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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.58 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2006

 

ARTIGO

 

O fascínio e a alienação no ciberespaço: uma perspectiva psicanalítica

 

The fascination and the alienation towards cyberspace: a psychoanalysis approach

 

 

Nádia Laguárdia de Lima

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/Minas)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo propõe explicar o fascínio pela virtualidade, em especial, pelo ciberespaço, utilizando recursos da teoria psicanalítica sobre a função da imagem na subjetividade. O estudo teórico sobre a função da imagem na constituição subjetiva revelou que o fascínio está relacionado, principalmente, ao poder estruturante e de identificação da imagem. A multiplicidade de imagens na contemporaneidade e a crescente virtualidade tecnológica têm promovido a expansão do registro imaginário da subjetividade, com todos os seus efeitos: perda da dimensão simbólica, que se traduz especialmente em termos de busca pelo prazer imediato e um desinteresse pelas atividades que exigem um esforço ou adiamento de satisfação, e a ilusão de se ter "tudo". Em um extremo, essa utilização do espaço virtual pode levar a uma posição de alienação à imagem fascinante, com a conseqüente perda reflexiva e crítica do pensamento.

Palavras-chave: Ciberespaço; Psicanálise; Fascínio.


ABSTRACT

The objective of this work was to investigate the existence of an allurement towards virtuality, especially, towards cyberspace. For this, using resources of the psychoanalytic theory about the function of images in subjectivity. The theoretical study about the function of the image in the formation of the subjective realm revealed that the allurement is related mainly to the structuring and identifying power of image. The multiplicity of images nowadays and the growing technological virtuality have promoted the expansion of the imaginary register of subjectivity, with all its effects: a loss of the symbolic dimension which is translated in terms of the search for instant pleasure and a lack of interest towards activities that require efforts or the postponement of satisfaction, easy solutions, the building up of less frustrating social connections and the illusion of having "everything". To the extreme, this utilization of the virtual space may be conducive to a position of estrangement towards the fascinating image, with the ensuing loss of insights and of thought criticism.

Keywords: Cyberspace; Psychoanalysis; Fascination.


 

 

"Quando Narciso nasceu, sua mãe, a ninfa Liríope, perguntou ao adivinho Tirésias se a criança veria os longos anos de uma longa velhice. O cego, que via para além das imagens do mundo, respondeu-lhe: Sim, se não se conhecer. Ver sua imagem refletida na água, equivalente a se conhecer, será para ele fatal" (Ovídio, 1996, p. 98).

Neste artigo, parto da hipótese de que a imagem eletrônica, em especial, o ciberespaço1, pode exercer fascínio sobre o sujeito, podendo mantê-lo em uma posição de alienação ao objeto fascinante. Para justificar tal hipótese, percorri os dois conceitos: fascínio e alienação. Utilizei o conceito psicanalítico de imaginário para explicar o fascínio pelo ciberespaço, relacionando-o com a função da imagem na cultura contemporânea. Utilizei também, como referencial teórico, autores que analisam a contemporaneidade.

O percurso da pesquisa (Lima, 2003) incluiu observações em salas de jogos eletrônicos; consultas a artigos de jornais e revistas, entrevistas e matérias de TV, e a pesquisas científicas; incursões no ciberespaço, tanto sob a forma de pesquisadora on-line quanto de usuária, freqüentando seus espaços, suas salas de bate-papo, buscando entrar em contato com as pessoas e fazendo algumas perguntas mais abertas e gerais acerca do uso que elas faziam da internet. Fiz uso também de questionários enviados por e-mail. Um total de cinqüenta pessoas respondeu às duas versões do questionário. Não tive interesse em selecionar grupos por faixa etária, sexo ou escolaridade, ao contrário, busquei conhecer quem eram os usuários da internet. A idade, o sexo, a escolaridade, dentre outras características, foram, portanto, aleatórios. Recebi respostas, em sua grande maioria, de adolescentes e adultos jovens. Foram escolhidos apenas usuários brasileiros e residentes no Brasil, porque, apesar de a internet ser uma rede mundial, os seus usuários estão inseridos em uma cultura local, que apresenta, portanto, características próprias. A pesquisa investigou pessoas de ambos os sexos, sendo a maioria do sexo masculino, com idade entre 11 e 28 anos (apenas quatro pessoas estavam acima desta faixa etária). O tempo em que ficam conectados foi um dado importante para investigar a existência de uma relação intensa com o ciberespaço.

Além dos questionários, fiz perguntas mais abertas nas salas de bate-papo (dez entrevistas abertas) e realizei dez entrevistas pessoalmente com jovens que utilizam a internet e que também freqüentam casas de jogos de computador. Essas perguntas buscavam identificar o que mais os atraía no ciberespaço; a importância da internet em suas vidas, na escola e como forma de socialização; a causa do interesse pelos filmes feitos pelo computador; os jogos mais procurados, o que eles têm de interessante; e  como definem o ciberespaço e a relação virtual/real.

As incursões no ciberespaço possibilitaram conhecer diferentes formas de uso do espaço virtual. O ciberespaço pode ser campo de aprendizagem, socialização, inserção cultural e profissional. No entanto, identifiquei também uma relação fascinada e alienante com o espaço virtual. Recortei, em especial, essa forma de utilização do ciberespaço. Defendi a hipótese de que esta na virtualidade é conseqüência não só de uma posição do sujeito diante do objeto virtual, mas também do poder fascinante das imagens.

Fundamentalmente, as incursões no ciberespaço possibilitaram conhecer um pouco desse espaço virtual e, junto com as falas dos jovens, contribuíram para que pudessem ser identificados alguns aspectos dos efeitos subjetivos dessa imersão no mundo das imagens. As opiniões dos jovens aparecem durante todo este trabalho e são reproduzidas da maneira como eles se expressaram. Os nomes utilizados são fictícios para preservar a identidade dos internautas, mas a idade foi mantida. Este artigo apresenta apenas parte dessa pesquisa.

