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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.60 no.2 Rio de Janeiro June 2008

 

ARTIGO

 

Educação, valores morais e a visibilidade social no desenvolvimento do sujeito

 

Education, moral values and the social visibility in the subject development

 

 

Vera Lucia Trevisan de SouzaI; Vera Maria Nigro de Souza PlaccoII

IPontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), Campinas, SP, Brasil.

IIPontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP, Brasil.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo trata dos valores na escola em seu processo de constituição, observado por meio das interações que se empreendem entre os alunos e demais atores. Suas análises e conclusões são parte de uma pesquisa1em que se buscou identificar os tipos de interação que favorecem ou não a construção e/ou manutenção de valores morais e não morais. A pesquisa revelou que os valores não morais comparecem como forma de representação do eu em todos os atores: ora são semelhantes ora divergentes, e constituem-se como motivação para o agir e pensar das práticas sociais que se desenvolvem na escola. Tal constatação conduziu as pesquisadoras a postular a auto-estima como categoria para esses valores e considerar a importância de se refletir sobre eles em espaços de formação de professores.

Palavras-chave: Educação; Subjetividade; Valores; Auto-estima.


ABSTRACT

This article examines the values present in school in its process of subject constitution. It is part of a research in which the investigation was made about respect in school in its moral qualifications. It has been found in the investigation that non-moral values are present in the interactions between children and adults frequently, favouring its construction and maintainance. This kind of values is a most important aspect in the constitution of the self.

Keywords: Education; Subjectivity; Values; Self-Esteem.


 

 

INTRODUÇÃO

São muitos e diversos os valores com os quais cada indivíduo se representa, representação esta entendida como idéias, conceitos e imagens que são sempre valorativas.

Além da diversidade de imagens e conceitos com os quais nos representamos, importa também considerar, como postula La Taille (2001), o lugar desses valores nesse conjunto. Os estudos que realizamos nos permitem atribuir ao conjunto de valores não morais presentes na constituição do sujeito a denominação de auto-estima.

Reconhecemos que o conceito de auto-estima carrega em si significados que lhe conferem uma certa nebulosidade. Entretanto, optamos por utilizar a expressão para referir aos valores não morais com os quais os indivíduos se representam, buscando compreender a dinâmica da formação de valores.

Assim, entendemos auto-estima como o conjunto de imagens, idéias e conceitos que o indivíduo tem de si, os quais podem ser positivos ou negativos e terão como contrapartida os sentimentos de orgulho/satisfação (no caso de valores positivos), e de vergonha não moral (no caso de valores negativos).

Na pesquisa que realizamos sobre os valores, observamos que os valores morais estão presentes na escola e ocupam diferentes lugares no conjunto das representações que professores e alunos têm de si. Vimos que, via de regra, esses valores não ocupam lugar central nesse conjunto, daí a “falta de respeito” freqüente em ambientes escolares. Nossa hipótese, então, era que, se “ser é ser valor”, como postula La Taille (2001), há outros valores não morais que constituem os atores do espaço escolar e, por conseguinte, circulam nesse espaço, por meio de interações que favorecem sua construção e manutenção.

Coube-nos, então, identificar quais são esses valores e que qualidades de interações os propagam.

Observamos as interações entre professores e alunos, alunos e alunos, alunos e coordenação pedagógica, professores e coordenadora de uma escola pública estadual de ensino fundamental, que atende cerca de 350 crianças de 7 a 12 anos e portadores de necessidades especiais, de idades diversas, do município de São Paulo. Ao longo de dois anos, a pesquisadora inseriu-se na escola desenvolvendo projeto de contação de histórias para todas as classes (doze, no total), assessoria pedagógica para a coordenadora e alguns cursos e reflexões para os professores. A pesquisadora também participou de várias festas e de reuniões de pais e professores.

Os dados foram registrados em diário de campo; vários momentos foram gravados em cassete; e documentos relativos ao projeto da escola, planejamento de aulas e outros foram examinados.

O conjunto dos dados deu origem ao que chamamos de cenas do cotidiano, construídas logo após a saída da pesquisadora do campo, em que se buscou revelar a dinâmica das interações. A pesquisa contou com um total de 98 cenas, envolvendo os diferentes atores da escola.

As categorias utilizadas na análise foram o auto-respeito, a auto-estima e a autoridade. Como resultado, a pesquisa demonstrou que há, na escola, interações mais favorecedoras da construção e manutenção de valores morais e não morais positivos, e outras menos favorecedoras dos valores positivos ou promotoras da construção e manutenção de valores negativos.

Verificou-se, também, em relação à natureza dos valores, que os de ordem não moral constituintes da auto-estima ocupam lugar central na forma como os sujeitos se representam, sobretudo as crianças.

É sobre este último aspecto que trata o presente artigo.

Algumas Considerações sobre Auto-estima

No momento atual, muito se tem falado sobre auto-estima: inúmeros livros publicados, com objetivos e públicos diversos, que vão desde a literatura de auto-ajuda, passando pela carreira profissional, pela estética corporal e chegando à educação. Há expressões freqüentes que se tornaram quase obrigatórias no discurso de educadores: “o aluno tem baixa auto-estima” ou “é preciso melhorar a auto-estima do aluno”. Se, por um lado, constatamos que os professores, via de regra, não têm clareza acerca do significado dessa expressão, por outro identificamos um significado comum: baixa auto-estima tem relação com ver-se como inferior, ou com uma imagem negativa que se tem de si.

Segundo Harter (1990; 1993), até cerca de 8 anos, a criança não tem capacidade de articular um conceito de valor próprio. A autora define auto-estima como o julgamento que uma pessoa faz de seu próprio valor e entende que as crianças pequenas, geralmente, superestimam suas capacidades, pois, embora sejam capazes de fazer julgamentos sobre seu desempenho em diversas atividades, não conseguem ordená-los em importância e aceitam os julgamentos dos adultos, que, via de regra, são isentos de críticas.

Ainda segundo a autora, na segunda infância, a auto-estima assume um caráter mais amplo, uma certa generalização – “eu sou bom” ou “eu sou mau” –, e as condutas favoráveis dos pais são cruciais para o seu desenvolvimento.

Seria somente na terceira infância, a partir da internalização dos padrões experimentados na relação com os pais e a sociedade, que as auto-avaliações de competência e adequação se tornariam críticas na formação e manutenção de um conceito de valor próprio.

