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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.59 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2007

 

ARTIGOS

 

Humilhação: o desrespeito no rebaixamento moral

 

Humiliation: disrespect on moral degradation

 

 

Heloisa Moulin de Alencar I; Yves de La TailleII

IUniversidade Federal do Espírito Santo (UFES)
IIUniversidade de São Paulo (USP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A proposta do presente trabalho é abordar o tema da humilhação, que é definido como um rebaixamento moral. Trata-se da intenção de tornar inferior, de diminuir. É, portanto, um tema de interesse da moral. Dividimos o artigo em três grandes seções. Na primeira, mencionamos alguns exemplos de humilhação e ressaltamos a importância de se estudar este tema. Na segunda, tratamos de alguns conteúdos teóricos relacionados ao tema em questão, a saber: a noção do respeito, tipos de humilhação quanto à forma e o conteúdo e, por último, as relações do conceito de humilhação com o de vergonha e honra. Na terceira seção, temos o objetivo de apresentar uma revisão da literatura de pesquisas realizadas no Brasil relacionadas ao tema ora proposto. Por fim, a seqüência que finaliza este trabalho versa sobre algumas características que podem ser analisadas nos estudos a respeito da humilhação. De forma preliminar, porém incisiva, evidenciamos a necessidade de novas pesquisas..

Palavras-chave: Moralidade; Humilhação; Rebaixamento moral.


ABSTRACT

The proposal of the present work is to approach the theme of humiliation, defined as moral degradation. It is about the intention of making someone feel inferior, of diminishing someone. It is therefore, a theme of moral interest. We divided this article into three big sections. On the first one, we shall mention some examples of humiliation and we shall emphasize the importance of studying this theme. On the second one, we shall deal with some theoretical concepts related to the pertaining theme, that is: the notion of respect, kinds of humiliation as to their form and content and, finally, the relationship of the concept of humiliation with that of shame and honor. On the third section, our objective was to present a review on the literature of researches made in Brazil related to the theme in question. Finally, the sequence which finalizes this work, deals with some characteristics which can be analyzed on studies about humiliation. In a preliminary but instigating way we make evident the need for new researches.

Keywords: Morality; Humiliation; Moral degradation.


 

 

EXEMPLOS DE HUMILHAÇÃO E IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO TEMA

Todos nós poderíamos relatar exemplos de acontecimentos em que a humilhação está ou esteve presente em nossas vidas. Essa prática pode ser constatada de várias maneiras, até mesmo uma “simples” crítica pode caracterizá-la. Há, sem dúvida, muitas maneiras de uma pessoa ser humilhada. Observamos tais fatos em nossas relações diárias com as pessoas, nos mais diversos contextos. Destacamos que algumas de suas várias faces parecem ainda ser justificadas por alguns educadores e instituições. Pedimos licença para relatar alguns fatos no passado que mais marcaram um dos autores do presente trabalho.

Durante os anos de escolaridade do ensino fundamental e médio, pudemos perceber que muitos professores, orientadores educacionais, supervisores e diretores agiam de forma a humilhar os alunos, no propósito de os “corrigir” ou de os tornar “pessoas melhores”. Esses objetivos tinham a pretensão de serem atingidos tanto com castigos corporais quanto com insultos ou difamações orais.

Temos a recordação de um aluno que foi obrigado a ficar o recreio inteiro de braços abertos, e todos os estudantes que passavam pelo pátio podiam vê-lo. Desse acontecimento, queremos ressaltar tanto o castigo corporal de ficar de braços abertos, durante tão longo tempo, quanto a humilhação de ficar exposto diante dos olhos de todos. Este menino se suicidou algum tempo depois. Isso ocorreu, não diretamente pelo fato de ter sido exposto diante dos colegas na ocasião mencionada, mas porque acreditava ter sido o responsável pela morte de um amigo, que estava com ele em um acidente de carro (o que de fato não ocorreu). Dessa forma, ele não suportou a possibilidade de ser visto como “causador” ou “responsável” pela morte do amigo.

Em uma outra escola, na mesma época, uma garota sempre era chamada para ir ao quadro-negro resolver um problema de matemática. Isso não causaria problema algum, caso não fosse sabido por todos que a menina não conseguia resolver a tarefa. Na ocasião em que ela estava na frente de todos, a professora insultava a aluna e dizia que ela nunca saberia resolver o problema solicitado pois era “burra” e “sem capacidade”. Essa menina abandonou a 5ª série do ensino fundamental. Hoje, ela esconde de todos o seu grau de escolaridade.

Naquele tempo, era comum ouvir a frase “quem não pensa com a cabeça sofre com o corpo”. E que dor! Na maioria das vezes, não era o corpo físico que doía. Somente hoje sabemos que o que doía era sentir vergonha, era a honra e a dignidade feridas. Era ver exercido o direito de humilhar por quem não o possuía, uma vez que ninguém o possui.

Nos dias atuais, pelo visto, diminuíram os castigos corporais, mas não tanto outras formas de humilhação, como o insulto, a difamação etc. No entanto, a maior parte das práticas de humilhação não são divulgadas. Em uma busca que realizamos na Internet, em vários jornais importantes no Brasil, verificamos que, na maioria das vezes em que a palavra “humilhação” aparece, ela está relacionada às notícias que versam sobre humilhações sofridas por um time ter perdido um jogo, especificamente jogo de futebol; assim, perder de cinco a zero seria uma “derrota humilhante”. Por outro lado, muito pouco foi encontrado no que diz respeito à humilhação no seu sentido moral ou mesmo em relatos de exposição ao olhar do outro. Como exemplo, destacamos o fato de que foi divulgado em um alto-falante, no momento em que sua mãe estava na escola, que um aluno havia colado em uma prova no Colégio Militar do Rio de Janeiro. O referido aluno suicidou-se após o acontecido (ALUNO..., 1990). Um outro relato, que nos chamou atenção, foi o de um menino de 10 anos que foi obrigado a “desfilar”, na cidade em que morava (Ribeirão Pires/SP), com um cartaz em que estava escrito “ladrão”. A punição foi aplicada porque a mãe desconfiou que o filho havia roubado R$ 5,00 de sua carteira (EMPREGADA..., 1995).

Consideramos que, na maioria das vezes, as práticas de humilhação não são tornadas públicas pelo fato de a sua prova ser de difícil constatação ou pelo próprio desejo da vítima de esconder o seu sofrimento, ocasionado pela vergonha sentida. Um outro motivo é que, parece, grande parte das pessoas que assistem a uma humilhação é omissa em ações e/ou até mesmo insensível.

