O desenvolvimento de investigações comprometidas com a transformação das realidades sociais de sujeitos historicamente marginalizados e vulnerabilizados, sobretudo de travestis e mulheres trans 1, é de extrema importância, considerando que, diariamente, as taxas de violações de direitos contra esta população aumentam expressivamente (Secretaria Especial de Direitos Humanos [SEDH], 2016). Neste cenário, o Estado brasileiro ao mesmo tempo em que afirma a igualdade de direitos a todas as pessoas, independentemente do seu pertencimento racial, de classe, gênero e/ou de sexualidade, é omisso na criação de ações institucionais para fazer cumprir o que está previsto em lei. Falaciosamente, as legislações existentes no país (re)conhecem a legitimidade de experiências dissidentes, mas, ao mesmo tempo, materializam o preconceito homotransfóbico em diferentes instâncias sociais.
O campo normativo e institucional que regula os direitos da população LGBTQIA+ no Brasil é, portanto, falacioso e paradoxal, pois, ao mesmo tempo em que (re)produz o discurso da existência de uma suposta cordialidade e igualdade entre as diferentes expressões de gênero e de sexualidade, o país ocupa o topo do ranking mundial de países que mais matam pessoas em decorrência da identidade de gênero e orientação sexual (SEDH, 2016).
E o que tem a utilização de banheiros públicos por travestis e mulheres trans a ver com isso? O acesso aos banheiros públicos ou a negação do acesso a esses espaços, sobretudo para essa população, representa um campo de intensas disputas pela legitimidade de experiências dissidentes em relação à matriz cisheteronormativa, tendo em vista que a livre circulação nesses e em outros ambientes públicos, historicamente, está condicionada a padrões masculinos, brancos, burgueses e heterossexuais. Assim, se por um lado a arquitetura se coloca como um instrumento social que reflete sobre a estruturação de ambientes cada vez mais dinâmicos e que atendam as nossas necessidades mais básicas: de dormir, comer, ter lazer, estudar, defecar e urinar etc., por outro, ao (re)produzir os paradigmas universais da modernidade em suas proposições, pode assegurar a manutenção de barreiras entre gêneros que segmentam todos os espaços que frequentamos, inclusive os banheiros públicos, atualizando diferentes formas de violências de gênero (Preciado, 2019).
É possível encontrar na literatura a articulação existente entre banheiros e questões de gênero, muitas vezes compreendido apenas como sexo biológico (Teixeira, 2004; Almeida, 2018; Cervi et al., 2019), que apontam para uma significativa quantidade de pichações de cunho sexual e agressividade nos banheiros masculinos. Para os autores, a materialização desta agressividade geralmente é fundamentalmente baseada em perspectivas cisheteronormativas, estigmatizantes, estereotipadas e de cunho religioso.
Não por acaso, em uma busca rápida pelo Google imagens, usando o descritor “frases homofóbicas em banheiros públicos”, expressões como “Morte aos gays”; “Vamos matar homossexuais! Deus vai nos ajudar a e[x]terminar essa praga da face da terra” [sic]; “Se pegar-mos sapatões [praticando sexo oral] [...] vai morrer as duas só na porrada” [sic]; “Livremos nosso país da escória gay! Campanha mate um viado” [sic], entre outras frases rabiscadas nas paredes de banheiros de escolas e universidades e banheiros públicos, explicitam e dimensionam as normas de gênero transformadas em pedagogia do insulto e do extermínio de subjetividades, dirigida às pessoas que transitam nesses espaços.
Na tentativa de visibilizar essas e outras formas de violência de gênero, estudos (Serafim & Silva, 2006; Prado & Junqueira, 2011; Cunha & Silva, 2016; Preciado, 2019) chamam a atenção para as rotinas diárias de intimidação, humilhação e processos de desumanização presentes nesses espaços, entendendo que a publicização dessas experiências pode funcionar como uma importante ferramenta política de desestabilização da norma instituída. Tendo em vista a carência de estudos sobre as experiências dissidentes à lógica cisheteronormativa, especificamente no campo da Psicologia Ambiental, discutiremos sobre os banheiros públicos como espaços potenciais à busca por legitimidade.
Para tanto, através das possíveis articulações teórico-conceituais entre a Psicologia Ambiental, a Psicologia Social e os Estudos Feministas, pretendemos ampliar o debate sobre o assunto, produzindo deslocamentos no modo como se processam diferentes dispositivos de poder e tecnologias de gênero - dispositivos sociais que fabricam as “verdades” do feminino e do masculino (Foucault, 2004). Portanto, refletiremos sobre as experiências de travestis e mulheres trans na utilização dos banheiros públicos, buscando vislumbrar as dinâmicas de preconceito no cotidiano contra esta população no que tange à utilização desses espaços.
