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Arquivos Brasileiros de Psicologia
On-line version ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.70 no.spe Rio de Janeiro 2018
ARTIGOS
Para acabar com o juízo (de deus): Artaud, Foucault e os corpos ingovernáveis1
To end the judgment (of god): artaud, foucault and the ungovernable bodies
Para acabar con el juicio (de dios): artaud, foucault y los cuerpos ingobernables
Adriana Rosa Cruz Santos
Docente. Instituto de Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
RESUMO
Este ensaio busca escapes ao sistema do juízo, que modela os corpos a partir do julgamento, da culpa e da falta. Para Artaud, este sistema esvazia a vida de sua potência de fazer-se, a partir de transcendências ordenadoras e subjugadoras do real. O juízo de deus, o invisível tribunal colado à pele, aborta a vida e gangrena processos de subjetivação, garantindo a ordem do destino suposto à custa do silenciamento do que pulsa. A crueldade é, portanto, o combate e a ética de sustentar a vida na respiração e na transpiração, afirmando o desdobrar do tempo nos corpos e acontecimentos. Se é o corpo o território onde se governa, é justamente nele onde é possível produzir enfrentamentos ao sistema do juízo, por meio da ativação de outros regimes sensíveis, da construção de corpos sem órgãos, como propõe Artaud. Deste modo, tanto para Foucault quanto para Artaud, é na materialidade do corpo que se produzem os enfrentamentos ao governo de si e das condutas e os ensaios de uma vida livre.
Palavras-chave: Artaud; Foucault; Corpo sem órgãos; Subjetivação; Política.
ABSTRACT
This essay seeks escapes from the system of judgment, which models bodies from judgment, guilt and failure. For Artaud, this system empties life of its power to make itself, from the subduing and transcendent transcendences of the real. The judgment of God, the invisible court attached to the skin, aborts life and gangrenous processes of subjectivation, guaranteeing the order of supposed destiny at the expense and silencing of what pulsates. Cruelty is therefore the combat and the ethic of sustaining life in breath and perspiration, affirming the unfolding of time in bodies and events. If the body is the territory where the act of governing is performed, it is precisely in that place that it is possible to produce confrontations with the system of judgment, through the activation of other sensible regimes, the construction of bodies without organs, as Artaud proposes. In this way, both for Foucault and for Artaud, it is in the materiality of the body where the confrontations of self-government and of the behaviors and tests of a free life are produced.
Keywords: Artaud; Foucault; Body without organs; Subjectivation; Politics.
RESUMEN
Este ensayo busca escapes al sistema del juicio, que modela los cuerpos a partir del juzgamiento, de la culpa y de la falta. Para Artaud, este sistema vacía la vida de su potencia de hacerse, a partir de las trascendencias ordenadoras y subyugadoras de lo real. El juicio de dios, el invisible tribunal pegado a la piel, aborta la vida y gangrena procesos de subjetivación, garantizando el orden del destino supuestamente a costa del silenciamiento de lo que pulsa. La crueldad es, por lo tanto, el combate y la ética de sostener la vida en la respiración y en la transpiración, afirmando el desdoblamiento del tiempo en los cuerpos y acontecimientos. Si es el cuerpo el territorio donde se gobierna, es justamente en él donde es posible producir enfrentamientos al sistema del juicio, por medio de la activación de otros regímenes sensibles, de la construcción de cuerpos sin órganos, como propone Artaud. De este modo, tanto para Foucault como para Artaud, es en la materialidad del cuerpo que se producen los enfrentamientos al gobierno de sí y de las conductas y los ensayos de una vida libre.
PalabrasClave: Artaud; Foucault; Cuerpo sin órganos; Subjetivación; Política.
Introdução
"[...] enquanto não mudarmos a anatomia do homem atual, ele não fará nada nem para a poesia, nem por nenhuma espécie real e CORPORAL de LIBERDADE"
(Artaud, 1947/2017, p. 154)
Março de 1947, Antonin Artaud está muito debilitado por um câncer, pelos eletrochoques e por outras tantas violências vividas em nove anos de internação psiquiátrica, muitos dos quais atravessados pela segunda guerra, período em que esteve perdido dos amigos e da família. Poeta, ator, lúcido-louco, retorna ao palco de um teatro depois de dez anos afastado pelo sequestro psiquiátrico, para uma conferência irrealizada2, já que Artaud se recusa a ler o que escreveu. Segundo ele, "de repente me dei conta que já havia passado da hora de reunir as pessoas em um teatro, mesmo que para lhes dizer as verdades [...]" (Artaud, 1947/2017, p. 124). O Momo explode, segundo a sua própria descrição, em "arrotos odiosos, cólicas e câimbras no limite da síncope" (idem, p.123). É duramente criticado, inclusive por seu antigo amigo André Breton, um dos ícones surrealistas. Em carta a Breton, que o convida a escrever um texto para uma exposição de arte, Artaud afirma:
Não existe o cosmos e cada homem é seu próprio mundo sozinho.
