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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.68 no.2 Rio de Janeiro Aug. 2016

 

ARTIGOS

 

Freud e sua relação com o saber

 

Freud and his relationship with knowledge

 

Freud y su relación con el saber

 

 

Beethoven Hortencio Rodrigues da CostaI; Maria Cristina Machado KupferII

IPós-doutorando. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Educacional. Centro Universitário FIEO (UNIFIEO). Osasco. Estado de São Paulo. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano. Universidade de São Paulo (USP). São Paulo. Estado de São Paulo. Brasil

Endereços para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo propõe uma construção teórica em torno da relação de saber entre Freud e seu mestre Charcot a fim de impulsionar novas pesquisas sobre a relação professor-aluno com base nos construtos psicanalíticos. O professor, sem saber, sublinhou no aluno um anseio que este já carregava, a busca por algo inédito: a psicanálise. O trabalho com o inesperado é a posição investigativa por excelência que é fruto dessa relação. Espera-se, por fim, que isso não seja tomado como modelo pelos alunos, mas que cada um precisa empenhar-se em encontrar sua originalidade acerca do saber herdado.

Palavras-chave: Psicanálise; Ensino; Saber; Freud; Charcot.


ABSTRACT

This is a theoretical construction around the relationship between Freud and Charcot in order to create new research on teacher-student relationship based on psychoanalytic concepts. Ignoring its position the professor emphasized in his student a wish already stablished, the search for something new, the psychoanalysis. Working with the unexpected is the investigative quintessential position emerging from this relationship. Finally, it is expected that this is not regarded as a model by the students, but that each of them must strive to find their originality about inherited knowing.

Keywords: Psychoanalysis; education; knowledge; Freud; Charcot.


RESUMEN

Se trata de una construcción teórica en torno a la relación entre Freud y Charcot , a fin de fomentar nuevas investigaciones sobre la relación profesor - alumno en función de las construcciones psicoanalíticas. El profesor ignorando los efectos de su posición hizo hincapié en el estudiante un anhelo que esto ya lleva: la búsqueda de algo nuevo (el psicoanálisis). Trabajar con lo inesperado es la posición de investigación de excelencia que se puede sacar de esta relación. Por último, se espera que esto no sea considerado como un modelo por los estudiantes, pero que cada uno debe esforzarse por encontrar su originalidad acerca del saber heredado.

Palabras clave: Psicoanálisis; educación; saber; Freud; Charcot.


 

 

A maior riqueza do homem é a sua incompletude.

(Manoel de Barros, Retrato do artista quando coisa).

 

Introdução

Parte-se da ideia de que a relação com o saber não é algo tão fácil de identificar. Mais especificamente, trata-se de um laço inconsciente, no qual a sutileza predomina. A operação de risco que é engendrada neste artigo configura-se como uma tentativa, uma aposta: que ao ler os textos de Freud pode-se extrair algo de sua relação com o saber. Portanto, o objetivo é uma construção teórica em torno da relação entre Freud e seu mestre Charcot a fim de impulsionar novas investigações acerca da relação professor-aluno com base nos construtos psicanalíticos. Toma-se como uma relação que obteve como produto um sucesso escolar: a criação de uma nova teoria. Não para tê-la como modelo, mas para daí extrair uma posição freudiana em relação ao saber.

Desse modo, como a pesquisa da qual este artigo é produto possui uma temática específica, que abrange o campo da universidade, a escolha dos textos segue o percurso de Freud em relação ao saber universitário. Saber que se concebe centrado em sua relação com Jean-Martin Charcot. Relação dentro da universidade que marcou todo o trajeto freudiano.

A hipótese central do artigo é que a partir da fascinação por Charcot, e principalmente a partir do que ele deixava como domínio a ser explorado, Freud foi capaz de se opor ao grande médico francês, e consequentemente, produzir algo novo: a psicanálise. Pode-se dividir esse caminho em três momentos: fascinação, oposição e constituição de um enigma. Tal divisão não segue uma ordem estrita, mas tais elementos se alternam em relação ao que ele pôde sublinhar de sua experiência com Charcot. Além disso, podem-se verificar algumas heranças que Charcot, apesar dele mesmo, lega ao homem Freud. Em outras palavras, Charcot transmitiu algo que efetivamente não sabia. Contudo, para permanecer em sua busca por algo novo, Freud necessitou de outras sustentações além da de seu mestre. Dentro dessa perspectiva, é preciso considerar sua relação com Fliess como ponto nodal para deixar viva em sua alma a atitude de suspeita.

A primeira apreciação dessas duas relações que Freud empreendeu consiste em concebê-las como homólogas. O oposto disso é a concepção alternativa de que sua relação com Charcot seria de aluno e mestre e sua relação com Fliess de analisante e analista. Desse modo, a tentativa é situar a relação de saber específica entre Freud e Charcot para dar conta da questão de pesquisa.

 

Freud e Charcot: relação que produz um novo saber

A relação entre Freud e Charcot é o exemplo de um modo possível de vínculo entre aluno e professor dentro da universidade que não segue a lógica universitária. Charcot representa o pensamento de uma época, mas a forma romanceada que Freud utiliza em um relatório universitário demonstra mais a posição singular em que Freud se coloca em relação a seu professor do que a universalidade de um pensamento.