Travestis, Mulheres Trans e a Utilização de Banheiros Públicos
A Psicologia Ambiental é uma área interdisciplinar que visa, dentre outros objetivos, reconhecer a natureza holística das transações pessoa-ambiente, levando em consideração a diversidade criada por idade, gênero, cultura, economia etc (Rivlin, 2003). As dimensões sociais e culturais são aspectos importantes para compreender esta esfera da Psicologia, pois estão sempre presentes na definição dos ambientes, permeando a percepção, avaliação e as atitudes de um indivíduo frente ao ambiente físico e social (Moser, 1998).
O espaço, para a Psicologia Ambiental, pode ser compreendido como sendo a base para a organização de uma estrutura anterior necessária a qualquer teorização relativa ao homem, visto que a existência humana se dá no espaço e é nele que ela se desenvolve (Cavalcante & Nóbrega, 2011). Cada indivíduo contribui para o que ocorre no espaço, mesmo que passivamente, de tal forma que ele se torna um componente do ambiente. Por conseguinte, não há um ambiente físico que não esteja envolto por um sistema social (Rivlin, 2003). Entende-se, então, a importância de estudar essa área da Psicologia, no sentido de que o ambiente físico exerce influência sobre o indivíduo e suas relações sociais e, por consequência, pode (re)produzir relações de poder estruturais da sociedade.
Dentro dessas considerações nos permitimos, tal como Olekszechen (2021), pensar uma Psicologia Ambiental dos territórios, dos corpos e das cidades em disputa, em direção à garantia dos diversos modos de vida. “A cidade para quem?”, “O espaço público para quem?”, “O banheiro público para quem?” são perguntas mobilizadoras e que (re)afirmam e posicionam o debate em um campo de intensas disputas por legitimidade. Partimos da compreensão de que a cidade é vista enquanto um espaço onde a vida acontece e as subjetividades se transformam; e a mobilidade, como elemento concreto e observável, mas também como movimento representado e produzido nas relações do cotidiano, experiência incorporada, que atravessa corpos e subjetividades. O “ir e vir”, a busca pelo acesso aos espaços públicos, inclusive aos banheiros públicos, por ocupar espaços, são movimentos de transformação da vida material e cotidiana dos sujeitos.
Corroborando tais reflexões, Welzer-Lang (2001), ao falar sobre a configuração de espaços monossexuados, nos auxilia a refletir sobre a experiência com os banheiros públicos. Para o autor, espaços monossexuados são lugares de socialização de homens - pátios de escolas, clubes esportivos, bares etc - em que se dinamiza a estruturação da lógica de dominação masculina, sendo, para isso, perpetradas inúmeras formas de violência e coação para se construir “um homem de verdade”, ou seja, que não apresenta nenhum aspecto de feminilidade. Desse modo, o banheiro público, considerado um dos lugares aos quais os homens reivindicam exclusividade de uso e/ou presença, pode se configurar como espaço de perpetração de violência contra aqueles que se distanciam dos padrões de masculinidade: o que pode servir de modelo explicativo para a compreensão da agressividade presente nas pichações mencionadas anteriormente.
Devido às suas características, o banheiro público pode ser considerado um espaço público-privado, inclusive em termos materiais (pias e cabines), e muitas vezes são tratados e defendidos como territórios ao não permitir, por exemplo, a entrada de alguém de outro gênero (ou sexo biológico) (Delabrida, 2010). Nesse sentido, a espacialização, para travestis e mulheres trans, atua como um dos elementos fundamentais dos dispositivos de poder (Cunha & Silva, 2016). O espaço físico que primordialmente era público torna-se, então, privado, quando capturado pelas astúcias da lógica cisheteronormativa, que se constitui por crenças, discursos, valores, práticas individuais e/ou coletivas, pactuadas entre aqueles que consentem em algum nível com a inferiorização e hierarquização de experiências sexuais dissidentes.
Os episódios de violência perpetrados contra essa população estão longe de estar restritos à utilização dos banheiros públicos. As experiências vivenciadas por travestis e mulheres trans nesses espaços também podem ser observadas no cotidiano de sujeitos institucionalizados.
Ao longo do tempo, no processo penal, a punição tornou-se velada e alcançou o campo da consciência abstrata. As penas, que antes eram físicas, passaram a não mais tocar no corpo propriamente dito; os corpos se tornaram meros instrumentos em um processo de privação, de obrigações e de interdições. Nesse processo, as medidas de segurança visavam controlar o indivíduo e os mecanismos de punição legal ganharam um poder justificável sobre as pessoas. Esse poder passou a exercer controle sobre as pessoas para além do que elas haviam feito - por aquilo de que foram alvo de punição em um primeiro momento -, passando a atuar sobre o que elas são ou poderiam vir a ser. Desse modo, a ideia de que a penalidade é, antes de tudo, um modo de reprimir os delitos passa a ser compreendida como ilusória. A partir das formas sociais, dos sistemas políticos e das crenças, ela passa a ser prescritiva de modos de vida (Foucault, 1987).
