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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.67 no.2 Rio de Janeiro  2015

 

ARTIGOS

 

A Teoria do Manejo Coordenado do Sentido na pesquisa psicológica*

 

The Coordinated Management of Meaning Theory in Psychological Research

 

La Teoría del Manejo Coordinado del Sentido en la Investigación Psicológica

 

 

Pedro Pablo Sampaio MartinsI; Carla Guanaes-LorenziII; John Willard LannamannIII; Sheila McNameeIV

IDoutorando. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto. Universidade de São Paulo (USP). Ribeirão Preto. Estado de São Paulo. Brasil
IIDocente. Departamento de Psicologia. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto. Universidade de São Paulo (USP). Ribeirão Preto. Estado de São Paulo. Brasil
IIIDocente. Departamento de Comunicação. University of New Hampshire. Durham. Estados Unidos
IVDocente. Departamento de Comunicação. University of New Hampshire. Durham. Estados Unidos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do chamado "giro linguístico", a Psicologia passou a se engajar em investigações com foco na linguagem e na interação humana. Isso lhe exigiu a busca por métodos de trabalho no domínio de outras disciplinas. Este artigo objetiva descrever as implicações metodológicas da aproximação de uma teoria de Comunicação - a Teoria do Manejo Coordenado do Sentido (CMM) - à prática de pesquisa em Psicologia. Por meio da análise de uma entrevista, demonstramos uma possibilidade de operacionalização da CMM na investigação psicológica. Assim, descrevemos a entrevista como uma atividade coordenada, a partir da qual os sentidos que contam como sendo a experiência do entrevistado são construídos como uma performance interacional contextualizada. Concluímos que a CMM oferece recursos importantes para a investigação psicológica, analisando como as pessoas constroem sentidos sobre si mesmas e sobre mundo e como isso impacta a construção de seus modos de vida.

Palavras-chave: Análise qualitativa; Investigação qualitativa; Psicologia; Comunicação; Construcionismo social.


ABSTRACT

Psychology began to engage in research focused on language and human interaction after the so-called "linguistic turn". This demanded the examination of working methods that were under the domain of other disciplines. The purpose of this article is to describe the methodological implications of applying a communication theory - The Theory of the Coordinated Management of Meaning (CMM) - to research in Psychology. By analyzing an interview, we demonstrate the possibility of using CMM Theory in psychological inquiries. Thus, we describe the interview as a coordinated activity in which the meanings that count as the interviewee's experience are constructed as contextualized interactional performances. We conclude that CMM Theory offers important resources for psychological research by analyzing the way people construct meanings about themselves and about the world, and how this affects the construction of their ways of life.

Keywords: Qualitative Analysis; Qualitative Research; Psychology; Communication; Social Constructionism.


RESUMEN

La Psicología comenzó a participar en investigaciones con un enfoque en el lenguaje y en la interacción humana después del llamado "giro lingüístico". Esto creó la necesidad de buscar métodos de trabajo en el campo de otras disciplinas. Este artículo tiene como objetivo describir las implicaciones metodológicas de aplicación de La Teoría del Manejo Coordinado del Sentido (CMM) a la práctica de la investigación en Psicología. A través del análisis de una entrevista, se presenta una posibilidad de utilización de la CMM en la investigación psicológica. Así hemos descrito la entrevista como una actividad coordinada desde que se construyen los sentidos eso cuenta como experiencia del encuestado como una actuación de interacción contextualizada. Concluimos que la CMM proporciona importantes recursos para la investigación psicológica en el análisis de la forma en que las personas construyen sentidos sobre sí mismas y sobre el mundo, y cómo esto repercute en la construcción de sus formas de vida.

Palabras clave: Análisis Cualitativo; Investigación Cualitativa; Psicología; Comunicación; Construccionismo Social.


 

 

Introdução

Nas últimas décadas, as ciências humanas e sociais testemunharam uma mudança com fortes implicações para sua produção de conhecimento. Ela ficou conhecida como giro linguístico e se refere à ênfase colocada pelos pesquisadores no papel da linguagem na construção do conhecimento e na formação dos fenômenos estudados por essas ciências. A fim de entender o complexo fenômeno da linguagem em uso, ou seja, da linguagem utilizada por falantes em situações interacionais reais, houve um notável crescimento do trabalho interdisciplinar (Ibañez, 2004). Ao entrar em contato com diferentes tradições de conhecimento, também as próprias disciplinas se transformaram.

Uma das formas mais importantes com que o giro linguístico impactou a Psicologia ocorreu a partir das contribuições do movimento construcionista social. Esse movimento tem interesse específico pelo modo como o conhecimento sobre o mundo e sobre as próprias pessoas se torna possível a partir de práticas sociais. Por meio das relações, as pessoas ativamente produzem suas realidades sociais. Nesse contexto, é central a concepção de linguagem adotada. Em contraste com o entendimento de que a linguagem representa o mundo, os autores construcionistas entendem a linguagem como ação, valorizando seu caráter performático. Dessa forma, a produção de descrições sobre o mundo em linguagem é vista como uma atividade humana que constrói esse mesmo mundo de determinadas maneiras. Entende-se, portanto, que aquilo que vivemos como realidade - nosso senso do que as coisas são - é constituído como produto de nosso engajamento em relações por meio da linguagem, que produzem múltiplas realidades (Gergen, 1997).

Segundo Gergen (1997), as proposições construcionistas impactam a ciência psicológica de duas formas: primeiramente, pelo reconhecimento da Psicologia como história, a partir do que se evidenciam os processos de construção social do conhecimento também nesse campo; secundariamente, pelo reconhecimento de como processos psicológicos tradicionalmente tidos como interiores são produzidos a partir do engajamento das pessoas em relacionamentos. Como implicação para a pesquisa, observamos um deslocamento do interesse da investigação, que passa do indivíduo e da subjetividade para o que Shotter (2008) chamou de in-between, o espaço relacional e dialógico a partir do qual as pessoas ativamente produzem sentidos sobre si mesmas e sobre o mundo em que vivem.