Cabe-lhe, portanto, a sua iniciação fazendo-se viver, ou seja, criando os braços, as mãos, o pé e a respiração de sua pessoa e inexpugnável vontade.
Quem não quer iniciar-se a si próprio não encontrará outro que o faça. E se há um sol, uma luz e estrelas é porque todo mundo se entregou, nesse ponto da luz universal, às concepções desse larápio fenomenal chamado deus, em vez de fazer como no mundo verdadeiro onde cada um se ilumina a si próprio com sua própria luz, como Van Gogh para pintar a noite com seu chapéu de doze velas.
[...] O corpo humano tem suficientes sóis, planetas, rios, vulcões, mares e marés para não precisar ir buscá-los na suposta natureza exterior e do outro.
A atividade surrealista era revolucionária com a condição de reinventar tudo sem mais obedecer em nenhum ponto a alguma noção trazida pela ciência, a religião, a medicina, a cosmografia etc.
E [há] nesse ponto uma revolução ainda a ser feita com a condição de que o homem não se pense revolucionário somente no plano social, mas que ele acredite que ele deve sê-lo, sobretudo no plano físico, fisiológico, anatômico, funcional, circulatório, respiratório, dinâmico, atômico e elétrico. [...]
Para mim seria a única revolução que poderia me interessar, mas não seria, é uma U T O P I A [...] (Artaud, 1947/2017, pp. 127-8).
Este pequeno trecho da carta a Breton expõe a perspectiva do poeta diante da vida, insistindo que não há nada exterior ao Homem que deva guiá-lo, determiná-lo. O Homem deve criar a si próprio e colocar-se de pé. Há forças cósmicas que o habitam - sóis, planetas, rios, vulcões, mares e marés -, e expressam sua vastidão estética e ontológica. Neste contexto radicalmente imanentista, duas linhas de força emergem: uma que enlaça corpo-julgamento e outra que instiga a pensar-viver a relação corpo-revolução. Comecemos a desfiar a primeira.
Artaud recusa o plano transcendente, ordenador do real, expresso na figura de deus (mas também da ciência, da religião, da medicina...), que opera por julgamento e sujeição. Esta recusa à sobrecodificação e a busca pela expressão singular dos corpos, já aparece na proposição do teatro da crueldade, quando o poeta afirma que o teatro deve desenvolver uma linguagem própria, e não se submeter ao despotismo do texto e da linguagem verbal: "a cena é um lugar físico e concreto que pede para ser preenchido e que lhe façam falar sua linguagem concreta" (Artaud, 1938/1987, p. 51).
O que há é o que existe e insiste na superfície dos acontecimentos e dos corpos. Não há explicações abaixo - fundamento ou sentido submersos a serem desvelados ou interpretados -, nem acima, céus da transcendência e da representação, de onde provém o juízo de deus. O que há é o corpo e sua materialidade. Não apenas o corpo-que-nos-tornamos, fazendo ressoar certa afirmação de Deligny (2015) acerca do homem, corpo estratificado e organizado, corpo-com-órgãos, mas também outro corpo, percorrido por intensidades, ensejando incontáveis composições que escapam ao julgamento de deus. Um corpo que se constitui na imanência dos encontros, na materialidade intensiva que constitui o viver, corpo-sem órgãos que não cessa de desfazer a forma-organismo, fixação e ordenação dos órgãos no corpo, interpelado que é pelas forças do viver.
[...] quero dizer que descobri a maneira de acabar com esse macaco de uma vez por todas
E já que ninguém acredita mais em Deus, todos acreditam cada vez mais no homem.Assim, agora é preciso emascular o homem.
Como?
Como assim?
Sob qualquer ângulo o Sr. não passa de um maluco, de um doido varrido.
Colocando-o de novo, pela última vez, na mesa de autópsia para refazer a sua anatomia.