Ainda sobre a lógica do sistema penal, diversos estabelecimentos penais brasileiros funcionam superlotados e em insuficientes condições de vida, o que interfere diretamente na experiência de pessoas presas que são identificadas por sua sexualidade ou identidade de gênero fora da normatividade social. Como sistema de controle do indivíduo, as prisões - tanto pelos processos estatais, quanto pelas moralidades de facções presentes no meio prisional - são atravessadas por complexos modos de gestão das sexualidades das pessoas encarceradas (Foucault, 1987; Nascimento, 2020). As "bichas", como são chamadas as pessoas não-heterossexuais no sistema prisional, são relegadas pelo Estado e consideradas como indignas de pertencimento e/ou convivência por sujeitos ligados às facções (Nascimento, 2020). Rejeitadas por grupos existentes no interior do sistema prisional e silenciados pelo mundo institucional, que se estrutura, constitui e configura seus espaços fundamentalmente pela lógica cisheteronormativa, são mais uma vez tidas como “sem lugar” ou indignas de legitimidade e de pertencimento.
Nesse sentido, tanto nos banheiros públicos como no sistema prisional, a gestão de corpos dissidentes é atravessada pela complexidade existente na gestão sexual e de gênero, seja pelas ações do Estado, que se omite e/ou cria políticas sexuais antigênero que asseguram a subalternidade dessa população, seja pelas moralidades sociais, que (re)forçam e (re)produzem as práticas sociais fundamentalmente cisheteronormativas, conferindo a esta população experiências de subalternidade (Serrano, 2021).
Para a grande maioria das pessoas, o uso do banheiro não passa de uma experiência comum e corriqueira do dia a dia. Todavia, para pessoas não-heterossexuais, o acesso é muitas vezes angustiante, uma vez que, constantemente, são interpeladas sobre suas orientações sexuais e identidade de gênero. Isso dificilmente ou nunca acontece com pessoas cisgêneros heterossexuais, já que estas fazem parte e sustentam a norma cisheteronormativa instituída, a qual não fala sobre si, mas convoca pessoas que subvertem esses padrões a oferecerem respostas sobre suas experiências.
Resgatando o contexto histórico podemos perceber que o poder médico e judiciário, no século XIX, detinha o poder de inquirir qual o verdadeiro sexo de um indivíduo (Foucault, 2004), no entanto, no século XXI, é o próprio ambiente que toma o poder de impor padrões de comportamento às pessoas. Nesse sentido, ao vislumbrar as dinâmicas que operacionalizam e materializam a cisheteronormatividade nos banheiros públicos é como se não existisse (e, de fato, não existe) o direito de travestis e mulheres trans usarem o espaço em que mais se sentem confortáveis, já que é a sociedade que dita quem entra e quem sai de cada banheiro. Não por acaso nas portas dos banheiros está estampado nas placas quem pode entrar e a quem eles se destinam. O acesso a esses espaços está ancorado ao discurso da norma cisheteronormativa, que insiste na existência de corpos-padrão, com gênero e sexo exclusivos para cada um (Serafim & Silva, 2006), assegurando as tecnologias de poder que não permitem ou dificultam a entrada e pertencimento de pessoas não-heterossexuais nos espaços que deveriam ser públicos.
Neste trabalho, ao explicitar as vivências cotidianas e refletir sobre as experiências de travestis e mulheres trans na utilização dos banheiros públicos, tentamos potencializar, por meio da sistematização do conhecimento, a legitimidade de suas experiências, (re)conhecendo-as como sujeitos de direitos. Além disso, buscamos colaborar para a transposição das barreiras que impedem o acesso dessas pessoas aos diferentes espaços sociais, promovendo com a discussão aqui realizada a ampliação das ferramentas políticas de enfrentamento às lógicas cisheteronormativas e das possibilidades de luta por patamares mais elevados de justiça social e igualdade de direitos.
Método de Investigação
Para a elaboração deste trabalho, nos ancoramos nos pressupostos das pesquisas qualitativas que, de acordo com Flick (2009), trabalham com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes em um espaço mais profundo das relações. Para a produção de dados, utilizamos a pesquisa documental, que consiste em um exame de materiais que ainda não sofreram trabalho de análise científica ou que podem ser reexaminados, buscando-se outras interpretações e/ou informações complementares (Kripka et al., 2015), com vistas a produzir novos conhecimentos a partir das perspectivas contidas nos documentos.