Afirmando a Psicologia como um campo múltiplo, que se alimenta de diferentes fontes para a produção de seu conhecimento, o presente artigo busca contribuir para seu desenvolvimento por meio da aproximação de uma teoria de Comunicação à prática de pesquisa em Psicologia. Trata-se da Teoria do Manejo Coordenado do Sentido (Cronen, 2001; Pearce, 2007; Pearce & Cronen, 1980). Em inglês, ela é chamada de Theory of the Coordinated Management of Meaning e conhecida pela sigla CMM. A sigla deriva de uma redução frequentemente utilizada para o nome da teoria: manejo coordenado do sentido (coordinated management of meaning). Ao explicar essa redução, Pearce (2007) afirma que, "apesar de ser uma locução estranha" (p. 79), ela foi inicialmente publicada na década de 1970 e, desde então, não mudou. Para fins de padronização, portanto, optamos por manter a sigla original. A CMM foi escolhida como objeto de reflexão por compartilhar o entendimento construcionista social de que os mundos sociais são criados em relacionamentos e processos de comunicação. Por meio de um denso arcabouço conceitual para o entendimento desses processos, a teoria permite focalizar como o uso da linguagem na comunicação entre interlocutores em diversos contextos de fato constrói o mundo social (Pearce, 2007).

Dessa forma, o objetivo geral do presente artigo é investigar as implicações metodológicas da aproximação da CMM para a prática de pesquisa em Psicologia. O artigo tem como objetivos específicos:

(a) apresentar a CMM, recortando seus principais conceitos analíticos;

(b) desenvolver, como ilustração, a análise de uma entrevista de pesquisa, baseada nas contribuições da CMM; e

(c) descrever as consequências metodológicas de entender a entrevista na pesquisa em Psicologia por meio do aparato conceitual da CMM.

 

CMM: da comunicação surge o mundo social

A CMM é uma teoria centrada na ideia de que a comunicação humana produz os mundos sociais nos quais vivemos. As realidades sociais são os efeitos ou resultados de nossas interações situadas, que experimentamos como reais. A apresentação da CMM neste artigo foi baseada no livro intitulado Making Social Worlds, de Barnett Pearce (2007), por se tratar da última obra de um dos criadores da teoria, na qual ele retoma e atualiza a maioria de seu aparato conceitual.

A CMM propõe que nossas ações acontecem em contextos já existentes, ao mesmo tempo em que esses contextos também são criados e transformados por nossas ações. Isso quer dizer que, por um lado, toda ação acontece em contextos cultuais já repletos de relacionamentos e sentidos, nos quais as "coisas" já foram previamente nomeadas e interpretadas de diferentes maneiras. Por outro lado (e simultaneamente), esses contextos culturais não são todos coerentes, consistentes e completos. Eles se produzem em padrões de ação e relacionamentos humanos que nunca estão finalizados. Assim, deixam sempre lacunas para transformação. Em processos de comunicação, moldamos os mundos sociais em que vivemos.

Mundos sociais são criados e sustentados por comunidades de pessoas. Dentro de sua própria lógica, eles parecem inteiros e completos e sustentam determinadas ordens morais: sensos de obrigação que dizem sobre o sentido das coisas e nossos deveres e possibilidades de ação sobre elas. Existem incontáveis mundos sociais, uma vez que eles são produzidos, moldados e transformados pelas ações de todas as pessoas, umas em relação às outras. Dessa forma, embora ninguém controle o que esses mundos sociais se tornam, todos têm influência sobre eles.

Dois aspectos compõem processos de comunicação: a coordenação de ações e a produção/manejo de sentidos. Por um lado, o conceito de "coordenação" propõe entender "o que as pessoas dizem e fazem como se revezando em padrões de comunicação" (Pearce, 2007, p. 89), e não como símbolos representativos de uma suposta realidade. Olhar para o fluxo de ações ajuda a entender a lógica emergente do processo de comunicação e como essa lógica participa da criação de uma dada realidade social. Por outro lado, entende-se que as pessoas produzem e manejam sentidos conjuntamente e que o mundo somente pode ser compreendido por meio desses sentidos. Na "dança" entre coordenação e produção de sentidos, criamos mundos sociais.

Do amplo arcabouço teórico da CMM, selecionamos dois conceitos-chave, que servirão como base para a análise ilustrativa que faremos de uma entrevista de pesquisa: atos de fala e episódios.

Atos de fala: construindo conjuntamente as realidades sociais

Pearce (2007) define atos de fala como padrões incompletos de comunicação. Esse conceito descreve a linguagem em seu caráter performático, ou seja, propõe que a linguagem, para além de sua função descritiva, também faz coisas, atua sobre o mundo (Austin, 1962). Assim, o conceito de atos de fala funciona primordialmente para distinguir duas dimensões interligadas e interdependentes dos enunciados produzidos durante um processo comunicativo, a saber: o que se diz é diferente do que se faz com aquilo que se diz. Essa distinção alerta para o fato de que os dizeres em uma interação são sempre produzidos em um contexto específico, como parte de uma performance entre os interlocutores. Ou seja, para além do conteúdo do que é dito, o conceito de atos de fala chama atenção para as ações promovidas por esse dizer.