O homem é enfermo e mal construído.
Temos que nos decidir a desnudá-lo para raspar esse animalúculo que o corrói mortalmente,
Deus
E juntamente com deus
os seus órgãos
Se quiserem, podem meter-me numa camisa de força
Mas não existe coisa mais inútil que um órgão.
Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos,
Então o terão libertado de seus automatismos
E devolvido sua verdadeira liberdade.
Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas
Como no delírio dos bailes populares
e esse avesso será
Seu verdadeiro lugar.(Artaud apud Lins, 1947/2011, p. 44).
Assim, há um combate a ser travado que beira a loucura: esvaziar-se dos automatismos e abrir espaço para corpos que encarnem sua própria potência de viver, recusando o organismo como organização transcendente que condiciona o gesto e a pulsação. Desfaz-se o organismo simultaneamente encontrando e fabricando um corpo aberto aos acontecimentos do viver, um corpo-sem-órgãos e, ao fazê-lo, se combate o juízo de deus. Não seria a loucura a radical expressão da potência estética do homem, expressa no delírio, esta criação de mundos? Segundo Deleuze,
[...] a vitalidade não-orgânica é a relação do corpo com forças ou poderes imperceptíveis que dele se apossam ou dos quais ele se apossa. [...] Criar para si um corpo-sem-órgãos, encontrar seu corpo sem órgãos é a maneira de escapar ao juízo. Já era esse o projeto de Nietzsche: definir o corpo em devir, em intensidade, como poder de afetar e ser afetado, isto é, Vontade de potência (Deleuze, 1997, p. 149).
Mútua (e múltipla) possessão de forças, isto é um corpo. No entanto, para que possa havê-lo, é preciso se desembaraçar do que impede a possessão. Lembremos: esvaziar-se dos automatismos. Como também adverte Deleuze, trata-se de um combate entre e não um combate contra. Um combate entre é um combate no qual uma força se amplia ao se compor e dobrar outras forças, enquanto o combate contra reedita a vontade de aniquilamento do que não é ordem, reatualizando o sistema do juízo. O combate que aqui se afirma não é guerra, pois a guerra, lembra Deleuze, é "um juízo de deus que converte a destruição em algo justo" 1997, p. 151). Toda guerra, santa ou profana, é um juízo de deus que converte a destruição em algo justo. A guerra precisa de exércitos e Estados, obediência e servidão. Guerreiros não fazem guerra em nome de nenhuma causa superior, lutam e combatem para viver. O combate é antes de tudo em nós, em nossas vísceras, nossos gestos, neste tribunal invisível que respira e ama. Combater entre é dobrar as forças que nos compõem e nos aprisionam no sistema de julgamento perpétuo, no qual deslizamos entre os papéis de vítima e algoz; juiz, carrasco e réu; técnico especialista científico a destilar verdades e prescrições; "repetidores da quadrilha dos dopantes", como vaticinou Estamira (2006), a envenenar a vida com palavras e gestos silenciadores e subjugar a pluralidade do real a um único e eterno certificado de validade, o juízo de deus. Fala Artaud:
Acabar com o julgamento dos nossos atos
através da sorte
e de uma força dominante
é significar
sua vontade de um modo muito novo
para indicar que a ordem das coisas e a do destino mudam o seu curso. [...]
(Artaud, 1947/2017, p. 160).
O juízo de deus, o sistema do julgamento, o invisível tribunal colado à pele, ao olhar e aos senões abortam a vida, gangrenam os processos de subjetivação, estagnando tudo que é movimento e criação, garantindo a ordem do destino e das coisas à custa do silenciamento do que pulsa. A crueldade é o combate. Crueldade que é, segundo Artaud, uma ética de sustentar a vida na respiração e na transpiração, o desdobrar-se do tempo nos corpos e acontecimentos, pois "[...] a criação e a própria vida só se definem por uma espécie de rigor, portanto de uma crueldade básica que leva as coisas ao seu fim inelutável seja qual for o preço" (Artaud, 1938/1987, p. 133). Atitude trágica, que faz mais uma vez lembrar Nietzsche e a proposição do eterno retorno, onde criação e destruição não são forças que se opõem, mas compõem a experiência de viver (Nietzsche, 1882/2001).
