtornos de Personalidade: Histriônico, Narcisista; Borderline e Antissocial.
2.4 Procedimentos
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob parecer 012/2015. Os hospitais com internações via Sistema Único de Saúde foram escolhidos por conveniência, mediante contato explicitando os objetivos da pesquisa. Tais hospitais localizavam-se na região metropolitana e noroeste do estado do Rio Grande do Sul.
Após Carta de Anuência dos hospitais, as participantes foram convidadas a participar da pesquisa. Foram explicados os objetivos da pesquisa e a voluntariedade no estudo, assegurando o sigilo dos dados e o anonimato. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE foi lido em conjunto com a participante, e mediante a concordância em participar do estudo, foi assinado em duas vias, ficando uma via com a participante e outra via com a pesquisadora. A devolução dos resultados da pesquisa às participantes e aos respectivos hospitais foi ofertada.
Os dados foram coletados em um período de seis meses, pela pesquisadora e por seis integrantes do grupo de pesquisa, com treinamento específico para cada instrumento, conforme respectivas orientações de cada manual, além de supervisão semanal com a pesquisadora. Os instrumentos foram aplicados individualmente, no hospital, em local que permitisse a privacidade. A abstinência foi avaliada a partir do autorrelato, além de considerar o regime fechado de internação. Na maioria dos casos, os dados foram coletados em apenas um dia, e quando não houve tempo hábil, houve continuidade em outro dia.
Os dados foram analisados através do Statistical Package for Social Sciences – SPSS, versão 20.0. A análise descritiva contemplou frequências, porcentagem, média, mediana e desvio padrão da amostra, com estudo da distribuição de dados pelo teste de Kolmogorov-Smirnov. A fim de comparar as médias de habilidades sociais entre os diferentes grupos, utilizou-se o Teste t-Student nas variáveis com distribuição aproximadamente normal. Na comparação entre variáveis categóricas foi usado o teste Qui-quadrado de Pearson ou Exato de Fisher. Para critérios de decisão estatística adotou-se o nível de significância de 5% (p ≤ 0,05).
3 Resultados
Foram entrevistadas 83 mulheres, sendo 21 excluídas por não contemplarem os critérios de inclusão, a saber: dez apresentavam síndrome psicótica, oito não completaram o preenchimento de todos os instrumentos e três não possuíam os critérios diagnósticos para Transtorno por Uso de Crack. Desta forma, 62 mulheres participaram da pesquisa.
A avaliação, a partir dos critérios diagnósticos do DSM-5 (APA, 2014) para Transtorno por Uso de Substâncias, demonstrou que uso de crack foi grave em 74,2% (n=46) das mulheres, seguido de moderado (21,0%, n=13) e leve (4,8%; n=3). No que diz respeito à avaliação geral das habilidades sociais, 37,1% (n=23) apresentou repertório acima da média no escore total, 25,8% (n=16) tiveram déficits, 21% (n=13) apresentaram repertório bastante elaborado e 16,1% (n=10) tiveram escore abaixo da média no referido escore. A maioria das mulheres apresentou déficits nos fatores conversação e desenvoltura social, autoexposição a desconhecidos e situações novas e autocontrole da agressividade, com resultados abaixo da média na autoafirmação e expressão de afeto positivo e resultados acima da média no enfrentamento e autoafirmação com risco, conforme detalhado na tabela 1.
Na avaliação clínica, o risco de suicídio foi apontado em 71% (n=44) dos casos. Foram identificadas comorbidades psiquiátricas através do MINI e transtornos de personalidade através da SCID-II, conforme tabela 2.
A partir de tais comorbidades psiquiátricas, foram identificadas diferenças significativas em mulheres com maiores ou menores médias nas habilidades sociais, conforme podem ser observados na tabela a seguir.