A performance de atos de fala pode ser entendida em termos de quatro noções. (a) Implicatura conversacional marca uma diferença entre o que é dito e o que é feito em comunicação. Ao se dizer "me desculpe", por exemplo, a enunciação das palavras, se bem sucedida, serve para reparar um relacionamento em crise. (b) Trio conversacional é o protótipo de uma sequência de três movimentos que representa a estrutura de como um ato de fala se realiza, sempre em dependência de movimentos anteriores e subsequentes a um enunciado. Um único enunciado não significa nem faz nada sozinho, mas apenas se houver uma situação anterior na qual determinadas palavras fazem sentido e se alguém responder às mesmas palavras conferindo-lhes um dado sentido. (c) Força lógica refere-se a um senso de obrigação ou "força moral" que informa aos participantes em uma conversa que devem agir de uma ou outra forma em resposta a certos tipos de ação. Por fim, (d) antenarrativa refere-se à experiência vivida antes da história contada. É aquilo que acontece antes que possamos organizar logicamente nossa experiência em uma sequência narrativa contendo início, meio e fim.

Assim, olhar para os atos de fala nos distancia de um pensamento abstrato de que mundos são criados em interações e nos aproxima de um nível mais concreto de explicação a respeito de como se dá esse processo de construção social do que conta como realidade para nós. Contudo, é importante lembrar que a realização de atos de fala é sempre efêmera e depende do próximo movimento da interação. Assim, a organização de diversos atos de fala - sua sequencialidade, sobreposição, momento de realização, etc. - é tão importante para a criação de mundos sociais quanto os próprios atos de fala. Nesse caso, um próximo nível de análise pode ser encontrado com o conceito de episódio.

Episódios: dando sentido a sequências de movimentos

Episódios são sequências de acontecimentos com algum princípio de unidade. Assim como os atos de fala dos quais são compostos, episódios são criados em ações coordenadas. "Qualquer momento em nossos mundos sociais pode ser visto como parte de numerosos episódios baseado no que sabemos e no que escolhemos focalizar" (Pearce, 2007, p. 135), de modo que a forma como entendemos um episódio é fundamental.

Quatro noções ajudam a dar sentido aos episódios. (a) Pontuação refere-se à seleção do começo e do fim de um episódio, conferindo-lhe um sentido de unidade útil para os propósitos dos interlocutores. (b) Contextualização informa que o episódio sendo performado é apenas uma dentre várias histórias acontecendo ao mesmo tempo. Assim, a habilidade de determinar o sentido a partir do próprio episódio está relacionada à capacidade de transitar entre diferentes níveis de entendimento, que funcionam como contextos para o que está sendo dito. (c) O enquadre direciona a atenção dos interlocutores para certos aspectos e seleciona e organiza o que, de outra maneira, seriam incontáveis "coisas" sem sentido. Finalmente, o (d) enredo sugere que temos que transformar tudo o que foi enquadrado entre nossas pontuações em uma narrativa significativa, que ordene e conecte diferentes aspectos de uma história.

Considerando esses conceitos, acreditamos que a CMM oferece elementos para uma análise minuciosa da comunicação, a fim de entender como eventos e objetos são construídos no mundo social. Para este artigo, interessa entender como a análise desses processos de comunicação pode ser útil para a prática de pesquisa em Psicologia. Especificamente, buscaremos mostrar como os conceitos da CMM podem auxiliar na pesquisa psicológica, chamando atenção para o entendimento de que os "dados" obtidos são construídos a partir de processos interativos.

 

Uma ilustração da CMM como recurso para pesquisa

O material utilizado nesta ilustração refere-se à transcrição de uma entrevista realizada pelo primeiro autor por ocasião de seu estudo de Mestrado (Martins, 2013). Essa entrevista aconteceu no contexto de uma instituição pública de semi-internação, parte da rede de saúde mental de um município de médio porte do Estado de São Paulo. A entrevista foi realizada com Rose, mulher de cinquenta e quatro anos, habitante de uma comunidade de periferia. Ela é mãe de Clara (nomes fictícios), de vinte e dois anos, diagnosticada com Transtorno não específico da personalidade (American Psychiatric Association, 2000). Rose participou de um Programa de Assistência Familiar, que tem como objetivo oferecer apoio emocional aos familiares dos pacientes. A entrevista visava conhecer sua experiência como familiar no serviço e seus entendimentos sobre família, doença mental e tratamento.

Essa entrevista foi realizada como parte de uma pesquisa aprovada por um Comitê de Ética, e sua transcrição está arquivada em um banco de dados. A participação de Rose foi voluntária, seguindo os parâmetros éticos da possibilidade de sua desistência a qualquer momento e sigilo sobre sua identidade.

A interação com Rose foi escolhida para análise com base na noção de momentos críticos, ou seja, movimentos em uma conversa capazes de mudar ou determinar o curso da interação e seus efeitos (Pearce, 2007). Na entrevista com Rose, foi possível perceber claramente um momento crítico no qual a realização conjunta de um ato de fala impactou o rumo da interação e as negociações de sentido em torno das temáticas propostas.

A transcrição da entrevista foi submetida a procedimentos qualitativos de análise do discurso, considerando as contribuições do movimento construcionista social. Especificamente, a CMM foi utilizada como dispositivo heurístico para a compreensão do processo comunicativo. Dentre esses conceitos, os atos de fala foram tomados como a unidade analítica básica, e sua operacionalização pode ser vista na análise apresentada a seguir.

A seleção de uma entrevista como um episódio é um recorte que torna possível analisar numerosos sentidos. Dentre eles, a narrativa a seguir é uma versão do episódio entre o primeiro autor deste artigo e Rose. A análise do episódio está ancorada nos conceitos da CMM e foi construída em um processo de colaboração com todos os outros autores até seu produto final. Reconhecer o aspecto negociado da produção de uma análise em pesquisa ajuda a significá-la como um processo dialógico (McNamee & Hosking, 2012; Moscheta & Santos, 2010).

