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Arquivos Brasileiros de Psicologia
On-line version ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.65 no.3 Rio de Janeiro 2013
Heterodoxos, mas atuais: um diálogo entre Winnicott e Groddeck*
Unorthodox, but current: a dialogue between Winnicott and Groddeck
Heterodoxos pero actuales: un diálogo entre Winnicott y Groddeck
Heterodoxos, mas atuais: um diálogo entre Winnicott e Groddeck
Lucas Nápoli dos Santos
Doutorando. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Rio de Janeiro. Brasil
RESUMO
O objetivo deste artigo é estabelecer alguns pontos de encontro entre o pensamento de Georg Groddeck e de Donald Woods Winnicott. Para tanto, foi realizado um estudo teórico-conceitual com base em textos de ambos os autores e de alguns comentadores. A hipótese que fundamenta esta investigação é a de que a interlocução entre tais autores constitui um empreendimento não apenas possível como também fértil. Constata-se que ambos (1) admitem corpo e psiquismo como dimensões de uma mesma realidade e não como duas essências distintas; (2) concebem o adoecimento como via de regresso a estágios anteriores do desenvolvimento e (3) veem a natureza como força viva e direcionada para a saúde. Tais pontos de confluência entre os autores vão ao encontro das novas demandas por reformulação dos modos de assistência e cuidado à saúde que vêm emergindo a partir da percepção de esgotamento do modelo médico tradicional organicista (biomedicina).
Palavras-chave: Winnicott; Groddeck; Saúde; Doença; Corpo.
ABSTRACT
The aim of this paper is to establish some points of contact between the thought of Georg Groddeck and Donald Woods Winnicott. To this end, it was conducted a theoretical and conceptual study based in the texts of both authors and commentators. The hypothesis underlying this research is that the dialogue between these authors is an undertaking not only possible but also fruitful. It appears that (1) both authors admit body and psyche as dimensions of the same reality and not as two different essences, (2) perceive the illness as a way to return to earlier stages of development and (3) see nature as a living force and directed to health. Such points of confluence between the authors meet the new demands for reform of the modes of assistance and health care that are emerging from the perception of exhaustion of the traditional medical model organicist (biomedicine).
Keywords: Winnicott; Groddeck; Health; Illness; Body.
RESUMEN
El propósito de este trabajo es establecer algunos puntos de contacto entre el pensamiento de Georg Groddeck y Donald Woods Winnicott. Con este fin, se realizó un estudio teórico y conceptual en los textos de ambos autores y comentaristas. La hipótesis que subyace a esta investigación es que el diálogo entre estos autores es un trabajo no sólo posible sino también fructífero. Parece que (1) los autores admiten el cuerpo y la psique como dimensiones de la misma realidad y no como dos esencias distintas, (2) perciben la enfermedad como una forma de regreso a las primeras etapas de desarrollo y (3) ven la naturaleza como una fuerza viva y dirigida a la salud. Esos puntos de confluencia entre los autores encuentran las nuevas demandas para la reforma de los modos de asistencia y cuidado de salud que están surgiendo a partir de la percepción de agotamiento del modelo médico tradicional organicista (biomedicina).
Palabras clave: Winnicott; Groddeck; Salud; Enfermedad; Cuerpo.
Introdução
O objetivo deste trabalho é estabelecer alguns pontos de encontro entre o pensamento de Georg Groddeck e de Donald Woods Winnicott . Nossa hipótese é a de que tal proposta não só é possível como também proveitosa antes de tudo porque se trata da confrontação de ideias de autores que representam posições bastante heterodoxas no campo psicanalítico. Não obstante, se a acolhida das teses de Winnicott por uma parcela considerável da comunidade analítica é indiscutível, a obra de Groddeck, contudo, permanece pouco conhecida e/ou cercada de preconceitos. Cremos, portanto, inteiramente relevante o resgate dos enunciados groddeckianos através de um diálogo com as proposições de Winnicott, não só para uma contribuição à área da psicanálise como também para demonstrar o valor das teses de ambos os autores para a discussão atual concernente ao cuidado em saúde.
Cremos que a marca da heterodoxia de Winnicott se mostra explícita ao verificarmos como o autor desloca radicalmente o eixo que até então sustentava a teoria e a prática da psicanálise. Do nosso ponto de vista, tanto na obra de Freud e de seus discípulos imediatos quanto nos psicanalistas da segunda geração como Melanie Klein é possível extrair a suposição de que o desafio primordial de todo ser humano consiste em lidar com as pulsões em sua tonalidade excessiva. Já em Winnicott, cremos que se tal desafio consiste no alcance e na manutenção de um sentimento de continuidade da existência, sendo essa a base necessária para uma experiência saudável com as intensidades pulsionais (Winnicott, 1945/2000a).
Loparic (1996) expressa essa mudança de perspectiva teórica afirmando que Winnicott inaugurou um novo paradigma na psicanálise, o qual teria emergido justamente por uma insuficiência do paradigma anterior gestado na obra freudiana, o paradigma edípico. Valorizando fenômenos que ocorrem em estágios do desenvolvimento anteriores ao complexo de Édipo, em especial o processo de conquista do sentimento de existir como pessoa inteira, e de reconhecer o outro como tal, condição imprescindível para a vivência do conflito edípico, Winnicott relativizou o papel do complexo de Édipo no desenvolvimento, apontando as vicissitudes do sentimento de continuidade do ser como as marcas fundamentais da experiência individual.
Outro aspecto - vinculado ao precedente - que caracteriza Winnicott como um pensador heterodoxo e inovador dentro da teoria psicanalítica é a ênfase que dá à importância do ambiente no desenvolvimento do indivíduo, aspecto sistematicamente negligenciado pela maior parte dos analistas que o antecederam (Winnicott, 1990). Trata-se, portanto, a nosso ver, de contribuições teóricas e práticas que não se estabelecem numa relação de simples continuidade com o conhecimento psicanalítico anterior, mas funcionam como verdadeiros pontos de corte que produzem uma lógica diversa da precedente. Em outras palavras, cremos que Winnicott não pode ser caracterizado como um analista que tão somente acrescentou novos conhecimentos ao corpo do saber psicanalítico, mas sim como um teórico que revolucionou a maneira de pensar o indivíduo em psicanálise e a forma como a intervenção psicanalítica deve se dar.
