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Arquivos Brasileiros de Psicologia
On-line version ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.64 no.2 Rio de Janeiro Aug. 2012
ARTIGOS
Precipitação da angústia na estruturação do sujeito pelo significantei
Precipitation of angst within the signifier structuring of the subject
Precipitación de la angustia en la estructuración del sujeto por el significante
Jorge Luís Gonçalves dos SantosI; Fernanda Costa-MouraII
IDoutorando. Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro. Brasil
Endereços para correspondência
RESUMO
O artigo propõe uma elaboração conceituai da complexa articulação que dá fundamento à teoria da angústia de J. Lacan, através de uma discussão que concerne especialmente ao ponto de emergência (ou precipitação) da angústia na experiência do sujeito. Partindo do estabelecimento da divisão constituinte do sujeito em sua relação ao funcionamento da linguagem, demarca-se o lugar do desejo na estrutura significante. Situando a angústia numa temporalidade lógica imediatamente anterior ao desejo. Em seguida, discute-se a articulação entre a falta que distingue a dimensão simbólica e a perda que instaura a função do objeto a no campo do sujeito. E finalmente, evocando o corte do significante que constitui o corpo como pulsional e demarca o objeto, distingue-se a precipitação da angústia como momento lógico no qual a falta irredutível da cadeia significante torna-se o campo onde o sujeito pode emergir.
Palavras-chave: Psicanálise; Angústia; Significante; Desejo; Objeto a.
ABSTRACT
The paper proposes a conceptual elaboration of the complex articulation that lies underneath the angst theory by J. Lacan. The main discussion focuses on the logical point in which angst affects the subject's experience. Starting from the division of the subject as related to language operation, it argues that angst is located in a logical temporality, as previous to desire. After having set up the place of desire in the structure of the signifier, it handles with the relation between the default that constitutes the symbolic dimension and the loss that constitutes the object a for the subject. Finally, referring to the piercing effectiveness of the signifier that creates the pulsional body and detaches the object, the article establishes angst precipitation as a logical moment, in which the irreversible default of the signifier chain can become the grounds to the subject's issue.
Keywords: Psychoanalysis; Angst; Signifier; Desire; Object a.
RESUMEN
El artículo propone una elaboración conceptual de compleja articulación que da motivos para la teoría de la angustia de J. Lacan, a través de un debate que concierne especialmente al punto lógico de emergencia (o precipitación) de la angustia en la experiencia del sujeto. Partiendo del establecimiento de la división constitutiva del sujeto por el lenguaje, se delimita el lugar del deseo en la estructura significante. Colocar la angustia en una anterioridad lógica en relación al deseo. Después de demarcar el lugar del deseo en la estructura significante, intenta indagar la relación entre la falta simbólica y la pérdida que instaura la función del objeto a en el campo del sujeto. Finalmente, evocando el corte del significante que constituye el cuerpo como pulsional y delimita el objeto, se ubica la angustia como el momento lógico a través del cual la falta irreductible de la cadena significante se convierte en el campo donde puede surgir el sujeto.
Palabras-clave: Psicoanálisis; Angustia; Significante; Deseo; Objeto a.
Precipitação da angústia na estruturação do sujeito pelo significante
No seminário de 1962-3, Lacan (2005) faz da angústia a peça-chave da fundação do sujeito do desejo a partir da incidência significante. Situando a angústia como o "corte nítido sem o qual a presença do significante, [...] seu sulco no real é impensável" (Lacan, 2005, p. 88), Lacan estabelece a angústia como correlata à presença do significante e seu funcionamento no campo do sujeito. Uma vez que a estrutura simbólica não se articula sem a hiância pela qual o desejo se inscreve no campo do significante, a relação do sujeito ao simbólico será sempre atravessada por esse ponto de falta que se mostra impossível de ser subsumido pela ordem das significações. O que impede o sujeito de obter sua unidade pela leitura dos significantes em que se encontra inscrito.