 

A história de Rose e uma história de interação com Rose

Para fins de pontuação, o episódio de entrevista começou quando o pesquisador ligou o gravador, mediante autorização da entrevistada, dando início ao diálogo reproduzido abaixo:

(1) Pesquisador: Aí, Dona Rose, a ideia minha é assim, ó: eu quero entender um pouquinho como é que foi a sua história dentro aqui do serviço. Então acho que por onde a senhora quiser começar a me contar, tem umas coisas que eu quero saber mais, aí eu vou... vou perguntando, mas eu acho que a gente sai da sua... da sua história. Como é que você chegou aqui, como é que começou tudo isso... como é que foi?

(2) Rose: Olha, na verdade, é... A gente não veio direto pra cá, né? Minha filha, ela foi atendida na urgência da [nome da rua]. E lá ela ficou, assim, por uns vinte dias internada, porque, do nada assim deu um surto psicótico nela. Na verdade, nem eu nem ninguém lá em casa sabia que que era um surto psicótico [risos]. Depois os médicos foram, é... explicar pra gente que que era, né? Aí depois eles arrumaram vaga pra ela aqui no campus, e de lá ela foi transferida pra cá. Aqui ela ficou uns cinco meses internada.

(3) Pesquisador: Aqui no hospital-dia?

(4) Rose: É. Não. Lá no campus. Lá no...

(5) Pesquisador: No hospital?

(6) Rose: É, no hospital.

Entender os sentidos nessa interação exige um trânsito entre diferentes níveis de contextualização. O pesquisador refere-se inicialmente à entrevistada como "Dona Rose". Observamos atuando na interação a força lógica de um regionalismo associado ao local onde ele nasceu, que lhe informa que jovens como ele devem se dirigir com respeito a uma pessoa mais velha. Rose, por sua vez, chama o pesquisador de "Doutor". Essa é uma forma comum de as pessoas da comunidade se referirem àqueles que consideram "especialistas". Nenhum dos dois faz objeção à forma como foram chamados, o que demonstra que compartilham de uma bagagem cultural semelhante. Além disso, Rose e o pesquisador tinham um sotaque parecido, característico de uma determinada região do país diferente daquela onde eles se encontravam. Portanto, o padrão cultural pode ser considerado um nível de contextualização.

Mas há outros. A conversa se desenvolveu no contexto de uma instituição de cuidado em saúde mental. O estudante foi apresentado a Rose como pesquisador. Eles marcaram essa entrevista e leram juntos um Termo de Consentimento. Havia um gravador ligado. Tudo isso informava que estavam participando de um episódio específico: uma entrevista de pesquisa. O episódio é outro nível de contextualização.

Àquele ponto, havia também a contextualização de um relacionamento sendo iniciado. Quando Rose chamou o pesquisador de "Doutor", a partir do padrão cultural que compartilhavam, ela demonstrou que o enxergava como certo tipo de pessoa: um pesquisador, psicólogo e profissional da saúde. Esse relacionamento também pode ser encarado como outro nível de contextualização. Qual desses três níveis está informando todos os outros?

Devido ao fato de toda a interação ter se iniciado com um propósito específico - realizar uma entrevista de pesquisa -, é possível considerá-lo como o nível de contexto mais alto naquele momento. Como o padrão cultural pareceu criar uma sensação de familiaridade local entre pesquisador e entrevistada desde o começo do episódio, e já que o relacionamento de pesquisa estava apenas começando, é mais provável que aquele seja um nível de contextualização mais alto do que esse. Assim, podemos visualizar esse momento da interação da seguinte forma:

Como a Figura 1 mostra, entre os movimentos (1) a (3) no trecho apresentado, a interação estava acontecendo sob três diferentes níveis de contextualização. Assim, os interlocutores realizaram conjuntamente e com sucesso o ato de fala de convite para conversar sobre a história de Rose. Foi assim que o episódio começou. Nos movimentos seguintes, eles seguiram com um padrão de interação típico de uma entrevista: quando o pesquisador perguntava sobre algo que a entrevistada havia acabado de dizer e quando ela respondia a isso, eles performavam juntos o ato de fala de clarificar alguma informação que poderia ter sido mal entendida.

 

 

A partir da construção e organização de níveis contextuais, cada movimento feito na interação se entrelaça ao próximo, produzindo como efeito a continuidade de uma entrevista na qual pesquisador e entrevistada clarificavam juntos as informações trazidas por ela para aquela entrevista. Entretanto, essas clarificações eram produzidas por meio também de outra dimensão da interação: o conteúdo sobre o qual se falava.

Retomemos o trecho com o qual o episódio teve início. A performance de clarificação se tornava possível à medida que Rose e o pesquisador conversavam sobre como a doença mental de Clara - uma crise psiquiátrica desconhecida - afetou a vida de toda a família, dando início a uma peregrinação por diversos serviços de saúde. É importante notar como essas duas coisas acontecem ao mesmo tempo: ao falar sobre essa peregrinação, os interlocutores performavam clarificação; performando clarificação, falar sobre a peregrinação se tornava possível.

Conforme a conversa continuava, pareceu haver um padrão bem coordenado de interação, caracterizado por um revezamento entre dois tipos de atos de fala: clarificação e entendimento. Esses atos de fala foram continuamente performados por meio da coordenação de ações entre os interlocutores, que acontecia da mesma maneira como os atos de fala de clarificação descritos nos movimentos (4) até (6) no primeiro trecho. O próximo trecho também exemplifica isso:

(1) Rose: E sofremos preconceito da família, que se afastou todo mundo de nós.

(2) Pesquisador: Se afastaram de vocês?