A palavra crueldade deve ser considerada num sentido amplo e não no sentido material e rapace que normalmente lhe é atribuído. [...] Pode-se muito bem imaginar uma crueldade pura, sem dilaceramento carnal. E, aliás, filosoficamente falando, o que é a crueldade? Do ponto de vista do espírito, a crueldade significa rigor, aplicação e decisão implacáveis, determinação irreversível, absoluta (Artaud, 1938/1987, pp. 131-2).
Uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida, rigor cósmico e necessidade implacável, no sentido gnóstico de turbilhão de vida que devora as trevas, no sentido dessa dor fora de cuja necessidade inelutável a vida não consegue se manter Artaud, 1938/1987, p.133).
A crueldade é um sistema que sabota o juízo de deus, é a expressão deste combate incessante entre. O sistema da crueldade expressa as relações dos corpos com as forças do mundo, enquanto o sistema do juízo reinstaura incessantemente a dívida infinita a partir das relações da alma imortal com um plano organizador-transcendente nas suas mais variadas formas. A crueldade aposta num corpo que se forma e se transforma na medida em que se lança ao encontro de outros corpos, afirmando a dimensão trágica do viver.
Foucault teve a pele marcada pelo juízo de deus, da polícia, da ciência: pela sexualidade dissonante da heteronormatividade compulsória, pelas pesquisas com objetos "marginais" (a loucura, a prisão...), por sua filosofia encarnada e suja de poeira dos arquivos, pela irredutibilidade a qualquer sistema explicativo e identitarizante, pela crueldade artaudiana encarnada numa vida que o arrastou aos limites de si e da subjetividade ocidental, levando-o a se perguntar como nos tornamos aquilo que somos e quais as vias de ultrapassagem possíveis (Foucault, 2000). Ressoando Foucault em Artaud, indagamos: como esquivar das incessantes tentativas de governo dos/nos corpos? Como escapar do juízo de deus?
Em Vigiar e punir (1989), o filósofo francês apresenta o corpo no centro dos processos políticos de extração de riqueza e regulação da vida e desloca a análise das macroestruturas socioeconômicas para a tessitura ínfima e cotidiana das relações, tornando visíveis as entranhas do capitalismo, expressas nas inúmeras e singulares estratégias de gestão dos corpos e sua lenta e processual objetivação como força de trabalho, corpo docilizado, não apenas na fábrica, mas na escola, no hospital, no quartel, na vida.
A disciplina instaura um tribunal perpétuo, no qual o sistema do juízo se amplifica com a intensificação do olhar para si mesmo e o panoptismo generalizado, fazendo do julgamento um sistema que engata necessariamente o autoexame normalizante e outras técnicas de si. O governo dos corpos passa pela dobra da força sobre si mesma, afirmará posteriormente Foucault, destacando a indissociabilidade entre o governo dos corpos e a relação de si para consigo.
[...] se considerarmos a questão do poder, do poder político, situando-a na questão mais geral da governamentalidade - entendida a governamentalidade como um campo estratégico de relações de poder, no sentido mais amplo do termo, e não meramente político, entendida, pois como um campo estratégico de relações de poder no que elas têm de móvel, transformável, reversível -, então, a reflexão sobre a noção de governamentalidade, penso eu, não pode deixar de passar, teórica e praticamente, pelo âmbito de um sujeito que seria definido pela relação de si para consigo (Foucault, 2004, p. 306).
É no âmbito, pois, dos processos de subjetivação, que objetivam e circunscrevem sujeitos governáveis, mas também possibilitam a instauração de relações de si para consigo que escapem ao governo, que o sistema do juízo busca operar. A esse respeito, Foucault já sinalizara em Vigiar e Punir (1987) de que forma os saberes psi participam ativamente desta nova anatomia política dos corpos, por meio do dispositivo do exame.
O ponto ideal da penalidade hoje seria a disciplina infinita: um interrogatório sem termo, um inquérito que se prolongasse sem limite numa observação minuciosa e cada vez mais analítica, um julgamento que seja ao mesmo tempo a constituição de um processo nunca encerrado, o amolecimento calculado de uma pena ligada à curiosidade implacável de um exame, um procedimento que seja ao mesmo tempo a medida permanente de um desvio em relação a uma norma inacessível e o movimento assindótico que obriga a encontrá-la no infinito (Foucault, 1989, p. 199).
