O Brasil é um dos países em que mais se vitimiza a população LGBTQIAP+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis/Transexuais, Queer, Intersexuais, Assexuais, Pansexuais, etc.), liderando o ranking mundial de assassinatos contra travestis e transexuais (Gomes Filho et al., 2021). Para fins didáticos, ao falarmos em populações LGBTQIAP+, estamos nos referindo a sujeitos que não seguem determinados e impositivos padrões de gênero e sexualidade, ou seja, àqueles e àquelas que não sucumbem à cis-heteronormatividade 1.
Uma das grandes lutas desses segmentos tem sido a possibilidade de existir, já que estão sujeitos a maior condição de vulnerabilidade, insalubridade, pobreza e violências, como os homicídios, dentre outras condições precárias (Gomes Filho et al., 2021). Faz-se importante observar que a violência contra a população LGBTQIAP+ é um fenômeno histórico que não atinge igualmente as pessoas que a compõem, por isso, não podemos ignorar que ontologicamente há um padrão binário e colonial que produz privilégios e opressões adversas mesmo entre populações vistas como subalternizadas (Gomes Filho et al., 2021). Desse modo, LGBTQIAP+ brancos e ricos são vítimas do machismo e homofobia, mas quando comparados às mulheres travestis negras e habitantes de periferias, observa-se que estas estão mais suscetíveis às violências diante da imbricação do racismo, classismo e transfobia.
Sobre isso, temos o Ceará como um emblema dessa tecnologia política de morte genderizada (quando o gênero é um recorte social de vulnerabilização), em que o segmento LGBTQIAP+ tem sido brutalmente assassinado, junto a outras ditas minorias sociais (Barros et. al, 2017). Para uma leitura dessa estratégia de deixar morrer e fazer morrer marcada por recortes de gênero e sexualidade, interseccionados a outros, utilizamos a noção de necropolítica postulada por Mbembe (2017), posteriormente revisitada por Valencia (2018) para analisar as expressões necropolíticas no território nacional imbricada ao machismo e à perpetuação colonial de gênero. A (re)leitura de Valencia (2018) funciona como uma lente para compreendermos de que modos os fenômenos regionais interpelam essa tecnologia de poder, visto que sua análise acerca da exacerbação da violência urbana, do exercício performático masculinista, das singularidades geográficas e culturais e do narcotráfico em Tijuana, aponta-nos para o que temos observado no Ceará. Por isso, utilizamos-na como ethos epistemológico para problematizar o que se tem sido experienciado em Fortaleza (capital do Ceará), sobretudo desde a chegada e fortalecimento das facções (organizações criminosas), das transformações sociais da violência urbana no estado e da dinâmica belicista masculinista em torno disso.
Para Valencia (2018), na formulação da sociedade cis-hétero-patriarcal, a colonialdiade de gênero (Lugones, 2014), é uma das bases da violência genderizada, sobretudo quando atrelada a outros marcadores de opressões. Ou seja, o machismo, sexismo, LGBTQIAP+fobia, racismo e classismo atuam nas maneiras de tornar uma vida invivível, quiçá matável e morrível. É sobretudo com o avanço do neoliberalismo, que tecnologias mortíferas têm alcançado formas mais eficientes, como no caso da necropolítica genderizada 2, que aglutina mulheres e a população LGBTQIAP+ (Valencia, 2018). Esse fenômeno reacionário e global, em que forças da extrema direita tem assumido cargos de importante poder, trata-se, para Wendy Brown (2019), de uma racionalidade neoliberal em que uma “nova” direita se apresenta de maneira mais agressiva contra a ciência, laicidade, razão e instituições democráticas que priorizam, em certa medida, a ideia de igualdade e universalidade de direitos sociais. Para Brown (2019), há uma eclosão neoconservadora que visa re-assegurar a hegemonia branca, burguesa, cristã e masculinista diante dos pequenos avanços progressistas. O nacionalismo é distorcido e o alvo passa a ser a democracia e tudo que ela representa de melhoria para as minorias sociais. Nisso, a necropolítica genderizada é um tentáculo que visa assegurar não somente o declínio da democracia, mas aniquilar de diferentes formas sujeitos indesejáveis.
Cabe salientar que a democracia como temos, argumenta Mbembe (2017), não é “democrática de fato”, já que seus tentáculos que a funda são os mesmos que fundaram e sustentam o capitalismo e o racismo na contemporaneidade. Não é à toa que a racionalidade neoliberal continua a dizimar alteridades, que, na leitura de Brown (2019), tem cultivado um terreno que não atua mais de forma velada.