Burhans e Dweck (1995) defendem que a auto-estima, quando boa, motiva a criança a realizações. Logo, ela depende do êxito da criança em suas atividades e, nesse sentido, as críticas ou fracassos experimentados pela criança podem levá-la a julgar-se como incompetente e incapaz de fazer melhor. Segundo os autores, pesquisas revelam que muitas crianças no final da pré-escola e na primeira série manifestam impotência como comportamento-padrão, em que culpam a si mesmas pelo fracasso, experimentam emoções negativas, como a vergonha, por exemplo, e não persistem nas atividades, mantendo baixas expectativas em relação ao seu desempenho. Isso porque, uma vez que não esperam ser bem-sucedidas, nem tentam.

O problema, ainda segundo os autores, é que, se a baixa auto-estima, nas crianças mais velhas, tende a fazê-las se verem como “burras”, nas mais novas, o julgamento é de que são “más”, e acreditam que a maldade seja permanente, sentimento que pode persistir até a idade adulta.

Segundo Harter (1993), uma criança com auto-estima elevada é confiante, curiosa e independente. Isso porque acredita em suas próprias idéias, enfrenta desafios e orgulha-se do que faz. Consegue adaptar-se facilmente a mudanças e tolera melhor frustrações, persistindo em seus objetivos, ainda que receba críticas.

Por outro lado, uma criança com baixa auto-estima tende a descrever-se de maneira negativa por não acreditar em suas próprias idéias, ser insegura e não se orgulhar do que faz. O padrão deprimido caracteriza seu fazer e costuma se afastar de seus pares, embora prefira observá-los em vez de agir por si própria. Também desiste com facilidade das tarefas e, quando criticada, reage de maneira imatura e estressada.

Erikson (1998) auxilia-nos a explicar essas diferenças de condutas. Segundo ele, a idéia que as crianças têm sobre sua capacidade para o trabalho produtivo é determinante de sua auto-estima. Na terceira infância, a criança vê-se diante do dilema (crise) produtividade versus inferioridade. A boa resolução desta crise seria a competência, ou seja, a idéia de que se é capaz de dominar habilidades e enfrentar desafios de acordo com as expectativas de sua cultura. Logo, a alta ou baixa auto-estima estão diretamente relacionadas com os valores de determinada cultura, em que se insere o sujeito.

Harter (1993), em pesquisa sobre as origens do valor próprio, pediu que crianças de 8 a 12 anos se avaliassem quanto a diversos aspectos, como desempenho escolar, aparência física e aceitação de outras crianças. As crianças julgaram a aparência física como mais importante, seguida da aceitação social. Por outro lado, como menos importante, apareceu o desempenho escolar e suas condutas em geral. Logo, contrastando com a importância que Erikson (1998) atribui às habilidades, Harter acredita que, atualmente, as crianças em idade escolar valorizam mais a aparência física do que seu desempenho, pelo menos nos Estados Unidos. Elas atribuem maior valor à aparência e popularidade, o que indica que o parecer assume preponderância.

O que é possível derivar dos pressupostos desses autores sobre a auto-estima e seu desenvolvimento, e que julgamos fundamental em nossa pesquisa, é a importância que as relações sociais assumem, sobretudo as interações face a face. De onde vem o julgamento que a criança faz de si? E os valores com os quais se julga?

Eles são internalizados nas interações face a face que se empreendem na família, a princípio, e na escola, um pouco mais tarde. Logo, a importância da escola no desenvolvimento da auto-estima positiva não se liga, necessariamente e somente, às habilidades desenvolvidas e manifestadas pelas crianças (como acreditava Erikson (1998)), mas também, e principalmente, vincula-se às interações de que participam essas crianças, com seus pares, professores e demais atores da escola. É neste âmbito que se insere nossa investigação.

Encontramos, nas interações observadas na escola, um conjunto de valores da ordem do ser que corresponderia a valores morais e não morais. Os morais, expressos pela dignidade, pela honra-virtude e, em um caráter mais individual, pelo auto-respeito. Os não morais, expressos pela valorização do sucesso, da beleza, da popularidade, do status social, todos relativos à visibilidade social, ou seja, à auto-estima.

A busca por atrelar valores positivos às imagens com as quais nos representamos se constitui como força motivacional de nossas ações e pensamentos, uma vez que uma auto-avaliação negativa dessa imagem pode levar ao doloroso sentimento de vergonha.

Enquanto os valores morais se associam à honra ou ao auto-respeito, os valores não morais se associam à auto-estima e à glória, glória esta representada pelo sucesso, pela fama, pelo statussocial, pelo dinheiro, pelo poder, pela beleza etc.

Além dessa diferença de conteúdo, os valores não morais também diferem dos morais no que diz respeito ao lugar do outro, ou melhor, ao lugar “de outrem: na glória pode-se apenas esperar o reconhecimento das outras pessoas, na honra pode-se exigi-lo (a honra é um direito ao orgulho)” (LA TAILLE, 2001, p. 119). Logo, podemos dizer que a honra seria autônoma, enquanto a glória seria heterônoma; e os valores não morais, relativos à auto-estima, teriam como motivação a busca por visibilidade social justamente em decorrência dessa característica – a heteronomia.

Os Valores não Morais no Modo de Representar-se das Crianças: Interações que Favorecem uma Auto-estima Positiva

"Final do primeiro semestre de 2001. Depois de contar várias histórias, priorizando os contos de fadas, propusemos às crianças que escolhessem uma para recontar. Em grupo, elas deviam escrever o que entenderam da história. Estávamos na terceira série, eu e uma professora parceira do projeto de contação. Um grupo nos pediu o livro. Entregamos, dizendo que deveriam passá-lo aos demais grupos, caso quisessem dar uma olhada. Começamos a circular pelos grupos e foi quando observamos que as dificuldades com a escrita eram imensas – todos queriam o livro para olhar. Ocorre que ele não saía do primeiro grupo, que estava copiando a história. A classe inteira estava inquieta, todos reclamavam que o grupo não passava o livro.
Interrompemos a atividade e retomamos a instrução: deveriam escrever com suas palavras; eles tinham entendido a história e agora iam escrevê-la da forma que conseguissem.
– Por onde a gente começa?
– Por onde vocês quiserem.
– Mas a gente não sabe começar. Então põe o título na lousa.
Escrevemos o título e todos copiaram, em silêncio. Um outro aluno perguntou:
– E agora?
– Agora vocês já começaram, escrevam a história.
– Ah, vai, por favor, põe na lousa só o comecinho!
Percebemos que deveríamos introduzir mais elementos de ajuda e pedimos que parassem e prestassem atenção. Junto com eles, retomamos como geralmente as histórias se apresentam: primeiro, situa-se o tempo (“Era uma vez”, “Num lugar não muito distante”, “Há muito tempo” etc.); depois, descreve-se o lugar, as personagens; e, a seguir, o que aconteceu.
– Agora dá para começar? – perguntamos.
Sim – responderam em coro."