Groddeck, por seu turno, talvez pudesse receber a alcunha de "o mais heterodoxo dos analistas", rivalizando, quem sabe, com Wilhelm Reich. Se esse epíteto lhe cabe, isso se deve muito mais à acolhida pouco simpática que seus escritos receberam ao longo da história da psicanálise, provavelmente mais em função da aplicação da psicanálise às doenças orgânicas, do que pelo conteúdo mesmo de suas teses. Essas, se vistas de certo ângulo, poderiam fazê-lo merecer um atributo exatamente oposto, isto é, o de mais ortodoxo dos analistas na medida em que ele ousou levar as intuições freudianas às últimas conseqüências e fazê-las trabalhar em campos nunca dantes desbravados. Segundo vários autores (Berman, 2007; Keller, 2003; Schmoll, 1981), o próprio Groddeck se autodenominava um analista selvagem em função do fato de que não media esforços para extrair de uma doença, de um poema ou de um mero bocejo uma significação inconsciente (Groddeck, 2008). Cremos, no entanto, que sua concepção da doença orgânica como possuindo uma estrutura metafórica análoga ao sintoma e, principalmente, a criação do conceito de Isso, que ao mesmo tempo em que abarca, ultrapassa a noção de inconsciente, fazem de Groddeck um autor altamente original e criativo e que, precisamente por esse motivo, representa uma posição dentro do campo psicanalítico de contraposição à ortodoxia.
Um comentário breve sobre o conceito de Isso (Es) poderá auxiliar o leitor a verificar com mais clareza de que modo os pensamentos de Groddeck e Winnicott, apesar de distintos, se afastam da ortodoxia freudiana. O termo Es que, em alemão, designa um pronome impessoal, foi traduzido pela Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Freud (Freud, 1923/1996f) pelo vocábulo latino Id e está presente também dessa forma nos textos winnicottianos traduzidos para o português.
Quando Groddeck utiliza a noção de Isso, seu interesse é o de circunscrever simultaneamente uma força que estaria na origem de toda experiência individual bem como uma concepção ampla de indivíduo capaz de contemplar a interface entre a psique e o corpo individuais e a natureza entendida como o todo (Groddeck, 1926/1994e). É uma crítica contundente da noção de sujeito que está implícita no conceito groddeckiano de Isso e é nesse sentido que deve ser lido o parágrafo que inaugura o texto Sobre o Isso, escrito pelo autor em 1925: "Esta é uma reflexão sobre o Isso. Em vez da frase: eu vivo, ela defende a seguinte ideia: eu sou vivido por Isso" (Groddeck, 1925/1992c, p. 30). Destarte, o Isso pode ser compreendido na obra groddeckiana como uma modesta ferramenta conceitual útil para pensar o papel determinante que as relações com o todo desempenham nos processos psíquicos e somáticos (Groddeck, 1926/1994e).
Freud, por seu turno, ao introduzir o Isso em sua segunda tópica do aparelho psíquico, converte a ferramenta conceitual de Groddeck em uma instância psíquica primordial, onde se localizariam as pulsões e a partir da qual se formaria o eu (ego). O termo Isso pareceu servir a Freud como uma noção conveniente para a resolução dos impasses que o conceito de inconsciente lhe apresentava, sendo o principal deles a constatação de que partes do eu também eram inconscientes (Freud, 1923/1996f). Cremos, portanto, que Freud estava preocupado em forjar um modelo mais refinado de aparelho psíquico e empregou o Isso numa acepção eminentemente metapsicológica, ou seja, para caracterizar algo "que está para além do que é possível acessar pela observação clínica" (Fulgêncio, 2010, p. 103).
Já Winnicott, apesar de não ter retomado a originalidade do conceito groddeckiano de Isso, também não compartilhou do viés metapsicológico com que o termo foi utilizado na segunda tópica de Freud. Fazendo jus à tendência observável ao longo de toda a sua obra de abandono da metapsicologia (Fulgêncio, 2006), o psicanalista inglês utilizará o conceito de Isso para se referir às experiências que poderiam estar na origem das formulações metapsicológicas de Freud. Trata-se do que Winnicott denominava de "vida instintiva", isto é, a experiência do indivíduo com as pressões e impulsos instintuais que lhe acometem (Winnicott, 1983b, p. 55). Se Winnicott se refere a uma experiência, isso significa que não é possível conceber o Isso, nesse contexto, como uma instância psíquica anterior ao eu, na medida em que só o eu pode ter experiências. Por esse motivo, Winnicott dirá que "Não há id antes do ego" (Winnicott, 1983b, p. 55). Assim, do ponto de vista winnicottiano, a utilização do termo Isso só adquire efetivamente valor prático quando se refere a uma etapa do desenvolvimento em que o eu já se encontra constituído e pode, portanto, experimentar as pressões do instinto.
Observa-se que tanto em Winnicott quanto em Groddeck, o conceito de Isso não é concebido num sentido metapsicológico. Aliás, é possível notar também na obra groddeckiana, assim como na winnicottiana, um repúdio à metapsicologia. Parece estar presente nos pensamentos dos dois autores uma preocupação muito maior com a terapêutica do que com o refinamento teórico-conceitual.
Impomo-nos, portanto, como tarefa, fazer dialogarem esses dois analistas que embora apresentem distinções óbvias e explícitas no tocante aos problemas com os quais trabalhavam, possuem essa característica comum de serem dois teóricos que arriscaram pensar diferentemente a teoria e a prática da psicanálise. Essa semelhança, embora contingente, é essencial para a conversa que esperamos conseguir estabelecer entre os dois, na medida em que ela possibilita que tal empreendimento se faça num espaço aberto e criativo, porquanto sejam dois autores cujas obras testemunham o desejo de abrir novas janelas no conhecimento psicanalítico.
Antes, porém, de iniciarmos esse diálogo, consideramos relevante apresentar o interlocutor menos conhecido do debate, Groddeck, que, por um deliberado esquecimento da medicina e da própria psicanálise, se tornou um personagem obscuro para a maior parte dos leitores.
Entre Schweninger, Nietzsche e Freud
Groddeck nasceu em 1866 na cidade alemã de Bad Kösen. Filho de um médico e neto do grande historiador da literatura alemã August Koberstein, coincidentemente Groddeck viria a realizar uma carreira não só de médico, mas também de escritor. Sua paixão pelo maior nome da literatura alemã, Goethe, se refletiria não apenas em seus escritos como também em sua prática médica (Ávila, 2002).
Na faculdade de medicina, Groddeck é fortemente influenciado por Ernst Schweninger (1850-1924), o médico que conseguiu tratar o intratável chanceler alemão Otto Von Bismarck. Diferentemente de seus contemporâneos, Schweninger praticava a medicina a partir de uma tradição eminentemente hipocrática. Para ele, a natureza era a fonte da cura e não o médico. A função do profissional seria a de auxiliar o próprio organismo a atualizar sua capacidade de cura. Adotava, assim, o princípio "Natura sanat, medicus curat" (A natureza cura, o médico trata), ditado que posteriormente viria a ser o título do primeiro livro médico de Groddeck. Outra característica de Schweninger era o uso de sua autoridade no tratamento, o que fez com que Groddeck precocemente se apercebesse da importância da influência da personalidade do médico junto ao paciente (Ávila, 2003).