Entretanto, como bem assinalam Vitale (1994), Nakayama (1996), Ades (1999) e Andrade (2006), apesar de as situações de humilhação não serem amplamente divulgadas, deparamo-nos com as referidas práticas todos os dias. Esse aspecto foi verificado em Vitale (1994), mediante depoimentos de sujeitos de três gerações a respeito do sentimento de vergonha, e em Nakayama (1996), com a descrição e análise de relatos de humilhação vivenciadas por alunos, pais e professores de duas escolas públicas em São Paulo. Em Ades (1999), sujeitos com idades entre 18 e 25 anos e entre 40 e 55 anos responderam perguntas a respeito da concepção de humilhação, decisões tomadas diante dela e sobre o valor da defesa da honra. Por sua vez, Andrade (2006) investigou jovens e adultos surdos e verificou a presença marcante da humilhação no cotidiano dos participantes de sua pesquisa, dados que também ressaltam a presença e a importância da humilhação em nossas vidas diárias.

As observações realizadas até o presente momento são contrastantes com a existência de poucas pesquisas sobre o assunto na área de psicologia. Dessa forma, o estudo deste tema se faz relevante porque, embora esteja presente a condenação da humilhação no discurso, a sua prática parece ser ainda realizada e pouco pesquisada. Por outro lado, podemos constatar que, atualmente, quando a humilhação não é condenada, ela pode ser encarada por muitos como uma atitude que pode ter sido “merecida” pelo sujeito que a recebeu, juízo que sedimenta o lugar do desrespeito em nossa sociedade. Infelizmente, o “merecimento” é usado para justificar os mais cruéis atentados contra a dignidade humana. Um simples ditado popular como o de que “eles colheram o que plantaram” pode esconder uma tentativa de justificar as mais terríveis barbáries.

 

CONTEÚDOS TEÓRICOS RELACIONADOS À HUMILHAÇÃO: RESPEITO, TIPOS DE HUMILHAÇÃO QUANTO À FORMA E AO CONTEÚDO E RELAÇÕES COM OS CONCEITOS DE VERGONHA E HONRA

Consideramos que, para abordarmos o tema da humilhação, é de fundamental importância a noção de respeito. Respeito significa o reconhecimento do outro como sujeito de direitos e dotado de intrínseca dignidade. De acordo com Tugendhat (1996, p. 301), “o contrário do respeito não é o ódio, mas a humilhação e a indiferença”. Sem dúvida, não há nada mais inverso ao respeito do que a humilhação, nas suas mais variadas formas ou maneiras, e, pelo visto, a humanidade é bastante criativa na ação de humilhar.

Segundo Freud (1929/1930-1976), os homens não são criaturas gentis e amáveis, e sim dotados de uma poderosa cota de agressividade. Disso resultam as mais diversas maneiras de exploração entre os seres humanos, das quais destacamos a da capacidade de trabalho e, também, a pura humilhação. Esses fatos fazem o autor considerar o dito de Plauto “homo homini lupus” (FREUD, 1929/1930-1976, p. 133). Piaget, ao contrário, provavelmente não faria essa afirmação de que o “homem é o lobo do homem”, uma vez que, para ele, “a criança não nasce nem boa nem má, tanto do ponto de vista intelectual, quanto do ponto de vista moral, mas dona de seu destino” (PIAGET, 1932-1994, p. 85).

Não somente as crianças parecem ser relativamente “donas de seus destinos”, mas também todo ser humano. Ter a “posse” do destino implica responsabilidades e limites. É necessário que nós saibamos colocar limites nas outras pessoas, e isso vale para toda a nossa existência. Durante os nossos primeiros anos de vida, essa prática se torna fundamental.

Entretanto, temos discutido muito a respeito dos limites que devemos ou deveríamos impor às nossas crianças, esquecendo que, se nós não os respeitarmos, se nós destruirmos a possibilidade de construção do seu auto-respeito, tornaremos inviável a própria construção do respeito mútuo. Segundo Piaget (1932-1994, p. 286), “seguramente, podemos dizer que, se A respeita B e reciprocamente, é porque A primeiramente foi respeitado por B, depois ele próprio situou-se no ponto de vista de B”.

Dessa maneira, se A não for respeitado por B, não terá como respeitá-lo, pois é justamente “a necessidade de ser respeitado [que] equilibra, por conseguinte, a de respeitar, e a reciprocidade que resulta dessa nova relação basta para aniquilar qualquer elemento de coação” (PIAGET, 1932-1994, p. 284).

A humilhação pode destruir o auto-respeito e, portanto, acabar tornando inviável a construção do respeito entre as pessoas, conseqüências igualmente prejudiciais tanto ao desenvolvimento de crianças e adolescentes quanto aos relacionamentos interindividuais e sociais. Acarreta, na maior parte das vezes, uma dor que “mata aos poucos”. De acordo com Chaves (1998, p. 9), “a morte mata, ou apressa o fim do que necessariamente há de morrer; a infâmia afronta, afeia, escurece e faz abominável a um ser imortal, menos cruel e mais piedosa se o puder matar”.

Alguns pesquisadores têm considerado a prática da humilhação como nefasta ao desenvolvimento infantil, uma vez que ela conduz a conseqüências psíquicas danosas (NESBIT; KARAGIANIS, 1987; KLEIN, 1991; LEWIS, 1992). Esse aspecto é ainda mais grave no caso da humilhação pública. São resultados possíveis desse tipo de humilhação: o sentimento de vergonha, o abalo na estrutura afetiva (timidez, revolta, imunidade a críticas alheias etc.), a ausência ou prejuízo na construção da “fronteira moral da intimidade”. Esta última fronteira foi definida como o campo “da intersecção do estudo das condutas humanas a respeito do falar-de-si ou do calar-sobre-si, com aquele [campo] do juízo moral que determina regras que normatizam estas condutas” (LA TAILLE et al., 1991, p. 91).

No entanto, conforme ressaltado anteriormente, apesar de ser em grande parte das vezes condenada, a prática da humilhação é constantemente observada. Um aspecto que dificulta a análise dessa prática é que todo e qualquer tipo de sanção pode ser tida como uma humilhação por parte de quem a recebeu. Assim, entre punir e humilhar existe uma separação cujos limites nem sempre são fáceis de delimitar. De tal maneira isso ocorre que nunca humilhar poderia implicar nunca punir. Um exemplo pode ser a consideração de Freud (1919-1976, p. 234) de que o fato de uma criança apanhar levemente “significa uma privação de amor e uma humilhação. E muitas crianças, que se acreditavam seguramente entronadas na inabalável afeição dos pais, foram de um só golpe derrubadas de todos os céus da sua onipotência imaginária”.

Segundo Piaget (1932-1994), existem dois tipos de punição: as expiatórias e as por reciprocidade. As punições do tipo expiatório possuem um caráter arbitrário, não havendo relação entre os delitos cometidos e o conteúdo da sanção. Por sua vez, nas punições por reciprocidade existe a última relação mencionada, e estas estão de acordo com as regras de igualdade e com a cooperação. Como exemplos de sanção por reciprocidade, temos: exclusão, punições relacionadas com a conseqüência direta das transgressões, privação do culpado de algo do qual abusa, fazer ao transgressor exatamente o que ele fez, punição restitutiva (como restituir ou pagar o objeto que foi roubado ou quebrado) e repreensão (sem punição).