Percebe-se, na contemporaneidade, uma influência muito significativa de vídeos e filmes na vida cotidiana, e na pesquisa qualitativa esses documentos têm sido utilizados como ferramentas capazes de dar conta da construção social da realidade, possibilitando analisar determinadas instituições, experiências e valores sociais (Flick, 2009). Assim, neste estudo, selecionamos como objeto de análise o vídeo “Uma mulher trans deve frequentar o banheiro feminino?” 2 (Mc Trans, 2021). Trata-se de um fragmento do vídeo “Colocamos uma mulher trans e uma feminista radical para conversar (sem que elas soubessem)” 3 (Spotniks, 2021), 24° episódio do quadro “Preconceito”, do canal do YouTube “Spotniks”, no qual duas pessoas que nunca se viram são convidadas a tentar adivinhar características relevantes uma da outra, usando como base apenas estereótipos.
O canal coloca frente a frente duas pessoas que possuem opiniões divergentes sobre um determinado assunto - geralmente polêmico - e oferece um guia de conversa sobre a temática para que ambas se conheçam e discutam sobre o tema. No fragmento do vídeo em questão, o canal chamou a cantora Camilla Victoria Monforte, mais conhecida como MC Trans, para conversar com Julia Kreischer, uma feminista radical. Foi escolhido para análise apenas o trecho do vídeo postado no Facebook, denominado “Uma mulher trans deve frequentar o banheiro feminino?”, pois este discute o acesso de travestis e mulheres trans aos banheiros públicos, experiência em foco neste estudo.
Tal material foi avaliado pelos autores do estudo como pertinente, devido à sua credibilidade, autenticidade, significação e representatividade (Flick, 2009), além do seu alcance - com mais de 2.300.000 visualizações, 48.036 comentários e 227.000 curtidas no YouTube; 979.000 visualizações, 4.900 comentários e 48.000 reações no Facebook -, o que o tornou um documento representativo para a discussão sobre a dificuldade de acesso de travestis e mulheres trans aos banheiros públicos. Além das imagens, também foram utilizados como material de análise os comentários feitos por internautas no Facebook.
Ao conceituar gênero como “um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos” e, igualmente, como “uma forma primária de dar significado às relações de poder” (Scott, 1990, p. 21), admitimos que há aspectos/elementos da realidade concreta de travestis e mulheres trans, e da sua relação com a utilização de banheiros públicos, que só podem ser compreendidos tomando gênero como categoria analítica e lente orientadora do processo investigativo.
A análise do discurso foi o método escolhido para a interpretação do material. Compreendemos que a língua é um elemento integrante do processo social material, que inclui a construção de sentidos presentes nas práticas sociais (Fairclough, 2012). Através dela, portanto, pode-se analisar as concepções de gênero, de preconceito e de violência presentes nas falas das participantes do vídeo e nos comentários selecionados.
A partir disso, foi possível apreender questões importantes acerca do objeto do estudo em tela e articulá-las com a literatura, de forma a investigar como os discursos (re)produzem padrões cisheteronormativos na sociedade que inviabilizam que travestis e mulheres trans utilizem espaços que, na prática, deveriam ser públicos e de livre acesso (Fairclough, 2012). Desse modo, a análise do discurso pode funcionar como uma ferramenta política que interpela a cisheteronormatividade, viabilizando a criação de formas de agenciamento e resistências no processo de reconhecimento e legitimidade das experiências dissidentes.
Resultados e Discussão
As desigualdades sociais (re)produzidas historicamente são constitutivas de todas as etapas da vida de travestis e mulheres trans. Inicialmente, no contexto familiar, essas violências são dinamizadas por meio de processos de humilhação, rejeição, ridicularização, entre outros processos de desumanização de experiências dissidentes (Peres & Toledo, 2011). Ao reivindicarem suas experiências nos espaços públicos, os processos de exclusão social vivenciados também são constitutivos de sua trajetória, em um continuum movimento de (re)afirmação dos paradigmas universais da modernidade e vulnerabilização das experiências dissidentes através da manutenção da cisheteronormatividade.