Mesmo diante de todos os retrocessos e desmantelamento do Estado Social, ou como coloca Mombaça (2021), “apesar disso”, observamos que agrupamentos, movimentos sociais, partidários ou coletivos juvenis não freiam suas lutas. Voltando a Fortaleza, um conjunto de coletivos formado por LGBTQIAP+, segmento esse que se autodenominou de “bixa” em diversos momentos, no intuito de reafirmar sua visibilidade dissidente, posteriormente denominado “EntreColetivos”, aliançaram-se em 2018 para buscar não somente melhorias para suas comunidades, mas para reafirmar suas existências e resistências cotidianas, sobretudo ao ocuparem a cidade. Ocupar o espaço público é uma prática insurgente, visto que a exclusão e segregação social é uma das formas de deixar morrer e invisibilizar a vida. Desse modo, partindo da problemática de como o segmento LGBTQIAP+ tem produzido resistência às violências induzidas pela necropolítica genderizada, este manuscrito tem como objetivo analisar como coletivos juvenis LGBTQIAP+ têm produzido formas de re-existir a violências induzidas pelas expressões da necropolítica genderizada em Fortaleza, entendendo-a como uma faceta reacionária típica do neoliberalismo. Tomamos a ideia de re-existência para reiterar que resistir e existir são faces de uma mesma moeda, da qual a própria permanência de viver em uma sociedade que é seu próprio trauma já é em si só uma prática de luta e resistência cotidiana (Mombaça, 2021).
A pesquisa com o EntreColetivos é fruto de uma pesquisa guarda-chuva que investigou aspectos psicossociais da violência urbana e práticas de re-existência juvenis em periferias urbanas, desenvolvida por um laboratório de pesquisa e intervenção atuante no contexto cearense. Partindo desse território epistemológico, utilizamos aportes teóricos da Psicologia junto a autores e autoras que tematizam gênero, sexualidade, violência urbana, juventude e críticos à colonialidade. Aliados/as a isso, elegemos a cartografia como ethos da pesquisa-inter(in)venção. Assim, os próximos tópicos estão divididos da seguinte maneira: percurso metodológico, quatro cenas que fundamentam os resultados e discussões e por fim as considerações finais.
Metodologia: Fazer Pesquisa na/da Margem
A proposta metodológica se delineia como abordagem qualitativa, partindo da perspectiva da cartografia como método de pesquisa-inter(in)venção (Colaço et al., 2018). Visou-se, então, acompanhar os processos de produção de subjetividade e produção de re-existências por parte do EntreColetivos, visto que cartografar é traçar um plano comum, habitar um território existencial e acompanhar processos de subjetivação e os efeitos do próprio percurso da investigação (Passos et al., 2010). Para isso, a cartografia foi utilizada como ethos de pesquisa-intervenção no acompanhamento e composição dos atos políticos-culturais em que foi acionado a rede EntreColetivos, pesquisando e habitando um território existencial (n)as margens como uma prática micropolítica (Passos et al., 2010).
O EntreColetivos foi/é uma rede acionada por coletivos juvenis LGBTQIAP+ de periferias de Fortaleza, na qual o autor principal participou como pesquisador-integrante. Para tal, participamos (representados durante todo o processo por uma das pessoas que compõem nosso grupo de pesquisa e este artigo) de 15 encontros, entre reuniões para a articulação da rede EntreColetivos e atos político-culturais (dentre esses o Sarau de inauguração do Centro Urbano de Cultura, Arte, Ciência e Esporte do Lagamar e dos Atos contra o apagão e a favor da reforma do Polo de Lazer do Conjunto Ceará) na cidade de Fortaleza durante o final de 2018 e ao longo de 2019.
A pesquisa aconteceu em três territorialidades de Fortaleza: Lagamar (Comunidade de atuação do Flor no Asfalto, território inserido no Bairro Aerolândia, que consta na posição 69 em relação ao IDH dos bairros de Fortaleza), Conjunto Ceará (Bairro de atuação do PoloTrans e que ocupa a posição de número 56 do mesmo ranking) e Bom Jardim (Bairro de atuação do GuetoQueen, com a posição 104, sendo o 10º pior índice de desenvolvimento humano da cidade).
Os e as participantes do estudo foram jovens LGBTQIAP+ dos coletivos Flor no Asfalto, PoloTrans e GuetoQueen que tiveram uma movimentação mais atuante no Entre-Coletivos, rede de coletivos LGBTQIA+ de periferias criada por esses 3 coletivos para fortalecer eventos juvenis de margens. Tais participantes foram nomeados aqui de Fábio (nome escolhido pelo participante), um jovem cis gay que atua no Flor no Asfalto, Yna Travesty (nome escolhido pela participante), uma jovem trans que atua no PoloTrans e Amateus (nome escolhido pelo pesquisador, já que o/a participante assim o quis), não-binárie que atua no GuetoQueen.
Segundo Aguiar e Rocha (2007, p. 656), “analisadores podem ser acontecimentos, práticas ou dispositivos que sinalizam, mediante seu próprio modo de funcionar, aspectos impensados de uma estrutura social”. Inspirando-nos na produção de analisadores, propomos então seguir o que foi cartografado em campo como cenas. Tais cenas foram registradas em diário de campo, em alguns momentos foram áudio gravados e posteriormente transcritos, além da participação ativa na composição dos encontros, o que nos permitiu realizar análise de implicação durante todo o processo (Passos et al., 2010).