No primeiro texto da Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud há um relatório produzido por Freud (1956/1996a), relativo a seus estudos em Paris e Berlim, referente ao auxílio de uma bolsa concedida pelo Fundo do Jubileu Universitário da Faculdade de Medicina de Viena durante outubro de 1885 e fim de março de 1886. Chama a atenção o fato de que, nesse primeiro texto, considerado pré-psicanalítico por James Strachey (1996a), Freud antecipa uma posição em relação a seu saber: ele queria aprender algo totalmente novo. Essa ânsia, juntamente com seu voto de se destacar na ciência, o acompanhará por toda sua vida.

A escolha desse texto para a abertura da Standard e a nomeação de pré-psicanalítico é responsabilidade de Strachey (1996a); porém pode-se inferir que o texto exigia essa abertura. Ele declara os antecedentes de Freud, sua relação com o conhecimento psiquiátrico e neurológico da época, sua aspiração como pesquisador, "o desvio dos interesses científicos de Freud da neurologia para a psicologia" (Strachey, 1996a, p. 37) e, principalmente, sua fascinação por Charcot.

O que Freud conseguiu depreender disso foi a histeria como campo de estudo e o método da hipnose. Algo muito diverso dos seguidores de Charcot, que ainda hoje o consideram um mestre para a neurologia com suas contribuições à compreensão dos distúrbios do movimento, como a Doença de Parkinson e a Síndrome de Tourrete (Teive, 1998; Teive, Chien, Munhoz, & Barbosa, 2008; Teive, Munhoz, & Barbosa, 2007). Por outro lado, se o encontro com Charcot despertou algo em Freud, foi alguma coisa que as ideias dele já perseguiam. Ele foi fisgado por pontos obscuros do discurso de Charcot: aquilo que era totalmente novo, mas para o que Charcot não dava a devida importância.

Charcot, por exemplo, não utilizava a hipnose para o tratamento da histeria, apenas para suas grandes demonstrações públicas de apresentação de doentes. A postura de Charcot impressionou Freud de tal maneira que seus planos de estudos em Paris se restringiram ao hospital no qual Charcot lecionava. O Hôpital de la Salpêtrière que "era, naturalmente, o próprio Charcot, que, com a riqueza de sua experiência, a transparente clareza de suas exposições e a plasticidade de suas descrições, era facilmente reconhecível em todas as publicações da escola" (Freud, 1893/1996f, p. 25). Além disso, seu primeiro filho varão recebeu o prenome de Jean-Martin, que nasceu em 1889, três anos após sua passagem por Paris (Mannoni, 1994).

Não há dúvida a respeito da influência de Charcot sobre o pensamento de Freud. Mas como isso se estruturava? Qual era a relação com o saber que motivava essa afinidade? Apesar de ser um professor universitário, o saber de Charcot não seguia uma lógica universitária, pois de alguma forma ele deixava buracos, nos quais a busca freudiana por algo novo podia se alojar. Ele estava não-todo inserido na universidade. Em outras palavras, Charcot se colocava com seus erros e acertos sem tentar recobrir tudo por um saber referido aos mestres e às teorias.

É possível perceber, a partir do que Freud sublinha do discurso de Charcot, que o mestre francês mudava sua posição ao ensinar deixando sempre lacunas. De acordo com Freud (1893/1996f), Charcot, por dar apenas uma aula por semana, podia prepará-la cuidadosamente: "nessa exposição formal, em que tudo estava preparado e todas as coisas tinham seu lugar, Charcot indubitavelmente seguia uma tradição profundamente enraizada" (p. 27). Nesse instante sua lógica era de um mestre preocupado com o funcionamento da maquinaria psiquiatra, preocupado com o ensino de uma forma didática aos seus alunos.

Em contrapartida, quando Charcot sentia a "necessidade de apresentar a sua audiência um quadro menos esmerado de suas atividades" (Freud, 1893/1996f, p. 27) seu lugar mudava em relação ao ensino. Sua preocupação era com a singularidade de cada caso. Sua clínica cumpria tal propósito; mais especificamente, nas Leçons du mardi, nas quais Charcot, em aulas improvisadas, "expunha-se a todas as casualidades de um exame, a todos os erros de uma primeira investigação" (p. 27).

Tais aulas improvisadas fazem Freud (1893/1996f) afirmar que a distância entre aluno e professor estava estreitada, pois nesses momentos Charcot fornecia "o mais detalhado relato de seus processos de pensamento e [mostrava] a máxima franqueza sobre suas dúvidas e hesitações" (p. 27). Ao estreitar a distância entre ele e seus alunos e excluir do seu campo de saber as questões da terapêutica, do sexual, entre outras questões, Charcot deixava para Freud como herança um domínio não deflorado. Tal qual um analisante, a partir de seu lugar ele se submetia a um processo do qual se deixava ser um pouco bobo e dizia tudo que vinha a sua cabeça com relação a sua clínica, o que, efetivamente, produziu um saber. Ele deixou um domínio em reserva, o enigma de sua verdade que não pode ser dito em palavras.

Essa posição charcotiana provoca em Freud uma empolgação que perpassa a textura do relatório. O texto de Freud (1956/1996a) não segue um aspecto formal que seria exigido de um relatório acadêmico. A intenção, ao se dirigir ao Hôpital de la Salpêtrière, em Paris, era de ali continuar seus estudos de neuropatologia. Os fatores que contribuíram para essa escolha: primeiro, o grande acervo de material clínico, diversamente dos hospitais de Viena, nos quais o acervo era disperso; segundo, o renome de J.-M. Charcot; por último, acreditava que nada de essencialmente novo poderia esperar aprender, depois de haver usufruído do ensino de Theodor Meynert e Herman Nothnagel em Viena, mas queria formar seus julgamentos próprios por meio de sua experiência.