Em relação ao material considerado para análise, após a apresentação de MC Trans e Julia Kreischer, ambas começam a conversar sobre vários temas, dentre eles, o acesso aos banheiros públicos femininos por travestis e mulheres trans. MC Trans se mostra surpresa e decepcionada quando Júlia, uma mulher cisgênera pertencente ao movimento feminista radical, relata não concordar com este acesso, o que é expresso na fala a seguir:
Para mim, uma mulher trans não deve ter o direito de frequentar banheiros públicos femininos, porque, pode ser um medo meu, mas eu tenho muito medo pelas mulheres, porque que eu já vi alguns casos que aconteceu isso, eu não digo que são mulheres trans, muitas mulheres, muitas pessoas trans, dizem que essas pessoas não são trans de verdade, mas eu não sei qual critério de vocês para considerar alguém trans, e que já atacaram mulheres. (Spotniks, 2021)
Muitos comentários feitos à publicação no Facebook também demonstraram concordância com este posicionamento: “A única coisa que tenho medo em relação a isso é um homem se passar por uma mulher trans e tirar proveito da situação”; “O problema é se essa mulher trans resolver te atacar”; “Eu prefiro um homem trans no banheiro feminino do que uma mulher trans… desculpa, mas ainda acho arriscado”; “As trans dizem que são assediadas, mas o que acontece é o contrário na maioria das vezes!!” (MC Trans, 2021).
A interpelação feita a mulheres trans sobre a utilização de banheiros públicos femininos a partir do argumento de que elas podem violentar mulheres cisgêneras é observada em movimentos feministas que agregam as “Terfs” - trans exclusionary radical feminists -, que argumentam que o feminismo não deveria incluir travestis e mulheres trans, pois estas teriam tido socializações e experiências masculinas, além de reproduzirem estereótipos femininos. Dessa forma, travestis e mulheres trans têm suas identidades rejeitadas e são vistas como homens (Ribeiro et al., 2018). Posicionamentos como este contribuem para o fortalecimento de uma visão dicotômica e biologicista de gênero, tendo como consequência direta a exclusão do acesso de travestis e mulheres trans aos banheiros, além de afirmar a não legitimidade dessas experiências nos espaços públicos.
Denota-se também nesta forma de compreensão, a classificação de travestis e mulheres trans como perigosas. Ao considerá-las suspeitas e violentas, reforça-se sua classificação em um sistema que desqualifica e não legitima suas características identitárias, excluindo-as dos espaços sociais considerados de uso público, tais como os banheiros. Para além de uma análise que identifica esses agrupamentos de forma contextual, faz-se mister refletir sobre como categorizações que atribuem graus de periculosidade estão estritamente ligadas às categorias de gênero e sexualidades que divergem da norma heterossexual. Assim, depreende-se que tais classificações podem ser descritas e relacionadas na constituição de gênero enquanto tecnologias, fronteiras e moralidades, fundamentalmente disciplinadoras e cisheteronormativas, constituintes da organização dos espaços sociais (Nogueira, 2020).
Além disso, se o preconceito é uma importante ferramenta de manutenção das hierarquias sociais que garante que as assimetrias se mantenham sem que elas apareçam como assimétricas (Prado & Machado, 2008), conceber travestis e mulheres trans nos banheiros públicos como estupradores em potencial evoca o caráter paradoxal do preconceito de impedir de “ver o que não vemos e o que é que não vemos” ao ocultar/alterar a nossa própria percepção da realidade, justificando as violações de direito históricas naturalizadas por seus próprios mecanismos (Prado & Machado, 2008, p. 67).
Retomando as similaridades vivenciadas por travestis e mulheres trans nos sistemas prisionais podemos tecer articulações, aproximações, distanciamentos e problematizações importantes de serem observadas frente às experiências de uso dos banheiros públicos e, consequentemente, localizar este debate no âmbito político e de disputas por legitimidade, o que demanda de nós - atores sociais e institucionais - mobilizações importantes para desestabilizar estruturas de opressão produtoras de subalternidade.
De forma contextualizada, os movimentos sociais reivindicam a criação de celas especiais, exclusivas para travestis e mulheres trans no sistema prisional, devido à precariedade com a qual se deparam e à intensificação das condições subumanas vivenciadas, o que inclui, também, a insuficiência de insumos próprios à sua manutenção nesses espaços. Ao contrário, quando desinstitucionalizadas, a criação de espaços específicos para elas, no que tange à utilização dos banheiros públicos, evidenciaria uma posição transfóbica, refletindo o seu não reconhecimento em sua identidade de gênero, e ferindo sua reivindicação de acesso aos banheiros públicos como ferramenta de legitimação de suas experiências como travestis e mulheres trans.
Resguardadas as especificidades que constituem as experiências dessa população nos dois espaços, alguns pontos de convergência devem ser observados para que possamos complexificar e problematizar tais posições, com vistas a sustentar o argumento de que as classificações atribuídas a elas articulam posicionamentos fundamentalmente normativos, que desconsideram as experiências dissidentes como possibilidades de expressão da sexualidade.