No início da primeira década do século XX, Groddeck se encontra com a psicanálise. A princípio, não aprova o novo método elaborado por Freud e tece críticas a ele em seu NASAMECU (NAtura SAnat MEdicus CUrat) (Groddeck, 1994a). Posteriormente, Groddeck confessará a Freud na primeira carta enviada ao médico vienense que tais críticas foram tão somente uma defesa psíquica para não reconhecer o fato de que aquilo que ele havia descoberto no tratamento de seus pacientes, outra pessoa já o havia feito anteriormente. De fato, antes de conhecer a psicanálise, Groddeck já havia se dado conta da influência de símbolos e da linguagem na emergência das doenças:
Em 1909, portanto três anos antes da publicação desse livro [NASAMECU], comecei a tratar uma senhora cuja observação me levou ao mesmo caminho que, mais tarde, passei a conhecer como sendo o da psicanálise. Posso garantir, com certeza, que aquela doente não conhecia nem mesmo a palavra psicanálise, e de mim acredito poder afirmar a mesma coisa. Por ela comecei a conhecer as peculiaridades da sexualidade infantil e do simbolismo, e logo me defrontei, após algumas semanas, com os conceitos de transferência e de resistência [...] A alegria da descoberta lançou-me então num arrebatamento que perdurou por vários anos. A comparação do material sobre os meus outros doentes com os acontecimentos da vida cotidiana foi uma época fecunda. (Groddeck, 1994a, pp. 3-4)
Essa última frase do trecho que transcrevemos expressa com clareza o eixo do pensamento de Groddeck em relação às doenças: a relação entre a enfermidade e a vida cotidiana do doente, ou seja, o reconhecimento de que a doença não é um fato isolado e isolável como pensavam seus contemporâneos, mas ela se insere dentro de uma história subjetiva (Groddeck, 1917/1992a, 1994a, 1926/1994f, 1923/2008). Groddeck, que já pensava assim antes de conhecer a psicanálise, continuará a fazê-lo, com maior rigor teórico, a partir de sua familiarização com os conceitos psicanalíticos. Essa entrada do médico alemão na cena psicanalítica se dará efetivamente em 1917 com a publicação do texto que pode ser considerado como a "ata de fundação da medicina psicossomática" (Ávila, 2002, p. 103): Condicionamento psíquico e tratamento de moléstias orgânicas pela psicanálise (Groddeck, 1917/1992a). Nesse opúsculo, Groddeck estabelece as bases de seu pensamento que, mais tarde, se desdobrariam em seus outros escritos.
Toda a teorização groddeckiana e a introdução de novos conceitos na teoria psicanalítica serão derivadas de uma intuição fundamental extraída de sua prática como clínico geral segundo a qual se poderia inferir um sentido, uma finalidade, uma estrutura simbólica não apenas das afecções à época chamadas de nervosas, a saber: as neuroses e as psicoses, mas também das doenças orgânicas, isto é, de enfermidades que efetivamente se caracterizam por lesões corporais (Groddeck, 1917/1992a).
Para sustentar essa hipótese, Groddeck prefere fazer uso do conceito de Isso do que empregar o termo Inconsciente, pois o primeiro seria uma versão mais ampla do segundo, na medida em que englobaria também a dimensão corporal (Groddeck, 1994a). Groddeck só utilizava o termo Inconsciente como equivalente ao Isso quando se dirigia exclusivamente à comunidade psicanalítica em conferências e artigos publicados em revistas de psicanálise (Cf., por exemplo, Groddeck, 1917/1992a, 1922/1992b). Na carta de resposta à primeira epístola de Groddeck, Freud se defende dizendo que o conceito de Inconsciente já seria suficientemente amplo para incluir processos somáticos. Contudo, alguns parágrafos à frente, o médico vienense afirma que "o ics constitui certamente o intermediário correto entre o corporal e o espiritual [...]" (Groddeck, 1994a, p. 11), o que nos parece entrar em contradição com o enunciado anterior.
De todo modo, Groddeck opta por fazer uso da ideia de um eu subordinado a um "Isso que pensa", formulação que o autor extrai de um dos parágrafos do texto Além do Bem e do Mal, de Nietzsche (1886/2008, p. 38) para elaborar a seu modo a divisão subjetiva. Para Groddeck, não se trata de um conflito entre o que vem do corpo, isto é, a pulsão e o ego ou o superego, mas sim de um Isso que simboliza e veicula mensagens e um ego que amiúde não quer recebê-las (Groddeck, 1926/1994e). Apesar de essa nova perspectiva fazer jus à intuição inicial de Freud que concebia a subjetividade como uma resultante do embate de forças ente a verdade inconsciente e o narcisismo egóico (Freud, 1910/1996b), ela traz uma visão revolucionária da relação entre corpo e psiquismo. Se em Freud o corpo é tomado como o lugar de que partem os afluxos pulsionais que demandarão um trabalho da psique (Freud, 1915/1996c), em Groddeck o corpo se torna também um espaço de expressão subjetiva.
Nesse sentido, do nosso ponto de vista, ao elaborar a noção de Isso, Groddeck não está simplesmente adotando um nome diferente para a realidade inconsciente. Seu objetivo é produzir um conceito que seja capaz de abarcar o soma como lócus de expressão análogo à psique. Se, portanto, o inconsciente ou o Isso pode lançar mão tanto da via corpórea quanto da psíquica para se expressar, logo, quando uma pessoa adoece é todo o seu ser que padece e não apenas seu organismo físico, como postula a biomedicina. No texto Sobre o absurdo da psicogênese, Groddeck afirma:
Só o organismo vivo pode adoecer, o que está morto pode alterar-se, mas não ficar doente. E como a vida sempre foi uma misteriosa coexistência do que se convencionou chamar de corpo e alma, logo se deduz que não há "organismo" e "psiquismo", nem doenças físicas ou psíquicas e sim que são sempre os dois a enfermar ao mesmo tempo, em quaisquer circunstâncias (Groddeck, 1926/1992d, p. 125).
É justamente nesse ponto que nosso diálogo pode se iniciar. Afinal, cremos que se há outro teórico na Psicanálise que enfatizou pioneiramente tanto quanto Groddeck a indissociabilidade entre corpo e psiquismo foi precisamente Winnicott. Se a experiência clínica de Groddeck no tratamento de pacientes com moléstias "orgânicas" o levou a crer nessa "misteriosa coexistência" (Groddeck, 1926/1992d, p. 125), como ele diz, sem se preocupar em desvendar o mistério de como se estabelece essa coexistência, o trabalho de Winnicott com bebês lhe permitirá verificar o processo de encontro entre corpo e psiquismo que, em alguns casos pode não se dar ou ocorrer de forma precária.
Personalização e simbolização
Primeiramente, precisamos reiterar a distinção que Winnicott faz entre psique e mente, dois termos que a tradição ocidental toma como sinônimos. A mente para Winnicott é um conceito que visa circunscrever o uso da racionalidade e das faculdades intelectivas como recurso para o entendimento da realidade. Trata-se de uma função, metaforicamente uma ferramenta, que emerge a partir das graduais e necessárias falhas do ambiente, as quais levam o indivíduo ao emprego da racionalidade para entender o que se passa. Logo, se as falhas não forem graduais, mas abruptas e ocorrerem sem que o bebê esteja preparado para lidar com elas, essa função intelectiva pode se tornar exacerbada e o bebê acabar dissociando-a de sua ligação imediata com o ambiente e o corpo que se estabelece justamente através da psique. Essa, para Winnicott, consiste numa elaboração imaginativa de partes e funções corporais. Tal capacidade de elaborar imaginativamente o corpo depende evidentemente da atividade cerebral, mas é a realidade corporal em si mesma a matéria-prima a partir da qual a psique se produz (Winnicott, 2000b). Logo, essa indissociabilidade entre corpo e psiquismo que Groddeck encontrará expressa sintomaticamente nas doenças orgânicas, Winnicott a percebe como sendo resultante do fato de que ambas as dimensões estão sempre presentes, pois se constituem numa relação de concomitância.