As discussões com os e as participantes dos coletivos que aparecem como cenas analisadoras desta investigação foram feitas nas próprias reuniões do EntreColetivos e a partir de outras conversações no cotidiano dos atos político-culturais. Outras cenas analisadoras dizem respeito às performances artísticas cartografadas nas atividades destes. Realizamos a seleção dos dados produzidos, optando por cenas analisadoras que trouxessem à tona, a partir do processo de articulação dos coletivos, como eram pautadas questões relacionadas à arte, cidade e política. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFC, estando de acordo com a Resolução n° 466 de 2012 do Conselho Nacional de Saúde, aprovado pelo comitê de ética CAAE n. 88857718.9.0000.5054.
Cena 1: Cidade como Pauta LGBTQIAP+
À espera de uma oficina em um bar, duas bixas discutiam questões relacionadas à circulação na cidade e à ocupação dos espaços públicos. A oficina aconteceu no bar porque foi o espaço cedido para programações culturais organizadas em protesto à paralisação da obra de um polo de lazer e ao apagão de uma pista de skate usada como plataforma para eventos juvenis. Como, nesse cenário, não tomar a cidade como pauta LGBTQIAP+? Essa pergunta foi reiterada por Fábio:
Fico me perguntando o que é pauta LGBT. Por que não pode ser considerada uma pauta LGBT questões de mobilidade urbana ou até mesmo um projeto de cidade, saca? O que é a pauta LGBT? É visibilidade? É representatividade? E o modo como a gente vive a cidade, não é? (Fábio, comunicação pessoal, 2018).
A questão levantada por Fábio não parece ser uma disputa sobre qual deveria ser a pauta LGBTQIAP+, como se devesse haver uma única agenda que unificasse todo o movimento. As pautas são localizadas e datadas historicamente, o que não quer dizer que elas não possam se conectar por meio da composição de uma agenda comum.
As bixas, ao proporem não apagarmos as especificidades dos movimentos sociais em suas experimentações políticas na busca por criar outras cidades em um contexto urbano marcadamente neoliberal, argumentam que esses movimentos produzem um comum, sobretudo ao não aceitarem a negação à cidade. Atreladas a isso, ações de reapropriação da cidade vêm se dando por organizações como coletivos LGBTQIAP+, coletivos feministas e coletivos que discutem questões étnico-raciais que, através de ocupações as mais diversas possíveis têm tratado de colocar aquilo que concerne aos espaços urbanos no cenário de suas disputas políticas, sendo os próprios espaços motivo para a realização dessas contestações.
Os coletivos LGBTQIAP+ que acompanhamos buscaram se articular para se fortalecerem diante de contextos em que o direito à cidade tem sido deteriorado pela mercantilização de espaços e da própria vida. Os fluxos foram se dando a partir de atos artísticos e políticos pela reivindicação de espaços para juventudes. Nesses atos, as operações de visibilidade se aproximaram dos modos com que se vive na cidade, tomados por Fábio como pauta LGBTQIAP+, já que, através dos atos, esses coletivos denunciaram a invisibilidade a que esses segmentos juvenis de periferias estão sujeitos.
Os/as participantes, em seus atos pela cidade, foram tensionando esses processos de invisibilização e silenciamento de suas vozes por meio de problematizações e ocupações do espaço urbano. Ao pensar com estudos de Butler (2018), seria um problema dizer apenas que as bixas reivindicaram algo no espaço público, porque isso viria a reforçar uma separação entre público e privado, criando um entendimento de que o espaço já está dado e que apenas busca-se reivindicar por algo nele. Muitas vezes, o que é contestado é justamente o próprio espaço público e a possibilidade de se fazer aparecer. Nessas contestações é necessário entender que nem todas as pessoas são “aparecíveis”, por isso que há uma proposição, em estudos butlerianos, de sair do espaço de “aparência” da polis, formatado por exclusões que ditam quem pode e quem não pode aparecer, para as políticas da rua, deslocando a restrição imposta pela legitimação estatal, direta ou indiretamente, para um lugar construído enquanto espaço público e em coletividade (Butler, 2018).
O entrelaçamento entre luta contra silenciamentos, por visibilidade e a tomada da cidade como pauta de problematização e como campo de disputas ficou nítido nas alianças juvenis para realizar o Sarau de Inauguração do CUCA do Lagamar e os Atos Contra o Apagão da pista de skate do Polo de Lazer do Conjunto Ceará em pleno escuro, um ato em festa, borrando fronteiras entre fazer festa e praticar política. Ocupar o espaço público festivamente é um modo de ocupação do espaço por excelência e que isso não se coloca como uma simples celebração do ócio, mas como uma capacidade inventiva na potencialização de desejos, sensações e devires (por estarem em constante transformação).
Cena 2: “LGBTQIAP+ Fazem Segurança Clandestina”
Na reunião para debater os preparativos para o sarau no Lagamar, Fábio falou da necessidade de criar um comunicado de segurança, pois, segundo ele, teria “gente de diferentes territórios; precisamos cuidar disso” (Diário de campo, 2018). Alguém ficou de fazer o comunicado com a polícia. Era uma movimentação toda para conseguir um alvará para um evento que pretendia denunciar o próprio Estado. Fábio disse: “vamo denunciar a falta de política pública para a juventude do Lagamar, mas também de outras periferias, porque essa não é uma realidade só do Lagamar, é uma realidade nossa; se a gente não conseguir alvará, vai fazer mesmo assim” (Diário de campo, 2019). Yna Travesty perguntou: “sem alvará, como comunica à polícia?”. Amateus não hesitou: “as bixa faz segurança clandestina; é a gente peitar e fazer o evento” (Amateus, comunicação pessoal, 2019).