A questão evidenciada neste debate - sobre a criação ou não de espaços exclusivos para travestis e mulheres trans - nos posiciona diante de um paradoxo. Se por um lado, a criação desses espaços especiais acaba reforçando a cisheteronormatividade e o binarismo dos banheiros/prisões - como masculinos ou femininos -, transferindo dali as pessoas que contestam essa uniformidade; por outro, sua criação pode assegurar a manutenção da vida de sujeitos que diariamente têm seus direitos violados pela “pedagogia do insulto”, materializada por violências verbais - através de piadas e brincadeiras de cunho vexatório no dia a dia; físicas - pela exposição dessas pessoas a perigos relacionados à violação de sua integridade física; psicológicas - por meio dos processos de humilhação, inferiorização e hierarquização social, os quais produzem danos emocionais e comportamentais (Prado & Junqueira, 2011); materiais/patrimoniais - por meio da usurpação dos seus bens e valores; e, por fim, sexual - quando seus corpos são violentados com práticas sexuais não consensuais. Em outras palavras, a busca por políticas sociais que assegurem os Direitos Humanos, mesmo quando bem-intencionada, pode (re)produzir as mesmas estruturas de poder que se pretende desestabilizar.
Do ponto de vista analítico, não queremos estruturar uma resposta fácil e rápida para este debate complexo, sob o risco de assegurarmos a manutenção da lógica instituída. Ao contrário, ao evidenciar dois lados - a utilização dos banheiros públicos por travestis e mulheres trans, bem como sua inserção no sistema prisional - de uma mesma moeda - estruturalmente cisheteronormativa -, depreendemos que entre aproximações e distanciamentos, o ponto de convergência entre a configurações de tais espaços parece residir na luta pela legitimidade de corpos e experiências dissidentes e, consequentemente, pela manutenção da vida. Por este motivo, corpos políticos que buscam (re)conhecimento e legitimidade nos espaços que circulam e se utilizam das experiências com o próprio corpo para lutarem contra os processos que diariamente os desumanizam, devem ser, a priori, os elementos fundamentais dos nossos processos analíticos.
Ademais, a constituição desses espaços também está condicionada à estrutura cisheteronormativa. Os movimentos necessários mais uma vez perpassam, em nosso ponto de vista, pela incorporação das políticas de gestão dos corpos, que asseguram a legitimidade dessas experiências como possibilidade de manutenção da diversidade sexual, e pelo enfraquecimento das políticas antigênero, que corroboram com práticas sociais de assujeitamento.
Do ponto de vista político, oscilando em momentos e contextos diferentes, os movimentos antigênero nunca desaparecem por completo e seus efeitos sobre a vida cotidiana da população de não-heterossexuais estão longe de serem inofensivos. Sendo assim, a negação do acesso aos banheiros públicos a travestis e mulheres trans dá continuidade a uma série de violações de direitos, que articulam forças conservadoras e tomam a espacialização e as estratégias de gestão dos corpos como ferramentas políticas e de análise dos processos de legitimação e (re)conhecimento dessas experiências. Nesse sentido, a lente orientadora da análise desse elemento constitutivo da sociedade pode evidenciar que a trajetória política se inclina a assegurar a manutenção das normas de gênero e sexualidades, fazendo dessas dinâmicas elementos que circunstanciam e justificam a cisheteronormatividade como única possibilidade de expressão da sexualidade e da identidade de gênero.
Outro aspecto observado no material analisado são as concepções biologicistas que sustentam e asseguram a manutenção de posicionamentos cisheteronormativos, as quais podem ser evidenciadas nos comentários a seguir: “A biologia diz que mulher trans é homem”; “Um homem é um homem e sempre será homem não se muda a biologia quem não consegue entender isso só pode ter problemas mentais”; “Homem vai ao banheiro para homem, e mulher vai em banheiro pra mulher! Quer levar em consideração alguma coisa, divida eles(a) por cromossomos…”; “Mulher com 3 pernas”; “Uma mulher com uma baita ‘giromb[a]’ kkkkk”. Esses comentários fazem parte do discurso do sistema binário (homem/masculino versus mulher/feminino) de gênero, o qual estabelece que as genitálias, por serem “naturais”, definem o gênero das pessoas. Fundamentadas na lógica binária e cisheteronormativa de compreensão de gênero e sexualidades, as experiências são concebidas a partir da díade mulher-vagina e homem-pênis, estabelecendo também como cada um desses corpos deve se comportar, se apresentar e agir na sociedade (Bento, 2008).