No entanto, um dos grandes achados do psicanalista inglês foi ter descoberto principalmente através da experiência com pacientes psicóticos que essa integração entre a psique e o soma não é dada. Ou seja, podem acontecer situações nas quais a elaboração imaginativa das partes e funções corporais não se encontra com o corpo, isto é, que elas não se superponham ou, em outras palavras, que a psique não se assente no corpo:
Não existe uma identidade inerente entre corpo e psique. Da mesma forma como nós, os observadores, o vemos, o corpo é essencial para a psique, que depende do funcionamento cerebral, e que surge como uma organização da elaboração imaginativa do funcionamento corporal. Do ponto de vista do indivíduo em desenvolvimento, no entanto, o self e o corpo não são inerentemente superpostos, embora para haver saúde seja necessário que esta superposição se torne um fato, para que o indivíduo venha a poder identificar-se com aquilo que, estritamente falando, não é o self (Winnicott, 1990, p. 144).
Essa superposição pode não acontecer quando o indivíduo não consegue delimitar os limites do seu corpo, isto é, um dentro e um fora do corpo, delimitação que acontece principalmente através da pele (Winnicott, 1983a). Esse processo que Winnicott chama de localização da psique no corpo, para se dar de maneira saudável, depende da existência de um ambiente suficientemente bom, o qual principalmente através do exercício da função que Winnicott chama de handling, isto é, da manipulação do corpo do bebê, permite à criança ir gradualmente se apropriando de seus limites corporais (Winnicott, 1945/2000a). Outros fatores que auxiliam nesse processo advêm do próprio bebê, como as experiências instintivas, as sensações da pele e o erotismo muscular que ajudam a criança a perceber a realidade do próprio corpo (Winnicott, 1983c).
Se adotarmos, portanto, um ponto de vista eclético que organize as ideias de Winnicott e Groddeck num mesmo todo, poderíamos dizer que Winnicott lança luz sobre os processos que dão condições de emergência para os fenômenos com os quais Groddeck trabalhará, quais sejam, as doenças nas quais o discípulo de Schweninger observará uma significação. No entanto, se formos um pouco mais rigorosos, veremos que embora em muitos casos os pontos de vista groddeckiano e winnicottiano acabem apontando para as mesmas conclusões, os caminhos que atravessam para chegar a um lugar comum são essencialmente distintos. Isso fica mais claro ao tomarmos exemplos retirados da obra dos dois autores que evidenciam uma confluência de ideias. Um deles é a ideia de que as crianças inicialmente localizam a psique na barriga e não no cérebro.
Para Groddeck, essa ideia não advém como consequência de um funcionamento corporal que inicialmente é análogo ao trabalho psíquico. Não se trata para ele de uma noção elaborada pela via de uma racionalidade que compararia estados anímicos com sensações produzidas paralelamente pelo ventre e extrairia como conclusão lógica desse processo a ideia de que a sede da alma é a barriga (Groddeck, 1933/1992e). Para Groddeck, o eu, instância que supostamente faria racionalmente tal comparação, está submetido ao funcionamento do Isso (Groddeck, 1923/2008). Assim, a ideia do psiquismo como localizado na barriga é uma produção simbólica do Isso que o eu é irresistivelmente levado a aceitar (Groddeck, 1933/1992e).
É importante frisar que a noção de Isso em Groddeck é elaborada com vistas a propor uma concepção de indivíduo que ultrapasse a dimensão do eu. Groddeck não considera nem o próprio Isso como um conceito adequado, pois a própria ideia de indivíduo lhe parece problemática posto que só arbitrariamente seja possível delimitar onde termina o indivíduo e onde começa o mundo. Nesse sentido, o conceito de Isso tenta tornar a noção de indivíduo mais larga possível de modo a incluir uma série de processos que ocorrem à revelia do eu, mas conservando a ressalva de que se trata de uma hipótese de trabalho já que indivíduo e mundo são indissociáveis (Groddeck, 1926/1994e).
Logo, de acordo com nossa leitura, quando Groddeck afirma que a ideia da barriga como sede da alma nos é imposta pelo Isso, o que ele busca enfatizar é que o processo de gestação dessa ideia acontece na nossa interação imediata com o mundo e sem que tenhamos consciência. Em outras palavras, só temos consciência do produto (ideia da barriga como sede da alma), mas não do processo que levou à sua elaboração.
Para Groddeck, ainda que racionalmente tenhamos chegado ao conhecimento de que o psiquismo é um fenômeno do cérebro, nem por isso deixamos de existir sem levar em conta esse produto advindo de outros modos de conhecimento que é a ideia de que a psique se localiza na barriga. As doenças dessa região do corpo, como distúrbios estomacais, por exemplo, seriam, para Groddeck, a comprovação de que essa ideia continua efetiva em nós. Além disso, alguns povos primitivos, não influenciados por nossa ciência, continuam crendo firmemente que a sede da psique é o ventre, o que constituiria a prova de que a ideia de que o psiquismo se localiza no cérebro é uma construção secundária distinta do conhecimento derivado da experiência imediata compartilhada pela maioria dos indivíduos (Groddeck, 1933/1992e). No texto Da barriga e sua alma, o autor diz:
Quanto à criança, não se deve esquecer que ela tem uma série de ideias aparentemente conflitantes, sem se preocupar com as contradições. O conhecimento de que na barriga estão as entranhas é compatível com o do espaço vazio onde habita a alma, o que é comum às crianças e aos adultos com pensamento primitivo. Se nossa cultura não nos enceguecesse tanto, constataríamos que a criança encara a cavidade abaixo do pescoço como a sede da alma e que todas as suas vivências estão relacionadas a isso. Todas as pessoas carregam consigo alguns resíduos dessa ideia de alma, por mais conhecimento que tenham acumulado, e tais resíduos continuam agindo e exercendo seus efeitos de forma tão marcante que a ciência médica nem sequer consegue imaginar (Groddeck, 1933/1992e, p. 262).