(3) Rose: É. Se afastou muito. A minha própria família também [risos], que se afastou todo mundo. Porque o senhor sabe que o ser humano é assim: quando a gente tá numa boa, a gente tem muitos amigos. Quando a gente tá numa crise, numa pior, na saúde, numa crise... As pessoas têm tendência de se afastar da gente. Né? Infelizmente o ser humano hoje em dia é assim, né?

(4) Pesquisador: Nessa hora a gente vê quem... fica mais perto... e quem não vai ficar muito?

(5) Rose: É. Na verdade, quem ficou do meu lado assim é só uma irmã minha que mora em São Paulo, e de vez em quando a gente vai lá, né?

(6) Pesquisador: Então teve, teve alguém que tá ajudando?

(7) Rose: É. Minha irmã [inaudível] um pouco.

Esse trecho mostra a realização do ato de fala de entendimento. Sua sequência interacional pode ser descrita como uma coordenação que envolve repetidamente os movimentos de (1) Contar um pedaço da história; (2) Perguntar algo sobre esse pedaço da história; (3) Contar mais da história. Em partes diferentes da interação, esses atos de fala eram realizados por meio ou da repetição de algum pedaço da história contada antes; ou de alguma pergunta do pesquisador sobre o que acabou de ser dito; ou de sua afirmação de que estava acompanhando a história. Nesses movimentos, eles exploravam juntos mais histórias de sofrimento da família de Rose como implicação da doença.

Entretanto, o movimento (3) também faz algo importante. Na parte destacada do trecho, Rose levantou uma hipótese sobre como os seres humanos são em um momento de crise. Essa hipótese era a de que, nesse tipo de situação, as pessoas tendem a se afastar umas das outras. Mas, como nenhum ato de fala é realizado por uma pessoa sozinha, o levantamento dessa hipótese pode ser visto como um convite de Rose ao pesquisador para realizar o ato de fala de hipotetizar, já que ela pede por uma confirmação duas vezes (ao dizer "né?"). No movimento (4), o pesquisador ofereceu uma descrição ligeiramente diferente do que Rose acabara de afirmar. Ele questionou se não seria o caso de que algumas pessoas se afastam, ao mesmo tempo em que outras permaneceriam. Nos movimentos (5) e (6), eles realizaram hipotetização com sucesso como aquilo que estavam fazendo em comunicação. Ao mesmo tempo, a realização desse ato de fala permitiu a ampliação da história contada acerca do sofrimento da família, apontando para como, mesmo diante desse abandono, a família de Rose pôde também contar com recursos que ajudaram para que ela não desistisse.

Essa coordenação é notável porque, para além dos atos de fala de entendimento e clarificação, a hipotetização tornou-se grande parte do que estava sendo feito no episódio como um todo. Juntos, Rose e o pesquisador criaram hipóteses sobre o que são doenças mentais, quais são suas origens e causas, o que poderia ser feito para superar os desafios de ser familiar de alguém com um transtorno mental, e assim por diante. Entrelaçadas a essas hipotetizações, várias descrições sobre a experiência de Rose no serviço de saúde mental se tornaram possíveis, como parte do padrão interacional em desenvolvimento durante a entrevista. Com esse repetido padrão, no qual os interlocutores se perguntavam sobre diferentes aspectos do mundo, eles chegaram ao que pode ser encarado como um momento crítico no episódio.

(1) Rose: Ó, vocês que estudam, vocês vão pela teoria da evolução, do Darwin, né? Mas, na verdade, tudo foi criado. A evolução é furada. É a criação. Não se-... O senhor deve ter estudado muito. Existem coisas que os cientistas, eles podem querer tentar provar de tudo quanto é jeito, eles não conseguem. [risos]

(2) Pesquisador: Não prova, né? Eu sou mais do tipo que gosta de várias explicações, Dona Rose.

(3) [Ambos riem].

(4) Pesquisador: Eu gosto de circular pelas explicações.

(5) Rose: É.

A interação apresentada no trecho acima foi considerada como um momento crítico por várias razões. Em primeiro lugar, há uma diferença importante entre essa fala de Rose e as outras falas que eles estavam tipicamente utilizando para performar hipotetização. Não houve nenhuma partícula verbal denotando um pedido de confirmação, nem tom de questionamento. Além disso, até esse ponto, ainda que o relacionamento estivesse contextualizado como entre um pesquisador e uma entrevistada, Rose e o pesquisador vinham levantando e testando hipóteses juntos. Mas, em sua afirmação no movimento (1), Rose claramente separou "uma pessoa como ela" de "uma pessoa como ele". O pesquisador estudou. Ele é um cientista. Ele acredita na Evolução. Ele, portanto, acha que pode provar tudo. Rose, por outro lado, não estudou. Ela não é cientista. Ela acredita na Criação. E ela sabe que cientistas não podem provar tudo. Essa fala pode ser encarada como um desafio de Rose ao padrão anteriormente estabelecido. Analiticamente, ela chama atenção para como o que se fala não é uma descrição neutra da realidade, mas se produz a partir de uma interação e tem implicações para o seu curso. Entretanto, pensando no conceito de trio conversacional, entendemos que um ato de fala só pode se realizar relacionalmente, também a partir da resposta a um dado movimento. Nesse sentido, Rose precisaria de uma resposta ao seu desafio para que ele de fato se realizasse. Essa é uma bifurcação na conversa.

Observemos no movimento (2) como o pesquisador não responde ao desafio. Nele, o pesquisador concorda que realmente existem coisas que os cientistas não podem provar, mas destaca que não é um cientista nos termos em que Rose declarou. Ele diz que é o tipo de pessoa que gosta de explorar diferentes explicações para as coisas. Essa fala reafirmou que ele é o tipo de pessoa que faz exatamente aquilo que os dois vinham fazendo até então: hipotetizar e explorar possibilidades. Observando o que essa resposta faz, vemos que as risadas no movimento (3) informam que o possível desafio ao padrão acabou sendo realizado como mais um entendimento: Rose e o pesquisador não são tão diferentes quanto pareciam.