A partir dos tipos de punição citados, surge uma pergunta: como poderíamos considerar as humilhações ocorridas com a intenção de punir? Seriam sanções expiatórias ou por reciprocidade? Pensamos que a melhor resposta a essa pergunta seria: depende. Essa dependência se deve a vários fatores nos quais a humilhação está inserida e que tornam possível a sua própria classificação. Inicialmente, ressaltamos que o insulto em sua forma pura não pode ser colocado no campo das sanções expiatórias, nem na classe das sanções por reciprocidade. Ele é intenção pura de humilhar.

Há vários tipos de humilhação que pensamos poder classificar de acordo com a forma e o conteúdo. A primeira classificação de acordo com a forma está baseada nas concepções de La Taille (2000; 2002) e a segunda, referente ao conteúdo, conforme as proposições de Harkot-De-La-Taille (1999), assunto que desenvolveremos a seguir.

Entre as formas de humilhações existem as “domesticadas”, as “ritualizadas” e as “violentadoras” (LA TAILLE, 2000; 2002). A humilhação “domesticada” caracteriza-se por sua brevidade e por ser compatível com as relações de amizade, pois mantém-se no nível de tolerância da pessoa-alvo e da própria sociedade. Pode ser exemplificada por leves zombarias ou piadas que admitem a reciprocidade, pois quem zomba hoje pode ser vítima de zombaria amanhã. Um dos problemas é justamente quando isso não ocorre, ocasião em que só uma pessoa é continuamente caçoada, mesmo que de maneira leve. Dessa forma, apesar de ser em um nível horizontal, entre iguais e admitindo reciprocidade, essa humilhação pode tornar-se “violentadora”; disso resulta a importância da sua brevidade. Uma outra característica diz respeito ao fato de ser leve; se ferir a pessoa-alvo, deve-se parar; do contrário, igualmente se torna “violentadora”. Esse limite é tênue. Muitas vezes, é difícil sabermos até que ponto uma zombaria ultrapassa a fronteira do que é suportável para uma pessoa. Um complicador é que o próprio sujeito caçoado pode tentar minimizar externamente o efeito da humilhação, ou seja, dar a entender como se fosse uma brincadeira algo que o ofende.

Por outro lado, existe a possibilidade de a “brincadeira” e/ou “insulto” ser ambíguo, deixando dúvidas a respeito da intenção de humilhar. Nesse caso, a vítima pode ser colocada em um dilema: “se lhe dá o troco o insulto pode ser negado colocando-o numa situação ridícula por ser susceptível e conflituoso; se não lhe dá o troco pode passar por covarde o que implica perda da honra” (PITT-RIVERS, 1965-s.d., p. 19).

A humilhação “ritualizada” assemelha-se à “domesticada” pelo fato de também ser breve. Por outro lado, a humilhação “ritualizada” não admite a reciprocidade, pois quem agride não pode ser humilhado por sua vítima. Entretanto, os humilhados de hoje podem ser os agressores de amanhã; eles não permanecem sempre no lugar de vítima. Como exemplo, temos o trote universitário, em que se procura atingir a efêmera condição de calouros. Nos referidos trotes, são utilizadas as mais diversas formas, desde encharcar de tinta, ingerir bebida alcoólica, simular relações sexuais etc. Sabemos de casos em que calouros abandonam a universidade, ou nem sequer chegam a entrar lá, por causa das humilhações iniciais sofridas. Essas atitudes são sem dúvida “violentas” e arrasadoras.

Assim, nesse tipo de humilhação, o nível de tolerância das vítimas é ultrapassado, torna-se insuportável para elas. Entretanto, apesar de sua violência, essa humilhação parece ainda ser, em parte, tolerada por nossa sociedade, pelo menos em determinados eventos, como o ingresso na universidade.

Por último, a humilhação “violentadora”, assim como a “ritualizada”, ultrapassa os limites da tolerância e não admite reciprocidade entre o agressor e a vítima. Caracteriza-se como violentadora principalmente por objetivar incidir sobre aspectos centrais da personalidade da vítima, que, por sua vez, deve concebê-la da mesma forma. Assim podem ser consideradas a calúnia, a difamação e a injúria, que são classificadas entre as “responsabilidades civis por dano a honra” (AMARANTE, 1998) ou como “crimes contra à honra” (ARANHA, 1995). Segundo Aranha (1995, p. 5), “a objetividade jurídica das normas que definem os crimes contra a honra está contida na preservação da personalidade moral do indivíduo, na integridade de tal patrimônio moral, reconhecendo a lei da honra como um dos valores relevantes de sua pessoa”.

Podemos exemplificar a humilhação violentadora com o fato de um aluno ser obrigado a confessar um delito publicamente, uma pessoa ser insultada na frente de todos etc.

De acordo com o mencionado, além da forma, podemos analisar o conteúdo da humilhação, proposta que será apresentada a partir das concepções de Harkot-De-La-Taille (1999). Inicialmente, ressaltamos que devemos tentar evitar invasões indevidas no mundo individual, principalmente as humilhações públicas, como o fato de alguns alunos serem obrigados a confessar um delito por eles cometidos, serem caluniados, difamados ou insultados. Esse tipo de ação invade a “fronteira moral da intimidade” (LA TAILLE et al., 1991; 1992; 1993) e pode levar a um sentimento de vergonha e/ou humilhação. Segundo La Taille (2002, p. 95),

[...] o sentimento de humilhação refere-se ao fato de ser e sentir-se inferiorizado, rebaixado por alguém ou um grupo de pessoas, sem que se aceite necessariamente (intimamente, poderíamos dizer) a “má imagem” que esses querem impor. [...] O que há de comum entre ambas [humilhação e vergonha] é justamente o fato de se sentir inferiorizado (como no caso da vergonha de exposição), porém, na vergonha, compartilha-se a imagem negativa imposta, enquanto que na humilhação ela pode não ser aceita. E, se for aceita, teremos os sentimentos de humilhação e de vergonha somados.