É possível apreender, portanto, o modo como Groddeck concebe o simbolismo que se expressa no corpo e o simbolismo em geral. O autor não se preocupa em precisar a genealogia do simbolismo, isto é, sua origem e forma de produção, pois para ele se trata de um processo obscuro do qual só temos acesso aos efeitos. Ele é radical em dizer que os símbolos não são produzidos pela consciência, eles existem pura e simplesmente (Groddeck, 1925/1992c). A observação de seus efeitos na psicologia da criança se deve ao fato de que nela o ego (tomado como instância representativa da consciência) ainda não está tão fortalecido, de sorte que ela se encontra mais aberta à influência imediata do Isso o qual funciona o tempo todo a partir de um processo de associação de símbolos (Groddeck, 1933/1992e). Em Sobre o Isso, ele afirma categoricamente sua posição:
Os símbolos não são inventados, eles existem simplesmente, pertencem ao patrimônio inalienável do ser humano, e até pode-se dizer que todo ato de pensar e agir consciente é uma conseqüência inevitável da simbolização inconsciente, que o ser humano é vivido pelo símbolo (Groddeck, 1925/1992c, p. 31).
A partir de nossa leitura da teoria groddeckiana da simbolização, cremos que a tese de que os símbolos não são inventados não significa que Groddeck esteja postulando que eles aleatoriamente se nos impõem, sem conexões entre si. Se o autor admitisse isso, o trabalho de interpretação, ferramenta principal do analista, seria inviável na medida em que não haveria um encadeamento simbólico. Como Groddeck resolve esse paradoxo entre símbolos que não são racionalmente elaborados, ou seja, não são produto da intencionalidade do eu, mas ao mesmo tempo encadeiam-se segundo uma significação apreensível hermeneuticamente? A solução provém das lições que o autor aprendeu com seus próprios pacientes, em primeiro lugar, e, posteriormente, com Freud: o discernimento da significação dos símbolos pela apreensão da cadeia de associações da qual o símbolo em questão é um dos elos. A possibilidade quase inesgotável de concatenação de palavras e imagens - concatenação que se processa à revelia de nossa consciência - faz com que o processo associativo seja virtualmente infinito, o que Groddeck chamará a seu modo de "pressão à associação" ou "compulsão à simbolização" (Groddeck, 1922/1992b, p. 90).
A extração do significado de uma manifestação simbólica depende, portanto, das associações desse elemento com outros. O que a leitura de Freud ensinou a Groddeck é que, via de regra, tais associações produzem uma significação fálica, isto é, relacionada com questões da sexualidade (Groddeck, 2008). É por isso que as interpretações groddeckianas de fábulas, contos e poemas contará quase sempre com termos como falo, sexualidade anal, sexualidade oral, complexo de Édipo, castração, onanismo etc. Vide esse exemplo também retirado de Sobre o Isso:
Citei a alma fértil como símbolo da mulher, mas com isso não quis dizer que alguma alma poética iluminada, partindo de um sentimento obscuro, tenha criado a metáfora da analogia entre a mulher e a terra; como também não quero dizer que um cérebro esperto reuniu os dois conceitos num pensamento. Vejo nessa simbologia e em outras semelhantes a atuação do Isso do ser humano através dos tempos, impelindo-o irresistivelmente ao conhecimento da mulher e a rasgar o sulco desse solo vivo para semear em suas profundezas a semente humana, e levando ao próprio momento do homem tornar-se agricultor (Groddeck, 1925/1992c, p. 35).
Seria leviano de nossa parte pressupor, portanto, que para Groddeck, embora os símbolos não sejam elaborados pela razão humana, o que eles buscam expressar ou a mensagem que tentam nos passar tem a ver justamente com nossa realidade corporal manifesta nas zonas erógenas? Se sim, haveria aqui certa aproximação com a concepção winnicottiana da psique como elaboração imaginativa de partes e funções do corpo. Todavia, mais uma vez as diferenças se mostram patentes na medida em que se considera que essa elaboração imaginativa em Winnicott não tem necessariamente uma significação sexual, como se pode observar no modo como Winnicott entende a localização que o bebê faz da psique no interior da cavidade abdominal.
Isso não quer dizer, todavia, que para Winnicott a elaboração imaginativa não possa assumir uma conotação sexual. Na verdade, como esclarece Martins (2009), o que Winnicott faz é realocar os termos no seu encadeamento original. Com efeito, não é a sexualidade ou a pulsão sexual o que determina que certas zonas do corpo sejam erógenas e outras não. O próprio Freud (1905/1996a) já admitia que qualquer parte do corpo possui tal capacidade. Nesse sentido, a boca, o ânus e os órgãos genitais não se constituem como zonas erógenas em função de uma pré-determinação pulsional, mas devido à interação dessas partes do corpo com o ambiente, de modo que é nessa relação que elas adquirem uma significação sexual (Martins, 2009). De fato, esse desdobramento só pode acontecer pelo fato de todo o nosso corpo ser dotado do que Martins (2009) denomina de sensorialidade e que, em Winnicott, podemos ler como o potencial de ser elaborado imaginativamente.
Para Winnicott, essa elaboração imaginativa é resultante do fato de que há uma analogia entre um processo que ocorre na dimensão da psique e outro que ocorre na via do corpo. Do lado da psique, temos um bebê tendo experiências de gratificação e frustração que subjetivamente implicam na existência de objetos bons e maus em seu interior. Para lidar com esses objetos o bebê emprega estratégias essencialmente análogas à da digestão: ele incorpora e introjeta objetos, retém alguns, excreta outros, de modo que a experiência que ele tem de organização de seu caos psíquico é semelhante à da digestão. Como a psique se constitui a partir da experiência corporal, logo o trabalho de digestão é realizado tanto corporalmente quanto psiquicamente, fazendo com que as fezes (produto da digestão) possam ser sentidos pelo bebê como objetos maus. A localização da barriga no corpo, portanto, é resultante de uma superposição de experiências (Winnicott, 1990). Nas palavras do autor:
Gradualmente, do interior do mundo interno surge uma espécie de padrão, uma ordem a partir do caos. Esse trabalho não é mental nem intelectual, mas uma tarefa da psique. Está intimamente relacionado à tarefa da digestão, que também se realiza à margem do entendimento intelectual, o qual pode ocorrer ou não (Winnicott, 1990, p. 97).
A localização da psique na barriga, portanto, é um exemplo que permite vislumbrar ao mesmo tempo as diferenças e as semelhanças entre os pensamentos de Winnicott e Groddeck. Para ambos, essa localização pode redundar em sintomas corporais cujo sentido só pode se apreendido caso se tenha essa compreensão: de que o ventre pode ser experimentado como o lugar dos conteúdos psíquicos, seja porque o processo de simbolização nos força a pensar assim (Groddeck) seja pela elaboração imaginativa que fazemos da função digestiva quando bebês (Winnicott).