 Utilizando o referencial teórico-psicanalítico, que define a alienação imaginária como constitutiva e estruturante, ressaltei a sua dimensão de submissão e subserviência, que pode ser expandida em uma cultura marcada pela virtualidade e em determinadas interações com o ciberespaço. Investiguei a possibilidade de a imagem eletrônica provocar o aparecimento de um fenômeno semelhante ao fascínio hipnótico, favorecendo o efeito de um rebaixamento da ação reflexiva do pensamento. Essa diminuição da capacidade reflexiva favoreceria um estado de submetimento a um outro, que o alienaria.

 

FASCÍNIO

"[...] essa monstruosidade só pode ser abordada de frente, em um enfrentamento direto com a Potência, a qual exige, para ser vista, que se entre no campo do seu fascínio, com o risco de se perder nela. Ver a Górgona é olhá-la nos olhos, e, pelo cruzamento dos olhares, deixar de ser si mesmo [...] O fascínio significa que o homem não pode mais separar seu olhar, desviar seu rosto da Potência, que seu olhar se perde no olho da Potência, que o olha assim como ele a olha, que ele próprio é projetado no mundo presidido por essa Potência... Pelo jogo do fascínio, o que vê é arrancado de si mesmo, despossuído do seu olhar, invadido pelo olhar da figura diante dele e que, pelo terror mobilizado por suas feições e pelo seu olho, se apodera dele e o possui" (Vernant, 1986, p. 12, ênfases no original).

O verbo fascinar, segundo o Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, significa subjugar com o olhar, dominar por encantamento, atrair irresistivelmente, encantar, seduzir; "Luz que de tão forte ofusca e fascina" (Padre Antônio Vieira apud[/sertitle] Ferreira, 1986). Na Psicanálise, o termo fascinação normalmente apresenta-se associado à experiência especular e ao narcisismo.

Freud introduz o termo "fascinação" relacionando-o ao narcisismo, que designa um comportamento pelo qual um indivíduo "ama a si mesmo" ou trata o próprio corpo da mesma maneira como se trata habitualmente o corpo de uma pessoa amada. "Ser apaixonado por si mesmo" definiria assim o narcisismo, segundo o mito grego do jovem Narciso fascinado pela própria imagem (Lambotte, 1996, p. 347).

Freud (1914/1974) descreve o narcisismo como uma fase necessária da evolução da libido, antes que o sujeito se volte para um objeto externo. Essa fase é responsável pela formação do "eu". Ele explica que o eu é constituído também pelas enunciações, pelos juízos de valor, pelas declarações de preferência ou de rejeição. O eu ideal é a imagem do eu dotada de todas as perfeições (imagem idealizada). Essa imagem é construída na sua quase totalidade pelos pais, que se projetam no filho, fazendo ressurgir o narcisismo que eles próprios tiveram que abandonar por exigência da realidade.

A libido (energia pulsional), segundo Freud, apresenta uma mobilidade que ora se volta para o eu, ora para o objeto. A paixão amorosa ilustra um esvaziamento da libido "do eu" em proveito da libido do objeto e a fragilidade que disso resulta para um eu a partir de então desprovido de narcisismo. O objeto amado, segundo Freud (1921/1974), é supervalorizado, tornando-se todo-poderoso diante de um sujeito humilde e submisso, entregue ao que ele acredita ser a encarnação de seu ideal. Essa superestima sexual leva ao aparecimento de um estado muito particular de paixão amorosa que resulta em um empobrecimento do eu, fascinado pelo objeto idealizado.

De acordo com Freud, tanto na paixão do amor quanto na hipnose, o sujeito idealiza de tal modo o objeto que se torna fascinado por ele. O corpo do objeto vira luz, sedução. No amor idealizado, o objeto é tratado como se fosse o próprio sujeito, isto é, o objeto é investido de libido narcísica. Quanto mais o objeto é idealizado, mais o sujeito se torna fascinado, de forma tal que se estabelece uma servidão voluntária do sujeito ao objeto.

Freud (1921/1974), traçando uma distinção entre o processo de identificação e o de fascinação, comenta: "No primeiro caso o ego enriqueceu-se com as propriedades do objeto, introjetou o objeto em si próprio, como Ferenczi (1909) o expressa. No segundo caso, empobreceu-se, entregou-se ao objeto, substituiu seu componente mais importante pelo objeto" (p. 144).

Ele esclarece que no caso da identificação, o objeto foi perdido ou abandonado, e, posteriormente, erigido dentro do ego, provocando uma alteração parcial em si próprio, segundo o modelo do objeto perdido. No fascínio, o objeto é mantido, a expensas do ego. Freud acrescenta ainda que na hipnose existe a mesma sujeição humilde que existe para o objeto amado. Há o mesmo debilitamento da iniciativa do sujeito. Albuquerque e Maia (2000), comentando esse texto de Freud, observam que é no âmbito do fascínio, da hipnose, que se encontra o eu quando capturado na trama imagética da mídia-cultura-contemporânea. Nesse contexto, elas associam a forma de apropriação dos modelos veiculados pela mídia com o conceito de incorporação em contraponto ao conceito de introjeção. As autoras, citando Ferenczi, relacionam o primeiro conceito com a identificação e o segundo com o fascínio. A introjeção constitui o instrumento psíquico fundamental para que os mecanismos de identificação possam se estabelecer quando se dá a relação inaugural do eu com o meio, em um processo pelo qual o eu traz para si parte significativa do mundo exterior. Esse movimento dirigido ao mundo exterior que promove uma inclusão no interior do eu dos objetos do mundo exterior resulta de um afastamento do "eu", de uma extensão de seus interesses para fora de sua redoma narcísica.