Porém, essa falta que caracteriza a estrutura simbólica e impede que o sujeito se resolva numa significação não é, ela mesma, suficiente para que um sujeito se constitua como desejante. A emergência do desejo como tal exige, antes, que essa falta que organiza a estrutura simbólica seja assumida em ato como perda do objeto irremediavelmente dividido e confrontado à angústia. Partindo dessa perspectiva, o presente trabalho objetiva delinear a angústia como um tempo necessário para aceder ao desejo. Iniciando por demarcar o lugar do desejo na estrutura significante, buscaremos estabelecer a relação da falta que distingue a estrutura simbólica à perda que instaura a função do objeto a no campo do sujeito. Nesse percurso destacaremos a delimitação estrutural do objeto, para a qual a angústia aponta, como perda necessária à constituição da função da causa do desejo - através da qual o sujeito advém na dimensão simbólica.
A hiância da estrutura
No seminário A angústia, Lacan propõe que o sujeito é determinado pela articulação significante através do resto produzido em seu encadeamento (Lacan, 2005). Esse seminário é um marco no ensino lacaniano por formalizar a incidência desse resíduo sem o qual o sujeito não pode advir no campo significante. Pela notação objeto a, Lacan aponta a incidência de um ponto de falta no centro da relação do sujeito com o significante. Assim, o objeto a se faz o resto decaído do funcionamento simbólico, que demarca o lugar da perda em que o desejo se constitui.
É na relação ao significante como alteridade radical que o sujeito se torna tributário da cadeia da linguagem em que se inscreve. A linguagem, a rigor, preexiste ao sujeito e o engendra como consequência de seu encadeamento (Lacan, 1997, p. 268). Contudo, a anterioridade do significante em nada aponta a existência de uma significação por meio da qual o sujeito se tornaria claro a si mesmo. A materialidade significante não responde a título de qualquer significação; ela não é um signo que significa algo para alguém (Lacan, 1998c, p. 890). A linguagem é estruturada de outra forma: através de um significante que representa um sujeito para outro significante (Lacan, 2005, p. 73).
O sujeito emerge, portanto, no espaço intervalar entre os significantes. Está originalmente dividido entre um primeiro significante que advém do campo do Outro, ou seja, do tesouro da linguagem (Lacan, 1999, p. 154), e o outro significante a partir do qual o primeiro tomará valor. Todo saber suposto a um significante é justamente o que se descarta pela ação retroativa de um segundo significante. Se em algum lugar o sujeito adere ao significante como sentido, em outro, em um segundo significante, ele se manifesta em fading, completamente desvanecido (Lacan, 1998a, p. 207). Na divisão do sujeito há tanto o significante que o inscreve na linguagem como o outro significante que, ao impor os efeitos de ressignificação ao primeiro, faz com que o próprio sujeito seja destituído de seu lugar.
Através do encadeamento significante, portanto, o sujeito é lançado em uma determinação que o situa sempre em referência a uma anterioridade possível de ser ressignificada a posteriori. Lacan sublinhou a importância da estrutura temporal do a posteriori na obra de Freud, encontrada sob a forma do termo alemão nachträglich (Lacan, 1998d, p. 853). A retroação do discurso impõe que o efeito de sentido de uma frase só seja fechado com o surgimento de sua última palavra. Por exemplo, quando Paulo Leminski escreve os livros sabem de tudo, essa frase só terá seu valor decidido por aquilo que surge em sequência: "só não sabem que, no fundo, ler não passa de uma lenda" (Leminski, 1999, p. 91). O saber onipotente que estaria nos livros contém sua falha na próxima frase que o limita e impõe outra direção ao sentido. Pode-se dizer que os livros só não sabiam (e só vieram a saber depois, pela ação retroativa da segunda frase) que lê-los é uma lenda. Da mesma forma, ao sujeito não é dada a possibilidade de conhecer o valor que terá a frase em que ele se encontra inscrito. E, caso essa frase venha a ser conhecida, isso só se fará posteriormente e na dependência de que o próprio lugar do sujeito seja colocado em questão, uma vez que os significantes são ressignificados ao serem remetidos a outros significantes.