A partir dos dados da tabela 3, identifica-se que mulheres com episódio depressivo maior tiveram médias significativamente menores no autocontrole da agressividade, além da presença de algum dos transtornos de personalidade avaliados (histriônico, narcisista, borderline e antissocial). Além disso, apresentar déficit no autocontrole da agressividade associou-se com ter transtorno de personalidade e ter transtorno de personalidade borderline, conforme pode ser observado na tabela 4.
4 Discussão
A partir do objetivo de avaliar as habilidades sociais de mulheres usuárias de crack, identificou-se que apenas no escore total e no enfrentamento/autoafirmação com risco foram encontrados resultados acima da média. Demais estudos brasileiros que compararam as HS de usuários e não usuários de drogas também não encontraram diferenças significativas no escore total de usuários de álcool, maconha, cocaína/crack (Wagner & Oliveira, 2015; Sá & Del Prette, 2011). Desta forma, o uso de drogas não necessariamente possui relação com o escore total de HS, mas sim com classes específicas (Sá & Del Prette, 2011).
Destaca-se que os déficits encontrados na conversação e desenvoltura social foram os mais expressivos. Em um estudo brasileiro com 26 usuários de álcool (Cunha et al., 2007) e em um estudo português com 125 usuários de diferentes drogas ilícitas (Sintra et al., 2011), também foram encontrados déficits no referido fator. Considerando que as HS necessitam ser exercitadas para que o repertório seja aprimorado (Caballo, 2003), o isolamento social de usuários de crack pode dificultar ainda mais o uso de tais habilidades (Sayago, Lucena-Santos, Ribeiro, Yates, & Oliveira, 2013). Nessa perspectiva, a carência de uma rede de apoio contribui em maiores prejuízos em mulheres usuárias de crack (Limberger & Andretta, 2015), dificultando o exercício de habilidades de traquejo social no relacionamento cotidiano.
A partir da avaliação clínica, evidenciou-se comorbidades psiquiátricas, corroborando a literatura nacional e internacional (Hess, Almeida, & Moraes, 2012; Mundt, Kastner, Larraín, Fritsch, & Priebe, 2015). O Transtorno Depressivo Maior, presente neste estudo, condiz com outras evidências que indicam que tal transtorno associa-se ao uso de drogas, especialmente em mulheres (Essau, 2008). Em um estudo americano com mulheres usuárias de crack, o Episódio Depressivo Maior Atual foi um fator preditivo ao uso de crack (Johnson et al., 2011). Desta forma, a depressão também necessita ser considerada no tratamento do uso de crack em mulheres, tendo em vista que esta comorbidade psiquiátrica implica em sofrimento e prejuízos significativo no funcionamento social e demais áreas importantes da vida, além da perda de interesse, que pode impactar negativamente no tratamento do uso de drogas (APA, 2014).
Mulheres que possuíam Episódio Depressivo Maior Atual tiveram médias significativamente menores no autocontrole da agressividade, quando comparadas com mulheres sem Episódio Depressivo Maior Atual. De acordo com um estudo brasileiro, com 1.031 universitários, identificou-se uma correlação negativa entre depressão e o escore total de habilidades sociais, apontando que pessoas que possuem déficits nas HS percebem-se com um maior nível de sofrimento psicológico, ao serem comparadas com pessoas com maiores habilidades sociais (Feitosa, 2013). Em outro estudo brasileiro com 46 participantes, pacientes com depressão apresentaram médias significativamente menores no autocontrole da agressividade (Fernandes, Falcone, & Sardinha, 2012). Nesse sentido, conforme Segrin (2010) baixas habilidades sociais podem tanto contribuir na ocorrência da depressão, como também serem sintomas de um quadro depressivo.