A doença como via regressiva
A percepção de que a psique se constitui a partir de uma elaboração da experiência corporal fez com que Winnicott tomasse conhecimento muito rapidamente da influência que os fatores ditos emocionais desempenham no desencadeamento de afecções somáticas. No livro Natureza Humana, uma espécie de síntese de seus achados clínicos e suas elaborações teóricas, Winnicott (1990) reiteradamente apresenta essa compreensão, a qual está intimamente ligada a sua teoria do amadurecimento emocional: "As tensões e pressões do crescimento emocional normal, bem como certos estados anormais da psique, têm um efeito adverso sobre o corpo" (Winnicott, 1990, p. 43). Nota-se, portanto, que para Winnicott os elementos de cunho emocional que desempenham um papel na eclosão de doenças físicas se referem a problemas vivenciados pelo indivíduo no processo de amadurecimento, os quais estão relacionados às falhas de adaptação do ambiente. É precisamente por conta disso que o cuidado prestado pelos profissionais de saúde pode se tornar um importante fator para o alcance da cura. De algum modo, o acolhimento prestado pelo médico ou pelos enfermeiros "corrige" a falha ambiental que favoreceu a ocorrência da enfermidade, tornando possível ao indivíduo prescindir da doença como modo de estabelecer o assentamento da psique no soma:
A pneumonia, especialmente na época anterior aos antibióticos, era muito claramente um teste para a vontade de viver, e a cura dependia então, muito intensamente, dos cuidados com o doente. Nos velhos tempos, as enfermeiras extraíam uma enorme satisfação dos seus êxitos com pacientes de pneumonia, porque sabiam que frequentemente salvavam vidas com sua devoção pessoal. Atualmente os estudantes de enfermagem perdem muito pelo fato de a cura da pneumonia ser produzida por fatores relativamente mecânicos (Winnicott, 1990, p. 41).
Groddeck (1926/1994f , p. 209) também enxerga o poder que o simples fato de "se sentir cuidado" opera na evolução do tratamento das doenças, mas o explica diferentemente. Mantendo-se fiel aos ensinamentos da obra de Freud, o autor não trabalhará com a noção de um cuidado que o bebê precisa experimentar de forma suficientemente boa para atualizar suas tendências inatas ao desenvolvimento, aspecto primordial da noção winnicottiana de mãe ambiente (Winnicott, 1983d).
Para Groddeck, como também para Freud, a significação da mãe na vida subjetiva consiste no fato de essa ser o primeiro objeto libidinal do indivíduo, isto é, a fonte primordial de gozo, interditada pela função paterna (Groddeck, 1923/2008). É nesse sentido que Groddeck vai dizer que "a doença é sempre e em todas as circunstâncias aspiração pela mãe [...]" (Groddeck, 1926/1994f, p. 208). Em outras palavras, todo adoecimento sempre traz embutido em suas raízes como finalidade um retorno à condição infantil posto que a primeira consequência da grande maioria das enfermidades é a solicitação de ajuda. Colocamo-nos, portanto, diante do profissional de saúde, numa condição análoga à do bebê, o que denuncia o desejo implícito em toda doença de retorno ao gozo do colo materno (Groddeck, 1926/1994f). Por conseguinte, a eficácia do simples cuidado para o avanço do tratamento se deve ao fato de que ele realiza metafórica e indiretamente o desejo edípico. Dirigindo-se a sua interlocutora fictícia em O Livro dIsso, Groddeck diz:
Você pode mesmo - e na maioria das vezes sem risco de se enganar - ir ainda mais longe em suas deduções e pensar que, quando alguém fica doente, é provável que numa época bem próxima do começo da doença um acontecimento lembrou ao doente, com uma particular agudez, a imago da mãe, a imago de suas próprias primeiras semanas como bebê. Não receio acrescentar, também aqui, a palavra 'sempre'. É sempre assim. E não há melhor prova de paixão pela mãe, de dependência do complexo de Édipo, do que um constante estado doentio (Groddeck, 1923/2008, p. 104, grifos do autor).
Portanto, ainda que os dois autores trilhem caminhos distintos para compreenderem de que modo o cuidado prestado pelos profissionais de saúde desempenha um papel na cura do doente, pode-se argumentar que um ponto em que esses dois caminhos se cruzam é o que se refere ao aspecto regressivo do adoecimento.
Em Winnicott, o estar sendo cuidado pode permitir ao indivíduo regredir à relação inicial de dependência absoluta mãe-bebê e retomar o processo de personalização, isto é, de união entre psique e soma que outrora pode ter se dado de maneira precária (Winnicott, 2000c). Aliás, para Winnicott, é precisamente essa instabilidade no assentamento da psique no corpo a condição de emergência das doenças psicossomáticas (Winnicott, 1990).
Quando o ambiente não se adapta de modo suficientemente bom ao processo de personalização, podem advir dois tipos de conseqüências: se a intensidade e frequência das falhas do ambiente forem tão extremas a ponto de quebrar o sentimento de continuidade do ser, o bebê se defende dessa invasão cindindo psique e soma e refugiando-se na função mental, passando a experimentar uma existência puramente intelectual, sem contato com o psicossoma cindido. Em um segundo caso, no qual o ambiente falha, mas não a ponto de constituir um trauma na experiência de ser do bebê, o indivíduo consegue a duras penas realizar a personalização, mas a integração entre psique e soma se estrutura de maneira frágil e precária e com uma tendência a se perder. Assim, quando ocorrem situações de grande impacto afetivo, de modo que tal tendência à cisão é estimulada, o indivíduo lança mão de uma doença psicossomática como forma de assegurar, ainda que pela via do padecimento, uma débil integração entre psique e soma (Winnicott, 1990). Essa tese é ilustrada num fragmento clínico de uma paciente adulta analisada por Winnicott que possuía como uma de suas características a propensão a doenças psicossomáticas:
De fato, o seu ego era incapaz de acomodar qualquer emoção forte. Ódio, excitação, medo - cada qual se separava como um corpo estranho, e se tornava com excessiva facilidade localizado em um órgão do corpo que entrava em espasmo e tendia a se destruir pela perversão de seu funcionamento fisiológico (Winnicott, 1983f, p. 228).
Nesse sentido, pode-se dizer que, para Winnicott, a doença psicossomática possui um aspecto positivo na medida em que impede a manifestação da cisão, ponto de partida da psicose: "A doença psicossomática é muitas vezes pouco mais que o reforço deste elo psicossomático em face da ameaça de rompimento do mesmo; esse rompimento resulta em vários casos clínicos que recebem o nome de 'despersonalização'" (Winnicott, 1983e, pp. 201-202).
Caso o tratamento de pacientes psicossomáticos não leve em conta essa função da doença, os sintomas manifestos da enfermidade serão atacados, mas a verdadeira patologia que é a dissociação psique-soma será deixada intacta, de modo que sempre que surgirem novas situações de abalo emocional intenso, o indivíduo ver-se-á obrigado a novamente produzir uma afecção psicossomática com o objetivo de assegurar sua frágil personalização.
Em Winnicott, portanto, assim como em Groddeck, a doença motiva um retorno à mãe, mas, no caso de Winnicott, não à mãe entendida como objeto sexual, mas sim como ambiente capaz de permitir a retomada da tarefa de personalização. Já em Groddeck, o aspecto regressivo do adoecimento se relaciona mais com o modo como Freud entendia a regressão, qual seja, como um retorno a objetos libidinais do passado (nesse caso, a mãe) em função de uma frustração presente (Freud, 1917/1996d). Do ponto de vista groddeckiano, o sujeito recorre ao padecimento somático quando essa "aspiração pela mãe" - que perdura por toda a vida, mas pode ser canalizada de outras formas - se torna imperativa e não encontra escoadouro por outras vias (Groddeck, 1923/2008, p. 104).