Começamos a circular pela classe e não dávamos conta de atender aos chamados dos grupos, que precisavam que corrigíssemos cada linha que escreviam. Tinham muita dificuldade em usar suas próprias palavras, libertando-se do texto original.

Já no início da cena, observamos uma auto-avaliação negativa das crianças em relação à competência para escrever uma história conhecida e escolhida por elas próprias. Estamos falando de crianças de terceira série, entre 9 e 10 anos. Por que será que aparece essa disposição a priori de não saber, não conseguir?

La Taille (2002, p. 198) diz que o “sujeito heterônomo sempre precisa de referenciais externos para saber como agir”. Seria essa a razão da dificuldade das crianças em realizar aquela atividade – a heteronomia, caracterizando seu padrão de comportamento, no que concerne à escrita de textos?

Em sua pesquisa sobre a gênese do sentimento de vergonha, La Taille (2002, p. 236) identifica uma mudança em crianças de 8-9 anos: “há uma crescente suscetibilidade da criança aos juízos críticos alheios, vistos como cada vez mais dolorosos do que privações materiais”. Para o autor, esse fato seria contemporâneo do progressivo cuidado ao falar de si, portanto em revelar o que se é ou o Eu, o que poderia ser interpretado como capacidade maior para tomar consciência de seus estados internos e “uma maior preocupação cognitiva e afetiva com o olhar alheio [...] fato que revela a dialética entre olhar para si e ser olhado, julgar-se e ser julgado” (LA TAILLE, 2002, p. 236).

Embora La Taille esteja investigando a gênese da vergonha moral, ele mesmo constata que nessa idade – 8-9 anos – “sentimentos morais negativos começam a ocupar lugar importante na afetividade das crianças, e com a qual, também, a vergonha associa-se a valores em geral” (LA TAILLE, 2002, p. 207, grifo nosso).

Logo, o movimento das crianças observado na cena poderia ser decorrente do medo de se expor, do medo de sentir vergonha. Vejamos:

As crianças querem copiar. Seria mais fácil ou não têm o hábito da produção de textos? Se o têm, é a partir de qual proposta?

Segundo o que sabemos, as práticas das professoras, no que concerne à leitura e escrita, baseiam-se, via de regra, na execução de exercícios dos livros didáticos, nos ditados e em cópias da lousa. Algumas vezes, trabalham com produção de textos a partir de temas diversos, embora não tenham como prática a correção coletiva ou individual das produções. Logo, as crianças conhecem essa prática, fato que nos leva a considerar outra hipótese para explicar suas dificuldades na reescrita: a relação que as crianças têm com o discurso do adulto as impediria de assumir o seu próprio discurso, justamente por considerá-lo expressão da verdade, do que é “certo” e verem-se como incapazes de alcançar aquele nível de discurso, no caso, escrito.

Essas questões nos conduzem à interação: as crianças precisavam de ajuda para começar, o que explicitaram ao pedirem que colocássemos o título na lousa. Também nos pediram mais ajuda e, mesmo tendo se apropriado do caminho a seguir, ainda precisavam que olhássemos cada frase e/ou palavra, julgando se estava certo ou errado, para que pudessem prosseguir. Com base nesse fato, somado àquele observado no momento de recontar a história verbalmente, pode-se considerar que esses alunos da terceira série se vêem como incapazes de produzir uma narrativa, ou seja, têm um autojuízo negativo de sua imagem de aluno no que se refere à escrita autônoma. Também poderiam estar preocupados com o juízo alheio, justamente por serem capazes do movimento de olhar para si a partir do olhar do outro.

Na interação, à medida que os incentivávamos, aprovando palavra ou frase escritas, eles se motivavam a prosseguir e alguns grupos conseguiram avançar. Observamos que iam ganhando confiança e se tornavam mais ágeis, além de diminuirem a preocupação com a ortografia quando perceberam que não estávamos valorizando a escrita em si, mas a expressão das idéias. Eis outra hipótese que decorreria deste fato: quando sabemos o que está sendo julgado, quando conhecemos os critérios do julgamento do outro, o que está sendo valorizado, temos mais condições de nos arriscar, pois não precisamos nos preocupar com tudo quanto poderemos revelar em nossa expressão, mas somente com aquilo que está sob julgamento.

Na próxima cena, fica evidente a relação entre o julgar e ser julgado com a construção e manutenção de valores.