Neste estudo, apresentar um Transtorno de Personalidade associou-se com déficits e menores médias no autocontrole da agressividade. Compreende-se que os transtornos de personalidade são acompanhados de sofrimento emocional, havendo prejuízos significativos na adaptação social e nas interações sociais (Feitosa, 2013). Dentre os transtornos de personalidade avaliados, o borderline associou-se significativamente com menores médias no autocontrole da agressividade. Tal habilidade social requer um automonitoramento e que possibilite condições no controle da raiva e na tolerância à frustração (Del Prette & Del Prette, 2014; Vieira & Feldens, 2013). Com isso, o exercício do autocontrole da agressividade é dificultado devido à impulsividade e o padrão de instabilidade nas relações interpessoais, característico do transtorno de personalidade borderline (APA, 2014; Wagner & Oliveira, 2015).
Considerando que o fator de autocontrole da agressividade foi o único fator de habilidades sociais que se associou com as comorbidades psiquiátricas, percebe-se que há uma dificuldade das mulheres usuárias de crack em reagir a estímulos aversivos, onde a raiva é expressa de maneira desadaptativa, com maior probabilidade de problemas futuros. Tais questões podem ocorrer devido à escolha de recompensas imediatas e à impulsividade presente em usuários de crack, além da violência cotidiana dos contextos de uso (Alves, Ribeiro, & Castro, 2011). Outro estudo brasileiro também ressalta esta questão, demonstrando a correlação negativa entre o uso de cocaína/crack e o autocontrole da agressividade (Sá & Del Prette, 2011). Além disso, as dificuldades no autocontrole da agressividade podem acarretar em prejuízos nas demais habilidades sociais, pois há uma dificuldade na compreensão nas necessidades do interlocutor.
Diante de tais achados, compreende-se que o desenvolvimento de habilidades sociais específicas, como o autocontrole da agressividade, mostra-se relevante tanto no contexto do tratamento ao uso de drogas quanto nos demais contextos de interação. Sendo assim, há necessidade de intervenções, como o Treinamento em Habilidades Sociais para usuários de drogas, a fim de que um novo repertório seja desenvolvido, contribuindo para a qualidade das interações sociais (Schneider, Limberger, & Andretta, 2016; Wagner & Oliveira, 2007; Seitz, Wyrick, Orsini, Milroy, & Kenney, 2013).
5 Conclusão
Este estudo possibilitou avaliar as habilidades sociais de mulheres usuárias de crack, sendo encontrados déficits específicos na conversação e desenvoltura social, auto-exposição a desconhecidos e situações novas e autocontrole da agressividade. Comorbidades psiquiátricas como o Episódio Depressivo Maior e o Transtorno de Personalidade Borderline associaram-se com baixo repertório e déficits no autocontrole da agressividade. Desta forma, os objetivos propostos foram contemplados, possibilitando novas compreensões sobre aspectos pouco explorados na literatura acerca das mulheres usuárias de crack.
A partir deste estudo, evidenciou-se que a avaliação das habilidades sociais de usuários de drogas necessita considerar as comorbidades psiquiátricas, pois estas podem estar dificultando o uso das habilidades sociais nos diferentes contextos de interação. Sugere-se que futuros estudos avaliem as habilidades sociais para além de instrumentos de autorrelato, utilizando protocolos de observação dos comportamentos emitidos. Além disso, sugere-se a avaliação dos demais Transtornos de Personalidade e a expansão do estudo para outras populações clínicas.
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Endereço para correspondência
Jéssica Limberger
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS
Escola de Saúde, Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Avenida Unisinos, 950, Cristo Rei, CEP 93020-000, São Leopoldo - RS, Brasil
Endereço eletrônico: jessica.limberger.psi@gmail.com
Ilana Andretta
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS
Escola de Saúde, Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Avenida Unisinos, 950, Cristo Rei, CEP 93020-000, São Leopoldo - RS, Brasil
Endereço eletrônico: iandretta@unisinos.br
Recebido em: 17/02/2016
Reformulado em: 29/09/2016
Aceito em: 21/10/2016
Notas
* Psicóloga, Mestra em Psicologia Clínica. Doutoranda em Psicologia Clínica na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista CAPES/PROSUP.
** Psicóloga, Mestra e Doutora em Psicologia. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.