Lacan salienta o uso do verbo no modo imperfeito para indicar o que suspende o sujeito colocando uma questão que o ultrapassa. Ele não sabia, mais um instante ele saberia, ou ainda, um exemplo frequentemente retomado por Lacan, "um instante mais tarde, a bomba explodia" (Lacan, 1997, p. 268). Um pouco mais, e a frase se faria ouvir, poderia ter estado lá. Contudo, ela pode apenas ter desaparecido, por não ser nada mais do que um significante. Esse limiar que a frase carrega quando tomada no imperfeito decorre da perspectiva temporal que faz com que num só-depois ela efetivamente passe a ser. Diante dos significantes que o inscrevem na cadeia da linguagem, o sujeito se revela evanescente na medida em que se dissipa por só se presentificar em consequência daquilo que ganhará valor a posteriori.
Por circunscrever e tornar possível a instauração de uma falta, o campo da linguagem situa o sujeito entre os significantes e o demarca pela torção temporal própria do simbólico. O impedimento contido na linguagem, de que nenhum significante possa oferecer uma significação derradeira, constitui a via pela qual desponta a incidência da falta na constituição do sujeito. Pois é na medida em que o sujeito aparece invariavelmente remetido por um significante a outro que a dimensão da falta se coloca como essencial. Trata-se justamente da falta que se caracteriza pela inexistência de um significante último que estanque os movimentos de substituição e combinação por meio dos quais a linguagem se articula. Nesse sentido, há uma hiância produzida na linguagem; e é precisamente nesse corte aberto pelo significante que o desejo vem se fundar. Não havendo nenhuma significação a que o sujeito possa se restringir, a linguagem é o esteio da falta que demarca o desejo como hiância em referência a um outro significante, sempre a advir. No vazio instaurado por esse corte entre um significante e outro significante a surgir, o desejo recebe sua cunhagem.
A suspensão evocada pela frase não sabia, um pouco mais saberia é o que revela a hiância que imbrica o desejo com o funcionamento significante. A referência do desejo no campo simbólico encontra-se no rastro deixado pelo significante, e não apenas no significante isoladamente. Na estrutura de um sintoma, por exemplo, a incidência do desejo está no ponto em que a cadeia simbólica sofre uma cisão. Onde o significante deveria estar, há apenas a presença de um corte, de uma elisão por meio da qual o sintoma se constitui. Se o sujeito não sabia dos significantes que estruturaram seus sintomas é porque esse foi o lugar em que a cadeia simbólica sofreu uma ruptura, uma suspensão. Por isso, no que diz respeito ao lugar em que impera o desejo, o sujeito sempre está em defasagem quanto ao que pode saber.
Na 18ª de suas Conferências Introdutórias à Psicanálise, Freud aponta:
A construção de um sintoma é o substituto de alguma outra coisa que não aconteceu. Determinados processos mentais normalmente deveriam ter evoluído até um ponto em que a consciência recebesse informações deles. Isto, porém, não se realizou, e, em seu lugar - a partir dos processos interrompidos, que de alguma forma foram perturbados e obrigados a permanecer inconscientes - o sintoma emergiu (Freud, 1996d, p. 287).
Nessa outra coisa que não aconteceu, na interrupção dos processos de pensamento que deveriam ter se estendido até serem notados pela consciência, Freud localiza, a seu modo, a suspensão a partir da qual o desejo inconsciente infantil insiste e produz o sintoma em articulação com a economia pulsional. Nesse sentido, encontramos em Freud (1996a e 1996c) uma concepção do inconsciente como pensamento, no qual se encadeiam os chamados representantes da pulsão, segundo leis próprias de condensação, deslocamento e substituições. Mas se trata de um pensamento que tem efeitos reais. Que se desdobra, ou se interrompe, e se articula através de lapsos, chistes, sonhos e sintomas.
Já Lacan, por sua vez, quando retoma a função do inconsciente freudiano no seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1998a), não enfatiza o inconsciente como um processo de pensamento que se associa por leis que se diferem da consciência. É claro que Lacan não desprezou a estrutura pela qual os significantes remetem uns aos outros através de deslocamentos e substituições (Lacan, 1998b, p. 269), mas efetivamente ele realiza uma volta a mais da espiral freudiana, ao afirmar o inconsciente como o conceito da falta, colocando-o como uma descontinuidade radical, onde algo se manifesta como vacilação (Lacan, 1998a, p. 30-1). Nessa perspectiva, o inconsciente é retomado como um jogo combinatório que determina o sujeito precisamente por apresentar-se como uma rachadura, uma fenda. E um ato falho, por exemplo, guarda seu valor paroxístico mais por seu caráter de tropeço, de rachadura, de surpresa - através do qual o inconsciente incide para aquele que fala -, do que por qualquer sentido ou explicação que possa suscitar. É, pois, na medida em que o inconsciente não se reduz a qualquer significação que Lacan o introduz pela estrutura de uma hiância aberta no encadeamento significante (Lacan, 1998a, p. 33).