"Estou na segunda série B. Essa turma tem demonstrado muito interesse por ouvir histórias. A história de hoje fala sobre coragem. Leio e as crianças ouvem atentamente. Quando termino, digo-lhes que vou gravar nossa conversa sobre a história, explicando-lhes que quero ouvir seus comentários depois. Perguntam se também poderão ouvir, respondo que sim. Um garoto pergunta: “posso falar”? Respondo que sim e se segue o seguinte diálogo:
– A história fala que a gente tem que ter coragem. (1)
– E que tem que ajudar os outros. (2)
– E que não pode ter medo. (3)
– E que tem que enfrentar. (4)
– Eu conheço São Jorge, lá na Igreja o padre contou a história dele. (5)
– Eu também sei, ele era valente. (6)
– Eu também sou valente: outro dia, o Pedro me empurrou e eu dei uma “porrada” nele. (7)
– Eu também bati no César. (8)
De repetente, todos começam a falar ao mesmo tempo, querendo contar sobre alguma situação de “valentia”: batem no irmão, no amigo, chutam a prima, xingam o menino da rua etc.
Intervenho:
– A coragem que a história conta é essa de sair batendo em todo mundo?
– Não é, não. (9)
– É, sim, é a mesma coisa. (10)
– Não é, é coragem de ajudar as pessoas que precisam e não de bater. (11)
– Mas e se bater pra ajudar o amigo que está apanhando? (12)
– Não vale não, porque aí tem que separar a briga e não brigar. (13)
– É, tem que ter coragem pra separar briga. (15)
– Muita coragem, meu. Outro dia, fui separar e levei um chute, me deu uma raiva. (16)
– É, e quando a gente não conseguir separar? (17)
– Aí chama a professora, a coordenadora. Mas não pode inventar, pra defender o amigo. (18)
– É, tem que falar a verdade. (19)
– Eu falei a verdade e meu pai me deu um relógio. (20)
– Eu falei a verdade e meu pai me levou no circo. (21)
Todos começam a falar, querendo contar sobre algo que ganharam como recompensa por não mentir.
Intervenho:
– Vocês estão dizendo que não mentem nunca e que quem fala a verdade ganha presente?
– Eu já menti um monte. (21)
– Eu falei a verdade, confessei pra minha avó que tinha quebrado o prato e ela me bateu. (22)
– Eu menti, meu pai descobriu e me pôs de castigo, aí da outra vez que fiz coisa errada, falei a verdade e ele me pôs de castigo de novo. (23)
– Tia, na história, quem fala a verdade sai ganhando, mas não é assim lá em casa e eu não gosto de apanhar ou ficar sem ir pra rua. (24)
– E então, como fazer? – pergunto à classe.
– Tem um menino na minha rua que mente tanto que ninguém mais acredita nele. (25)
– É, sim, eu também tenho um vizinho assim, ninguém gosta dele também. (26)
– Tá vendo, não falei, tem que falar a verdade. (27)
– Ah, mas todo mundo conta uma mentirinha que não faz mal nenhum. (28)
– É, outro dia eu menti prum menino que ele podia ser meu amigo, ele ficou contente. (29)
– Eu também menti pra minha mãe que eu tinha comido o chocolate, porque se ela soubesse que foram meus irmãos mais velhos, eles apanhavam e como eu sou pequena e a mais nova, não apanho, então menti que fui eu. Essa mentira é errada? (30)
– É, sim, porque é mentira e mentir é pecado. (31)
– Mas pra ajudar os irmãos não é pecado! (32)
– Se é pecado, não sei, mas não é certo. (33)
– Você não sabe o que é certo, você não sabe nada, tá! (34)
– Cala a boca, sua “imbecil”. Além de burra, é feia! (35)
– Feio é você, com esses dentes da Mônica! (36)
A turma se alvoroça. Os dois alunos já estão de pé, partindo para a agressão física. Seguro o garoto e peço à menina para se sentar. Depois de alguns minutos, consigo que todos voltem a fazer silêncio e ouçam.
Intervenho:
– Vamos conversar sobre isso que aconteceu. Fale, Valéria [a garota da briga].
– Olha, tia, eu não gosto que me chame de burra nem de feia [está quase chorando]. (38)
A classe dá risada. Valéria começa a chorar. Intervenho:
– Vocês estão rindo porque acham engraçado uma colega ser ofendida e agredida?
– Não – respondem em coro e fazendo silêncio novamente. (39)
– João – chamo o garoto da briga –, o que você tem a dizer sobre sua atitude?
– Eu chamei mesmo porque ela disse que eu não sei de nada e eu não gostei. (40)
– É tia, o João tem razão porque todo mundo da classe chama ele de burro e essa menina é “metida a besta”. (41)
– Olha só, você está defendendo o João, mas está ofendendo a Valéria, chamando-a assim. Infelizmente tenho que ir, há outras turmas me esperando e preciso cumprir o horário, mas vamos voltar a conversar sobre isso, certo?"

Observe-se como o diálogo se inicia com as crianças expressando um discurso moral – elas falam de valores morais: “tem que ter coragem”, “tem que ajudar os outros”. Será que podemos considerar que esse discurso lhes é próprio? Ou seja, que ele decorre da presença de sentimentos morais integrados ao Eu? Estamos falando de crianças de 8-9 anos, logo, em fase de desenvolvimento, e acreditamos ser necessário nos debruçarmos sobre esta questão.

Em seu estudo sobre a gênese dos sentimentos morais, entre eles a vergonha, La Taille (2002, p. 184) pergunta a crianças de diferentes idades (5-6, 10-11 e 14-15 anos) sobre o conceito de vergonha (“O que é vergonha? O que faz você sentir vergonha?”). As respostas dos sujeitos levam-no a questionar se eles abstraíram tais conceitos de sua própria experiência ou, simplesmente, repetiram as associações que os membros adultos do meio social em que vivem costumam fazer entre certos conteúdos e a vergonha, ou ainda se ambas as fontes seriam empregadas. O autor chega à conclusão de que a última hipótese está correta, pois as crianças não repetem, simplesmente, o que dizem os adultos, mas interpretam seus discursos.

Com base nessas considerações, acreditamos poder dizer que essas crianças de 8-9 anos estão, sim, repetindo os discursos dos adultos, e até nos arriscarmos a dizer que isso ocorre justamente como resultado da qualidade de interação a que estão submetidas, ou seja, serem julgadas por alguém e julgarem-se a si próprias, como veremos logo mais.

Outro fato que chama a atenção ainda em relação à presença de conteúdos morais no conjunto das representações das crianças é a forma como o diálogo prossegue: no turno (4), uma criança aproxima a personagem da história, trazendo-a para o campo de sua experiência, em um claro movimento de tentar compreender a situação e também para mostrar ao grupo que sabe do que se está falando: “conhece São Jorge”.

Outra criança diz também conhecer a “valentia” de São Jorge, o que, no turno (6), outro garoto adota como valor, dizendo-se valente porque “deu ‘porrada’ no Pedro”. Ocorre que, nesse caso, a compreensão da “coragem” não corresponde ao conceito de coragem como virtude e eis que temos uma primeira evidência de que os valores morais são apropriados pela criança como valor não moral: ter coragem equivaleria a parecer valente.E a apropriação desse conteúdo como valor o faz circular, como demonstra o turno seguinte (8), em que outro menino diz: “eu também bati no César”, além da expressão coletiva revelando uma suposta valorização da violência como conteúdo da coragem.