A postura de suspeita parece acompanhar Freud desde o início. Cabe, aqui, esclarecer que essa posição de suspeita não segue a lógica da suspeição de que haveria algo por trás, algum significado oculto das profundezas. A suspeita seria a mesma que defende Edgar Allan Poe (2005) em seu conto sobre a carta roubada. Aquilo que está mais do que evidente, mas que por esse motivo mesmo, ninguém vê. Todos os policiais procuram a carta pensando que ela está escondida, mas apenas Dupin tem a intuição de que alguém que é poeta e matemático não seguiria a lógica do mundo. Tal qual Dupin, Freud está submetido às cartas mais evidentes que os sintomas histéricos denunciam, na superfície mesma do dizer está a mensagem que o sintoma envia a seu destinatário.

Freud, por sustentar tal lugar, ensina uma posição frente às teorias e, principalmente, frente aos preconceitos teóricos impostos por nossas crenças. Ele tenta, por exemplo, tornar claro o fundamento em que baseia suas ideias, outra herança charcotiana. A qual pode ser verificada nas aulas improvisadas, quando Charcot pensa em voz alta e permite que os alunos participem da trajetória de seu pensamento:

Observamos que ele comparou o caso que tem diante de si com um acervo de quadros clínicos derivados de sua experiência e arquivados na sua memória, e identificou os sinais visíveis do presente caso com um desses quadros. De fato, também é assim que todos nós, à beira do leito de um enfermo, chegamos a um diagnóstico, embora o ensino oficial da clínica, muitas vezes, dê ao estudante uma ideia diferente. A isto se seguem os comentários acerca do diagnóstico diferencial, e o conferencista se empenha em tornar claros os fundamentos em que se baseou sua identificação: fundamentos que, conforme sabemos, muitos médicos com habilidade para fazer diagnósticos não sabem explicitar, embora seu juízo seja determinado por eles (Freud, 1892-94/1996c, p. 176).

De acordo com Freud (1956/1996a), havia um costume entre os médecins des hôpitaux1 franceses de mudarem frequentemente de hospital e trocarem o ramo da medicina que estavam estudando, porém Charcot, "quando era interne no Salpêtrière, em 1856, percebeu ser necessário fazer das doenças nervosas crônicas o tema de um estudo constante e exclusivo; resolveu retornar ao Salpêtrière como médecin des hôpitaux e, depois, jamais abandonar esse hospital" (p. 41). Freud ainda sublinha que Charcot declarava que "seu único mérito consiste em ter executado esse plano" (p. 41). O mérito de um grande homem é executar um plano de modo simples e com decisão: essa é mais uma herança charcotiana. Do mesmo modo, ele tinha o plano de construir algo novo e ser reconhecido por isso.

O anseio freudiano de apreender algo essencialmente novo era o que o sustentava em sua empreitada. Opinião que pode ser verificada no próprio texto do relatório ou evidenciada em qualquer texto de sua obra, mas também pelo que Porge (2009) denomina um desejo de transmitir um saber inédito. Tal aspiração casa com a novidade que Charcot denunciava nas entrelinhas de seu discurso, mas que não poderia ser admitida pelo próprio Charcot. Suas demonstrações com os casos de histeria, nas quais colocava e retirava sintomas por meio da hipnose, eram suficientes para que ele ocupasse seu lugar como médicin des hôpitaux. Óbvio que há um desejo em Freud e Charcot que motivava suas dúvidas e planos, mas não é possível recuperá-lo, apenas seus respectivos projetos, produções e demandas.

Além de relatar o modo de organização espacial e funcional, Freud (1956/1996a) se preocupa em descrever Charcot como o "homem que chefia toda essa organização e seus serviços" (p. 41). Relata que apesar de ele ter a idade de sessenta anos, demonstra uma vivacidade, jovialidade e a perfeição formal ao falar, além de paciência e amor ao trabalho. Freud limita suas visitas ao Salpêtrière e abandona suas tentativas de assistir a outras conferências devido à atração exercida por Charcot, que, além disso, o faz declarar que as outras conferências proferidas por outros médicos eram "peças de retórica bem construídas" (p. 42). Para além da persuasão charcotiana, Freud se interessava pelo modo como Charcot tenazmente percorria sua busca pelo saber.

A fascinação por tal homem e a inadequação do laboratório de anatomia faz Freud abandonar a intenção de fazer sua investigação científica a respeito dos problemas anatômicos. Em contrapartida, a abundância de material novo da clínica do Salpêtrière demanda de Freud todos os seus esforços para se beneficiar do ensino oferecido por Charcot. A semana de Freud era organizada entre as aulas teóricas do professor francês, "que encantavam os ouvintes [com] as mais recentes pesquisas" (Freud, 1956/1996a, p. 43), a apresentação dos casos clínicos típicos ou difíceis pelos seus assistentes, exames oftalmológicos efetuados na presença de Charcot e o trabalho nas enfermarias que eram sempre visitadas pelo mestre francês.

Freud (1956/1996a) relata que mais importante do que a experiência durante sua estada em Paris, foi o seu "constante contato científico e pessoal com o Professor Charcot" (p. 43). Dois pontos chamam atenção nesse constante contato: as investigações de Charcot eram sempre referenciadas pelos pacientes da clínica do Salpêtrière e o desânimo de Freud quando seu professor deixava algum desses casos afundar "no caos de uma nosografia ainda desconhecida" (p. 43).