Dessa maneira, as formações do inconsciente (os já mencionados sonhos, lapsos, atos falhos e sintomas) adquirem um estatuto da ordem do "não nascido" ou do "não realizado", segundo Lacan (1998a, p. 28), por comparecerem no ponto em que uma interrupção do encadeamento significante sinaliza o desejo. Trata-se do desejo inconsciente, que persiste em suspenso, no nível do que não pôde jamais se efetuar inteiramente, de forma cabal, realizando-se, no entanto, em outro lugar. Na Outra cena, que Lacan recolhe da pena de Freud (Freud, 1996a, p. 566), indicada apenas pelo lugar faltoso deixado pelo significante.
A questão que se pode formular, então, é se essa falta inaugurada pela incidência do significante é capaz de ser assimilada, reabsorvida pelo campo simbólico. Será essa falta análoga ao que se obtém retirando um livro da estante de uma biblioteca, na medida em que bastaria restituí-lo para que nenhuma lacuna fosse ali acusada? Essa é a direção pela qual a ciência realiza seus avanços no mundo, segundo Lacan, já que, caracterizando-se por uma eficácia da operação significante, sua ambição é tratar qualquer falta como passível de ser preenchida (Lacan, 2005, p. 161). Mas a experiência analítica exige outra prática discursiva, que aponta para o ponto de limite da cadeia significante, na qual o desejo deve se situar.
Na psicanálise, o desejo é o que abre a oportunidade para que a função original da falta seja experimentada pelo sujeito em sua estrutura de perda imposta pela estrutura da linguagem. Todavia, para que se o conceba, é necessário considerar como uma falta gerada pelo simbólico se assevera impossível de ser por ele mesmo reabsorvida.
Perda irrecuperável
Tocar nessa problemática é, de toda forma, questionar como o sujeito chega a se instituir como um efeito real do funcionamento simbólico. Se até aqui enfatizamos de que modo o significante abre o lugar de uma falta onde o sujeito está implicado como desejante, a partir de agora procuraremos discutir a incidência dessa hiância no campo do sujeito.
Para Lacan, nem a dimensão significante nem o sujeito nela implicado como sujeito a advir podem ser dados como consequência espontânea da natureza. E, não obstante, tanto o significante quanto o sujeito, seu efeito, se consubstanciam, ou, mais precisamente, se encarnam, como o coloca Lacan, como presença real.
O problema está na entrada do significante no real e em ver como disso nasce o sujeito. Será que isso quer dizer que nos encontramos como que diante de uma espécie de espírito que baixa, de aparição de significantes alados? Significa que eles começariam sozinhos a cavar seus furos no real, e que no meio apareceria um furo que seria o sujeito? Penso que (...) ninguém me atribuiu tal intenção. (...) Trata-se de saber justamente o que permite que esse significante se encarne. (Lacan, 2005, p. 100).
Que a hiância aberta pelo significante se encarne, é justamente o que confere ao desejo que advém daí, seu estatuto propriamente psicanalítico, vale dizer: sexual. Para a psicanálise, o desejo não será absolutamente da ordem do pensamento especulativo, nem do ideal, ao mesmo tempo em que não se trata absolutamente do instintivo, nem tampouco do orgânico ou biológico. Não há nada de natural ou automático na maneira de o desejo se forjar na falta aberta pela linguagem. Para a psicanálise, o desejo emana de uma perda encarnada. Só há acesso à estrutura linguageira, e, por conseguinte, o sujeito só poderá surgir se houver a ocasião de uma perda, cujo caráter de irrepresentável, eminentemente irrecuperável para a instância simbólica, se demarca através de um corte no real do corpo. Dizendo de outro modo, a entrada do sujeito na linguagem exige que uma perda encarne o que é impossível de se integrar à função simbólica.