O processo de introjeção abre caminho para a representação na medida em que há uma interiorização do objeto e da dimensão de sentido que o comporta. Já o processo de incorporação mantém um "faz-de-conta", pois o objeto é apropriado, mas sem essa dimensão de sentido. Ele tem um caráter mágico, instantâneo, próximo à alucinação, pois o objeto não atingiu a dimensão de mediação entre o eu e o mundo. Enquanto a introjeção possibilita o enriquecimento do eu, a incorporação leva ao empobrecimento do eu, à sua diminuição perante a grandeza do objeto incorporado, que, de alguma forma, assume o lugar do próprio eu. As autoras acima citadas enfatizam que no campo do fascínio hipnótico um fenômeno semelhante, embora parcial, pode ocorrer: na apropriação fascinada de modelos televisivos entram em jogo mecanismos muito próximos aos da incorporação, principalmente no que se refere ao efeito de um rebaixamento da possibilidade reflexiva do pensamento.

Nesse sentido, podemos pensar que na interação com o ciberespaço o sujeito pode também apresentar certa apropriação fascinada da imagem eletrônica. Diante de  sua grandeza "imaginária", o sujeito, em certo efeito hipnótico, tem um rebaixamento da capacidade crítica e reflexiva do pensamento. Ao mesmo tempo, esta submissão ao objeto cativante leva a um distanciamento de outras possibilidades de interação social, de lazer e de construção de conhecimento: "Fico na internet umas 8 horas por dia, é [...]  sobra pouco tempo pra outras coisas [...]" (João, 23 anos, 12/7/2002, depoimento por e-mail).

Lacan descreve o fascínio no momento de captação da imagem especular, que ocorre no tempo lógico do estádio do espelho, e coincide com a construção do narcisismo em Freud. Lacan (1949/1998) descreve o estádio do espelho como uma identificação, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem: "O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno se precipita da insuficiência para a antecipação" (p. 100). Quando Lacan diz que no princípio não há unidade, ele, retomando Freud, quer dizer que inicialmente o corpo do indivíduo é fragmentado pelas pulsões auto-eróticas, ou pulsões parciais, que ainda não se organizaram em torno de um eu. As pulsões auto-eróticas convergem para a imagem do corpo tomado pelo objeto: imagem com a qual o sujeito se identifica para constituir seu eu. Esta é o eu ideal formado pela imagem do outro, que dará a unidade que constitui o eu, ou seja, a criança identifica-se com aquela imagem refletida no espelho (ou imagem do outro), alcançando uma "identidade alienante" que a acompanhará no seu desenvolvimento. Segundo Freud (1914/1974), essa unidade ou "armadura", esse "eu", é antes de tudo "um eu corporal". A percepção visual do corpo constitui a base do imaginário e da identificação especular. A unidade do eu é, portanto, imaginária.

Fascinado por sua própria imagem, Narciso ilustra magistralmente o momento de captação do sujeito pelo reflexo especular que Lacan descreve no estádio do espelho. Segundo Lacan, a criança nessa fase sofre de certo modo uma dupla identificação:

"[...] por um lado com a imagem virtual e, sob ela, por outro lado, com a da espécie &– o personagem de Narciso, na ignorância de toda referência externa, mergulha numa visão amorosa cujo colorido passional expressa uma total confusão entre o eu e seu modelo. De fato, a imagem especular circunscreve de certo modo o lugar de projeção do eu, e este ganha consistência a partir da relação com o outro na percepção de uma forma e no afeto de um olhar. Sem essa relação, o sujeito cai na sideração de uma imagem "megalomaníaca" de si mesmo, imagem que o fita por sua vez um jogo de espelhos face a face que se refletem infinitamente" (Lambotte, 1996, p. 352).

Lacan evoca a presença do duplo, efetivada pela visão no outro da própria imagem especular, quando o sujeito vê surgir bruscamente, diante de si, seu próprio olhar, que afirma então lhe ter sido furtado.

Os dois tempos da dinâmica especular &– tempo de impregnação da imagem (quadro genérico) e tempo de captação pela imagem (unidade corporal) &– se vêem ao mesmo tempo confundidos e suspensos em um momento regressivo de sideração, esse momento que a imagem especular provoca quando alcança além do espelho, um ponto de reconhecimento familiar situado no outro.

Lacan (1948/1998) considera o ego fascinado como aquele que anula a discordância entre o eu imaginário e o ser inacessível, ficando o sujeito capturado por uma coincidência ilusória da realidade com o ideal, que ressoaria até as profundezas do nó imaginário da agressão suicida narcísica. Assim, o efeito da captura narcísica decorrente do fascínio seria a morte do sujeito ou o seu apagamento.

Neste tempo lógico, que Lacan descreve como o estádio do espelho, o sujeito encontra-se fascinado, alienado à marca do espelho. Essa experiência se encontra, portanto, na vertente imaginária, em que o eu se forma por identificação com uma imagem. O estádio do espelho é considerado um "insight configurador", termo inglês que significa tomada de consciência, esclarecimento. O insight confere o caráter narcísico ao conhecimento do eu, mas que na verdade é um desconhecimento, porque foi constituído a partir da projeção da imagem de si no mundo.

Tal identidade alienante permanece ao longo da vida do ser humano &– essa marca durável do espelho e seus reflexos de identificação. O sujeito, na busca de si mesmo, crê se encontrar no espelho e se perde no outro. Instância do engano, senhor e servo do imaginário, o eu projeta-se nas imagens em que se espelha.