Freud herda a inclinação charcotiana de referências aos casos clínicos e uma nosografia ainda a ser desbravada. Pontos cruciais para a inscrição da psicanálise no mundo. Já que ele nunca deixou de lado os casos clínicos para a construção de suas formulações teóricas, muito menos deixou de formular uma nosografia própria ao campo que estava constituindo. Charcot, por outro lado, não se preocupava com o tratamento da neurose histérica. Para suas demonstrações bastava que os pacientes comprovassem suas hipóteses de que os sintomas histéricos não eram encenações, e de que ele, Charcot, poderia promover a remissão ou o surgimento de sintomas pela via da sugestão hipnótica.

Ao contrário do que se poderia imaginar, a fascinação não era recíproca, pois Freud (1956/1996a) confessa que: "não me foi dada preferência em relação a qualquer outro estrangeiro" (p. 43). Por outro lado, Charcot concedeu a Freud (1886/1996b) a oportunidade de traduzir suas conferências, cujas conceituações eram pouco conhecidas, mas muito denegridas, para o alemão. Tal tradução foi publicada antes do texto original em francês. Freud (1892-94/1996c) também traduziu as Leçons du mardi, acrescentando algumas notas de rodapé. De acordo com Freud (1892-94/1996c) ele precisou oferecer tais préstimos, demonstrando mais sua busca pela aceitação de Charcot, do que uma aprovação propriamente dita.

O deslumbramento de Freud é um ponto importante, mas não é tudo para que nessa relação, efetivamente, algo seja herdado. Ele admite que Charcot transmitiu um conhecimento que ele próprio não possuía (Freud, 1914/1996h). Por exemplo, foi a partir do ensino de Charcot, que se lembrou do caso de Anna O. relatado por seu amigo Breuer (Mannoni, 1994).

A oposição freudiana em relação a algumas ideias do professor abre a possibilidade de que algo original possa advir. São as faltas no saber charcotiano que possibilitam a inscrição de uma teoria nova que dê conta do caos nosográfico que imperava no tratamento da histeria.

Apesar da dívida de gratidão para com Charcot, Freud pôde se desvencilhar até certo ponto do arrebatamento causado pelo professor. Quando Charcot morre, Freud escreve em seu obituário que aquele é o marco em que seu trabalho se separa do trabalho do mestre (Freud, 1893/1996f). A tradução das lições de Charcot é recheada de notas que de certo modo contradizem algumas opiniões do mestre. Freud exercia seu direito de criticar segundo o seu próprio ponto de vista, o que não obteve o salvo-conduto de Charcot, pois ele morreu antes que elas fossem publicadas (Freud, 1892-94/1996c).

Freud se familiarizou com a oposição desde os seus primeiros momentos na universidade, nos quais a massa rivalizava com os judeus por considerá-los inferiores: "Freud estava tão convencido da impossibilidade de evitar a resistência do público que, quando algum de seus escritos era aceito sem crítica, pensava que talvez tivesse tomado o caminho errado" (Mannoni, 1994, p. 105). Freud (1925/1996i) ampara essa via como algo que proporcionou "os fundamentos para um certo grau de independência de julgamento" (p. 17).

Em sua relação com Charcot, não foi diferente. Tentava contestar o mestre quando sublinhava que as considerações de Charcot contradiziam certas teorias, mas este retorquiu: "La théorie, c'est bon, mas ça n'empêche pas d'exister"2 (Freud, 1892-94/1996c, 1893/1996f, 1914/1996h, 1925/1996i). Esse dito será repetido por Freud em vários de seus escritos. Em outras palavras, a teoria não impedia que os sintomas histéricos continuassem a existir e a insistir em contradizê-la. Consequentemente, a clínica torna-se um lugar soberano para escutar, para dar lugar aos fenômenos que não cansam de contradizer as tradicionais ciências. O que demonstra a submissão de Freud a seus achados.

Para Freud (1893/1996f), Charcot restaura a dignidade da histérica; ela não era mais uma simuladora e, por conseguinte, considerava que os médicos e os pacientes não sofreriam mais descrédito. Porém, demonstra surpresa com o fato de Charcot não ter seguido a via de problematizar a etiologia, a divisão da consciência, etc. para explicar a histeria. Segundo Freud (1893/1996f), seu mestre francês relegava a histeria a mais um tópico da neuropatologia, apesar de fornecer "uma descrição completa de seus fenômenos" (p. 29), demonstrar que tais fenômenos seguiam "suas próprias leis e regularidades" (p. 29), e mostrar como reconhecer os sintomas para possibilitar o diagnóstico.

Charcot afirmava que a etiologia da histeria se devia à hereditariedade, que se tratava de uma degeneração e, além disso, "negava à hipnose qualquer valor como método terapêutico" (Freud, 1983/1996f, p. 31). Freud (1892-94/1996c, 1893/1996f) não conseguia coadunar essa ideia com a prática de Charcot de reproduzir artificialmente as paralisias histéricas. Ele apontava as contradições e fazia objeções à teoria etiológica de Charcot. Como Charcot esclarecia o mecanismo do fenômeno histérico e permanecia em uma abordagem puramente nosográfica da histeria? Como é que ele faz tudo isso e não consegue extrair que isso pode produzir algo com relação às histéricas, um tratamento, um saber inédito? Perguntas que resumem o pensamento de Freud sobre tais juízos, um enigma que se constituía em resposta às lacunas deixadas por Charcot. Sua solução foi procurar "delinear uma teoria psicológica dos fenômenos histéricos com base nos trabalhos escritos de Charcot" (Freud, 1892-94/1996c, p. 183).