Observe-se que as crianças parecem mudar o conceito de coragem, mas, novamente à semelhança do que ocorre no início do diálogo, as crianças começam por reproduzir o discurso do adulto: “é coragem de ajudar as pessoas que precisam e não de bater”, “tem que separar a briga e não brigar”. Entretanto, também aparece no diálogo o movimento de aproximação com a experiência, quando acreditamos ocorrer a atribuição de sentidos próprios: “tem que ter coragem para separar briga”, “outro dia, fui separar e levei um chute”. O mesmo se pode observar no turno seguinte (18), em que um novo valor é inserido: “não pode inventar” – nem para defender o amigo. No movimento de trazer os valores para o campo de suas experiências – possibilidade de atribuir sentidos –, as crianças revelam dilemas morais: “bater para defender o amigo que está apanhando”, “inventar para defender o amigo”. E o que aparece como decorrência do dilema é a adoção da moralidade: “tem que falar a verdade”.

Uma vez presente o valor, à semelhança do que ocorrera com a coragem, também parece prevalecer o discurso do adulto: todos falam a verdade. Contudo, agora, as expressões trazem uma novidade: quem fala a verdade é recompensado. Parece que as crianças atribuíram valor à verdade pelas recompensas que essa valorização traria, o que exclui a possibilidade de sua presença como valor central no conjunto das representações que têm de si.

Se acreditarmos que a criança meramente reproduz o discurso do adulto, podemos levantar a hipótese de que é comum ouvirem dos pais e/ou dos adultos de seu entorno que não devem mentir e que serão premiadas, com valores externos da ordem do ter, pelo exercício de uma virtude (falar a verdade). Se essa hipótese for plausível, poderia esse fato explicar a valorização do ter, ou seja, valores não morais atrelados à identidade e mesmo centrais no conjunto das representações que o indivíduo tem de si, revelando a primazia da auto-estima sobre o auto-respeito.

Contudo, se considerarmos que a criança não só reproduz o discurso do adulto, mas também o interpreta, a situação, do nosso ponto de vista, seria ainda pior, pois interações com essa qualidade favoreceriam a aprendizagem, mais cedo ou mais tarde, do agir de forma aparentemente moral (mentindo) apenas para receber recompensas, e então teríamos a interação, novamente, favorecendo a construção de valores não morais negativos e, até, em caso extremo, de valores imorais.

A contadora de histórias faz uma afirmação sobre o que as crianças estão dizendo, e elas, imediatamente, parecem responder o que a contadora esperasse ouvir, ou seja, reproduzem o discurso do adulto. Novamente, aparecem os dilemas morais: é como se perguntassem: de que adianta falar a verdade se não se ganha nada com isso e até se perde? O que os turnos seguintes revelam é a presença da sanção expiatória como conteúdo das interações mobilizadas por questões morais.

Perguntamo-nos se devemos tomar como verdade o que nos dizem as crianças, ou seja, seria realmente parte de suas experiências o que revelam ali?

Embora um único diálogo não nos permita afirmar a relevância de seus conteúdos, nossas observações, ao longo de dois anos na escola, e outras cenas descritas na pesquisa nos fazem acreditar nas afirmações das crianças e nos perguntar: quais as conseqüências, na construção da identidade de crianças em fase de desenvolvimento, de interações que têm como conteúdo a sanção expiatória? Elas propiciam a construção/manutenção de que tipos de valores?

Pensamos que podemos discutir estas questões, relacionando-as à análise que fizemos há pouco: se se fala a verdade, ganham-se recompensas externas à situação; se se mente, ganha-se castigo por meio de sanções expiatórias. Parece-nos que ambos os conteúdos da interação favorecem a manutenção de valores não morais: é preciso parecer honesto para ganhar recompensas ou para fugir do castigo. Poderíamos nos perguntar sobre a força motivacional de cada uma: teria mais força a possibilidade da recompensa ou o medo do castigo? Novas questões para novas pesquisas e, no caso da escola, pesquisas muito relevantes. A nós, cabe retomar a análise para demonstrar como os valores circulam, na interação, ora sob uma roupagem moral – quando parecem externos aos sujeitos, decorrentes do discurso do adulto –, ora mais autênticos, revelando a experiência das crianças e suas formas de atribuição de sentidos próprios.

“Tem um menino na rua que mente e ninguém gosta dele” – a força para não mentir parece dizer respeito à visibilidade social: ser aceito pelo grupo. Ocorre que uma “mentirinha” de vez em quando não faz mal nenhum e novos exemplos de “mentiras do bem” aparecem. Tentativa das crianças de manter uma auto-imagem positiva? Busca do Eu pelo equilíbrio? É fato que, na interação, concorrem valores diversos, justamente porque as identidades são singulares e a divergência é parte permanente do processo interativo. Eis que um garoto introduz a crença religiosa: “mentir é pecado”. Novo dilema: se mentir é pecado, de acordo com a religião, não há exceção possível; é pecado e pronto. Contudo, a religião também ensina que é preciso “ajudar o outro”, o que revela os paradoxos que as crianças enfrentam quando se trata da apropriação de valores. Todavia, o garoto expressa sua convicção, mesmo fora dos preceitos religiosos: “se é pecado, eu não sei, mas não é certo” – volta para o terreno da moralidade: certo versus errado.

Valéria irrita-se com a precisão de João e diz que ele não sabe de nada. Eis uma diferença importante que observamos entre as interações com adultos e as interações entre iguais, que têm como conteúdo os valores: parece que as crianças, na relação com os discursos dos iguais, não os reproduzem como fazem com os dos adultos, mas os questionam ou divergem deles, conseguindo expressar seu ponto de vista. Pensamos que esse fato pode ter relação com a forma como as crianças concebem a experiência e o conhecimento do adulto, ou ainda com a heteronomia ou moral da obediência. Culturalmente, a criança não deve obediência ao igual e, do ponto de vista psicológico, não teria medo de perder seu amor.

Contudo, do ponto de vista da moralidade, podemos pensar no que nos diz La Taille (2002) sobre o juízo alheio. Será que ele pode explicar a ira de Valéria? Quem esse menino, que não sabe de nada, pensa que é para julgar sua conduta? Observando o que se segue no diálogo, vemos que João é seu agressor, é quem a persegue e a humilha todos os dias; logo, não pode ser o juiz de uma ação que ela julga boa. Será que essa afirmação pode nos levar a outra: o sentimento de Valéria, expresso pelo choro, não pode ser de vergonha, pois seu juiz não é legítimo. Mas será João seu juiz? Será de ter mentido que ela sentiria vergonha?