É pela via da encarnação dessa perda que o significante não pode suprir, nem contra ela se precaver, que o corpo faz sua entrada como real para o sujeito. Se há um sujeito que emerge, determinado por sua articulação ao significante, isso não se produz sem que o corte que o significante efetua incida no nível do corpo. Apartando o desejo que o anima de toda complementação possível por um objeto último e natural, o significante constitui o corpo como pulsional e marca o advento de uma perda irrecuperável. Perda que é do vivo e de qualquer natureza. E que se encarna - como veremos - no objeto a.
O significante realiza, pois, sua entrada no mundo através da afetação de um corpo que ganha estatuto de real ao levar as marcas da perda do objeto a. Uma perda que Lacan define como aquela que circunscreve a função da causa do desejo no rastro deixado pelos objetos parciais extraídos do corpo. Extração simbólica -a castração -, que marca a possibilidade de algumas partes se delimitarem como potencialmente separáveis do corpo e que institui a função do objeto a como causa do desejo. Em correlação a esse pedaço caduco que cai do corpo, o pequeno a vem operar como o objeto que, por faltar, causa o desejo. E, reciprocamente, a extração do pequeno a franqueia a funcionalidade de um corpo através da especificação das zonas erógenas, que atuam como as bordas que delimitam esse corpo (Czermak, Hegott, & Tyszler, 2012, p. 180; Freud, 1996b).
Essa operação lógica depende, no entanto, do que Lacan nomeia "cessão do objeto" (2005, p. 353). A cessão do objeto é uma perda que tem incidência de ato. Um ato de rendição de um objeto que funcionará como causa da qual resultam, por assim dizer, o sujeito e o desejo como efeitos. Por essa cessão do objeto se constitui um sujeito que surge como tal ao incorporar, como castração que lhe concerne, o que é falta na estrutura simbólica. Mas se trata, insistimos, de uma assunção em ato. Que se dá como acontecimento não passível de antecipação. Excluindo justamente a deliberação, na medida em que o sujeito advém só-depois, como consequência dessa perda, e, paradoxalmente, a perda está situada numa anterioridade lógica em relação ao sujeito. É, portanto, por esse ato de cessão do objeto que tanto o sujeito quanto o objeto a se constituem, de maneira pontual e evanescente, enquanto determinados pela estrutura simbólica (Costa-Moura e Costa-Moura, 2011).
Lacan observa que, para que a máquina formal da linguagem funcione, engendrando o surgimento do sujeito como desejante, uma libra de carne que responde pela falta desse objeto perdido deve circular em sua estrutura. Porém, à maneira do que foi figurado por Shakespeare (1978), o que é exatamente essa medida, não se sabe, ela não cabe em dimensões representáveis. Trata-se de parte de nós mesmos - parte de "nossa carne" (Lacan, 2005, p. 237), para sempre irrecuperável como tal e que resta necessariamente presa na máquina formal do significante. Libra de carne recortada do corpo vivo que encarna o objeto perdido para o sujeito.
A relação do homem com essa função chamada desejo, só adquire toda a sua animação na medida em que é concebível o despedaçamento do próprio corpo, esse corte que é o lugar dos momentos de eleição de seu funcionamento. A separtição [sépartition] fundamental - não separação, mas divisão por dentro -, eis o que está escrito desde a origem [...] no que será a estruturação do desejo (Lacan, 2005, p. 259).
A angústia como tradução subjetiva do objeto
O seminário A angústia, como vimos, mostra que a emergência do sujeito enquanto desejante não implica apenas a perspectiva simbólica, sob a forma do que Lacan chamou de "causa significante" (Lacan, 1998d, p. 855). A determinação do sujeito pelo significante remete igualmente ao que permanece como resto irredutível da operação da linguagem e que comporá o estatuto da função da causa na psicanálise. Longe de recusar a incidência do simbólico em favor de uma objetividade natural, o objeto a emerge como uma radicalização dos efeitos da linguagem sobre o sujeito. A tarefa que se coloca, por conseguinte, é circunscrever a função do objeto a na relação do sujeito com o simbólico, com o imaginário e com o real. Assim, como observam Rocha (2003) e Rabinovich (2005, p. 25), o problema que Lacan enfrenta nos anos de 1962 e 1963 é como falar sobre o que não se pode dizer. Como conceber a função daquilo que Lacan denomina de objeto dos objetos, o pequeno a, se ele é irredutível a qualquer significante? Se o objeto que surgiu pelo corte no corpo é aquele que suspende a cadeia significante, como chegar a postulá-lo? E, não obstante, Lacan o indica:
O objeto a (...) está no centro de nosso discurso. Se ele se inscreve no âmbito de um Seminário que intitulei A angústia, é por ser essencialmente por esse meio que se pode falar dele, o que também é dizer que a angústia é sua única tradução subjetiva (Lacan, 2005, p. 259).