O sujeito está sempre em busca de uma completude repetidamente perdida, capturada incansavelmente em miragens que refletem uma imagem, ao mesmo tempo familiar e estranha, conhecida e desconhecida. Pode-se então compreender o ilusionismo e o poder de identificação da imagem, importantes para que se possa analisar a relação do sujeito com a imagem eletrônica. O registro do imaginário de Lacan corresponde, portanto, ao conceito de narcisismo de Freud. Segundo Quinet (2002):

"É o domínio do corpo, da imagem do outro, ou seja, do semelhante que por ser igual é rival sendo também atraente, fascinante, amante. O imaginário é o registro da consciência e do sentido que faz com que o homem se julgue um eu &– o que é efetuado (sem que o saiba) através da identificação com o outro" (p. 127).

A imagem, por definição, é sempre completa e não há imagem possível daquilo que falta. O fascínio pela imagem se dá exatamente pelo que ela encobre, ou seja, pelo que está por trás dessa forma tão completa e cativante. O ciberespaço, virtual por excelência, sugere essa forma completa e cativante, portanto, fascinante, ficando o espectador preso em seu gozo2 inefável da imagem fascinante. "O computador virou quase uma companhia na época atual. É imprescindível, faz tudo, nos dá o que quisermos" (João, 20 anos, 12/8/2003, depoimento por e-mail).

Um dos desdobramentos que o termo fascínio apresenta na vertente amor-paixão é a sua relação com a servidão: "A paixão, no sentido do pathos, é mais subitamente sofrida que deliberadamente atuada" (Salvain, 1996, p. 389). É por não se possuir a si mesmo que um sujeito pode ser capturado por uma paixão que, se transborda os limites do eu, ou o leva à expansão narcísica ou o ameaça de dissolução. De qualquer forma, o sujeito atravessa um momento de fascinação em que é seduzido e em que o destino lhe parece acenar. A fascinação o faz padecer em seu corpo quando está submetido a outro que o aliena. O objeto fascinante é aquele que, de alguma forma, acena com a possibilidade de preencher a falta subjetiva.

"A internet é tudo na minha vida!" (Carina, 20 anos, 23/4/2003, depoimento em sala de chat).

"Sinceramente, não vivo sem ela. Quando estou sem PC, fico mal..." (Lívia, 18 anos, 23/4/2003, depoimento em sala de chat).

"O que ela não tem? Tem tudo!" (Lívia, 18 anos, 23/4/2003, depoimento em sala de chat).

"É kuase uma vida paralela ke levamos na Internet, pois vamos ao museu, pagamos nossas contas, compramos desde lingerie até computador, refrigerador, pizza... arranjamos namorados, amigos, estudamos, fazemos cursos... Gente, estou chegando a conclusão que EU AMO A INTERNET..." (Sônia, 34 anos, 11/6/2002, depoimento por e-mail).

Saramago, em Ensaio sobre a cegueira (2000), equivale a cegueira à visão, que cega com a especularidade, impedindo a cegueira do olhar do outro. O amor é efetivamente cego, pois ele implica uma idealização do outro e uma entrega, "entregar os olhos", "ver com a luz de teus olhos", como em um fascínio hipnótico.

O eu, portanto, é constituído durante o estádio do espelho, quando o sujeito, identificando-se com a imagem do espelho que ele acha que é um outro, toma o outro como se fosse seu eu. Essa imagem de si mesmo, que ele projeta no outro e no mundo, é a fonte do amor, da paixão, do desejo de reconhecimento, mas também da agressividade, da competição e da rivalidade. O imaginário é o campo dos objetos empíricos do desejo, o registro da paixão e do pathos: do amor e da agressividade. Nas formas patológicas do passional, o ser atormentado pelo vazio se consome na destrutividade. Um vínculo fusional se impõe como necessário, o amor se entretém da rivalidade ciumenta, procura se fixar no ideal, mas só se mantém no ódio. A paixão não é mortífera quando não procede de um fascínio, em que o sujeito se entrega a uma figura do destino que o condena ao trágico.

Pode-se concluir que o fascínio tem uma função mortífera, antivida, e seu poder é o próprio poder do olhar. O processo de constituição do sujeito envolve a concepção de um tempo lógico &– fase do espelho &– no qual o sujeito vai se formando na miragem da autonomia do eu, tempo esse em que o sujeito se encontra fascinado, alienado à marca do espelho, e que marcará a prevalência de uma identidade alienante ao longo de sua vida, como uma incidência duradoura, uma marca atuante da submissão ao fascínio. Esse é o poder do imaginário.

"Eu conheci um cara na internet e me apaixonei. Era tudo meio que um sonho, eu criei na minha cabeça um cara que não existia, mas é como se eu quisesse acreditar nisso. A gente conversava e eu tinha medo de encontrar pessoalmente e tudo acabar. Eu criei talvez uma coisa que eu sonhei. É que na internet é tudo meio mágico, e isso ajuda a você criar muita fantasia" (Paula, 19 anos, 5/5/2003, depoimento na sala de chat).

A fascinação leva à subserviência e à servidão, promovendo a diminuição da capacidade crítica e a inibição da criatividade. Assim, a relação fascinada com a imagem eletrônica, que implica uma idealização do outro e uma "entrega", como em um fascínio hipnótico, perpetua e expande a dimensão subjetiva imaginária, que pode manter o sujeito em uma posição de alienação à imagem fascinante. "Quanto tempo eu fico conectado? 24 horas por dia!!! É minha vida!!!"  (Mário, 18 anos, 17/6/2002, depoimento à autora na sala de chat).

 

ALIENAÇÃO

"O espelho é o instrumento de uma universal magia que transforma coisas em espetáculos, espetáculos em coisas, eu no outro, o outro em mim" (Merleau-Ponty, 1964, p. 178).