Isso teve outras implicações importantes para o episódio. O ato de fala performado teve força suficiente para implicar a mudança: (a) da contextualização do relacionamento; (b) da contextualização do episódio; e (c) dos níveis hierárquicos de contextualização do episódio. Podemos ver todas essas mudanças ao olharmos para o que se seguiu no episódio a partir da realização desse ato de fala. Para tornar essa explicação mais clara didaticamente (lembremo-nos da ideia de enredo), exploraremos, agora, como essas mudanças ocorreram e apenas depois analisaremos o caminho que a conversa tomou como resultado dessas mudanças. No nível do relacionamento, o ato de fala de entendimento performado na conversa sobre Criação x Evolução informou que o pesquisador e Rose não eram tão diferentes. O relacionamento foi redefinido, assim, como um relacionamento entre duas pessoas que gostam de explorar hipóteses sobre o mundo. Ao nível do episódio, àquele momento, não fazia mais sentido entender que os dois estavam estritamente em uma entrevista de pesquisa. O episódio se tornou um episódio de exploração de diferentes experiências e conhecimentos sobre fazer parte de um tratamento em saúde mental como familiar. Mas notemos que a própria definição do episódio estava sujeita à definição do relacionamento: porque eles eram dois "exploradores", eles podiam se engajar em "exploração". Isso mostra uma inversão do nível hierárquico a partir do qual construíam sentidos. O padrão cultural continuava o mesmo, mas não estava mais no foco naquele momento, quando o relacionamento e o episódio ganharam mais importância. Assim, a nova contextualização para o episódio pode ser esquematizada conforme mostra a Figura 2.

 

 

A partir desse momento crítico e de seus resultados - as mudanças na contextualização da conversa -, a busca por diferentes explicações e cursos de ação foi legitimada entre os interlocutores. O que essa maneira de conversar e esses níveis de contextualização possibilitaram para as histórias sendo contadas sobre o período que Rose passou na instituição como familiar? Como a história de Rose pôde ser narrada a partir desse enquadre relacional? Que tipos de histórias foram privilegiadas como "a experiência de Rose" nessa conversa? Em outras palavras: como Rose e o pesquisador coordenaram suas ações para gerar entendimentos específicos sobre a experiência dela, como familiar, no serviço de saúde mental (o tema da entrevista)?

De forma geral, Rose e o pesquisador narraram a história dela no serviço como uma história de ganho de conhecimento e aceitação do transtorno mental, que ela nem sabia que existia, mas que teve consequências importantes em sua vida. Um aspecto particularmente interessante tratava de como Rose encontrou recursos para diminuir a violência de Clara, que, quando ficava nervosa, quebrava as coisas em casa. Ela explicou que, já que Clara estava sendo radical, Rose também o seria, ameaçando cortar sua medicação, bater nela ou mandá-la morar numa fazenda distante com um tio. Ao contar isso, Rose soava séria, mas sempre dava uma risadinha característica, explicando que nunca realmente teve intenção de tomar qualquer uma dessas medidas: era necessário apenas que Clara acreditasse que a mãe fosse capaz disso. Como alternativa, Clara poderia avisá-la quando se sentisse agressiva, de forma que as duas pudessem sentar-se e conversar.

(1) Rose: Então parece que funcionou assim. Agora, quando ela sente essa onda de nervoso, essa coisa que ela fala, ela chega e fala. "Ai, tá me dando aquele negócio".

(2) Pesquisador: E aí como é que vocês fazem?

(3) Rose: Aí eu faço um suco pra ela de erva cidreira com abacaxi, com limão... A gente senta, ela deita, eu dou umas gotinhas de Clonazepam pra ela... A gente põe uma música bem suave...

(4) Pesquisador: E ela consegue acalmar?

(5) Rose: Ela relaxa.

Consideramos essa uma narrativa notável porque, tirada de contexto e analisada com uma postura "neutra", seria possível concluir que Rose ameaçava sua filha com violência física e abuso social. Entretanto, como parte do relacionamento entre exploradores engajados em um episódio de busca por diferentes experiências e conhecimentos, o contar dessa história faz sentido como mais exploração de como o aprendizado de Rose no serviço de saúde mental se transformou em recursos para sua vida.

Os movimentos (1) a (5) no último trecho mostram o mesmo padrão de contar uma parte da história, fazer perguntas sobre essa parte, contar um pouco mais e legitimá-la como uma boa história (ou seja, outros atos de fala de clarificação e entendimento). Por outro lado, o próprio contar dessa história nesse padrão comunicacional serve para intensificar ainda mais os níveis de contextualização nos quais ela está sendo performada.

O episódio com Rose durou 76 minutos. A partir desse ponto, o pesquisador e ela continuaram na exploração por diferentes explicações e possibilidades a respeito de sua participação no tratamento de Clara, de transtornos mentais, de assuntos de família, histórias de família, abuso de drogas, a perda do senso de comunidade e as consequências que isso tem para as vidas das pessoas, etc. Nem sempre se tratava de histórias alegres, mas a qualidade relacional que manteve a conversa em movimento permitiu que fossem contadas como histórias ricas, cheias de detalhes, recursos e aberturas para a diversidade.

 

Entrevista como atividade coordenada de produção de sentidos

A análise apresentada destaca que nenhum participante realiza nada por si mesmo na entrevista: o que quer que o pesquisador e Rose tenham feito - entendimento, clarificação, hipotetização, etc. -, eles o fizeram juntos. Isso implica que quaisquer resultados das entrevistas são inevitavelmente marcados pelas vozes das pessoas que fizeram parte delas. Mais ainda, várias coisas são feitas ao mesmo tempo, em diferentes níveis: enquanto o pesquisador conversava com Rose sobre suas experiências no serviço, eles também desenvolviam e mantinham um relacionamento, guiavam o episódio para uma ou outra direção, trabalhavam com diferentes níveis de contexto, criavam sentimentos de quem eram Tudo isso se tornava possível como produto de ação coordenada entre pesquisador e entrevistada.