A propósito de uma sábia natureza
Um aspecto da obra de Groddeck que resistiu à influência das ideias de Freud, e que deriva da influência de seu outro mestre, Ernst Schweninger, é sua concepção de natureza. Enquanto Freud elabora a partir de 1920 a noção de pulsão de morte e a ideia de que a tendência geral de todo ser vivo é o retorno ao estado inanimado (Freud, 1920/1996e), Groddeck, na esteira de Schweninger, permanece aferrado a uma posição fundamentalmente vitalista: há uma finalidade de conservação e expansão da vida inerente à natureza e é justamente por isso que ela é dotada de um potencial terapêutico (Groddeck, 1925/1994b, 1923/2008). Schweninger, como vimos anteriormente, adotava como guia de sua prática clínica o ditado "Natura sanat, medicus curat". Essa ideia de que o médico não é o agente da cura, mas apenas um importante facilitador, será mantida por Groddeck até o fim da vida. Em um texto dedicado à memória de Schweninger, chamado A natureza cura, Groddeck (1925/1994b) afirma:
Dentro do organismo atuam os processos de cura. A cura não pode vir de fora, o organismo cura autocraticamente de acordo com as suas próprias leis, características dele, as quais, na verdade, são determinadas, até certo ponto, pelas possibilidades do ser humano em geral. [...] Ele [Schweninger] entendera que um ferimento não sara porque foi pensado1, mas porque o organismo, ou seja, a natureza decidiu, por quaisquer razões, fazer o ferimento sarar (pp. 140-141).
Essa última citação nos serve de oportunidade para desfazer um mal-entendido que advém naturalmente após uma leitura superficial dos textos groddeckianos. No trecho citado, como em inúmeras outras passagens, Groddeck parece conferir à natureza um estatuto de sujeito, quando diz, por exemplo, que "a natureza decidiu". Trata-se, no entanto, de uma força de expressão própria do estilo do autor, o que pode ser averiguado por qualquer um que avalie o pensamento groddeckiano em seu conjunto. Groddeck é um crítico tão veemente da noção de sujeito que, em diversos textos, não teme em asseverar claramente que, do seu ponto de vista, o eu é uma ilusão irresistível criada pela própria dinâmica de funcionamento da natureza (Groddeck, 1925/1992c, 1926/1994e, 1926/1994h, 1923/2008). Nesse sentido, cremos que quando o autor parece conferir uma subjetividade à natureza, seu interesse é precisamente o oposto: Groddeck quer denunciar a submissão daquilo que chamamos de nossa subjetividade ao que nos constitui, isto é, à natureza e, para deixar isso claro, ele se vê obrigado a antropomorfizar a natureza, mas apenas com o objetivo de demonstrar sua potência sobre nós. No trecho citado, portanto, a intenção de Groddeck é expor a limitação do cuidado em saúde, enfatizando que a força que move o ser em direção à saúde não lhe vem do exterior, mas é imanente ao próprio ser. Seu estilo, porém, pode nos levar precipitadamente a pensar que, para o autor, a natureza é um sujeito para-além de nós. Não caiamos neste engodo.
Embora herde de seu mestre a crença de que a cura advém da natureza, do próprio organismo e não do médico, Groddeck ultrapassa Schweninger ao afirmar que também a doença é uma criação do organismo e não algo que se apossa dele e cuja origem é externa (Groddeck, 1917/1992a, 1925/1994c, 1926/1994f, 1923/2008). Essa postulação, no entanto, leva Groddeck a um paradoxo: se a Natureza (que na teoria groddeckiana está subsumida no conceito de Isso) busca sempre a saúde, sendo ela própria o agente da cura, como a ela poderia também ser atribuída a origem das doenças?
Groddeck soluciona esse quebra-cabeça teórico eliminando as fronteiras rígidas que separam os fenômenos da saúde e da doença (Groddeck, 1925/1994d). Para ele, a doença pode ser um meio, um instrumento, uma estratégia, encontrada pelo organismo (Natureza, Isso) para levar o sujeito a um estado de saúde mais pleno que se caracterizaria não apenas por uma sensação de bem-estar físico, mas também pelo reconhecimento de conflitos, sentimentos e representações inconscientes (Groddeck, 1917/1992a, 1925/1994c, 1926/1994f, 1923/2008). No entanto, o Isso só utiliza a doença como estratégia de expressão quando não encontra outras vias "mais saudáveis" como a elaboração pela via do pensamento (Groddeck, 1923/2008, p. 95). Há no Isso, por conseguinte, tanto um desejo de saúde (mais imperativo) quanto um desejo de doença, que ele utiliza quando não encontra outros caminhos. É a partir dessa dialética entre um desejo de saúde e um desejo de doença que Groddeck vai pensar o conceito de resistência de Freud: essa seria justamente o investimento do Isso na doença como modo de expressão (Groddeck, 1925/1994c). A tarefa do profissional de saúde é de alguma forma "convencer" o Isso a abdicar da doença, oferecendo a ele formas mais sadias de manifestação (Groddeck, 1926/1994g, 1923/2008, p. 218). No artigo Resistência, Groddeck sintetiza essas ideias da seguinte forma:
[...] no isso doente, sempre existe, até a chegada da morte, um desejo de saúde, que o desejo de doença enfrenta como inimigo, produz resistência. Como o isso quer exprimir por meio da doença coisas que ele não pode exprimir por vias sadias, mas, por outro lado, há no isso o impulso a recorrer a possibilidades sadias de expressão, sobrevém a cura tão logo o isso se convence de que não precisa mais do estado de exceção (Groddeck, 1925/1994c, p. 144).
Nota-se, portanto, que a doença não é produzida pela ação de uma pulsão de morte, mas por um impulso cuja finalidade última é a saúde e que, por força das circunstâncias, teve que se utilizar do adoecimento para se atualizar.
A nosso ver, é justamente no tocante ao tema da natureza que Groddeck e Winnicott mais se aproximam, pois uma das grandes revoluções da perspectiva winnicottiana na psicanálise, de acordo com nosso ponto de vista, foi ter se contraposto a uma espécie de culturalismo implícito nas teorizações freudo-kleinianas que tomavam apenas as pulsões como tendências naturalmente dadas, sendo todo o resto da vida subjetiva concebido como advindo da incidência da cultura. Em Winnicott, como em Groddeck, temos uma natureza dotada de uma tendência geral à saúde que, em Winnicott, equivale ao amadurecimento (Winnicott, 1990). Na perspectiva winnicottiana, essa tendência geral é manifesta através de várias tendências parciais que impelem o sujeito à realização das tarefas de integração, personalização, realização, conquista do sentimento de preocupação (concern), etc. Para se constituírem em ato, essas tendências necessitarão da existência de um ambiente suficientemente bom que as acolha e as permita se desenvolverem (Winnicott, 1990, 1945/2000a).