Há uma teia necropolítica que vem entrelaçando sistema prisional e segurança pública no Brasil a partir de uma aposta na “guerra às drogas”, tendo como efeito o recrudescimento de políticas penais e a militarização de cotidianos periféricos, fazendo com que o encarceramento em massa eleve-se como política (Nunes, 2020). Desse modo, observa-se que a faccionalização do sistema prisional brasileiro ofereceu condições para proliferação e fortalecimento dessas organizações criminosas dentro e fora dos presídios, inclusive migrando para outros estados, como no caso do Ceará. Os dispositivos que fazem operar essa “guerra às drogas” tem produzido assujeitamentos nas periferias de Fortaleza. Destacamos um trecho de uma fala registrada em diário de campo de um jovem que esteve nas articulações para os atos pró-reforma do Polo de Lazer do Conjunto Ceará e contra o apagão. De acordo com Amateus, o combate às drogas vem se operacionalizando como combate às juventudes periféricas, além de ressaltar como eventos juvenis têm sido inviabilizados:
Não tem diálogo. Eles chegam nos eventos da juventude com a desculpa da droga, de que precisam fazer o combate às drogas, mas é só pra dispersar mesmo, pra desorganizar. Fazem isso tudo aí pra tirar a juventude dos espaços. O apagão foi um jeito que eles viram de tirar a gente, porque por mais que acreditassem que a reforma ia desmobilizar a gente, num desmobilizou não. (Amateus, comunicação pessoal, 2018)
A racionalidade neoliberal atua na produção de subjetividades individualizadas e massificantes para fins de manutenção do sistema neocolonial capitalista. Dizibilizar que “o som é de todo mundo” é um acontecimento, como outros produzidos pelo EntreColetivos, opera uma (des)subjetivação da máquina neocolonial de individualização. Ou seja, por meio do uso da arte, do agrupamento e do afeto, as bixas vêm produzindo enunciações coletivas e mundos outros.
Passos e Carvalho (2015, p. 234), ao fazerem um estudo sobre processos de estigmatização socioterritorial que recaem duplamente sobre o Bom Jardim, bairro de Fortaleza reconhecido pela grande concentração de pobreza e violência urbana, falam sobre as lutas simbólicas “entre discursos de requalificação/ressignificação e de desqualificação/estigmatização desta região e, por conseguinte, de determinados territórios constitutivos e de seus moradores”. Territorialidade em que algumas das reuniões para a articulação do EntreColetivos foram realizadas, e de atuação de um dos coletivos que acompanhamos - GuetoQueen -, o Bom Jardim também foi tomado pelas bixas em suas reflexões como um lugar em que as pessoas têm se apropriado para produzir outras imagens e narrativas, já que ainda tem sido colocado como motivo desqualificador ser seu habitante.
Kilomba (2019) ajuda-nos a compreender as atualizações do colonialismo como o erigir de uma política do medo que cria corpos desviantes com o intuito de “defender” algo e/ou alguém do que é considerado dessa ordem do desvio e, portanto, “ameaçador”. O desvio aqui é o periférico e o que se deve defender é o que é imposto como centro. Essa discussão também remete ao Fanon (2008) e Mbembe (2017) sobre o racismo estatal, entendendo este como um corte que hierarquiza os corpos entre aqueles(as) que devem morrer e aqueles(as) que podem viver em uma sociedade da normalização em que a vida é investida por uma biopolítica 3. Este debate pode ser complexificado pela noção mbembeana de “inimigo ficcional” (Mbembe, 2017), geralmente identificado em pessoas pobres, negras e periféricas. Tais inimigos seriam aqueles que habitam as colônias contemporâneas, tidas como “o local, por excelência, onde os controles e as garantias da ordem jurídica podem ser suspensos - a zona onde a violência do Estado de exceção está condenada a operar ao serviço da ‘civilização’” (Mbembe, 2017, p. 127). No caso do Bom Jardim, a marcação como colônia contemporânea tem se expressado em um “vixe” homogeneizador do bairro como lugar de violência e “má fama”, a “cidade do colonizado”, que, nas palavras de Fanon (2008) tem sido reconhecida como “uma vila agachada, uma cidade ajoelhada”.
O desmantelar dessas estruturas do colonialismo diz respeito a tomar a linguagem visual e semântica para criar “desobediências poéticas”, fazendo com que a descolonização passe pela invenção de outras narrativas, já que a linguagem tem sido aparelhada como transporte de violência (Kilomba, 2019). “Vixe” tem sido uma expressão usada para violentar todo um corpo-bairro, tendo sido desarmado pelas bixas com um estrondoso “Bom Jardim é cultura”, como disse Amateus (comunicação pessoal, 2019).