Em um estudo semiótico, Harkot-De-La-Taille (1999) examina cenas de textos escritos a respeito da vergonha, as quais consideramos como pertencentes também à humilhação. Isso se faz possível pela proximidade dos conceitos, conforme salientado na citação anteriormente transcrita (LA TAILLE, 2002, p. 95). Nesta citação, queremos destacar o fato de que, na vergonha, o sujeito aceita a imagem negativa que lhe é imposta, fato que não ocorre na humilhação. No entanto, o que se torna presente na ação, ou em sua representação, é a situação de humilhação ou rebaixamento propriamente dito, uma vez que, para o sentimento de vergonha, é necessária a confirmação da vítima. Há a acrescentar o fato de que, para o sentimento de humilhação, o sujeito também deve reconhecer o rebaixamento, ou legitimar o humilhador, mesmo que não aceite a má imagem imposta. Por outro lado, uma vez rebaixado, o indivíduo assim está, ele assim o foi; se ele legitima o humilhador, se aceita a “má imagem imposta” (vergonha) ou não, é um outro assunto a discutir.

Passemos, então, a mencionar o conteúdo das referidas cenas examinadas por Harkot-De-La-Taille (1999), nas quais acrescentaremos exemplos extraídos de estudos realizados, na área da psicologia, com sujeitos adultos.

O primeiro conteúdo é denominado de “evidência”. Neste, o sentimento de humilhação e/ou vergonha incide no fato de a pessoa estar sendo exposta, como em ocasiões em que, por exemplo, uma pessoa chega a uma festa com uma roupa muito sofisticada ou extremamente simples. Uma outra situação ocorre quando escorregamos e caímos sob olhares de outros. Para alguns, a própria ação de falar em público ou ainda o simples fato de ser observado por outrem já caracteriza, de início, esse tipo de humilhação e/ou vergonha. Como ilustração, temos a seguinte afirmação de Carlos:1 “quando sinto vergonha fico com a sensação de que tenho o triplo de tamanho. Chamo todas as atenções do mundo. Estou exposto” (VITALE, 1994, p. 103).

O segundo conteúdo é intitulado como de “condição”, pois está centrado em algum estado de uma pessoa com relação à sua origem, à sua situação social, familiar etc. Assim, pode ser um contexto de pobreza como conta Maurício: “[...] uma vez, era moleque, estava doente e os amigos da escola vieram me visitar. Eu tinha vergonha da casa onde eu morava. Era uma casa simples (eu dormia na sala) eles apareceram e me senti tão mal” (VITALE, 1994, p. 105).

Pode até mesmo ser por uma condição de riqueza, de ausência ou excessiva proteção por parte dos pais, de ser mulher, ser empregado(a), ser negro(a), ser índio(a), ser homossexual etc. Este último caso é mencionado por Fábio na seguinte consideração: “minha culpa e minha vergonha foram aliviando a partir do momento em que fui [...] conhecendo outras pessoas [...] que podiam viver bem (na condição de ser homossexual)” (VITALE, 1994, p. 112).

Parece que vivemos em uma época marcada pela pretensão da globalização, mas ainda ferida pelo “tempo das tribos”, para usarmos a expressão de Maffesoli (1987, p. 105).

A “impotência” é o terceiro tipo de conteúdo analisado. As vítimas sentem humilhação e/ou vergonha pelas circunstâncias que lhes foram impostas, das quais não conseguem vislumbrar uma ação reparadora possível. Isso pode ocorrer em casos de privação de afeto, tortura, espancamento, estupro, seqüestro e assassinato de um familiar, preconceito de um grupo sociocultural, assalto a mão armada, corrupção etc. Carolina relata esta última situação, quando afirma que “humilhante [...] é perceber que na televisão, todo dia, está todo mundo te roubando e você não pode fazer nada” (ADES, 1999, p. 59).

O “fracasso”, o quarto conteúdo da vergonha e/ou da humilhação, carateriza-se pelo abandono dos mais variados projetos pela constatação das circunstâncias. Neste caso, o sujeito é responsável, no sentido de poder tomar uma decisão. Quando uma pessoa fracassa em um objetivo, qualquer que seja, como em uma prova ou em um exame importante para a sua carreira, ou é demitido do emprego etc., pode sentir pela falha ao realizar a sua tarefa2. Terminar uma relação amorosa pode também ser sentido como um fracasso. O seguinte depoimento de Heitor exemplifica esse aspecto: “a relação com minha mulher é meio ambígua, tem gente que nem sabe que estamos separados. [...] Ser separado não é um troféu, é um fracasso. É uma forma de vergonha, vergonha de um fracasso” (VITALE, 1994, p. 77).

O quinto tipo de conteúdo está relacionado à “falta moral”. O envergonhado e/ou humilhado atribui a si a responsabilidade pela falha moral. Harkot-De-La-Taille (1999) cita como exemplo o fato de que, na tortura, pode haver o sentimento de vergonha por falta moral: o torturador, por tratar um ser humano com o objetivo de obter vantagem; o torturado, por revelar uma informação importante; um médico, chamado a assistir um torturado apenas para mantê-lo vivo para mais tortura etc. Certamente só sentirão vergonha se cada um deles possuir os respectivos valores assinalados, caso contrário poderão “apenas” estar cumprindo ordens. Neste último caso, poderão até sentir humilhação e/ou vergonha se forem acusados publicamente quanto às suas ações, mas apenas pela “evidência” ou exposição.

Por último, temos a vergonha e/ou a humilhação de “contágio” (sexto tipo de conteúdo), que se caracteriza pelo fato de o sentimento estar baseado no outro. Assim, um indivíduo sente humilhação e/ou vergonha pela humilhação e/ou vergonha atribuída ao outro; quer pela sua “evidência”, “condição”, “impotência”, “fracasso” ou “falta moral”. Isso ocorre de tal forma, que todas as outras categorias assinaladas podem também ser aplicadas ou consideradas como sendo vergonha de “contágio”, quando relacionadas a outras pessoas que não ao sujeito envergonhado e/ou humilhado. A vergonha de contágio supõe necessariamente um observador, o olhar de um outro.

Erikson (1971) considera que o indivíduo que se sente envergonhado gostaria de obrigar o mundo a não vê-lo. O autor ilustra essa afirmação com uma balada norte-americana na qual um assassino, na iminência de ser enforcado, à vista da comunidade, afirma para todos: que Deus amaldiçoe seus olhos. Mencionamos esse autor, que não está relacionado com o fundamento teórico do presente trabalho, para analisar a sua definição de vergonha. Na situação da balada contada, o assassino desejaria quase que “arrancar” os olhos dos outros. Podemos encontrar uma semelhança de situação na ocasião diária em que uma pessoa diz que gostaria de ter sumido ou desaparecido em lugar de ter sido humilhada ou ridicularizada por algum ato ou deslize cometido. Ora, essa situação não existiria, caso o outro não fosse considerado como um espelho, ou não fosse legitimado enquanto tal. Essa questão aponta, então, para os conceitos relativos à honra, que é, segundo Pitt-Rivers (1965-s.d., p. 13-14), “o valor que uma pessoa possui tanto para si própria como para a sociedade [...]. É a sua apreciação do quanto vale [...] mas é também o reconhecimento dessa pretensão, a admissão pela sociedade da sua excelência”.