Começando pela última questão, parece que não é de ter mentido que Valéria sente vergonha. Para justificar nossa interpretação, vamos considerar, primeiramente, o conteúdo do sentimento que estamos, supostamente, chamando de vergonha. Essa garota tem 9 anos e, segundo revela La Taille (2002), em sua pesquisa sobre a gênese do sentimento de vergonha moral, ela já experimentaria esse sentimento em decorrência de um autojuízo negativo – não ter agido de acordo com o bem, com as regras morais. Seu discurso revela que ela adota o “falar a verdade” como valor, quando revela mentir, mas para ajudar os irmãos; portanto, por uma “boa causa”. Ao fazer esse movimento, Valéria livrar-se-ia do autojuízo negativo, pois sua conduta virtuosa de “ajudar o outro” a exime da culpa ou vergonha por mentir: uma razão moral maior. E, mesmo quando o colega questiona seus motivos – “mentir é pecado” –, inserindo valores religiosos, Valéria também continuaria livre do pecado, pois, segundo a religião, ajudar o outro é um valor cristão. Ocorre que o garoto é taxativo – “mentir não é certo”, ao que Valéria responde, julgando-o: “você não sabe o que é certo”.

Acreditamos que a manifestação dessa garota de 9 anos não revela um autojuízo negativo em relação à sua “mentira do bem”, mesmo porque não considera o garoto seu juiz. Logo, ela não sentiria vergonha moral, muito menos culpa. Então, por que ela chora, descontrola-se? Que sentimento ela estaria vivendo?

Nossa hipótese é de que Valéria sinta vergonha, mas vergonha não moral, denotando que sua auto-estima está em jogo, visto que só começa a chorar quando seu colega a chama de feia e burra, despertando o riso da turma. Como uma menina de 9 anos, é natural que Valéria valorize “ser bonita” e “parecer inteligente” perante os colegas. Acrescente-se a isso o fato de observarmos os cuidados de Valéria com a aparência: sempre com os cabelos escovados, cheia de adereços e com os lábios pintados com batom de cores fortes, além de investir no material escolar – enfim, cuidados típicos de meninas de sua idade.

Dissemos que João não é seu juiz legítimo e sabemos que, para sentir vergonha, além de estar exposto, é preciso que quem julgue seja legitimado pelo julgado como juiz. Acreditamos que seus juízes são os colegas da classe, e o riso manifestado após a fala de João expressaria a concordância da turma com seu julgamento: “os colegas acham Valéria feia e burra”. O último elemento que nos falta: Valéria concorda com seus juízes, também se avalia como “feia e burra”; afinal, João a persegue todos os dias, fazendo-a lembrar-se disso sempre. Logo, Valéria sentiria vergonha – mas que tipo de vergonha?

Parece-nos que, de acordo com as definições de La Taille (2002), podemos dizer que Valéria sente vergonha-padrão, justamente porque, segundo sua auto-avaliação, ela se julgaria inferior, por não corresponder a padrões de beleza ou de “esperteza”, tal como valorizam as crianças de sua turma. Fosse em decorrência da mentira e ela sentiria vergonha-norma. Poderíamos também supor que Valéria sente vergonha-humilhação, uma vez que sofre uma agressão intencional do colega, cujo objetivo é inferiorizá-la perante o grupo, o que resulta em dois tipos de conteúdos da vergonha em uma mesma situação: sentir-se inferior por não corresponder ao padrão valorizado pela comunidade e sentir-se inferior por ser humilhada em razão dessa “diferença”. Parece que a força do sentimento de vergonha, neste caso, potencializa-se e o sofrimento tende a ser maior. Daí o descontrole e o choro de Valéria.

Cabe aqui uma questão: o que teria essa cena a ver com a interação que favorece a manutenção e construção de valores relativos à auto-estima? O que significa esse “favorecer”?

Estamos trabalhando com descrição/narração de cenas características do cotidiano da escola e elas revelam relações complexas. Recortá-las seria perder a visão do todo e, por conseguinte, a possibilidade de atribuição de significados e sentidos.

As características das cenas revelam vários planos2 de análise. No caso da cena presente, teríamos um plano mais distante – segundo – da interação entre a contadora de histórias e as crianças, e um plano mais próximo – primeiro – da interação entre as crianças. No movimento de aproximar as personagens, temos ainda um primeiríssimo plano, ou close-up, da análise dos sentimentos de Valéria. Logo, na análise, podemos levar em conta os diferentes planos, ou eleger um deles e aproximar.

No caso da cena presente, teceremos considerações sobre todos os planos, justamente pela riqueza de seus dados. Em relação ao segundo plano, a proposta de contação de histórias – que favorece o aprendizado do ouvir e permite às crianças manifestarem seus pontos de vista, de maneira organizada, fazendo-se entendidas e vendo-se como capazes de expressar pensamentos e idéias, verbalmente ou pela escrita e produção plástica – poderia ser caracterizada como qualidade de interação que favorece a construção e manutenção de uma auto-estima positiva, justamente por provocar nas crianças uma auto-avaliação positiva, ou a possibilidade de se verem como valor positivo, por meio da imagem de “capazes” (de ouvir, de falar, de terem sua fala aceita etc.).

Entretanto, na mesma cena, mas em outro plano – primeiro –, o diálogo entre as crianças, no que diz respeito à qualidade da interação, varia em conteúdo: ora favorece a construção e manutenção de auto-estima positiva (quando o colega concorda e acrescenta algo ao que foi dito pelo outro), ora favorece a construção e manutenção de valores negativos ou de auto-estima negativa (quando os colegas se agridem, atacam-se mutuamente etc.).

Logo, é possível afirmar que os valores relativos à auto-estima positiva ou negativa estão presentes nas representações que as crianças têm de si e circulam, via interação, o que nos leva a supor, de acordo com nosso pressuposto da constituição do sujeito, que eles são apropriados pelas crianças.

Valores e Sentidos: A Necessária Aproximação da Experiência

Logo após o episódio do conflito envolvendo Valéria e João, quando a contadora de histórias está se despedindo, William, um garoto de 8 anos, quer fazer uma pergunta.