Usamos aqui o termo corpo-bairro para fazer uma aproximação entre os estigmas que impõem a territorialidades periféricas, como o Bom Jardim, com corpos periferizados como os das bixas. Por muito tempo, as expressões que foram colocadas a esses corpos os violentaram. Bairros tornados abomináveis. Corpos narrados como abomináveis, “ostensivamente femininos”. Implodimos as fronteiras entre corpo e cidade para falar do entre, das relações impostas para com os espaços-corpos e das re-existências, na invenção de fluxos outros.
Cena 3: “O Black da Bixa”
Fomos de UBER, a instituição em que os meninos atuam pagou a nossa ida. Não dava para ir à pé até o Polo de Lazer, porque teríamos que carregar um projetor, emprestado para o ato à noite. No carro, a cortesia do motorista com seu “boa tarde” logo foi emudecida pelas nossas viadagens; ele colocou música gospel e nós éramos bixa pra cá, bixa pra lá, mulher, passada… Sentiu-se ofendido? Queria nos curar? Abençoou-nos quando saímos para que nos libertássemos daquelas vibrações que “acometem” o corpo nos encontros? Amateus contou que no sábado anterior desistiu de voltar de UBER depois de dois motoristas desistirem deles quando eles iam abrindo a porta. Quem tem medo da bixa preta, afeminada e periférica? “Ele viu logo meu black, aí foi embora, ficou com medo da bixa [risos]”. Onze horas da noite e Fortaleza homofóbico-racista não tem hora. Os motoristas teriam desistido do gay branco em um bairro considerado nobre? Assim, perguntamos quem pode ser um quem para circular? Quem pode ser um quem para ficar? Quem pode ser um quem para voltar com segurança para casa? Quem pode ser um quem para dormir tranquilo sem precisar sofrer racismo e homofobia? (Amateus, comunicação pessoal, 2019)
Essas indagações proferidas pelo primeiro autor em Diário de Campo saiu como um grito de denúncia ao racismo observado. Kilomba (2019), ao discutir sobre políticas do cabelo, oferece-nos pistas para entendermos como o colonialismo vem tomando o cabelo de pessoas negras como uma das marcas mais visíveis de discriminação e subordinação da negritude. O cabelo foi sendo tornado um dos estigmas mais poderosos da servidão e “acabou se tornando um símbolo de “primitividade”, desordem, inferioridade e não-civilização” (Kilomba, 2019, p. 127). Amateus, em uma mesma frase, cruza o seu black com o fato de ser uma bixa e anuncia que este cruzamento de estigmas operou o que ele chamou de “medo” nos motoristas, ajudando-nos a compreender como se interseccionam raça, classe, gênero, sexualidade e territorialidade na produção de juventudes desiguais.
A cena que acompanhamos ajuda-nos a discutir o controle de corpos negros por meio de processos de “desracialização”, como a imposição colonial do alisamento do cabelo de pessoas negras, assim como contribui na problematização do que surge disso como uma espécie de “tornar-se negro(a) demais”, associado ao ato de “deixar o corpo enegrecido” como um retorno à “primitividade” (Kilomba, 2019). Amateus foi alvo de um “medo-aversão” racista e homofóbico. Cabelo black e voz anasalada, “voz de travesti”, como disse Yna, (comunicação pessoal, 2019), sendo alçados como operadores de uma hierarquização dicotômica entre o que é considerado humano e o que não é (Lugones, 2014), fazendo com que jovens negros LGBTQIAP+ de periferias sejam (des)subjetivados aversivamente por medos racistas e homofóbicos. Mombaça (2021), bixa não-binária, chama a atenção na sua escrita para a tomada constante do seu corpo como ameaça a processos de normatizações, demonstrando como essa fobia habita o imaginário cis-heteronormativo, e Mbembe (2017), em diálogo com Fanon, fala do medo racista como a tomada do corpo negro como “corpo-objeto” que causa tanto medo quanto desgosto, a partir da produção de uma “imago”, restando perguntar: “Em que consiste esta imago? Nesta economia imaginária, o negro não é um homem, mas um objecto. Mais precisamente, é um objecto fóbico que, enquanto tal, suscita medo e terror. E só descobrimos este objecto fóbico através do olhar” (Mbembe, 2017, p. 185)”.
As operações de interdição e produção de determinados corpos como abjetos (desprezível, baixo ou ignóbil) e inumanos entrecruzam-se para forjar uma colonização desse corpo-cidade pela racialização e engendramento, fazendo aqui uma leitura, com Lugones (2014), da colonialidade de gênero como uma interação complexa que gera e fortalece opressões. Kilomba (2019), ao discutir sobre políticas do cabelo, oferece-nos pistas para entendermos como o colonialismo vem tomando o cabelo de pessoas negras como uma das marcas mais visíveis de discriminação e subordinação da negritude. O cabelo foi sendo tornado um dos estigmas mais poderosos da servidão e “acabou se tornando um símbolo de “primitividade”, desordem, inferioridade e não-civilização” (Kilomba, 2019, p. 127). Amateus, em uma mesma frase, cruza o seu black com o fato de ser uma bixa e anuncia que este cruzamento de estigmas operou o que ele chamou de “medo” nos motoristas, ajudando-nos a compreender como se interseccionam raça, classe, gênero, sexualidade e territorialidade na produção de juventudes desiguais.