Em resposta ao enigma causado pelo trajeto de Charcot, Freud (1892-94/1996c) já antecipa sua insatisfação com a sugestão hipnótica e afirma que o único fator indispensável para a etiologia da histeria são as influências nocivas sexuais. Freud (1914/1996h) marca o início da psicanálise quando deixa de usar a técnica hipnótica e passa a utilizar as associações livres. Ele próprio sofria desagrado e repúdio, principalmente, pela conceituação nova e original do sexual como etiologia da histeria, que herdou, segundo ele (Freud, 1914/1996h), de Breuer, Charcot e Chrobak: "esses três homens me tinham transmitido um conhecimento que, rigorosamente falando, eles próprios não possuíam" (p. 23).

Frente às três considerações desses homens acerca dos "secrets d'alcôve", "la chose génitale" e "virgo intacta"3, Freud se surpreendeu que eles, sabendo disso, não divulgam ou fazem um trajeto científico a respeito da causação sexual dos fenômenos histéricos. "Essas três opiniões idênticas, que ouvira sem compreender, tinham ficado adormecidas em minha mente durante anos, até que um dia despertaram sob a forma de uma descoberta aparentemente original" (Freud, 1914/1996h, p. 23). Ponto de assunção freudiana sobre sua própria intuição sobre a causação sexual da histeria. Ele não sabia que as posições desses três homens o influenciaram. Breuer, Charcot e Chrobak, ao serem questionados em relação às causas dos fenômenos histéricos retorquiam que se tratava de uma doença causada por problemas sexuais, mas, não levavam isso a sério. Por outro lado, Freud conseguiu formular uma teoria a partir desse enigma. Ele leva isso a sério, toma ao pé da letra e persiste, "apesar dos detalhes contraditórios, até conquistar-lhe um lugar entre as verdades aceitas" (Freud, 1914/1996h, p. 25).

Para ir além, nessa transmissão, para que se constitua o próprio estilo freudiano, foi necessário o passo de Charcot e das histéricas. Mesmo dentro da universidade, Charcot pôde se posicionar de maneira análoga às histéricas de Freud. Por sua divisão, deixa de herança um domínio que não pôde deflorar. Tal violação é feita por Freud quando consegue opor-se ao mestre e produzir um saber totalmente novo em relação às histéricas. O que faz Freud não seguir a via de muitos discípulos de Charcot? Por que ele não segue o percurso da neuropatologia?

Não é possível prever o que causou o trajeto freudiano divergente dos discípulos de Charcot. Pode-se no máximo afirmar que Freud possui o plano de constituir um saber original, ser reconhecido por isso. Consequentemente, aquilo que ele herda de Charcot na universidade permite produzir algo novo, um saber inédito. Além disso, Freud precisava de algo mais, pois estava em uma luta constante para defender esse saber singular. O que Freud sublinha das características de Charcot, que o fizeram ficar fascinado, não é suficiente para que ele constitua um saber próprio, nem mesmo sua oposição e não-compreensão frente ao mestre.

 

Freud e os outros: a análise original como suporte da produção de um saber inédito

Nesse ponto, não há como escapar ao questionamento acerca de outras influências que Freud tinha, além do anseio de conduzir um saber original e singular sobre o mal-estar na civilização. A principal delas é a sua relação com Fliess, considerada por muitos a análise original (André, 1987; Mannoni, 1994; Porge, 2010).

Suas correspondências com Fliess versam sobre um Freud atrelado ao coito interrompido, masturbação, etc.; a observação dos comportamentos sexuais, já que seus mestres diziam que era a falta de um coito normal que causava a neurose (Freud, 1950/1996d). Ele precisa do apoio de Fliess, mesmo este sendo louco (Barth e Foberg, 2008). Mas nesse ponto já há uma fuga de Freud, algumas contradições, dúvidas, receios e dificuldades no próprio texto. Ele deixa algo em aberto, nas entrelinhas parece que ele suspeita que não sejam os atos sexuais anormais em si os causadores da histeria, mas algo que ainda é lacunar para ele: "falta-me algo" (Freud, 1950/1996d, p. 241). É nesse momento, em carta à Fliess, que Freud se qualifica como histérico e passa a paciente de si mesmo (Mannoni, 1994).

Além disso, pode-se fazer um paralelo entre a análise de Freud e seus avanços na teoria, ou seja, o que era possível para ele suportar naquele momento. As considerações de Sabina Spielrein com relação à teoria de uma pulsão autodestrutiva que Freud antecipa em suas formulações teóricas serve a esse propósito. De acordo com Cromberg (2008), em 1911, uma das primeiras mulheres psicanalistas e analisada por Jung, Sabina formula algo a partir do que Freud tinha escrito: haveria algo de desprazeroso no prazer, uma pulsão autodestrutiva. Ele apenas consegue formular isso em 1920, com sua teoria sobre a pulsão de morte, somente nove anos depois, após ter rechaçado a conceituação de Sabina. Ele não tinha condições de ouvir o que ele próprio escrevia. Tal qual Charcot que, apesar de si mesmo, lhe transmitiu um saber que ele mesmo não possuía, Freud indicou à Sabina as bases necessárias para a formulação de uma pulsão autodestrutiva.