Etimologicamente, a palavra alienação vem do latim alienare, alienus, que significa "que pertence a um outro" (Ferreira, 1986, p. 86).

Alienar, segundo o Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa (1986), significa, também, transferir para outrem o domínio de; juridicamente, o termo quer dizer a perda do usufruto ou posse de um bem ou direito pela venda, hipoteca etc.

O termo é uma tradução habitual do alemão entfremdung, característico da filosofia de Hegel e Marx, nos séculos XVIII e XIX. Hegel o empregou para indicar o alhear-se da consciência, pelo qual ela se considera como uma coisa. Este se alhear é uma fase do processo que vai da consciência à autoconsciência. Marx utiliza o conceito de alienação retomando a temática hegeliana da função do trabalho na passagem "do senhor e do escravo", descrita na Fenomenologia do espírito (1806) (apud[/sertitle] Abbagnano, 1962, p. 25). Para Hegel, o trabalho representa a expressão da liberdade reconquistada. Se o ser do senhor se descobre como dependente do ser do escravo, em compensação, o escravo, aprendendo a vencer a natureza, recupera de certa forma a liberdade. Marx critica a visão otimista do trabalho em Hegel e demonstra como o objeto produzido pelo trabalho surge como um ser estranho ao produtor, não mais lhe pertencendo: trata-se do fenômeno da alienação. Marx observa que a visão idealista de Hegel não considera a materialidade do trabalho, privilegiando a consciência. Para Marx, a propriedade privada produz a alienação do operário, seja porque ela cinde a relação do operário com o produto do seu trabalho (que pertence ao capitalista), seja porque o trabalho permanece exterior ao operário: "O trabalho externo, o trabalho em que o homem se aliena, é um trabalho de sacrifício de si mesmo, de mortificação" (Marx apud[/sertitle] Abbagnano, 1962, p. 25).

Freud emprega o termo em diversas acepções, mas, em geral, no texto freudiano, entfremdung evoca o processo de afastamento de materiais, instâncias ou conteúdos psíquicos que posteriormente não são mais reconhecidos e causam estranheza ao sujeito (Hanns, 1996). Em 1936, ele usa o termo se referindo a uma vivência de distúrbios da memória na acrópole. Utiliza-o basicamente em dois sentidos: "afastamento/separação" e sensação de "irrealidade ou estranheza" (Freud, 1919/1974).

O conceito lacaniano de alienação difere muito da tradição hegeliana e marxista, e também da concepção freudiana. Para Lacan, a alienação não é um acidente ao qual o sujeito sobrevive ou que pode ser transposto, mas sim uma marca constitutiva essencial. O sujeito padece de uma alienação fundamental, está alienado de si mesmo, não tem maneira de fugir dessa divisão, não tem nenhuma possibilidade de completude ou síntese. Lacan (1964/1995) utiliza os termos alienação e separação referindo-se às operações lógicas de constituição do sujeito. Diante do desamparo originário, o bebê humano é completamente submetido a um outro, que será responsável não só pela satisfação de suas necessidades básicas como também pela sua constituição subjetiva. Essa dependência inicial que liga o sujeito ao outro constitui a alienação.

O ingresso do sujeito na linguagem é exemplificado por Freud (1950/1974) em seu Projeto para uma psicologia científica, em 1895, quando ele introduz a "experiência de satisfação" como aquela que determina a primeira inscrição fundante do aparelho psíquico. Pela sua carência inicial, o bebê com seu grito faz apelo ao Outro para lhe socorrer. Este grito funciona como o ingresso do sujeito na linguagem, já que esse Outro confere um sentido ao seu apelo, interpreta-o, traduzindo-o em significantes. A mãe, no lugar do Outro, constrói um saber sobre as demandas do bebê, introduzindo-o na dimensão simbólica. O infans é, portanto, submetido aos caprichos desse Outro, que decide sobre o sentido de suas demandas. Essa operação de alienação envolve também a identificação do sujeito com a imagem do corpo.

Para que se possa compreender a identificação especular, é preciso recorrer aos conceitos lacanianos de imaginário, simbólico e real. Na releitura da obra de Freud realizada por Lacan, este identifica três registros da dimensão psíquica: o real, o imaginário e o simbólico. Esses três registros ou categorias conceituais representam o arcabouço estrutural do funcionamento psíquico.

Em uma primeira teorização dos três registros, ele faz a seguinte distinção: o registro imaginário é o registro psíquico correspondente ao eu do sujeito, cujo investimento libidinal foi denominado por Freud de narcisismo.

O registro simbólico representa, na teoria lacaniana, o lugar do código fundamental da linguagem, o lugar da lei, onde fala a cultura, a voz do grande Outro. A escritura do Outro (com maiúscula) foi adotada por Lacan para mostrar como a relação entre a estrutura simbólica e o sujeito se distingue da relação imaginária do eu e do outro (com minúscula indica o outro imaginário). Lacan chama a atenção para a matriz simbólica em que o eu se precipita em uma forma primordial, "antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito" (Lacan, 1949/1998, p. 97).

O ideal do eu, instância simbólica, fornece a matriz simbólica sobre a qual o eu se precipita, ou seja, oferece um modelo, o suporte simbólico da identificação especular. Para Lacan, o eu ideal é uma "aspiração" (instância imaginária) e o ideal do eu é um "modelo" &– modelo simbólico da aspiração imaginária, que se encontra no lugar do Outro, de onde o sujeito pode se ver como capaz de ser amado. O próprio termo modelo implica uma articulação entre o simbólico e o imaginário. O Outro vem no lugar do ideal do eu, oferecendo à criança um modelo em que ela ajusta seu eu ideal. O ideal do eu é a instância que herda o narcisismo após a travessia do Édipo. É um lugar do Outro a partir do qual o sujeito pode projetar todas as perfeições do eu infantil, narcísico, que o faziam crer que ele reinava em absoluto no amor de seus pais.