Não querer adentrar determinadas quebradas têm sido uma atitude de motoristas de aplicativos reconhecida por moradores de periferias taxadas pela periculosidade. Todavia, na cena “O black da bixa”, também notamos um medo-aversão para com um corpo negro, periférico e afeminado. A inscrição de estigmatizações parece atravessar não só territorialidades, “respingando” suas marcas nos corpos que as habitam, isto é, a marcação não é apenas na “cidade do colonizado” (Fanon, 2008) como zona de morte (Mbembe, 2017), assim como no corpo não recai apenas um “respingo” de dessemelhança. O processo de estigmatização se retroalimenta na marcação de territorialidades e corpos, forjando-os mutuamente como “zonas precárias”. Há corpos em que a precariedade induzida (Butler, 2018) vem incidindo, historicamente, de forma brutal, principalmente quando se trata de corpos negros e periféricos. Estes corpos, fora de sua quebrada, carregam esses estigmas, como podemos observar na fala de Amateus:
A gente acaba tendo que ir pro rolê dos outros, né? Tipo, em outros bairros como o Benfica, e fica refém do transporte público; a gente tem horário pra voltar pra casa quando sai pra esses outros rolês e a gente queria mesmo era que respeitassem os nossos daqui das periferias, mas também não podemos abdicar de transitar por outros espaços da cidade (Amateus, comunicação pessoal, 2018).
Tanto a fala acima quanto a cena “O black da bixa”, na parte em que pegamos o UBER e “enviadescemos” ao som da música gospel, ajudam-nos a vislumbrar uma cidade em disputa por corpos periféricos. Aproximamos a discussão da “ética do passante” do que chamamos de “enviadescimento dos fluxos” para falar da necessidade de invenção de outras circulações da vida e/ou da possibilidade de que outras vidas possam circular pela cidade a partir de uma “experiência de presença e de diferença, de solidariedade e de desprendimento” (Mbembe, 2017, p. 248). Para Mbembe (2017), a ética do passante diz respeito à possibilidade de mover-se livremente como modo de partilhar o mundo. Tal ética, em uma cidade que vem segregando e imobilizando corpos periféricos, estaria se expressando em movimentações em que o próprio corpo tem sido usado como instrumento de resistência, uma resistência visceral, nas palavras do camaronês (Mbembe, 2019). O EntreColetivos tornou possível a “prática de passar constantemente de um lugar para outro” (Mbembe, 2017, p. 248), na partilha de mundos, por meio da articulação entre bixas se movimentando em periferias (in)viabilizadas. Amateus, depois de realizar uma peça de teatro de rua, em composição com Yna Travesty, disse: “me sinto realizada por ter feito a peça na minha quebrada e no espaço da cidade dos burgueses” (Amateus, comunicação pessoal, 2018). Ou seja, a persistência tem sido a de fabricar trânsitos juvenis nas periferias, entre periferias, mas também entre espaços em que esses sujeitos têm sido impedidos de habitar, fazendo com que a prática de resistência diante da produção de ausências passe pela luta dos corpos em se fazerem presentes, (Mbembe, 2019).
Essa resistência-presença, portanto, faz-se pelo corpo, com o que há de mais visceral (Mbembe, 2019), pois, como aponta Mombaça (2021), se a batalha do mundo, em suas construções paralisantes, tem sido contra o nosso corpo é também por meio do corpo que a resistência poderá se fazer possível. Essas reflexões nos levam a questionar: quem tem direito à cidade, ou antes disso, quem tem direito ao próprio corpo?
Cena 4: O Dispositivo-Arte contra a Necropolítica
Já fui vadia transtornada./ Hoje, uma puta transformada./ Já fui afogada em lágrimas, reprimida por esse sistema/ só por ser traumatizada e transpassada com essa corrosão./ Eu vendia o meu corpo e veneno./ Jogava na mente deles o que eu tava querendo e não tava nem vendo,/ vinham querer pagar de patrão só porque me davam duzentão,/ mas mal sabiam eles que eu também estava interada, meu irmão./ E nesta vida eu já cheguei quase a partir, com medo de seguir,/ mas hoje eu entendi o porquê escolhi sobreviver./ Eu transgredi o meu ser, e aprendi um pouco de maldade para poder sobreviver./ Dava uns gritos de apavoro./ Era certo o choro./ Aquela cara de medo, todo aquele transtorno,/ tentando sobreviver./ E na rua fria e sozinha, eu estava ali cheia de amor,/ mas para vender, não importava se era 50, 100 ou 150,/ eles pagavam pelo meu prazer e eu a me perguntar o que de tão grande eu tinha para oferecer,/ se eram sorrisos./ Eu era crua e às vezes toda nua e sabia rodar./ Dessas ruas, debaixo de tiros e cortinas de fumaça/ saí vazada com uma arma engatilhada na minha cara,/ e o filho da puta mandando eu correr dizendo:/ se olhar pra trás vai levar tiro na cara./ Eu me viro dizendo:/ atira, filho da puta, que eu sou mais uma dessas putas,/ puta com esta vida! (Yna Travesty, comunicação pessoal, 2019)
Acompanhamos acima um poema-performance de Yna Travesty, ensaiado para apresentação em um sarau contra o apagão da pista de skate do Polo de Lazer do Conjunto Ceará. Nessa linha de enunciação, inventada a partir do poema da rapper, ganha dizibilidade a colonização de determinados corpos, operacionalizada pela abjetificação e pelas estigmatizações que os marcam como aqueles(as) que não podem habitar a cidade dos iguais (Liberato & Dimenstein, 2013). A prática de desumanização de existências trans é um problema para a descolonização, porque tal prática atualiza a transfobia como uma violência colonial alçada para legitimar a cisgeneridade branca incutida nas dominações forjadas pela colonização, fazendo-se necessário pensarmos um novo projeto político de humanidade (Araújo, 2018).