Quando o ambiente não atua de modo a permitir a atualização das tendências inatas, o bebê é obrigado a adotar estratégias defensivas para fazer frente às falhas ambientais (Winnicott, 1945/2000a, 1990). Por exemplo, uma das tarefas mais básicas da existência é a conquista da integração, isto é, do sentimento de sentir-se inteiro, como uma unidade (Winnicott, 1983b). Para alcançá-lo é preciso que o bebê consiga conjugar suas diversas experiências em torno de um mesmo referencial que é ele próprio. O impulso para essa conjugação lhe é dado de maneira inata, mas ele precisa contar com a contrapartida ambiental que, através da função de sustentação (holding), fornecerá um mínimo de estabilidade física e emocional ao bebê (Winnicott, 1945/2000a). Quando essa sustentação falha, talvez em função de ansiedades vivenciadas pela mãe, o bebê ativamente se defende desintegrando a precária organização que começou a realizar. Em outras palavras, "[...] o bebê se desmancha em pedaços a não ser que alguém o mantenha inteiro" (Winnicott, 1990, p. 137).
A desintegração não é simplesmente uma consequência que o bebê sofre passivamente face às falhas ambientais. Ela é uma ação do bebê derivada da própria tendência à integração que assim age para se defender das angústias inimagináveis que emergem pela impossibilidade da integração (Winnicott, 1990). Ou seja, também em Winnicott, a doença (no caso a desintegração) funciona como uma estratégia empregada pela tendência inata à saúde. Embora reativa e dolorosa, a desintegração pelo menos resguarda o sujeito de um perigo ainda mais ameaçador. É como se a seguinte asserção estivesse implícita: "É melhor dividir-me em vários do que não existir".
E da mesma forma como Groddeck admite que a função principal do profissional de saúde é auxiliar na eliminação das resistências, de modo que o Isso deixe de recorrer à doença para se exprimir (Groddeck, 1926/1994g), assim também para Winnicott o terapeuta deve fornecer um cuidado que permita ao paciente desintegrado regredir aos estágios de seu desenvolvimento emocional em que tal desintegração se deu, de modo a retomar a tarefa de integração dessa vez contando com um ambiente suficientemente bom (Winnicott, 2000c). Logo, para ambos os autores, a tarefa primordial do profissional de saúde não é a devolução da saúde do paciente, mas sim proporcionar condições para que o próprio doente se cure ou, em termos winnicottianos, amadureça.
Considerações finais
Nossa intenção com este trabalho não foi absolutamente a de esgotar o diálogo entre as teses de Groddeck e Winnicott, mas tão somente levantar algumas temáticas em que a confrontação das ideias de ambos os autores se mostraria um empreendimento fértil. Trata-se, efetivamente, de um esboço visto que há diversas questões que aqui não foram abordadas, mas que mereceriam, posteriormente, uma apreciação, tais como: as semelhanças entre o modo como Winnicott entende a função da mente e Groddeck o papel da consciência e do ego na subjetividade; a questão do sentido da doença, que é uma das marcas do pensamento de Groddeck e que Winnicott também trabalha no modo como entende o sintoma psicossomático; a ideia presente tanto em Groddeck quanto em Winnicott de que os conteúdos que adentram e que são expelidos do corpo podem ser tratados como objetos psíquicos e vice-versa.
De alguma forma, tais questões foram tocadas ao longo das páginas anteriores, mas merecem considerações mais detidas. Os próprios temas que aqui serviram de motivo para a conversa entre os dois autores talvez merecessem um aprofundamento maior, digamos, "mais alguns dedos de prosa". Todavia, para não fazer desse artigo um opúsculo, essa tarefa deve ser deixada para outra ocasião.
Visando acima de tudo o restabelecimento da saúde de seus pacientes, Groddeck e Winnicott empenhavam-se tão somente em produzir "hipóteses de trabalho muito úteis, hipóteses, é bom que se diga, que realmente funcionam" (Winnicott, 1945/2000a, p. 234). O médico alemão explicitamente o diz: "Não se trata de explicar como ajudar o enfermo, e sim de ajudá-lo. A nossa função não é bem elaborar teorias corretas, mas encontrar hipóteses para o trabalho, que produzam resultados no tratamento." (Groddeck, 1917/1992a, p. 26).
As hipóteses de trabalho desses dois autores talvez nunca tenham sido tão necessárias ao campo da saúde como na atualidade. De acordo com Santos e Martins (2013), a demanda por reformulação dos modos de assistência e cuidado à saúde das pessoas vem emergindo a partir da percepção de esgotamento de um modelo médico tradicional organicista (biomedicina). Essa demanda vem ao encontro da obra desses dois autores que valorizam a íntima e indissociável conexão entre corpo e psiquismo, que analisam o significado do enquadramento terapêutico como reprodução das relações do indivíduo com o cuidado materno e que valorizam a tendência do próprio organismo na busca pela saúde, o que inviabiliza posturas autoritárias e intervencionistas por parte dos profissionais.
Aprofundar as semelhanças e analogias entre os pontos de vista de Groddeck e Winnicott, portanto, pode vir a gerar importantes aportes teóricos para a elaboração de novas diretrizes para o cuidado em saúde na contemporaneidade. Contudo, através do cotejamento preliminar feito neste trabalho entre aspectos dos pensamentos dos autores já é possível extrair alguns apontamentos concretos de intervenção.
Levando em conta a indissociabilidade entre corpo e psiquismo, sugere-se que o discurso do paciente acerca de seu adoecimento, indicativo das implicações e consequências subjetivas da enfermidade, seja tão ou mais valorizado do que os exames corporais e laboratoriais. Não se trata de transformar os estabelecimentos de saúde em espaços de promoção de catarse, mas de possibilitar que as conexões entre o somático e a história subjetiva de cada doente encontrem acolhida e sejam levadas em conta tanto no diagnóstico quanto no tratamento.
A hipótese de que a doença promove uma regressão a estágios anteriores do desenvolvimento pode dar ensejo à valorização da dimensão subjetiva do ato de cuidar em vez das tecnologias terapêuticas. Com efeito, tanto Winnicott quanto Groddeck sustentam que em grande parte dos casos, não são as técnicas de tratamento utilizadas, mas sim o investimento emocional daquele que cuida o elemento que efetivamente possibilita ao paciente retomar a via da saúde.
Finalmente, a concepção de uma força espontânea de crescimento e saúde presente em todo indivíduo pode ser tomada como uma interessante premissa para o fortalecimento e incremento das ações de prevenção e promoção à saúde como estratégias de reforço dessa potência de saúde.
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Endereço para correspondência:
Lucas Nápoli dos Santos
lucas.napoli@ig.com.br
Submetido em: 29/01/2013
Revisto em: 24/07/2013
Aceito em: 30/07/2013
* Apoio Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
1 Trata-se de um erro de tradução. O termo correto seria "tratado".