Através da angústia, Lacan demarcará o estatuto de um objeto que não se confunde com os objetos imaginários (Tyszler, 2007; Tyszler, 2011; Thibierge, 2011) nem é recuperável pela articulação significante (Czermak, 1986). Ali onde nem o simbólico nem o imaginário bastam para indicar o lugar em que o desejo é causado, a angústia se torna a via pela qual o sujeito se defronta com o real1.
Nas palavras de Lacan, como visto, a angústia é a única "tradução subjetiva" do objeto a (Lacan, 2005, p. 113), única possibilidade de localização de sua incidência no campo do sujeito. Se procurarmos isolar a função do objeto a apenas nas articulações do simbólico, irremediavelmente adentraremos o campo do engano, pois o mais longe que se pode chegar pela via simbólica é à dúvida e ao equívoco: a cadeia de significação não se fecha, e no lugar de um significante sempre advém outro. É verdade que nos caminhos abertos pelo significante há um desejo que se anima. Não obstante, nada se pode dizer acerca do objeto a enquanto ele for tomado como se reduzindo à falta que permite ao sujeito comparecer no interminável encadeamento da linguagem. Por isso mesmo, Lacan aborda a função do objeto a pela angústia enquanto "aquilo que não engana, que está fora de dúvida" (Lacan, 2005, p. 88).
O mesmo impasse ocorre se tentarmos apreender a função do objeto a no nível imaginário. Lacan mostra no seminário A angústia (2005) que a imagem especular sustenta-se por aquilo que nela não pode se refletir. Nesse sentido se pode localizar a presença do desejo no campo da imagem não apenas como velado, mas fundamentalmente como relacionado à falta pela qual a imagem se sustenta. Tal como ocorre no registro simbólico, também na dimensão imaginária a presença do desejo está relacionada a uma falta que deve ser preservada. Entretanto, o registro da falta no campo imaginário tampouco constitui um meio de cernir o objeto a. Ainda que a falta seja indispensável ao desejo, a incidência do objeto causa do desejo e seu correlato de angústia não se delimitam por essa via.
É justamente quando não há, momentaneamente, possibilidade de instituir a falta que garante a circulação do desejo que surge o que é mais angustiante. Seguindo essa baliza teórico-clínica, Lacan chega a dizer que, ao contrário do que se esperaria, não é a nostalgia do seio que gera a angústia, e sim a iminência dele (Lacan, 2005, p. 64). Isso porque, se a angústia for tomada em seu aspecto de sinal, pode-se considerar que ela surgirá quando o lugar reservado à falta, onde o desejo é causado, encontrar- se saturado ou obliterado de alguma maneira (Lacan, 2005, p. 52 e 64). A angústia, por conseguinte, não é mero sinal de uma falta, mas sim daquilo que Lacan concebe como "falta do apoio dado pela falta" (Lacan, 2005, p. 64). E é nessa conjuntura também, no caso candente de emergência da angústia a partir de uma obliteração da falta que engendra o desejo, que o estatuto do objeto a como perda se encontra revelado. E revelado, paradoxalmente, por sua ausência, pela queda de sua função. Igualmente, quando de alguma maneira esse objeto é evocado como presença capaz de obturar a falta, fugazmente que seja, é nesse ponto preciso que a angústia vem se precipitar na experiência do sujeito.