Essa conclusão pode ser discutida em relação à crítica proposta por Potter e Wetherell (1987) sobre pesquisas interessadas em embasar sua análise em explicações dadas pelas pessoas sobre o mundo em que vivem. Segundo os autores, o problema dessa abordagem se encontra no risco de o pesquisador extrapolar explicações construídas como uma performance na interação de pesquisa e tomá-las como versões factuais do mundo oferecidas pelos participantes. Assim, olhar para uma entrevista é olhar para a experiência de um relacionamento em desenvolvimento. Entendemos, portanto, que as histórias dos participantes acerca de uma temática se desdobram como produtos inacabados e em transformação, resultantes da coordenação de ações entre pesquisador e entrevistado. Compartilhar desse entendimento é resistir à sedução de tomar as histórias como produtos completos e, em lugar disso, nos mantermos atentos ao desenrolar dessas histórias como parte de um momento interativo (Lannamann & McNamee, 2011).

Isso significa propor que, ao convidar as pessoas para uma conversa sobre algo que viveram (sobre suas experiências), essa conversa (entrevista) é, em si mesma, uma nova experiência vivida. Nesse caso, os pesquisadores podem dar-se conta de como o que têm à mão como material de pesquisa é, em última instância, a experiência do próprio relacionamento de pesquisa. Assim, as descrições sobre certo fenômeno que pretendem investigar são produtos dessa interação. A entrevista não é, portanto, uma janela transparente através da qual observamos eventos que a precederam. Ela é um contexto para a produção local de sentidos.

Assim, a entrevista pode ser entendida como uma atividade coordenada de produção de sentidos: no revezamento de posições de fala e escuta, nas lacunas entre perguntas e respostas, nas ações coordenadas dos participantes inseridos em um relacionamento, os sentidos que contam como sendo a experiência de um participante são construídos como uma performance interacional contextualizada.

Esse entendimento a respeito da entrevista implica o abandono da tradicional postura de neutralidade do pesquisador. Se não há como separar as histórias de seu contexto de produção, como pesquisadores nos tornamos parte das histórias do entrevistado. Dessa forma, estamos sempre eticamente implicados na descrição de nossos "resultados", entendendo que as práticas comunicativas são "lugares potencialmente capazes de gerar posturas, decisões e sentidos éticos" (Trindade & Rasera, 2013, p. 132).

Para a Psicologia, isso tem implicações especialmente relevantes. Ao mesmo tempo em que entrevistador e entrevistado produzem sentidos, eles também criam e sustentam entre si determinadas versões de self, sensos de quem são e de como podem e devem agir a partir daquele contexto situado (Gergen, 1997). Essa posição serve como alerta para o risco de extrapolar entendimentos produzidos como performances situadas na entrevista para outros contextos sem considerar o seu processo de produção. Billig (2008), por exemplo, chama atenção para como o processo de nominalização, ao transformar verbos em substantivos, apaga o agenciamento dos sujeitos e reifica suas ações, transformando processos em objetos. No caso da pesquisa em Psicologia, muitas vezes determinadas versões de self, produzidas em um contexto interacional específico, são tomadas como "o que aquela pessoa é" e, mais ainda, como "o que aquele tipo de pessoa é".

Essa perspectiva nos convida a prestar atenção ao momento interativo e a conceber as narrativas e sentidos construídos em uma entrevista como obras inacabadas, que se constituem e se modelam no espaço interacional da conversa (Lannamann & McNamee, 2011). Isso pode ser elaborado como um importante potencial para a pesquisa. Por exemplo, a Investigação Apreciativa (Cooperrider, Whitney, & Stravos, 2008) tem trabalhado com a noção de que os resultados que encontramos são construídos a partir das perguntas que fazemos. Assim, se buscamos pelas deficiências e dificuldades, é mais provável que as encontremos. O contrário também se aplica. Essa forma de investigação volta-se para o potencial e para a valorização de recursos já existentes nas comunidades que se pretende estudar e, ao mesmo tempo, em que se pretende intervir. Na mesma linha, a análise da entrevista com Rose sugere que podemos utilizar a CMM para buscar momentos nas entrevistas com potencial para construir novas narrativas, ao invés de nos mantermos presos a episódios repetitivos.

 

Momentos críticos e trabalho no episódio

Com a análise da interação com Rose, foi possível notar como o que fazemos no episódio cria, passo a passo, aquilo que o episódio se torna. Ou seja, Rose e o pesquisador coordenaram suas ações e produziram sentidos colaborativamente, agindo a partir de determinados níveis de contexto. Entretanto, o caminho inverso também funciona: a manutenção ou transformação dos níveis de contexto dependiam diretamente dos modos de se relacionar no episódio. Isso significa que as ações dos interlocutores na entrevista durante o episódio têm consequências para o que se constrói como "dados" da pesquisa.

Que tipos de vida social se tornaram possíveis nessa entrevista, ao conversarem de determinadas maneiras, em detrimento de outras? Como pesquisador e participante se transformaram em cada uma das interações analisadas? Qual o potencial de ação criado para os interlocutores nesse processo de investigação? Tomando o diálogo como "uma qualidade identificável e alcançável de momentos de contato" (Stewart & Zediker, 2000, p. 229), sugerimos que investigar momentos críticos pode dar visibilidade a como diferentes caminhos tomados na conversa produzem efeitos pragmáticos distintos.