Dessa maneira, os conceitos de humilhação, vergonha e honra estão intimamente relacionados; sendo a honra definida como um “princípio ético que leva alguém a ter uma conduta proba, virtuosa, corajosa e que lhe permite gozar de bom conceito junto à sociedade. [...] [e, também,] o sentimento da própria dignidade” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1.550).

Há diversos tipos de divisões do conceito de honra como a “exterior” e “interior” (FEBVRE, 1998); a “objetiva” e “subjetiva” (ARANHA, 1995; BAUAB, 1994, AMARANTE, 1998; GONÇALVES, 2002) e a “coletiva” e “individual” (BAUAB, 1994). Pelas características ressaltadas pelos referidos autores e também pelas próprias definições de honra mencionadas (PITT-RIVERS, 1965-s.d.; HOUAISS; VILLAR, 2001), pensamos poder analisar o conceito de honra, dividindo-a em duas grandes partes. De um lado, estaria a honra “interior”, “subjetiva” e “individual”, e do outro, a honra “exterior”, “objetiva” e “coletiva”.

Segundo Aranha (1995, p. 3), “a honra, sob o ponto de vista ‘subjetivo’ (a honra ‘interna’), é traduzida como o sentimento da própria honorabilidade pessoal, a dignidade pessoal, o decoro, o sentimento que todos nós temos e pelo qual exigimos respeito”.

Esta é, segundo nossa opinião, o tipo de honra que Febvre (1998, p. 61) denominou de “interior”; que nos impõe “as mais duras renúncias, os mais heróicos sacrifícios [...] gratuitamente oferecidos a um ideal mais forte a que chamamos honra [...] e que, sem cessar, nos leva a ações corajosas e nobres, a superar-nos, a triunfar sobre nossas fraquezas e baixezas”.

Por outro lado, o ângulo “objetivo” (honra “exterior”), “é a nossa reputação, traduzida como a face exterior da honra de alguém, o respeito que se deve merecer daqueles que o cercam, a boa fama, a estima pessoal, enfim, a maneira pela qual é reconhecido pela sociedade” (ARANHA, 1995, p. 3).

Uma pessoa pode se sentir humilhada sem que ninguém conheça a causa do seu infortúnio. Entretanto, os danos à sua reputação social estão relacionados ao olhar crítico de terceiros. A honra “exterior” é, em suma, “essa marca de consideração que vem de fora, dos outros homens, da sociedade na qual estivermos integrados” (FEBVRE, 1998, p. 59).

É de fundamental importância ressaltarmos que a honra “objetiva” (“exterior”) e a honra “subjetiva” (“interior”) não se dissociam totalmente, pois, quando ocorre uma lesão em qualquer um desses aspectos, há ou pode haver um prejuízo na própria pessoa que foi vítima. Por exemplo, uma vez que haja ofensa à honra “objetiva”, atinge-se também, na maioria das vezes, a honra “subjetiva” (AMARANTE, 1998). Dessa forma, a autora adota o conceito único da honra, uma vez que, “considerada objetiva e subjetivamente, a honra encerra o respeito e consideração social aliados ao sentimento ou consciência da própria dignidade” (AMARANTE, 1998, p. 59). Entretanto, as relações entre a honra “interior” e “exterior” variam no que diz respeito tanto aos diferentes graus de intensidade de ligação entre elas quanto aos valores veiculados, que podem ou não ser morais.

A presença da necessidade da defesa da honra pode ser ilustrada no seguinte caso relatado por Freud (1901-1976) em que um oficial mais graduado, comandante de um campo de oficiais prisioneiros de guerra, foi insultado por um de seus companheiros. Por causa da humilhação sofrida, ele quis que o oficial fosse transferido para outro campo. Entretanto, por meio de diversos conselhos de colegas, ele decidiu, contrariando seu desejo interior, “abandonar seu plano e procurar imediatamente reparar sua honra, embora isso estivesse fadado a trazer múltiplas conseqüências desagradáveis” (FREUD, 1901-1976, p. 193). Logo depois desse episódio, o comandante deveria fazer a chamada dos oficiais e deixou de ler o nome de seu agressor, que teve que permanecer no campo até que o erro fosse esclarecido. Dessa forma, “o incidente foi encarado por uma das partes como um insulto deliberado e, pela outra, como um acaso lamentável e sujeito a ser mal interpretado” (FREUD, 1901-1976, p. 193). Muito embora houvesse muito tempo que o comandante conhecia seus companheiros de farda, nunca lhe acontecendo cometer erros nisso, e o nome saltado aparecesse com perfeita clareza no meio de uma folha.

Um outro exemplo é que, para o povo japonês, parece, a honra “interior” e “exterior” estão intimamente relacionadas; sendo que a própria honra é contemporaneamente um objetivo pessoal a ser constantemente alcançado. Desprezar a sua existência é considerado pela cultura como algo inadmissível, como uma atitude indigna. Constitui “virtude” para um homem idôneo pagar com a mesma intensidade tanto um insulto quanto os benefícios; ou seja reagir ao desprezo ou a humilhações como o insulto, a calúnia e a difamação, assim como ter gratidão pelos bens recebidos. Dessa forma, “talvez seja necessário vingar-se do difamador ou então cometer suicídio, existindo toda a espécie de rumos de ação possíveis entre esses dois extremos. O fato é que não se dá de ombros levianamente ao que seja comprometedor” (BENEDICT, 1988, p. 126).

Caso aceite passivamente as difamações, o “homem de honra” será desonrado e, portanto, sentirá vergonha. No entanto, de acordo com Peristiany (1965-s.d.) existe em todas as sociedades “um outro ideal, o de santidade, que transcende o da honra. O caminho que leva a qualquer ideal é o mesmo, no sentido de que se sacrificamcoisas baixas por coisas mais elevadas” (PERISTIANY, 1965-s.d., p. 10, ênfases nossas).

Assim, poderíamos considerar que o ideal da santidade estaria acima do ideal da honra, assunto que consideramos de extrema importância, mas cuja discussão escaparia aos objetivos do presente artigo. Voltemos, então, para a honra.

Independentemente do fato de ser “interior” (“subjetiva”) ou “exterior” (“objetiva”), a honra, no seu sentido moral, só surge caso o indivíduo e a sociedade tenham como fundamento valores morais (autônomos), que estejam direcionados para a “excelência”, e não para outros valores que também podem ser defendidos pessoal e socialmente, como, por exemplo, a beleza, o dinheiro, a glória, o poder etc., valores encontrados no passado e nos dias atuais.

No século XVIII, a glória, a honra e a reputação eram veiculados pela vaidade no “amor gosto” (RIBEIRO, 1990). Segundo Ribeiro (1990, p. 107), “em nossos dias, quando se fala em paixão, pensa-se em amor e enamoramento; nos séculos XVII e XVIII, porém, a paixão por excelência era outra, a glória, a honra, a reputação”.