Assim, pode-se dizer que o objeto a não assume sua função de causa do desejo sem desencadear a experiência da angústia. Se Lacan faz dele "o objeto sem o qual não há angústia" (Lacan, 2005, p. 119), é porque o que a angústia sinaliza é um perigo preciso, ligado à injunção de cessão de um objeto cujo caráter é de ser separável do corpo. E se trata mesmo de injunção, porque tal perda é exigida, posta, imposta como escolha forçada a ser sustentada pelo sujeito com seu desejo - no momento de encontro com o limite do que o significante pode articular. No limite do significante, como vimos, é o desejo que se indica. E sua iminência se faz notar pelo sinal de angústia que irrompe, em um átimo, diante do objeto que se configura já (e desde sempre) em perda.
Eis aí, portanto, a delimitação estrutural da constituição do objeto - que se dá num momento limítrofe à cessão do mesmo, já que é a perda que demarca o objeto para nós. E sua sincronia com o instante lógico da angústia. Eis o corte com o qual a angústia se impõe, por estrutura, como via para a (paradoxal) delimitação positiva do objeto como perda que causa o desejo.
O que esse instante circunscreve é a queda subjetiva que o sujeito experimenta ao se deparar com a injunção da perda objetal. Os diversos objetos separáveis do corpo vindo aí configurar os pontos limites que é preciso fender para que a falta simbólica possa se efetivar como tal para o sujeito - revelando a perda que se impõe como desejo (Lacan, 1967-8, lição de 10/01/68; Costa-Moura e Costa-Moura, 2011).
Conclusão
Vimos, assim, que a vinculação entre o desejo, que se enraíza na falta simbólica, e a angústia, como o sinal da presença do objeto a, estabelece-se em termos de uma anterioridade lógica desse objeto à efetuação da falta simbólica como tal. Há, portanto, uma descontinuidade entre a falta imposta pela linguagem e o campo onde a angústia vem se impor. Campo, como dissemos com Lacan, da cessão do objeto através do qual a falta que se insere na estrutura vem efetivar-se como perda no campo do sujeito.
Lacan ampara, portanto, o nível da falta, que se localiza no plano da estrutura, numa perda que o sujeito só pode experimentar enquanto queda subjetiva. Formalizar o objeto a como falta que pode faltar permite justamente discernir esse momento como aquele em que a angústia se precipita e faz sua irrupção original - resultando na queda do sujeito, ou, pelo menos, dos referenciais que o sustentavam até então.
O real da angústia faz o impasse do sujeito diante do desejo. Para que um sujeito se constitua como tal, há que haver a perda, ou extração desse objeto que não pode ser subjetivado. É por ceder esse objeto que o sujeito emerge na estrutura. Mas tomar essa posição acarreta uma dificuldade dupla e que não pode ser eliminada. De um lado, isso implica que o sujeito compareça aí por sua conta e risco. Que ele escolha arcar, por assim dizer, com o ônus da falta de objeto último que lhe impõe a linguagem ou, em outras palavras, que advenha como causado por esse objeto inassimilável que o divide. Por outro lado, mas na mesma direção, a angústia confronta o sujeito à escolha forçada de ceder o objeto que tem a função de causa do desejo.
Porém, a cessão do objeto, como vimos, é um ato. Não pode ser antecipada nem tem forma a priori. Nenhuma injunção moral, ou prescritiva, basta para garantir que o sujeito se mova nessa direção. Trata-se, antes, de abrir mão da satisfação paradoxal promovida pela dimensão de falta do objeto. Trata-se de ceder (incorporando no mesmo ato) o objeto como perda. E surgir daí, pontualmente, tão somente como efeito sujeito do significante.
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Endereços para correspondência:
Jorge Luís Gonçalves dos Santos
santos-jorgeluis@hotmail.com
Fernanda Costa-Moura
fcostamoura@infolink.com.br
Submetido em: 01/05/2012
Revisto em: 31/07/2012
Aceito em: 13/08/2012
i Texto referido à pesquisa apoiada pela CAPES (Bolsa de Doutorado) e pelo CNPq (Bolsa PQ).
1 Muitos autores discorreram sobre este tema. Remetemos aqui o leitor a alguns autores próximos e contemporâneos que marcam mais significativamente este escrito. Entre os quais recomendamos conferir Besset (2001 e 2002), Caldas (2006), Costa-Moura (2005 e 2007), Oliveira (2006) e Souza (2005).