Provavelmente, ela tenha conseguido, pois havia passado por uma análise. Freud fizera apenas uma análise torta, denominada autoanálise, mas que se esboçava com seu amigo louco Fliess e com os outros que o substituíram sejam nas correspondências ou em suas relações, a partir de 1902, com os outros que se juntaram a ele para formar a IPA (International Psychoanalytic Association). Essa sustentação, portanto, era levada de forma cambaleante. Desse modo cambaleante, Fliess, "simplesmente por existir (nem sequer estava lá, mas em Berlim), ao mobilizar o desejo inconsciente, tornou possível essa estranha aventura, e foi Freud quem permitiu que ela pudesse se repetir" (Mannoni, 1994, p. 69).

Essa análise está descrita de certa forma na correspondência entre Freud e Fliess, os rascunhos e aflições que pululavam na tessitura dessas cartas: "foi diante da ignorância de Fliess que [Freud] deu os passos decisivos" (Mannoni, 1994, p. 62). Quando Freud (1950/1996e) tentou construir seu projeto para uma psicologia científica, relatou a Fliess sua dificuldade em produzir esse projeto e sua vontade de nunca vê-lo publicado. Um projeto inacabado foi publicado só depois da sua morte, mesmo com a cópia de Freud destruída por ele. No entremeio do projeto, deixa transparecer que Fliess dava forças e fôlego para que ele continuasse produzindo aquelas ideias. Porém, isso não foi suficiente para que esse projeto fosse acabado e aceito por Freud para ser publicado.

Possivelmente, Freud intuiu que o que estava escrito ali não tinha uma ligação com o projeto de sustentar um saber inédito. Ele se sentia devorado e exausto por essa tentativa de produzir uma psicologia científica (Strachey, 1996b). Possuía duas intenções:

descobrir que forma tomará a teoria do funcionamento psíquico se nela for introduzido um método de abordagem quantitativo, uma espécie de economia de força nervosa, e, em segundo lugar, extrair da psicopatologia tudo que puder ser útil à psicologia normal (Strachey, 1996b, p. 335).

Essas duas questões são consequência do seu afinco pela busca de algo novo. Ele as guardará por toda a sua obra: a libido e a utilização da psicopatologia para abordar a vida normal. Nesse texto, Freud deixa escapar que suas conclusões dependiam das observações clínicas dos pacientes neuróticos (Freud, 1950/1996e).

Por fim, ele se convence que o projeto não é interessante. Parece não querer seu nome ligado a esse rascunho entregue a Fliess, pois tudo nele está ligado às funções anatômicas, neurológicas, no qual a hipótese central depende do funcionamento dos neurônios em um sistema. Mais que isso, tinha o próprio neurônio como estrutura de funcionamento.

Talvez, ele buscasse com o projeto um modelo fictício sem relação direta com a neurologia, sua metapsicologia: "a partir do momento em que se vê em seu próprio terreno, [...] já não segue ninguém, e é aí que está a parte mais sólida de sua contribuição" (Mannoni, 1994, p. 150). Por outro lado, claramente lá estão as bases para o que ele vai desenvolver depois. Possivelmente, ele intuísse que a psicanálise não funcionaria se ele não excluísse a anatomia e a fisiologia. Outra herança charcotiana, pois Charcot excluía a fisiologia do seu campo operatório:

a observação clínica dos franceses, indubitavelmente, ganha em autossuficiência, no sentido de que relega a plano secundário os critérios relativos à fisiologia. A exclusão destes, no entanto, pode ser a principal explicação para a impressão enigmática que os métodos clínicos franceses causam ao não-iniciado. Aliás, nisso não há nenhum descaso pela fisiologia, mas uma deliberada exclusão, que é considerada vantajosa (Freud, 1892-94/1996c, p. 177).

A respeito do funcionamento de seu plano, Freud (1950/1996e) relata que o projeto funciona como uma máquina que anda sozinha, mas se assusta com tal funcionamento, talvez por não tratar em si de algo novo, ainda não era a psicanálise. Pode-se abstrair e afirmar que as formulações feitas no projeto possam servir aos neurólogos, mas não aos psicanalistas. Posição fundamentada pelas várias críticas feitas ao projeto pelo próprio Freud, o que o fez não publicá-lo. Obra inacabada e renegada por ele. Apesar de almejar muito o cientificismo do seu novo campo de conhecimento, talvez ele previsse que esse campo não podia estar muito ligado à ciência natural, biologia, fisiologia, histologia, etc, para que um saber original pudesse ser produzido. Sobre isso, conclui Lacan (2003): "que o substrato biológico do sujeito esteja implicado na análise até o fundo não resulta, em absoluto, que a causalidade que ela descobre seja redutível ao biológico. O que é indicado pela ideia, primordial em Freud, de sobredeterminação" (p. 174).

Em sua defesa infatigável "dos direitos do trabalho puramente clínico" (Freud, 1893/1996f, p. 23), Charcot satisfazia-se em ver algo totalmente novo: "costumava olhar repetidamente as coisas que não compreendia [e] indagar por que, na medicina, as pessoas enxergavam apenas o que tinham aprendido a ver" (p. 22). Ao repetir que "a maior satisfação humana era ver alguma coisa nova" (p. 22), Charcot legava a Freud uma suspeita frente às tradições teóricas. Inclusive as que o próprio Charcot produzira com seu método anatomoclínico, no qual as mudanças anatômicas subjaziam à doença. Na época, Freud questionava seu mestre dizendo que suas considerações clínicas contradiziam as tradicionais teorias. A resposta de Charcot foi direta: "tanto pior para a teoria, primeiro os fatos clínicos" (p. 23).