Um exemplo que ilustra as características desta concepção de amor é o filme Ligações perigosas, de direção de Stephen Frears (LORIMAR, 1989), baseado no romance Les liaisons dangereuses, escrito em 1782, pelo francês Pierre Chordelos de Laclos. O próprio início do filme já demarca a importância da aparência pessoal, pois mostra dois personagens que utilizam, ao despertar, máscaras e vestimentas, para só depois poderem ser observados por outras pessoas. Essas “máscaras” eram pinturas no rosto, vermelha ou branca, utilizadas indiferenciadamente por homens e mulheres. Sennett (1989) afirma ser essa uma tentativa de que, no século XVIII, a personalidade individual fosse dissolvida. A história narrada envolve o Visconte de Valmont, personagem do filme Ligações perigosas, que possui grande fama de conquistador. Seu maior desejo era seduzir madame de Tourvel, uma mulher casada e conhecida por suas virtudes e valores religiosos. Valmont chega a afirmar que queria vê-la trair o que lhe era mais caro. Ao final, perto de sua morte, descobre que foi ele próprio o traído, pois negou o seu amor-paixão por madame de Tourvel. Preferiu salvar sua reputação a ceder à sua paixão. Segundo Pamplona (1990, p. 7), “a habilidade de Valmont no trato com as mulheres conferiu-lhe uma fama de conquistador, muito apreciada na corte parisiense [...]. Ora, num mundo teatral, é de grande valor um bom ator, aquele que sabe produzir variadas aparências”.

O que realmente importava era a aparência pública (honra “externa”), era a forma com que a pessoa era vista pela sociedade à qual pertencia, ou seja, o seu papel e a sua reputação sociais. Valorizava-se principalmente a reputação amorosa dos homens, que estava diretamente relacionada com sua capacidade de seduzir as mulheres. Esse era o valor mais importante, bastante diferenciado dos valores morais propriamente ditos.

Atualmente, Cohen et al. (1996), ao analisarem as reações de sujeitos adultos a uma humilhação, entre moradores da região sul dos Estados Unidos com os da região norte, verificaram que os estudantes sulistas ficaram mais perturbados com os insultos recebidos, percebiam maior ameaça na sua reputação masculina e tinham maior disposição para a agressão do que os estudantes da região norte. Os autores consideram que essa resposta se deve a um acentuado e determinado código de honra existente na região sul do país, aspecto em que a discussão escaparia aos objetivos deste artigo.

Não somente nos adultos, mas também nas crianças a reputação parece ter um papel importante. Rogosch e Newcomb (1989) investigaram crianças com faixas etárias entre 7 e 10 anos e concluíram que, com o aumento da idade, há maior influência da reputação nas relações interpessoais. Da mesma forma, Darby e Schlenker (1989) pesquisaram uma situação em que o transgressor tinha boa reputação e outra em que ele tinha má reputação. Na primeira, ele era descrito como muito agradável, ajudava os outros e quase nunca estava envolvido em problemas com os colegas. Na situação de má reputação, o transgressor era mencionado como uma pessoa que não era agradável, nunca ajudava os outros e sempre estava envolvido em confusões. Foram entrevistados 43 escolares, igualmente divididos no que diz respeito à faixa etária de 7 a 10 anos. Apesar de os autores concluírem que os sujeitos mais jovens apresentaram menor coerência entre os juízos, de uma forma geral a reputação do transgressor determina a forma como a sua ação é interpretada. Dessa maneira, os transgressores com boa reputação não são considerados culpados, o dano causado por eles não é visto como intencional, estão mais arrependidos pelos atos cometidos e serão menos punidos. Por outro lado, na situação de má reputação, o remorso é visto não como arrependimento, mas como uma tentativa de escapar da punição.

É necessário, entretanto, que a sociedade também reconheça o valor da honra moral e valorize a necessidade do respeito mútuo, para que possa atribuir ao indivíduo a sua “excelência”. Assim , segundo Pitt-Rivers (1965-s.d., p. 13-14), “a honra fornece, portanto, um nexo entre os ideais da sociedade e a reprodução destes no indivíduo, através da sua aspiração de os personificar”. O problema ocorre justamente quando, em uma determinada sociedade, os referidos ideais estão em conflito ou mesmo quando estão ausentes. A sua carência, nos dias atuais, pode ser demonstrada em uma matéria a respeito de um embaixador que se suicidou após ter sido acusado de delito funcional, o que, segundo o jornalista, não prova a sua inocência, nem a sua culpa. De acordo com ele, esse episódio será esquecido e “nem sequer comoveu a nação. O caso dele [embaixador] envolvia alguns poucos dólares e a honra pessoal dele só interessava a si próprio e a sua família. Se amanhã for provada a sua inocência, tudo ficará por isso mesmo” (CONY, 1995, p. 1-2). Nessa matéria, é mencionada a honra “interna” como assunto privado, a qual se apresenta dissociada da honra “externa” e, até mesmo, sem importância alguma para o espaço público. Assim, pelo visto, podemos considerar como correta a afirmação de Vitale (1994, p. 126) de que “não faz parte da imagem do brasileiro ser incorruptível nem se espera isso dele. Assim, não tem por que sentir vergonha”.

 

PESQUISAS REALIZADAS NO BRASIL RELACIONADAS AO TEMA DA HUMILHAÇÃO

Surge, então, a necessidade de pesquisas relacionadas à honra. Com a finalidade de analisarem aspectos relativos à confissão pública do delito, à humilhação, à honra e à vergonha, alguns autores (LA TAILLE et al. 1991; 1992;1993; LA TAILLE, 1996; 2000; 2002; 2006; ADES, 1999; ALENCAR et al., 2000; ALENCAR; LA TAILLE, 2000; ALENCAR, 2003; ANDRADE, 2006) realizaram estudos a respeito do tema em questão.

No primeiro estudo, La Taille et al. (1991) tinham por objetivo pesquisar o lugar da confissão na hierarquia de valores morais. Dessa maneira, investigaram cinqüenta crianças, de 6 a 14 anos, de uma escola de classe média da cidade de São Paulo. Os sujeitos foram entrevistados com base em dois dilemas: o primeiro, opondo dano material grave com confissão versus dano material leve sem confissão (por parte do autor do delito); e o segundo, opondo confissão espontânea à ausência de confissão. Nesse estudo, foi constatado que, desde cedo, a confissão é vista como uma regra moral. Entretanto, para as crianças na fase de realismo moral (heteronomia), ela está em segundo plano na hierarquia de valores morais. Na situação de confissão espontânea (em que o delito é de conhecimento apenas do culpado), os resultados são diferentes, uma vez que mesmo os sujeitos com mais idade ainda sustentam a confissão com base em argumentos pragmáticos e não com base no respeito mútuo. Ressaltamos que a pesquisa em questão foi replicada na cidade de Vitória, Espírito Santo, e foram obtidos os mesmos resultados da cidade de São Paulo (ALENCAR et al., 2000).