Como o dispositivo-arte, emaranhado ao desvio de uma cis-heteronorma, pode nos ajudar a pensar modos de vida re-existentes? Inspirando-nos na ética do passante pensada por Mbembe (2017), ao defender através de tal ética que aprender a passar constantemente de um lugar para outro deveria ser um projeto humano, provocamo-nos a pensar de que modo corpos trans e negros têm sido interditados constantemente na cidade justamente por colapsarem um corpo-cidade cis, hétero e branco que exercita poder por meio de uma violência colonial constante que segrega corpos e espaços. Os saraus, além de colocarem sob evidência essa violência colonial, re-existem a esses interditos ao possibilitarem o uso da cidade através da arte. A arte seria, neste caso, não uma geradora de bem-estar e conformidade a inteligibilidades vigentes, como às vezes tem sido enxergada, mas sim uma produtora de um caos em ordens que bloqueiam fluxos artísticos e políticos performados por bixas periféricas.
Sigamos a produção de um curto-circuito operado por uma bixa preta debaixo de um viaduto na cena “Raiva, feijão e sal”: Um jovem negro toma a cena que lhe foi roubada; não há camarim para os preparos deste corpo, que faz de si uma máquina de guerra contra a subexistência que é relegada a seu povo. Estamos diante de uma performance a feijão, sal, água, corpo e raiva, componentes indispensáveis na luta contra a colonialidade contemporânea. Ele exprime nos olhos revoltos histórias que nunca lemos nos livros oficiais. A raiva, expressão condenada pelo branco, mesmo tendo-a usado para forjar os grilhões da escravatura, é invocada no monólogo que se espraia como sementes que caem do turbante para o chão, é para fazer germinar o alimento que alguém torna escasso. O não retorno para casa do jovem negro mexe com quantas mães? Quem não deixa a bixa preta continuar? Quem está preocupado com a mãe da bixa preta? Se estamos falando de outra circulação da vida, estamos defendendo o retorno que a bixa periférica precisa fazer para a sua casa. Para tornar este chão circulável, ele come a terra com o feijão a sal. Um jovem negro toma a terra que lhe foi roubada com o corpo que ainda se lhe pretendem roubar.
O dispositivo-arte acionado pela performance da bixa-preta ajuda-nos a pensar com Mbembe uma “resistência visceral” à necropolítica a partir da ocupação de espaços públicos, dando-se pela “luta dos corpos por se tornarem (corporal, física, visivelmente) diante da produção de ausência e silêncio pelo poder. São formas exemplares de resistência, pois o poder funciona hoje produzindo ausência: invisibilidade, silêncio e esquecimento” (Mbembe, 2019, p. 16).
As linhas de força e de subjetivação, que dizem respeito tanto aos fluxos que mantêm e desfazem instituições quanto à invenção de modos de existir, ganham notoriedade no erigir de uma obra de arte nômade desenhada nas periferias pelo aliançamento de corpos (BUTLER, 2018) de territorialidades distintas e pela possibilidade do encontro daqueles que não são bem-vindos em uma cidade dos “iguais”, ajudando-nos a compreender a experiência artística aqui
[...] como produtora de singularidades e novas sociabilidades, colocando-se a serviço não do paradigma racional e cientificista, mas da experimentação de novas sensações através dos fluxos estéticos, em um paradigma também ético e político. Concordamos, pois, com Rancière (2005) na perspectiva de que a arte é política por modificar a paisagem da vida coletiva, configurando maneiras de estar junto ou separado, dentro ou fora. (Liberato & Dimenstein, 2013, p. 275-276)
Os poemas combatem mundos e inventam outros. Muitas vezes, os inimigos nos poemas periféricos são as violências, o racismo, as fronteiras que a morte e o medo levantam, a homotransfobia, o machismo, os estigmas fabricados pelo sistema cisgênero, hétero hegemônico e patriarcal. Ou seja, sempre estamos escrevendo contra algum mundo que não nos cabe ou não nos deixa caber e germinando outros. O dispositivo-arte, portanto, pelo uso da palavra cantada, rimada alto no microfone aberto tem possibilitado re-existências em territorialidades periféricas, entendendo essa re-existência como dispositivos criados como estratégia de visibilização e de interpelação no que se refere a processos de racialização, marginalização, exclusão e cristalização de estigmas, experimentando ressignificações de forma coletiva e autônoma ao colocar-se contra mercantilizações e assujeitamentos de determinados modos de viver (Achinte, 2017). Re-existir seria, então, persistir na vida de maneira inventiva e contra-hegemônica.