Não se deve perder de vista que foi a partir da clínica que Freud pôde formular o que construiu no projeto. Ele via no campo médico um modelo para construir seu sistema psíquico, mas talvez intuísse que o antigo conhecimento médico prevaleceria ao invés do que o projeto trazia como original. Freud (1950/1996e) pretendia constituir um novo campo, uma psicologia que pudesse ser incluída no rol das ciências naturais. Retornava à tradição teórica e à ambição de ser reconhecido, mas sua suspeita o impediu de terminar tal projeto. Aquilo que pululava em sua clínica, os fenômenos histéricos e o sexual, impediram Freud de concluir um projeto que parecia mais atrelado às tradições teóricas do os achados de sua própria experiência.

Retomando o intuito do artigo, foi percorrida de forma sucinta a trajetória de Freud em relação à Charcot. Durante esse convívio, segundo confidência a sua noiva, Freud percebeu uma mudança em si próprio: viu-se exaurido por Charcot e desarraigado de suas metas e opiniões (Strachey, 1996c). Precisou extirpar seus intuitos anteriores com a neuropatologia, sua investigação científica em relação aos problemas anatômicos. Tal exclusão não se deu de forma abrupta e isso que era excluído sempre retornava ao texto freudiano.

A exclusão ganha força em uma lógica da herança. É preciso que algo seja excluído para que uma lógica discursiva funcione, que algo seja sustentado com seriedade. A respeito disso, Silva e Lo Bianco (2009) avançam quando sustentam que o que é transmitido efetivamente não é comunicado por um saber. O que importa não é o que é comunicado, mas o real que sustenta essa comunicação ao longo dos séculos. Pela exclusão, tal qual o gozo, isso dá força ao significante para tentar cernir o real.

De acordo com Lo Bianco (2006c), quando Freud constrói uma cena real sobre Moisés, ele justifica a força da tradição judaica, perseguindo as lacunas do registro histórico de Moisés, constitui uma verdade com restos e ruínas: "a partir de fragmentos, de fósseis renegados pelo discurso coerente é possível descobrir que o que foi suprido continua agindo de um outro lugar, despojado de seu contexto" (Silva & Lo Bianco, 2009, p. 225).

Silva e Lo Bianco (2009) se deparam em Freud com o achado da divisão entre uma tradição comunicada e outra herdada. A primeira é feita pela comunicação direta e linear de um saber comunicado de geração em geração. Enquanto que a segunda é uma herança arcaica marcada pela ruptura, ela não é comunicada e sim transmitida. Transmissão que se dá por meio da irrupção de uma falha no sentido, algo que falta ao saber, que é, efetivamente, o transmitido. É a partir dos efeitos, das consequências que a causa pode ser construída a posteriori. Freud opera pela incidência do corte no discurso hegemônico anterior e pelo saber de causa que ele passa a personificar: a causa freudiana.

Ao citar a frase de Goethe, "Aquilo que herdastes dos teus pais, conquista-o para fazê-lo teu", Freud (1913/1996g, p. 188), mesmo sem saber, sugere que tal herança, que não se sabe qual é efetivamente, precisa ser tomada como própria. Como se dá essa operação? Em uma primeira acepção pode-se asseverar que essa transmissão é consumada pelo sintoma, modus operandi de resposta às exigências que rodeiam o mundo humano. Além disso, caso se considere que há sempre um excluído em qualquer transmissão, na verdade o excluído subsiste em sua função operativa e não há herança que possa ser herdada sem um preço a ser pago.

Quando Freud sustenta um campo em seu estado nascente não se pode desconsiderar o preço que ele teve que pagar pelas exclusões dos conhecimentos anteriores para focar na sua experiência. Ele reconhecia seus limites e sabia que não podia tudo dizer, que seu campo não formava um sistema sobre todas as coisas da vida. Pelo contrário, as limitações da sua ciência eram sempre relembradas por ele, para que não se perdessem em incoerências e inconsistências e pudessem "sustentar, com todas as forças, as próprias convicções baseadas na experiência" (Freud, 1914/1996h, p. 66).

Porge (2009) defende que a forma romanceada de Freud tratar os casos clínicos é um modo dele se incluir no caso. Essa inclusão se dá de tal modo que se evidencia a atitude freudiana no tratamento do caso, mais do que sua solução. Trata-se de casos inacabados e de sucessos duvidosos, cuja principal preocupação é a comprovação da hipótese do inconsciente. Será que esse movimento de incluir-se é algo proveitoso para o andamento da psicanálise? Quem sabe a narrativa romanceada de Freud se deve à própria natureza da questão que seu tratamento contemplava, seu caráter existencial (Mannoni, 1994).

Provavelmente, quando for levada em consideração em trabalhos futuros a escolha de Lacan oposta à Freud, a de não construir casos clínicos, mas extrair consequências dos casos romanceados por Freud e, possivelmente, de seus próprios casos, se obtenha uma resposta a essa pergunta. Por ora, sublinha-se a diferença entre essas posições. Esse ato freudiano foi necessário para o surgimento do campo da psicanálise, "posição de inventar a prática que exercia" (Porge, 2009, p. 51). O caráter subjetivo do lugar do romancista Freud é colocado em evidência no nascimento de sua disciplina, o que gera algumas imprecisões e imitações naqueles que começam a estudar a psicanálise.