O registro real corresponde, na teoria lacaniana, àquilo que do imaginário sobra como resto, e que o simbólico é impotente para capturar. O real é o impossível de ser simbolizado, é o resíduo, resto ou sobra de toda articulação, que pode ser aproximada, mas nunca capturada.

Nas suas teorizações finais, Lacan faz uma articulação dos três registros, como em um enodamento3. Nesta perspectiva, um registro não tem preponderância sobre o outro. Ele destaca a presença do real, do imaginário e do simbólico na experiência especular. Assim, destacamos, nos textos de Lacan, três momentos da elaboração do registro imaginário.

No primeiro momento (até 1953), Lacan faz da imagem o centro da causalidade psíquica. O sujeito identifica-se com sua imagem, com o outro si mesmo, do qual não pode dissociar-se.

No segundo (até 1964), Lacan submete o estádio do espelho à ordem simbólica. A alienação na imagem é substituída pela alienação simbólica, estrutural. O sujeito se vê no espelho a partir desse ponto simbólico situado fora da imagem, suporte da identificação ao Traço do Outro (ideal do eu). O sujeito recebe do Outro a significação da imagem.

No terceiro momento (até 1980), Lacan introduz o olhar como objeto a no lugar do Outro. Na experiência especular existe um ponto cego, uma parte faltante, que corresponde ao que do registro real não é especularizável. A imagem recobre a falta. Lacan diferencia visão e olhar, identificando o olhar com o objeto.

O imaginário (reúne as imagens, a imaginação e o visual) é o mundo de Narciso. No entanto, ele é determinado pelo simbólico (Édipo), que, por sua vez, vela o real. A imagem (unidade totalizadora) mascara a falta, que é introduzida pelo simbólico. A imagem domina a aparência de nosso corpo, nosso eu. Mas ela será estruturada pelo significante de uma maneira particular para cada sujeito, mascarando e envolvendo o real. Lacan diferencia o olhar ou o escópico (real) da visão ou do especular (imaginário). A dimensão escópica, apesar de não poder ser vista, dá razão àquilo que se vê (especular). Para Lacan, o segredo do fascínio pela imagem é o encobrimento da falta, e, também, o encobrimento do objeto (olhar):

"Esse olhar como objeto a é aspirado pelo jogo infinito de espelhos, encoberto pela imagem, apagado pelo espetáculo da visão, elidido do mundo do vidente. Ele é o segredo da beleza, do prazer, da exaltação e também do horror da imagem" (Quinet, 2002, p. 133).

Para Lacan, se há uma perda simbólica relacionada à falência da função paterna4, o simbólico falha em sua função de recobrir o real, provocando a sua irrupção sob a forma de violência, delinqüência e drogas, por exemplo. Por outro lado, exacerba-se o imaginário, trazendo como conseqüência a alienação à imagem fascinante. O imaginário para a Psicanálise envolve não só as imagens e a imaginação, como também o registro da identificação especular, no qual há uma identificação do eu com o outro, abolindo todas as suas diferenças.

Santaella e Noth (2001), utilizando os três registros lacanianos no estudo da imagem fotográfica, explicam que a fotografia é sempre um recorte, a captura de um fragmento que se separa do corpo do mundo à maneira de um corte:

"Por ser um fragmento arrancado do corpo da natureza, a fotografia fez desabar o sonho idílico da unidade, da mônada formada pelo mundo e sua imagem. Quanto mais um aparelho ou máquina se aperfeiçoa no registro mimético dos objetos e situações, mais evidente se torna sua impossibilidade de ser igual àquilo que registra. Há um descompasso, uma defasagem entre o ritmo do mundo, matéria vertente do vivido, e a capacidade do registro. A febre da vida não cabe em imagens. Sob as vestes da imagem, algo cai. Esse algo é o real, que resiste na sua irredutibilidade" (p. 192).

Lacan (1949/1998), ao descrever o triunfo jubilatório da assunção da imagem unificada do sujeito diante do espelho, esclarece que o segredo da jubilação é o encobrimento da falta, constitutiva do sujeito, pela imagem.

Segundo Quinet (1997), a imagem encobre a falta com o poder:

"A imagem é a rainha, posto que a rainha é a figura da mulher a quem nada falta, é a mulher do poder, é a mulher que tem. A rainha é a imagem daquela que tem, cuja falta não se vê. Daí toda imagem ser rainha por encobrir a falta com o poder &– é a miragem de potência do eu" (p. 13).

Segundo Lacan, a alienação do sujeito ao Outro traz como conseqüência a impossibilidade do sujeito de ter acesso à imagem real, a não ser por meio da imagem especular. Ou seja, não existe a possibilidade de o sujeito se apreender naquilo que ele é e se assegurar em seu ser, pois o que a experiência revela é que, na sua busca desse ser, ele alcança apenas "uma identificação imaginária cuja inconsistência e inanidade logo percebe" (Doumit apud[/sertitle] Kaufmann, 1996, p. 21).

Nessa operação de alienação à imagem oferecida pelo outro, o sujeito ao assumir a imagem refletida, essa imago estruturante, perde parte da sua experiência, já que a imagem especular não representa a totalidade do sujeito. A imagem do sujeito não é "o sujeito". Ela apresenta, portanto, uma dupla função: unifica, mas também secciona uma parte. O sujeito não é de todo imagem, algo permanece fora da representação e por isso a sua busca por se fazer registrar no espelho do Outro. A experiência especular outorga ao sujeito sua unicidade, mas também o submerge no desconhecimento de si mesmo.