A sociedade binária, estruturada a partir da compreensão que considera a legitimidade e existência de apenas dois tipos de corpos, estranha e rechaça experiências dissidentes ao se deparar com corpos que transpõem as fronteiras da feminilidade e da masculinidade estabelecidos pelos sistemas normativos. Frases como estas, comumente utilizadas para argumentar sobre a não legitimidade dessas experiências, articuladas ao conjunto de processos de inferiorização e humilhação social, subjazem à manutenção de modelos unívocos de masculinidades e feminilidades. Fruto deste estranhamento, emergem narrativas que (re)forçam a patologização das experiências de travestis e mulheres trans, concebendo-as como “doenças mentais”, passíveis de correção/reversão e/ou cura.
A despeito dessa constatação, salienta-se a importância de se considerar a resolução 01/2018, que “Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis” (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2018). A resolução, para além de se posicionar contra as práticas de discriminação e preconceito contra esta população, em seu artigo 7º evidencia a não adoção de qualquer ação que favoreça sua patologização. Além disso, em seu parágrafo único, estabelece que as psicólogas e os psicólogos, na sua prática profissional, deverão (re)conhecer a legitimidade e a autodeterminação das pessoas transexuais e travestis em relação às suas identidades de gênero (CFP, 2018), superando momentos históricos de patologização nesse campo. Em consonância com as determinações do órgão regulador da profissão, as reflexões de Bento (2008) reafirmam que disseminar e sustentar posicionamentos patologizantes é, por si só, ignorar as experiências trans como identitárias, colocando-as na origem dos seus próprios (supostos) “problemas”, aprisionando-as em suas próprias existências (Bento, 2008).
Ademais, ainda sobre as concepções biologicistas presentes nos discursos sobre o uso do banheiro público por travestis e mulheres trans, cabe dizer que elas não precisam realizar a cirurgia de transgenitalização para ter uma vagina e serem heterossexuais para serem consideradas “verdadeiras” mulheres, da mesma forma que os homens trans não precisam de um pênis e de se afirmarem heterossexuais para serem considerados “verdadeiros” homens. Do ponto de vista analítico, essa falaciosa linearidade imposta às questões de sexualidade e gênero (re)afirma o que denominamos como heterossexualidade compulsória. Ou seja, parte-se das proposições que concebem gênero-sexo-orientação afetiva e sexual como elementos lineares e como únicas possibilidades legítimas de expressão humana. Decorre disso, a instauração de um processo de ocultação das experiências dissidentes que, por um lado, estruturam tecnologias normativas regulatórias das relações sexuais e afetivas com outras pessoas pertencentes ao mesmo gênero, submetendo-as ao silenciamento ou expondo-as a processos de desumanização através do desprezo público; e, por outro lado, assegura-se a manutenção das instituições e valores normativos, (re)produzindo sistemas de privilégio em prol das pessoas que se mostram consonantes com a cisheteronormatividade (Prado & Junqueira, 2011).
Retomando o caráter paradoxal já discutido neste estudo, alguns comentários à postagem analisada apontam para a necessidade de se criar um terceiro banheiro para pessoas trans: “Deveria criar um banheiro pra trans oras, ela não é mulher, é trans!” [sic]; “Banheiro masculino não é seguro para transexual, feminino é direito da mulher ter receio. O certo é fazer uma pra cada gênero. Se pode haver divisão entre masculino e feminino pode haver divisão entre os demais gêneros”; “Claro, faz 52 banheiros para agradar todos os gêneros"; “Tem que falar o que agrada né!? Cria 50 banheiros e pronto, ninguém é obrigado”; “Porque as empresas não constroem banheiros destinados ao público trans? Não resolveria esse impasse? Acho que seria uma boa ideia” (MC Trans, 2021).
Ampliando nosso debate sobre a complexidade já expressa nesta questão, o próprio ambiente é construído ou modificado com base em questões sociais e valores, de forma que esse contexto ambiental impõe restrições de comportamento aos indivíduos (Olekszechen, 2021). Os banheiros públicos, para além de serem estruturas pertencentes aos ambientes urbanos que administram apenas a evacuação (urinar e defecar) de dejetos humanos (Laporte, 1978), funcionam como mais uma forma de fiscalização de gênero, regulando os corpos que entram e saem desses espaços a partir das chamadas “tecnologias de gênero”. Assim, na porta de cada banheiro existe uma intimação feita por meio de símbolos utilizados para definir quais corpos poderão entrar: vestidos, damas e flores para o feminino e calças, cavalheiros e bigodes para o masculino (Preciado, 2019).