No segundo estudo, La Taille et al. (1992) pesquisaram a mesma problemática da primeira investigação, tanto com o objetivo de verificar o que o sujeito achava moralmente correto fazer em um dilema que envolvia diferentes punições no sistema escolar, quanto com o de verificar a eficácia de dois tipos de castigo: um que leva o aluno a ficar sem recreio e o outro que o leva a contar para toda a classe o delito. Dessa forma, entrevistaram-se setenta crianças, de 6 a 12 anos, em uma escola da rede estadual do município de São Paulo, onde estudavam alunos de diferentes classes sociais. O referido estudo permitiu verificar, com base em argumentos que levam em conta o sentimento de vergonha, que, quanto maior a idade das crianças, pior era considerado o castigo de ter que contar o delito publicamente (humilhação pública). Quanto ao castigo considerado como o mais eficiente para evitar a reincidência do delito, sempre prevalece o da confissão pública (apesar de ser considerado injusto, este castigo é visto como eficaz). Segundo La Taille et al. (1992, p. 54-55), as crianças com idades inferiores a 12 e 13 anos “certamente não compreenderão a humilhação pública, mesmo quando minimamente justificada pelo fato de o delito afetar a comunidade. Deverão associá-la a diversas formas de castigo, portanto, como imanente do poder do adulto em punir as crianças”.

Destacamos que, à semelhança do estudo anteriormente relatado, a presente pesquisa foi, também, replicada na cidade de Vitória. Inicialmente, queremos ressaltar que foram obtidos os mesmos resultados encontrados na cidade de São Paulo (ALENCAR; LA TAILLE, 2000).

Tendo em vista o tema do presente artigo, gostaríamos de nos deter na réplica da última pesquisa mencionada. No estudo em questão, a confissão pública foi caracterizada especificamente pelo fato de o personagem do dilema poder ser obrigado a contar para toda a classe o delito que cometeu; no caso, ter roubado um livro que pertencia a toda a escola. No entanto, em todos os possíveis exemplos de confissão e/ou humilhação públicas, podemos considerar que, nessa situação, o sujeito expõe, de forma clara, a sua intimidade. É certo que uma determinada pessoa pode sentir-se envergonhada e humilhada com qualquer outro tipo de punição. Entretanto, a confissão e/ou humilhação públicas possuem uma peculiaridade que é a exposição direta de um indivíduo perante um público. Se ele tomar o valor acusado (por exemplo, o de ter roubado) como uma falta moral e legitimar o agressor e/ou o público, parece-nos que lhe será pior. E é nesse caso, em que ocorre a invasão devastadora da intimidade, que a honra está mais ameaçada. Por esse motivo, as humilhações públicas podem ser chamadas de ações que invadem a “fronteira moral da intimidade”.

De uma maneira geral, os resultados coletados em Vitória vão ao encontro dos dados encontrados em São Paulo (LA TAILLE et al., 1992). Os referidos autores verificaram que, a partir dos 9 e 10 anos de idade, a “confissão pública” passa a ser predominantemente interpretada como humilhante. Nas crianças mais novas, a “confissão pública” do delito ainda não se tornou objeto de uma elaboração moral consistente por parte dos sujeitos. Entretanto, isso não quer dizer que as crianças mais novas deixem de sofrer. Pelo contrário, elas irão sofrer sem ver em quem as humilha alguém que age de forma abusiva. Os sujeitos menores podem aceitar passivamente a humilhação e até mesmo se convencerem de que é correta. Tal concepção, de acordo com o exposto anteriormente, parece ter efeitos danosos no desenvolvimento infantil. Assim, segundo La Taille (1996, p. 144),

[...] embora sensível a esse tipo de violência representada pela humilhação, a criança pequena ainda não tem estrutura moral para condená-la [...] as crianças provavelmente sentem a sua violência desde cedo, mas assumem para si a responsabilidade desta. Após ter construído regras morais que condenam a humilhação, poderão ver no agressor não mais alguém poderoso que “tem razão”, mas sim o autor de um gesto condenável.

Essas afirmações vão de encontro às considerações de um grande número de juristas brasileiros para quem só haverá crime contra a honra se for provada a capacidade de entendimento da vítima. É para eles, portanto, “necessária a prova concludente de que o ofendido entendeu a ofensa contra ele dirigida” (ARANHA, 1995, p. 36). Assim, para alguns, dizer na frente de todos que uma criança de 4 anos roubou alguma coisa não é configurado como crime contra a honra. Entretanto, independentemente do fato de a criança compreender e/ou condenar a humilhação, ela será sensível a esse tipo de ação. Um outro argumento, conforme o exposto anteriormente, é o de que a prática da humilhação é nefasta ao desenvolvimento infantil, uma vez que ela conduz a conseqüências psíquicas danosas (NESBIT; KARAGIANIS, 1987; KLEIN, 1991; LEWIS, 1992). Por outro lado, mesmo que a pessoa humilhada não compreenda a humilhação, outras pessoas o fazem e isto interfere nas relações. Esses aspectos, segundo a nossa opinião, poderiam classificar um crime como sendo contra a honra mesmo quando, na sua ocorrência, o sujeito não compreendeu a humilhação que lhe foi dirigida.

Por sua vez, na réplica da pesquisa mencionada, os resultados referentes à escolha da “pior punição” vêm confirmar os anteriores de La Taille et al. (1992). O lugar ocupado pela humilhação, no universo moral e afetivo das crianças, passa a ser mais estável com o aumento da idade dos sujeitos; ou seja, as crianças mais velhas possuem mais recursos para lidar racionalmente com o fato de terem sido humilhadas.

No terceiro estudo, La Taille et al. (1993) propuseram um dilema, em que um menino pega um objeto do amigo e depois o devolve sem falar com ninguém. O objetivo é estudar a confissão espontânea (com a vítima ressarcida) e pesquisar sobre quem tem o direito de saber a respeito de um determinado delito (pessoa-alvo). Assim, foram entrevistados 93 sujeitos, de 6 a 14 anos, alunos de uma escola de classe média da cidade de São Paulo. Os dados mostraram que, até a idade de 14 anos, a confissão espontânea permanece em segundo plano, no universo moral das crianças. Quanto à pessoa-alvo da confissão (a quem se deve confessar), há o estabelecimento de uma fronteira moral aos 13 ou 14 anos, em que os sujeitos consideram que a vítima deve saber a respeito do autor do delito.