Ao refletirmos sobre a linha de visibilidade e de enunciação do dispositivo-arte, indagamos: como os saraus estariam se constituindo como máquinas de fazer ver e falar nas periferias? (Barros, 1997). O sarau no viaduto, por exemplo, tornou visível a escassez de políticas públicas voltadas a juventudes periféricas, pondo sob evidência existências historicamente tornadas invisíveis no que se refere a garantias de direitos e hipervisibilizadas negativamente por práticas criminalizantes e medicalizantes, como é o caso de pessoas negras e LGBTQIAP+. Ao mesmo passo que isso foi tornado visível, as bixas dos coletivos também mostraram uma política e uma estética do encontro debaixo do viaduto, transmutando-o em um equipamento de juventude, uma espécie de CUCA sem órgãos, um corpo intensivo atravessado por dança, teatro e outras performances de rua, “convidando as identidades ao mergulho na agitação das diferenças” (Barros, 1997, p. 191).
Considerações Finais
Com este artigo buscamos discutir a tomada dos espaços urbanos como pauta de problematização e de invenções periféricas pela arte, com intuito de ocupar uma cidade extremamente segregada e segregadora, principalmente no que concerne a jovens negros/as, pobres, periféricos/as e LGBTQIAP+. Tomamos ao longo do artigo a necropolítica genderizada como uma ferramenta operacional da racionalidade neoliberal, a qual dentre outras coisas, visa exaurir modos de existências outros, como o segmento LGBTQIAP+.
Apesar do paradigma neoliberal que mina a energia vital e produz sujeitos atomizados e uma participação política menos consciente (Brown, 2019), é necessário buscar um comum (Butler, 2018), que revitalize os avanços progressistas e as políticas das/nas ruas. Para Valencia (2018) a morte seria uma tecnologia que une todas as minorias, já que é a isso que estão mais suscetíveis queiram ou não, sendo assim, podendo ser utilizada como um Entre-Comum entre movimentos sociais como bandeira de luta, contra a morte simbólica ou real das alteridades. O EntreColetivos seria então essa utopia, não mais tão utópica, de agrupamento coletivo, do afeto como ato político para estratégias de re-exisitir junto, sobretudo ocupando espaço públicos, do fazer a própria segurança, do não sucumbir às necropolíticas, utilizando-se do dispositivo-arte como “arma” de luta e re-existência.
As cenas que analisamos nos dão pistas de como se resiste em rede e de como o dispositivo-arte tem agregado pessoas nas periferias, misturando-as e potencializando-as por meio do que chamamos de “rolês comuns”. Aqui, perguntamo-nos: qual a relevância desses modos de fazer para as nossas pesquisas? Como o pesquisar pode produzir “rolês comuns”, compondo com os “rolês” que já existem por meio do fortalecimento destes? O que o fortalecimento do que já existe cria de novo? As pistas foram seguidas e forjadas com bixas de periferias, mas parecem apontar não só para os modos de fazer movimentos sociais juvenis LGBTQIAP+. As pistas parecem dizer respeito a resistências plurais frente a modos hegemônicos de viver radicalizados por uma racionalidade neoliberal em que a ideia de responsabilidade é disseminada como uma individualização de problemas sociais (Butler, 2018).
As bixas nos apontam um deslocamento desse uso meritocrático da responsabilidade individual quando propõem responder a solicitações por meio de uma rede de coletivos LGBTQIAP+ de periferias, colocando em pauta não apenas questões que “correspondem” ao segmento LGBTQIAP+. Nas cenas analisadas, quando as bixas se movimentaram artística e politicamente pela cidade, não foi apenas para pedir passagem para as bixas, foi para tornar a cidade circulável para quem ela tem sido inviável. Pensar responsabilidade, nestes termos, é importante para que observemos que a luta pela sobrevivência e pela re-existência nas margens não se encapsula em pautas identitárias, o que não quer dizer que elas não existem e não tenham sua importância. O que queremos dizer é que tais pautas não podem abdicar da ideia de que precisamos propor “rolês comuns” em nossas movimentações por justiça social, o que também não significa termos que apagar as singularidades de cada segmento da população.
Para concluir, salientamos que não tomamos essas experiências como cristalizações e verdades absolutas sobre como sobreviver, reinventar-se e re-existir de pessoas LGBTQIA+ periféricas. São encontros localizados, geograficamente falando, mas também teoricamente, partindo do “dialogar” em línguas diversas, inclusive das bixas, com a Psicologia Social que praticamos. Esse “dialogar” é fruto de um caminho singular percorrido que certamente, se feito atualmente, poderia ser outro se composto por outras subjetividades corpóreas. O que nos leva a questionar como seria acompanhar processos de coletivos LGBTQIAP+ em outras localidades e suas particularidades, embora no ocidente o processo de colonização contínua (colonialidade) perpetua os mesmos mecanismos de controle e cisão epistemológicos e ontológicos. Por fim, essa pesquisa foi uma ponte para a inserção da autoria em movimentos políticos e ativistas, como também em inserção acadêmica, levando assim inquietações para pesquisas futuras.