Os banheiros públicos, tanto feminino quanto masculino, acabam funcionando, portanto, como elementos reguladores de qualquer experiência dissidente. A manutenção da norma binária de gênero também está materializada na arquitetura dos banheiros, os quais são construídos com vistas à (re)produção das diferenças anatômicas entre os sexos, atuando, também, como “próteses discursivas de gênero”. Assim, existem estruturas arquitetônicas específicas para banheiros femininos e masculinos, de modo que cada um anuncia particularidades normativas, não só sobre como deve ser a aparência/apresentação de quem os frequenta, mas também sobre como o ambiente físico de cada um deve ser estruturado e funcionar (Preciado, 2019).
No banheiro feminino, as mulheres controlam e conferem a feminilidade heterossexual primeiramente pelo olhar, principalmente através dos espelhos, inspecionando a existência de ambiguidades de gênero (cabelo curto, pouca ou ausência de maquiagem, pelos no buço, andar afirmativo). Constatada tal ambiguidade, a experiência dissidente é interpelada, exigindo justificativas sobre sua presença naquele ambiente (Preciado, 2019). Por serem vistas como “não-mulheres” e serem convocadas a utilizar os banheiros masculinos - ambientes propícios aos condicionantes das violências de gênero constitutivas dos espaços monossexuados (Welzer-Lang, 2001) - travestis e mulheres trans são mais uma vez empurradas pelo sistema cisheteronormativo rumo ao encontro com suas vulnerabilidades. Defrontam-se, ainda, com a realidade das inúmeras agressões físicas, verbais, psicológicas e materiais quando reivindicam a utilização desses espaços, além da violência institucional, materializada pela violência policial e social que, estruturalmente normativas, expulsam-nas dos espaços sob vaias e aplausos 4 de sujeitos que concordam em algum nível com sua inferiorização.
Em última análise, não esgotando as possibilidades de reflexão acerca das complexas dinâmicas presentes neste debate, do ponto de vista da configuração material e simbólica, nos banheiros públicos, assim como em outros diferentes espaços sociais, os “processos de espacialização são acompanhados de naturalizações [de violências] extremamente sutis, legitimadoras de interdições e segregações" (Prado & Junqueira, 2011, p. 62). Dessa forma, a experiência cotidiana de travestis e mulheres trans com a utilização dos banheiros públicos revela também as faces mais porosas do preconceito contra experiências dissidentes: a negligência, o silenciamento, a invisibilidade e a deslegitimação.
Nesse sentido, o estudo das espacialidades e moralidades, em articulação com os debates sobre sexualidade e gênero, a partir de contribuições das diferentes áreas da Psicologia, pode contribuir para a instrumentalização de intervenções na dinâmica e nas instituições sociais que sejam favoráveis à promoção do bem-estar individual e coletivo através de práticas de manutenção da vida, e servir como ferramentas políticas de luta contra a promoção do sofrimento, preconceito e exclusão.
Considerações Finais
Ao analisar o conteúdo e os comentários do vídeo “Uma mulher trans deve frequentar o banheiro feminino?”, evidenciamos que, do ponto de vista analítico, alguns debates centrais se colocam, dentre eles, o do sistema de classificação social, que posiciona travestis e mulheres trans em categorias de periculosidade; a relação direta estabelecida entre os sistemas de categorização e classificação social e as questões de gênero e sexualidade como organizadores da vida cotidiana e dos espaços sociais; a manutenção dos discursos que asseguram a lógica binária e, consequentemente, a patologização das experiências de travestilidade e transexualidade; e a articulação política como estratégia que assegura aos processos de espacialização dinâmicas que naturalizam violências legitimadoras de interdições e segregações. Ademais, observou-se que o ponto de convergência entre todas essas análises, a manutenção da vida a partir da desestabilização das estruturas normativas, se encontra em todas as práticas que visam (re)conhecer e legitimar as experiências dissidentes enquanto possibilidade de expressão de gênero e da sexualidade humana.
Longe de esgotar as possibilidades de reflexão sobre o tema, este estudo apresenta algumas limitações que poderão ser retomadas como aspectos centrais em investigações futuras. Consideramos importante, por exemplo, visibilizar as experiências das transmasculinidades e sua relação com o uso dos banheiros públicos, sob risco de negligenciar o trânsito das expressões de gênero e as implicações da exclusão política para a subjetividade de homens trans (Freitas, 2014). Recomendamos, assim, a urgência de novos estudos que considerem especificidades geográficas, identitárias e as narrativas de pessoas que vivenciam essas dinâmicas no cotidiano, considerando todas as implicações éticas presentes neste contexto de investigação.
Por fim, entendemos, como pesquisadores(as) comprometidos(as) com a transformação da realidade social, que qualquer forma de exclusão é inaceitável, e que a luta pelo (re)conhecimento da diversidade como possibilidade legítima de ser e estar no mundo é um dever de todos aqueles que resistem aos processos de exclusão, produzindo, no interior das relações de poder, formas criativas de resistência e agenciamento.