Essa unidade ideal, como uma linha de ficção, será sempre irredutível ao sujeito. A identidade ou o "eu" representam não uma plenitude interna, mas uma falta de plenitude que busca ser preenchida "imaginariamente" pelas formas como nós imaginamos ser vistos pelos outros. Estamos sempre buscando a nossa "identidade", tentando nos ver em uma unidade, para anular a angústia que a fragmentação e a dispersão provocam e, ao mesmo tempo, buscando resgatar a plenitude de satisfação narcísica, vivida naquela mítica experiência junto ao outro. Mas existe sempre um estranhamento ou um desconhecimento com relação a si mesmo em função dessa alienação constitutiva.

O acesso ao simbólico tem como efeito "a divisão do sujeito", ou seja, a perda de uma parte essencial de si mesmo, pois no simbólico o sujeito só pode ser representado. Por outro lado, a ordem do simbólico, do significante, não se sustenta senão por suas relações colaterais &– relações do significante a outros significantes &– que vão captá-lo em suas redes. O sujeito mediatizado pela linguagem está irremediavelmente dividido porque é ao mesmo tempo excluído e representado pela cadeia significante. Nomeado no discurso dos pais, e deles recebendo um prenome, o sujeito entra no circuito da troca e nesta, algo se perde. A condição para a sua aparição na ordem do significante é a sua "morte", ou a sua "perda", a sua "divisão", ou seja, pode-se dizer que ao mesmo tempo que ele se humaniza por intermédio do Outro, o preço a ser pago por essa humanização é a sua alienação a esse Outro, a essa ordem cultural:

"O registro do significante institui-se pelo fato de que o significante representa o sujeito para outro significante. Eis a estrutura de todas as formações do inconsciente e eis também o que explica a divisão originária do sujeito. O significante, produzindo-se no lugar do Outro, faz surgir aí o sujeito, mas também ao preço de o fixar. O que aí havia pronto para falar, desaparece por não ser mais que um significante" (Lacan, 1960/1998, p. 854).

Segundo Lacan, a alienação reside na divisão do sujeito de sua causa. O Outro é o lugar de sua causa significante, razão pela qual nenhum sujeito pode ser causa de si mesmo. A separação implica o fato de que, enquanto o sujeito espera do Outro seu complemento, falta um significante. A mãe, ao ocupar o lugar do Outro, apresenta a falta que o infans é convidado a preencher. Podemos dizer que o processo de separação implica o surgimento da falta no Outro, que remete o sujeito à própria falta, ou seja, à constatação da sua impossibilidade de completar o Outro. O primeiro tempo da operação de separação é o tempo marcado pelo confronto com a falta no Outro, enquanto o segundo é o tempo em que o sujeito tenta construir, no fantasma, uma resposta à falta do Outro: "O que o Outro quer de mim?".

O processo de constituição da subjetividade implica também movimento do sujeito para fora de sua redoma narcísica ilusoriamente auto-suficiente em direção aos objetos do mundo, movimento esse provocado pela experiência de insuficiência de seus recursos imaginários. Ou seja, o sujeito deve romper com a posição de submetimento ao Outro. O processo de socialização é resultado da "negociação" do sujeito com a cultura e de um incremento da complexidade na busca do prazer. De prazer imediato, para formas adiadas de prazer, ou seja, formas de prazer mediado (pelo simbólico).

O sujeito é constituído pelo processo de alienação-separação. A separação significa o seu movimento em direção à realidade, ao social, em detrimento da satisfação alucinatória, onipotente, imaginária. Mas essa dimensão alienante, imaginária, exatamente por ser organizadora do "eu", permanece como característica essencial de toda subjetividade, mostrando seus efeitos no gozo da imagem, no amor a si mesmo, nas grandes paixões, nas escolhas amorosas e nas posições subjetivas de fazer-se, com seu narcisismo, de objeto de desejo do outro, dando a impressão de não ter falta.

O fascínio da imagem aparece também no culto a esta, nas identificações televisivas, nas interações "virtuais" apaixonadas, nas "imersões" no ciberespaço, onde o sujeito se perde em seu gozo, extasiado pelo poder da imagem. Lacan, ao designar a natureza dessa alienação estrutural, afirma que a alteridade habita o núcleo mais íntimo do sujeito, sendo uma característica essencial de toda subjetividade. "Às vezes nos acomodamos com essa relação virtual, e temos preguiça do encontro [...]" (Lúcia, 26 anos, 6/5/2003, depoimento por e-mail).

Diante da precariedade de significação social da cultura contemporânea, o sujeito tenta encontrar novas formas de estabelecer laços sociais, buscando alguma amarra coletiva. A mídia pode oferecer, ante essa carência simbólica, uma promessa de sentido social, como uma ilusão comunitária. O sujeito fica submetido aos ideais narcísicos impostos pela cultura. Na verdade, o poder da mídia existe porque o sujeito atribui a ela esse poder, em função de sua carência simbólica, ou seja, diante de sua precária consistência subjetiva. Por outro lado, sua onipotência estrutural narcísica é exacerbada nessa cultura, que o mantém em uma eterna ilusão de alcançar sua plena satisfação, buscando tamponar sua falta constitutiva. O sujeito, portanto, é afetado na sua posição subjetiva pelas práticas de sua cultura e de seu tempo, que vão aparecer nos diversos sintomas sociais.

"[...] o risco do comodismo pela facilidade proporcionada pela internet, e como conseqüência o afastamento, a insegurança nas relações (tenho milhões de amigos, me "comunico" diariamente com todos, mas não convivo com nenhum deles; ou tenho um namorado com quem me dou superbem, converso diariamente, sei tudo que se passa com ele mas não sei se posso viver com ele, pois quase não estamos juntos)" (Lúcia, 26 anos, 6/6/2003, depoimento por e-mail).