No quarto estudo referente ao tema em questão, La Taille (1996) pesquisou os conceitos de humilhação e honra em crianças de 7 e de 12 anos. Foram investigados 52 sujeitos, e os resultados evidenciaram uma evolução no que diz respeito à condenação moral da humilhação; ou seja, os indivíduos com mais idade afirmam, de uma forma mais intensa, que a humilhação é inadmissível e inaceitável.

No quinto estudo relatado neste trabalho, La Taille (2000), em sua tese de livre-docência intitulada Vergonha, a ferida moral, fez uma sistematização de aproximadamente dez anos de suas pesquisas, na área de psicologia do desenvolvimento moral. A referida tese foi publicada com o mesmo título (LA TAILLE, 2002). Assim, além dos estudos anteriormente mencionados, foram incluídos os recentes trabalhos referentes à vergonha, que não haviam sido ainda publicados. Entre os principais resultados, podemos encontrar que, a partir dos 9 ou 10 anos, as crianças: interpretam o desconforto de ser punido publicamente ao sentimento de vergonha; a humilhação passa a ser passível de condenação moral e a confissão dos delitos é defendida moralmente porque é julgada como garantia da confiança mútua.

Apesar das diferenças que caracterizaram os estudos anteriormente relatados, foram pesquisados objetivos referentes à “fronteira moral da intimidade”, ressaltando a confissão pública, a humilhação, a honra e a vergonha. Os dados, por sua vez, têm apontado para o fato de que as crianças constroem essa fronteira, o que, de certa forma, pode permitir que o sujeito procure defender-se da humilhação e/ou da vergonha em favor da honra. Esta última virtude é considerada com um dos conteúdos da moral (LA TAILLE, 2006).

Continuando a nossa revisão da literatura, temos o estudo de Ades (1999), que entrevistou 52 pessoas, igualmente divididas quanto ao sexo, sendo 26 com idades entre 18 e 25 anos, e 26 entre 40 e 55 anos. Essa pesquisa é bastante semelhante à de La Taille (1996). Entretanto, o estudo de Ades (1999) foi realizado em sujeitos adultos. Uma das principais diferenças encontradas é que eles apontam, de maneira mais intensa, o ato de conversar, ou seja, o diálogo, como solução dos problemas.

Uma outra pesquisa realizada é intitulada Parcialidade e imparcialidade no juízo moral: a gênese da participação em situações de humilhação pública (ALENCAR, 2003). O objetivo geral deste estudo era investigar, em um contexto psicogenético, a parcialidade e a imparcialidade de juízos de ação de crianças e de adolescentes na vida de seus pares, submetidos a humilhações públicas de calúnia e de difamação. Esses contextos foram investigados nas situações de observador imparcial e parcial. A amostra foi composta por sessenta participantes, com idades que variam entre 7 e 14 anos, igualmente divididos quanto ao sexo e provenientes de uma escola de classe média localizada em Vitória/ES. Foram utilizadas como instrumento quatro histórias-dilemas, sendo duas referentes à calúnia e duas à difamação. Os resultados obtidos permitiram-nos verificar que o fato de a situação ser imparcial ou parcial altera os juízos dos entrevistados. No entanto, permanece a concepção do poder imanente do adulto em punir/humilhar.

Por fim, em um último estudo que será mencionado, Andrade (2006) apresenta uma pesquisa em que se propõe a uma análise comparativa a respeito da humilhação entre os juízos de jovens e de adultos surdos. Participaram da pesquisa doze pessoas surdas com idades variando entre 15-25 e entre 35-45 anos. Foram investigados os seguintes aspectos: exemplos de humilhação que envolve terceiros ou pessoais; reação do participante à humilhação pessoal (com análise comparativa tanto entre o passado e o presente quanto ao contexto de surdez e não-surdez); solução de um dilema que contrapõe humilhação no trabalho e sobrevivência da família; e, por último, a ação do personagem do referido dilema em contexto de não-surdez. Com os dados coletados, verificou-se que a humilhação está presente no cotidiano dos participantes e que as relações entre o passado e o presente e, também, entre o contexto de surdez e o de não-surdez influenciaram qualitativamente nos juízos dos entrevistados.

Com base nos estudos citados e em toda a revisão da literatura realizada, verificamos que o tema da humilhação é importante e relevante. Nestes estudos, podem ser analisadas as características da própria humilhação, do agressor e das pessoas que assistem à humilhação. No que diz respeito às características da própria humilhação, podem ser levados em consideração os seguintes aspectos: (a) força da humilhação (se o nível é tolerado), (b) duração, (c) motivo da humilhação, (d) veracidade ou falsidade do motivo da humilhação, (e) presença ou ausência da intenção de humilhar e (f) valores que tenham sido ofendidos. No que concerne às características do agressor (quem humilha) e da vítima, podemos investigar sobre: (a) quem é a vítima e quem é o agressor (as relações são assimétricas ou não?), (b) lugares do agressor e da vítima (se há ou não possibilidade de reciprocidade) e (c) sentimentos atribuídos tanto ao agressor quanto à vítima. Quanto às pessoas que assistem à humilhação, os observadores, podemos considerar: (a) a ausência ou presença de pessoas que assistiram, (b) se a vítima legitima ou não as pessoas que assistiram à humilhação, (c) o número de pessoas que assistiram à humilhação (se a humilhação é pública ou privada) e (d) a parcialidade e imparcialidade dos observadores.

Assim, de forma preliminar, porém incisiva, evidenciamos a necessidade de novas pesquisas. Segundo Piaget (1930-1996, p. 2), “sem uma psicologia precisa das relações das crianças entre si e delas com os adultos, toda discussão sobre os procedimentos de educação moral resulta estéril”. Dessa forma, a partir de estudos complementares, esperamos poder fornecer importantes subsídios para uma educação na qual as crianças possam compreender os valores morais como normas sociais necessárias para a regularização das ações entre as pessoas.

 

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Endereço para correspondência

Heloisa Moulin de Alencar
E-mail:hmoulin@terra.com.br

Yves de la Taille
E-mail:ytaille@uol.com.br

 

Recebido em: 18/06/2007
Aprovado em: 04/09/2007
Revisado em: 15/09/2007

 

 

1Em todas as citações dos protocolos das entrevistas da tese de Vitale (1994) ou da dissertação de Ades (1999), temos o nome fictício dos entrevistados.
2No fracasso, parece que a provável vergonha sentida pelo indivíduo tem uma importante relação com a cultura em que está inserido, ou melhor, com a representação que ele constrói dos valores sociais. Assim, na cultura japonesa, ao sair-se mal em um exame competitivo, “o perdedor ‘arrasta vergonha’ por tal fracasso e, embora essa vergonha constitua, em alguns casos, um forte incentivo para empenhos maiores, em muitos outros é um perigoso opressor. Ele perde a confiança e torna-se melancólico, irritado ou ambos. Bloqueiam-se os seus esforços ” (BENEDICT, 1988, p. 131-132).

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