"– Posso fazer só uma pergunta?
– Claro, William.
– Por que agora você só conta histórias que falam de certo e errado?
– Como assim?
– É, que fala como a gente tem que se comportar.
– O que você acha?
– Não sei, não.
– Mas você acha as histórias chatas, ruins ou coisa assim?
– Não, são muito legais, só quero saber por quê.
Chamo a atenção da sala, informo sobre o que William está dizendo e pergunto o que acham.
– É porque a gente precisa aprender a se comportar melhor.
– É porque a gente faz coisa errada.
– Não é não; ela não sabe das coisas erradas que a gente faz; é porque essas histórias são diferentes e a gente precisa conhecer coisas diferentes.
– Não é nada disso – diz William, que ouvia os colegas bastante atento –, é porque nós somos crianças e não sabemos o que fazer; então a gente precisa ser educado e as histórias falam de educação.
Intervenho:
– As histórias falam de virtudes. Vocês sabem o que são virtudes?
– Eu sei, é aquilo que se deve ter... na Igreja, o padre fala.
– Não é de igreja que ela tá falando, meu. As histórias não falam de Santo ou de Deus.
– Fala, sim, do São Jorge.
– Não fala do São Jorge santo, mas dele homem, herói.
– Mas é a mesma pessoa.
– Pode ser, mas as histórias não são de igreja.
– Tia, esse negócio aí que você falou, como chama mesmo? [Respondo: – Virtude.] É, quer dizer o certo?
– Por que você acha isso?
– Ué, é fácil, todas as histórias falam do certo contra o errado.
– É isso mesmo.
– Ah, então entendi – diz William –, você quer mostrar pra gente que, na vida, tem bem e mal e que a gente precisa escolher.

– É verdade, quero que saibam disso, mas também quero que gostem de ler, que percebam quantas coisas podem aprender com a leitura, que pode ser muito bom ler. Agora preciso ir."

A pergunta de William indica uma percepção que podemos chamar de mais generalizada. Parece que ele se apropriara não só do conteúdo das histórias, mas também de seu gênero, o que é interessante, considerando sua idade. Contudo, o que William busca é trazer para sua experiência aquele fato. Queremos saber a opinião da turma e então vemos o movimento de aproximação com a experiência, ou seja, o lugar de onde partem para atribuir significados e sentidos aos conteúdos que circulam no espaço interativo.

Nesse rumo, William expressa claramente seu modo de ver: “as histórias falam de como a gente deve se comportar”. Falando sobre o desenvolvimento do sujeito interativo, Góes (2000, p. 25) diz que “o caráter social da atividade do sujeito não está meramente na existência de um contexto social que influencia (atenuando, intensificando) processos subjetivos”. Ou seja, o que caracterizaria o sujeito como interativo é uma necessária interdependência entre os planos intra e intersubjetivos, dos quais decorrem as bases de seu conhecimento, da mediação social e dos significados partilhados.

Entendemos que, na interação, diferentes pontos de vista se confrontam, significados diversos são partilhados e a participação em espaços dessa natureza favorece a construção de formas de ação autônoma ou da auto-regulação. Parece que esse pressuposto poderia explicar a atitude de William: ele não tem medo de perguntar porque não teria medo de errar ou parecer “burro” diante da turma ou da contadora de histórias. Ele participa do contexto interativo e demonstra, ao discordar do ponto de vista dos colegas, que é capaz de um pensamento autônomo. Suas ações seriam indicativas de que ele se vê como capaz, tendo, portanto, valores positivos relativos à auto-estima atrelados ao conjunto das representações que tem de si.

Quanto às falas das demais crianças, elas denotam a apropriação do discurso do adulto: “precisamos nos comportar melhor”, “a gente faz coisa errada”, e levam-nos a algumas questões: de acordo com La Taille (2002), quando fala sobre a apropriação dos discursos do adulto, ou com Góes (2000) sobre a intersubjetividade e a mediação social, não seria de se esperar que essas crianças se constituíssem com valores morais ocupando lugar central no conjunto de suas representações? Entretanto, conforme observamos nessa escola e também conhecemos de outras experiências e pesquisas, parece que, quanto mais avançam na escolaridade, maiores são os problemas relativos a questões morais. Por que isso acontece? Seria porque a escola permanece encaminhando as questões morais de maneira a favorecer a moral heterônoma, ignorando a capacidade de os alunos desenvolverem a autonomia ou a auto-regulação? É fato que as crianças conhecem as normas – sabem como devem se comportar, pelo menos no nível do discurso. É claro, também, que, conforme observamos, fazem-no em decorrência de, como diz Piaget (1994), uma moral da obediência. Percebemos, no entanto, que, nessa faixa de idade, valores relativos à auto-estima – ligados à aparência, à visibilidade social – assumem grande relevância, mesmo quando o discurso expresso tem como conteúdo a moralidade.

Os Valores não Morais no Modo de Representar-se das Crianças: Interações que não Favorecem uma Auto-estima Positiva

"Setembro de 2001. Voltamos a contar histórias para as crianças. Tínhamos interrompido em julho. Voltamos, portanto, a circular pela escola durante as aulas. Surpreendemo-nos com a irritação de algumas professoras com as crianças – gritam tanto que conseguimos ouvir da sala ao lado, com as portas fechadas. A quarta série está impossível – “empurra-empurra”, um xingando o outro daqueles palavrões já conhecidos. Peço a um garoto que mude de lugar, indo sentar-se perto da professora. Ele diz: “Perto dela, eu não vou”. Vai ou não, começo a história! (Mantenho-me firme.) A professora permanece “impassível”... O garoto sai andando, devagar, e repetindo: “ela é muito chata, tia, ela despreza a gente!”. A professora parece fingir não ouvir. E, então, levanta-se e retira-se da sala. Terminada a história, Helena, a coordenadora, aguardava-nos no corredor. Ouvimos gritos na quarta série. Helena, entrou, eu fiquei na porta. As crianças batiam nas carteiras, fazendo muito barulho. A professora, em pé, ignorava. Helena entra e a professora diz:“Vamos ver se você consegue dar um jeito nessa turma!”Enquanto Helena repreendia as crianças, a professora saiu e veio falar comigo: “Você está vendo que absurdo! Eles não têm a menor educação. Sabe por que se comportam assim? Não têm punição, não têm castigo, a escola não faz nada. E olha, eles já vêm assim de casa, o problema é de ‘berço’”. Limitei-me a ouvir."

Essa pequena cena tem em seu conteúdo elementos para pensarmos como os valores são mantidos ou construídos no contexto interativo que caracteriza as relações escolares. Nessa escola, a quarta série tem sido, já há algum tempo, a que mais apresenta os problemas chamados de “indisciplina” pelas professoras.