A intensa interação com a internet pode ser avaliada dessa forma, quando o sujeito a vê como algo que pode viabilizar o acesso a um mundo de possibilidades, no "aqui e agora", sem adiamento de satisfação, envolvendo-o quase como uma extensão de si mesmo, em uma comunhão, como uma extensão do "eu" alicerçada sobre a evitação do mal-estar. A imagem eletrônica pode servir como refúgio, na tentativa de escapar da dor de existir. Ela pode capturar o sujeito, fascinado pelos ideais que apresenta. Ela tem uma relação direta com o imediatismo, a fragmentação, a agilidade e a instantaneidade, características da contemporaneidade. Por outro lado, para a Psicanálise, essa procura pelo excesso revela a busca permanente de completar a "falta-a-ser", impulsionada pelo desejo de reencontrar o objeto perdido. O sujeito, diante da sensação de fragmentação reforçada pela contemporaneidade, pode buscar no ciberespaço alcançar essa unidade do eu, tornado o ciberespaço uma extensão do eu, alcançando uma identidade alienante. Ou seja, os aspectos estruturais se aliam aos aspectos culturais, delineando novas formas de ser e de estar nessa cultura.

O jovem, na cultura contemporânea marcada pela globalização e pelas novas tecnologias de informação, está imerso na imagem. As novas tecnologias da imagem apresentam-se como uma realidade incontestável, fazendo parte do cotidiano das pessoas, funcionando como extensões do homem, que ampliam o seu universo, possibilitando-lhe alcançar outras dimensões, com novos espaços e novos tempos. Mas o computador introduz uma nova modalidade de virtualidade, interativa, constituindo-se, em sua plasticidade, tanto em um local de encontro, criativo e libertador, quanto em um lugar de "des-encontro", caótico e aprisionante.

O ideário contemporâneo afirma a autonomia e esconde a posição de dependência do sujeito: dependência da imagem, que funciona como referência identificatória e como ilusão de completude. O individualismo nega o sujeito, enquanto dividido, atravessado e constituído pelo Outro, mas também marcado pelo particular. Há uma substituição do sujeito pelo indivíduo, que apresenta a conotação de uma não-divisão. O eu, portanto, passa a substituir o sujeito.

O individualismo associa-se à satisfação imediata das pulsões, alimentada pela ilusão da autonomia total, reafirmada pela mídia, delineando o narcisismo contemporâneo. Defronte da fragilidade essencial das relações humanas e da falta de referências estáveis e organizadoras, a marca constante do espelho e seus efeitos de identificação podem levar o sujeito a buscar em uma estrutura de ficção uma sustentação, mesmo que imaginária: "Na internet eu posso tudo: eu faço amigos, eu me comunico com o mundo todo, eu compro, eu pesquiso, eu namoro, eu não me sinto sozinha, é mesmo uma companhia, eu chego em casa e entro na internet e pronto! Acabou a solidão, os problemas [...]" (Maria, 20 anos, 18/6/2002, depoimento por e-mail).

A imagem, devido ao seu poder de captação, fascina e cativa. Essa alienação do espectador à imagem ou ao objeto contemplado o mantém em uma posição de subserviência. Assim, o espectador confunde-se com o outro, não se diferenciando do objeto, dissolvendo os limites que separam o privativo do social, não se sentindo em casa em nenhum lugar, pois o espetáculo está em toda parte. Sentindo-se impotente, frágil, ele pode buscar o conforto e a onipotência no ciberespaço. Alcançar a vitória nos jogos eletrônicos lhe dá a ilusão de uma superação da sua inconsistência e, assim, ele se sente vitorioso na vida. Ter milhares de amigos no ciberespaço o mantém na ilusão de superar sua solidão. Capturado nas tramas imaginárias do eu, ele pode se distanciar da condição de interrogar-se sobre as condições de seu desejo, mantendo-se na ilusão do domínio de seu corpo e do mundo como sua extensão. Esse domínio encobre, no entanto, sua inconsistência, sua alienação ao objeto cativante. "No ciberespaço podemos realizar todas as nossas fantasias, o perigoso é não querer voltar..." (Simone, 20 anos, 20/6/2002, depoimento por e-mail).

 

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Endereço para correspondência
Nádia Laguárdia de Lima
E-mail: nadialaguardia@uai.com.br

Recebido em: 16/02/06
Revisado em: 30/11/06
Aprovado em: 10/01/07

 

 

10 termo ciberespaço foi criado pelo escritor William Gibson e passou a ser usado para se referir ao espaço abstrato construído pelas redes de computadores. "O ciberespaço é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo especifica não apenas a infra-estrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo" (Lévy, 2000, p. 17).
2O gozo é um conceito complexo elaborado por Lacan, que aponta para o que permanece aquém das palavras, aquém do recalcamento, que é "estranho ao eu", embora permaneça no centro dele. É o que o sujeito procura além dos objetos de sua cobiça, nas suas condutas repetitivas, e que pode incluir o sofrimento ou a morte. Esse gozo é de outra ordem de satisfação, "além do princípio de prazer", e, enquanto libido fixada, está ligado à pulsão de morte.
3Em 1962, no Seminário da identificação, Lacan (1961-62) marca uma passagem importante à lógica e topologia. Destaca a função de nó que define o Édipo, o que implica uma escritura que comporta os três registros. Mas é no Seminário XXII que Lacan (1975) se dedica especificamente à topologia nodal, à escritura do nó borromeano, que comporta os três registros da superfície teórica.
4O lugar do pai enquanto um lugar simbólico que funda o sujeito na lei.

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