A CMM se coloca como uma teoria prática, comprometida não apenas com descrever, mas também com melhorar os padrões de comunicação que investiga (Cronen, 2001). Nesse sentido, apresentamos o conceito de trabalho no episódio que "descreve o que as pessoas fazem para garantir que o episódio desejado aconteça" (Pearce, 2007, p. 148). Ao entender que os interlocutores conjuntamente produzem o episódio, é possível trabalharmos tanto para manter os níveis de contexto de um episódio quanto para transformá-los.

Entendemos que o pesquisador pode aprender com os participantes não apenas sobre um determinado conteúdo, mas também sobre o processo de construção de uma pesquisa (Moscheta & Santos, 2010). O ponto central é a sustentação de uma postura colaborativa com relação à prática de pesquisa, compreendida como coconstrução. Ao se dar conta de que pesquisar é também criar, os pesquisadores podem refletir mais amplamente sobre como são parte daquilo que descrevem.

Por fim, acreditamos que os recursos da CMM podem se aliar ao empreendimento de uma psicologia social crítica, ao dar visibilidade a como as dimensões psicológicas das pessoas e a organização de suas vidas estão ligadas às formas como elas definem a si mesmas e ao mundo a partir de processos linguísticos e sociais (van Dijk, 2004). A análise próxima da construção dessas definições e de suas implicações para seu meio social nos parece um caminho promissor para a investigação psicológica.

 

Considerações finais

Diferentes mundos sociais coexistem. Eles não são estáticos e não estão prontos. Ao contrário, são produzidos, feitos e refeitos a partir da atividade cotidiana da comunicação. Construídas e transformadas por nossas performances linguísticas, no seio de nossos relacionamentos, vivemos em múltiplas realidades. Nelas, podemos ser agentes ativos de transformação. A análise aqui apresentada dá visibilidade a como a prática de pesquisa - uma prática necessariamente social - também participa na construção dessas realidades. Como os conceitos advindos da CMM podem nos auxiliar nesse contexto?

A partir de um entendimento de que uma teoria oferece uma forma de olhar e agir sobre os mundos sociais, Pearce (2007, p. 53) propõe quatro perguntas que direcionam a atenção daqueles interessados na CMM. São elas:

O que nós estamos produzindo juntos?

Como nós estamos produzindo isto?

O que estamos nos tornando ao produzir isto?

Como podemos produzir mundos sociais melhores?

A partir desse enquadre para a investigação em Psicologia, os conceitos da CMM podem ser entendidos como conceitos sensibilizadores (Pearce, 2007) que chamam atenção para aspectos relevantes, considerando os objetivos localmente construídos de uma dada investigação. Isso não significa dizer que a análise a partir a CMM não é rigorosa e exaustiva. Significa sim reconhecer que qualquer análise de um corpus de pesquisa é uma análise possível, ou seja, uma versão específica da história, contada a partir de uma certa inteligibilidade - pressupostos teóricos e metodológicos - e a partir da imersão dos pesquisadores em vários níveis de contexto envolvidos em uma interação.

A CMM, tal como aqui apresentada, distancia-se de versões empiristas da análise do discurso, que frequentemente utilizam uma retórica que entende a análise do texto como mostrando ou provando a realidade dos fatos sobre a comunicação humana e a psicologia dela decorrente. Ao contrário, nosso entendimento aproxima-se de versões construcionistas de pesquisa, que compreendem métodos como recursos para o engajamento, interessadas em explorar que formas de vida se tornam possíveis como produtos de determinados modos de interação (McNamee & Hosking, 2012).

Em contraste, refletindo sobre alguns limites desse tipo de investigação, reconhecemos o risco de se priorizar uma análise tão minuciosa da interação que coloque o conteúdo da investigação em segundo plano. Alertamos para que o pesquisador considere a necessária interligação entre conteúdo e processo existente em qualquer pesquisa, buscando articular essas duas dimensões e dar destaque a cada uma delas para que a análise ajude na compreensão situada que cada investigação busca. Por exemplo, na entrevista relatada com Rose, paralelamente à análise da interação, foi produzida uma análise dos sentidos a respeito do tema original da pesquisa (Martins, 2013).

Apontamos também os limites da análise das interações imediatas, considerando que elas sempre estão situadas em contextos sócio-históricos e culturais mais amplos. Como as interações de uma pesquisa são sempre informadas e restritas por esses contextos, é preciso estar atento aos limites da transformação social possível a partir das relações imediatas. Como sugestão, a utilização dos níveis de contextualização podem ser um recurso para o pesquisador considerar como diversos contextos informam e circunscrevem uma interação. Ao mesmo tempo, isso auxilia-o a observar em que medida essa mesma interação imediata é capaz de redefinir os contextos dentro dos quais ocorre.

Essas questões buscam situar a CMM como um recurso para a investigação em Psicologia que, como qualquer outro, terá implicações para os resultados obtidos. Assim, ela ajuda a dar visibilidade ao modo como as pessoas, ao coordenarem suas atividades em torno de objetivos específicos, produzem e manejam sentidos, construindo realidades acerca de um tema. Esperamos que este artigo ofereça um enquadre útil para que os pesquisadores em Psicologia possam interagir com os mundos sociais que investigam e, assim, se tornem agentes ativos em sua construção.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Pedro Pablo Sampaio Martins
pedropablomartins@gmail.com
Carla Guanaes-Lorenzi
carlaguanaes@gmail.com
John Willard Lannamann
john.lannamann@unh.edu
Sheila McNamee
sheila.mcnamee@unh.edu

Submetido em: 14/02/2014
Revisto em: 19/04/2015
Aceito em: 25/04/2015

 

 

* Este artigo refere-se à pesquisa apoiada pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), processo número 2011/22234-8.

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