A fala da professora expressa seu julgamento em relação às crianças: “Eles não têm a menor educação”. Se acreditamos, a priori, que as crianças não têm educação, que não têm jeito, que o problema é de “berço”, que tipo de conduta podemos esperar delas?

É na interação que os valores se constroem, no movimento de ser julgado pelo outro, julgar o outro e julgar a si próprio. Nesse caso, o outro julga as crianças como “não tendo nada de bom”; e as crianças, por outro lado, em seu julgamento, não atribuem valores positivos à professora ou ao contexto interativo. Logo, comportam-se como se estivessem em um lugar completamente sem regras ou sem normas a serem seguidas.

Esse é um exemplo típico da cultura do “eles”: “a escola não faz nada, a família não faz nada (já vêm assim de casa)”. Logo, “eu também não faço nada, não me sinto como pertencendo a essa comunidade”, não exercito o “nós” e tudo de ruim está no outro. Enfim, desiste-se e, do nosso ponto de vista, esse contexto é apropriado pelas crianças, que também não se sentem pertencentes à comunidade, não comungam de seus valores e fazem o que querem, pois precisam manter sua boa imagem representada como os que “podem”, “mandam”, “transgridem”, “são espertos”.

O valor que circula é o “fracasso”, a incompetência: da professora, das crianças, da escola, da sociedade. Com base nessas observações, podemos dizer que interações que têm como conteúdo a apatia, a descrença na possibilidade do outro, ao visão do outro como inferior não favorecem a construção e manutenção de valores positivos relativos à imagem que as crianças e a professora têm de si. Podem, no máximo, favorecer a manutenção de valores negativos, ou mesmo a construção desses valores.

Algumas Conclusões sobre o Desenvolvimento de Valores não Morais no Processo de Constituição do Sujeito

As considerações que apresentamos ao longo deste artigo, baseadas em observações e estudos sobre as interações na escola e seus significados e sentidos na construção e manutenção de valores – morais e não morais – e, sobretudo, sobre o lugar que os valores não morais ocupam no conjunto das representações que as crianças têm de si, permitem eleger alguns aspectos que nos parecem relevantes no que concerne à constituição do sujeito em processos educativos.

Entendemos que a interação é de fundamental importância para o desenvolvimento da criança, visto ser na e pela interação que ela se apropria da cultura, ao mesmo tempo que a constitui. Esse processo de constituição é mediado pela linguagem, e, segundo observamos, a maioria das crianças, no que se refere aos valores morais, apropria-se do discurso do adulto e tende a transformar seu significado, pela atribuição de significados e sentidos próprios, de acordo com sua experiência. Um exemplo que ilustra esta interpretação é quando, no diálogo com a pesquisadora sobre a história contada, uma das crianças diz “tem que ter coragem” (discurso do adulto) e se remete à experiência própria de valentia: “o Pedro me empurrou e eu dei uma ‘porrada’ nele”, o que leva outras crianças a relatarem experiências semelhantes.

Esse fato parece indicar que, no que concerne a valores morais, algumas crianças tendem a compreendê-los como valores não morais, cuja característica tem relação com o “parecer”, com a visibilidade social. No exemplo da coragem e valentia, o parecer valente sobrepõe-se à virtude “coragem”.

Contudo, quando confrontadas com o certo e o errado, como falar a verdade e mentir, por exemplo, algumas das crianças revelam dilemas morais e tendem a buscar razões que justifiquem suas condutas, o que parece indicar uma busca por manter uma imagem positiva de si, conforme observado no movimento de Valéria, em que se utiliza do valor “ajudar o outro” (ser solidário) para justificar a mentira contada aos pais: “mentir para ajudar os irmãos não é errado, é?”.

Contudo, segundo observado em algumas crianças, a expressão de valores relativos a comportamentos exemplares tem como motivação a obtenção de recompensas externas, o que pode indicar a presença de valores morais atrelados à identidade, mas não como centrais ao Eu. De outro lado, como punição das condutas inadequadas, a maioria das crianças revelam experiências com castigos que se caracterizam como sanção expiatória, o que acaba por reforçar sua heteronomia no que concerne ao certo e ao errado, ao tipo de atitude que devem ter.

Em relação à constituição de uma auto-estima positiva, parece que as interações que têm como característica ouvir o outro, a aceitação do ponto de vista do outro, das formas de se apresentar do outro e ainda a valorização da expressão de pensamentos e idéias, por meio de diferentes vias, favorecem a construção e a manutenção de valores não morais positivos. Em contrapartida, as interações que levam ao sentimento de vergonha – padrão ou meta, associadas ou não à vergonha-humilhação – parecem não favorecer a construção ou manutenção de valores positivos atrelados ao Eu.

Isso posto, é possível inferir que, no processo de desenvolvimento da criança, a constituição dos valores morais está imbricada com os valores não morais que constituem a auto-estima, e é preciso considerar essa relação nos processos educativos se quisermos formar cidadãos dignos e autônomos, protagonistas de seu processo de desenvolvimento e aprendizagem.

REFERÊNCIAS

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______. Vergonha, a ferida moral. Petrópolis: Rio de Janeiro, Vozes, 2002.        [ Links ]

PIAGET, J. O juízo moral na criança. 3. ed. São Paulo: Summus, 1994.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência

Vera Lucia Trevisan de Souza
E-mail:vera.trevisan@uol.com.br

Vera Maria Nigro de Souza Placco
E-mail:veraplacco@pucsp.br

 

 

Recebido em: 30/07/2007
Aprovado em: 17/07/2008
Revisado em: 20/08/2008

 

 

1“As interações na escola e seus significados e sentidos na formação de valores: um estudo sobre o cotidiano escolar”.
2O sentido de plano utilizado aqui é o que tomamos emprestado do cinema, que o utiliza no movimento de aproximação ou afastamento de atos ou de personagens. Ou seja, os planos corresponderiam às formas de mostrar a cena, e eles variam de acordo com a intenção do autor. Dependendo do que quer expressar, ele se utiliza de planos diferentes, como o primeiríssimo ou close-up, por exemplo, que aproxima a personagem, focando seus olhos ou boca, para revelar seus sentimentos. Nós entendemos que podemos nos referir a esse movimento para aproximar nossos personagens – tal como fizemos com Valéria.

 

 

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