Apesar de sua postura cientificista, Freud não estava inserido totalmente nessa lógica. Quando, por exemplo, sublinhou sua primeira divergência em relação a Breuer, remeteu à teoria deste sobre os estados hipnoides, uma teoria "até certo ponto fisiológica" (Freud, 1914/1996h, p. 21). Em contrapartida, sublinhou que ele "via a questão de forma menos científica; parecia discernir por toda parte tendências e motivos análogos aos da vida cotidiana" (Freud, 1914/1996h, p. 21). O que esclarece sua atitude de denúncia ao que seguia as lógicas e teorias hegemônicas de sua época. Apesar de demandar para si um lugar de homem da ciência, Freud sucumbe à psicopatologia da vida cotidiana, à inclusão de si no caso clínico, à demonstração de suas posições subjetivas para compor o campo nascente da psicanálise. Seu sintoma é dar conta do mal-estar que ronda a civilização, mal-estar que ele acredita poder situar, que de algum modo foi forjando suas convicções sobre a hipótese do inconsciente.

Suas recomendações estão por toda parte em sua obra. Principalmente, recomenda que ninguém siga seu exemplo (Freud, 1925/1996i). Isso deveria bastar para incutir nas cabeças daqueles que leem seus textos uma desconfiança mínima de que o caminho ali trilhado foi o de Freud. Que cada um precisa encontrar seu próprio sintoma frente ao saber que se imiscui na experiência clínica analítica.

 

Considerações Finais

Este artigo pode ser considerado uma operação de risco, pois "aos biógrafos pôde parecer que alguma coisa em seu passado preparava Freud para suas descobertas, mas, igualmente, que foram acasos e encontros que o conduziram até eles" (Mannoni, 1994, p. 19). Tentou-se exprimir o encontro contingente de Freud com Charcot. O professor, sem saber, sublinhou no aluno um anseio que este já carregava: a busca por algo novo. Freud deu vazão a tal aspiração constituindo um novo saber-fazer sobre o mal-estar que a neurose implicava. As operações freudianas possibilitaram a inserção de uma nova arte ao tratamento do mal-estar que não era reconhecido, que sucumbia ao caos nosográfico e a uma clínica da demonstração cênica.

A partir do que Charcot pôde demonstrar cenicamente, Freud (1893/1996f) constitui um problema: "como é que um paciente histérico é dominado por um afeto em relação a cuja causa afirma nada saber?" (p. 28). Mais do que isso, ele "se comporta como se de fato soubesse disso" (p. 28, grifo do autor). Na época, Freud extrai disso uma divisão da consciência, base para suas teorias sobre o inconsciente. Começa um percurso de idas e vindas, tentativas de concernir esse saber que não se sabe.

Se como afirma Lacan (2005), um analista "só pode durar a título de sintoma" (p. 67), a permanência de Freud como analista na civilização continua, pois ele evidencia "alguma coisa que não tinha estritamente nada a ver com que quer que houvesse sido dito antes" (p. 69). O retorno a Freud é poder extrair o quê de inédito seu achado possibilitou surgir no mundo. Sobretudo, qual sintoma cada um pode tomar como seu na herança que ele deixou como legado.

A relação entre o professor Charcot e o aluno Freud foi a base para a construção de uma nova teoria que Freud nos deixou como herança. Estrutura não comunicada que encerra um lugar perante o saber freudiano: da fascinação à constituição de um enigma. Essa relação freudo-charcotiana nascida no contexto da universidade sustenta a transmissão do saber freudiano na práxis cotidiana dos psicanalistas de hoje. E permite, assim, que ele elabore uma produção reconhecida pela civilização. É como se fosse possível transpor as palavras de Viñar (2016) à boca de Freud:

Eu, que sou um clínico da psicanálise, por ser clínico, me considero um pesquisador. Não necessito buscar nada dessa sistematização no empírico ou conceitual para saber que, se estou disponível para sistematizar a busca de alguma coisa inédita e que me surpreenda, aí estou na atitude e num gesto de investigação (Viñar, 2016, p. 158).

No que diz respeito ao que se pode extrair dessa relação de saber freudo-charcotiana, cada um, portanto, precisa empenhar-se em encontrar sua originalidade acerca do saber herdado.

Espera-se, para além dos objetivos deste artigo que, com a discussão aqui apresentada outros estudos a respeito da relação professor-aluno possam ser elaborados. Uma via aberta pela tese de Kupfer (1990) sobre o desejo de saber, cujo prosseguimento se fez aqui a partir de outra perspectiva.

 

Referências

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Endereços para correspondência:
Beethoven Hortencio Rodrigues da Costa
beethoven@usp.br

Maria Cristina Machado Kupfer
mckupfer@usp.br

Submetido em: 24/02/2015.
Revisto em: 19/09/2016.
Aceito em: 23/09/2016.

 

 

1 De acordo com Strachey (1996a) médecin des hôpitaux "corresponde aproximadamente a um médico veterano em sua atividade e interne significa médico recém-formado ou residente" (p. 40).
2 Em outras palavras, apesar da teoria ser algo bom, ela não impede os fenômenos que a contradizem de existir.
3 Segredos de alcova, a coisa genital e virgem intacta.

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