A disciplina infinita, o tribunal perpétuo, o sistema do julgamento, o juízo de deus: cada vez que não me encontro onde acho que deveria estar, cada vez que me desconheço aos olhos do outro, cada vez que me perco tentando me localizar nos múltiplos sistemas de normalização e controle, instaura-se a falta, a culpa, a dívida. É por meio desta máquina que o corpo se torna deficitário, insuficiente, inseguro e, nessa condição, passa a clamar por prescrição técnica ou espiritual, polícia, governo, Estado. O juízo de Deus se alimenta do enfraquecimento das almas no tribunal perpétuo, por sua abdução ao sistema de representação, que as faz buscar fora de si a referência para se conduzir na vida. Como lembra Deleuze, "o sistema da crueldade enuncia as relações finitas do corpo existente com forças que o afetam, ao passo que a doutrina da dívida infinita determina as relações da alma imortal com os juízos" (Deleuze, 1997, p. 145).
Nesse sentido, a fim de melhor governar a conduta dos humanos, instauram-se políticas de subjetivação e de regulação dos corpos que os dissociem daquilo que podem, sujeitando-os a uma ordem transcendente que acaba por configurá-los como eternamente deficitários em relação a esta ordem que permanentemente lhes escapa, em sua exterioridade constitutiva. Revelado o funcionamento da máquina de julgamento e docilização, é possível encontrar brechas de respirar: se interrogarmos e estranharmos seu funcionamento é possível acessar políticas de subjetivação outras, onde os corpos possam reencontrar sua potência, fazendo a máquina (a)variar. É a vida mesma, em sua capacidade de variação contínua, que não cessa de escorrer entre os dedos do maquinista, revelando que a resistência, como também já advertira o filósofo, é sempre primeira (Foucault, 1995). Se para Foucault a ética é a prática refletida da liberdade (Foucault, 2006), é justamente porque o escape (ainda que parcial) ao governo e ao juízo passa necessariamente pelo combate, em ato, de tudo que aprisiona o corpo e pelo constante desmanchamento deste eu que nos tornamos, para que outras possibilidades existenciais possam emergir.
[...] o problema político ético, social e filosófico de nossos dias não consiste em tentar liberar o indivíduo do Estado nem das instituições do Estado, porém nos liberarmos tanto do Estado quanto do tipo de individualização que a ele se liga. Temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposto há vários séculos (Foucault, 1995, p. 239).
Corpos ingovernáveis, portanto, emergem de práticas desnaturalizadoras de si, da construção de novos regimes sensíveis - corpos sem órgãos, portanto -, os quais não se constituem fora do plano coletivo do viver e supõem a ampliação do grau de abertura às intensidades do mundo: corpos que abram seus olhos, poros e pulmões para serem encruzilhada de forças, ponto de captação, refração, composição, decomposição e transmutação de si e do mundo: combate entre, como nos alertou Deleuze.
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A segunda linha que emerge na carta de Artaud a Breton, apresentada no início deste escrito, é a que articula revolução e corpo. A revolução segundo o poeta deve se materializar na densidade plural dos corpos, pois, segundo Artaud, é fundamental "que o homem não se pense revolucionário somente no plano social, mas que ele acredite que ele deve sê-lo, sobretudo no plano físico, fisiológico, anatômico, funcional, circulatório, respiratório, dinâmico, atômico e elétrico" (Artaud, 2017, p. 127). Como ser revolucionário "no plano físico"?
Eu não quero que de uma falsa anatomia do cosmos saia um esqueleto do qual serei obrigado a apertar a mão.
Ainda mais que sei, sozinho, me fazer um corpo de outra forma mais habitável e vivível que essa carcaça de pitris dementes.
Feiticeiros de vodu, ou do Ciguri etc. etc.
O corpo humano atual é um inferno com o qual se atracaram todas as magias, todas as religiões, e todos os ritos para esclerosar, atar, petrificar, amarrar dentro do módulo de suas estratificações atuais, que são o primeiro verdadeiro impedimento a toda verdadeira revolução (Artaud, 1938/1987, pp. 132-133).
Recusar "o esqueleto que sai da falsa anatomia do cosmos" (idem) é combater ativamente a organização transcendente do corpo, combater o organismo como fixação dos órgãos e pacificação da potência do corpo em funções pré-definidas. As estratificações do corpo "são o primeiro verdadeiro impedimento a toda verdadeira revolução" (ibidem), adverte Artaud. O juízo de Deus se inscreve nos corpos, envenenando-os até paralisá-los. Há uma conexão direta entre a potência política de fabricação de mundos outros e a materialidade dos corpos. Foucault ecoa Artaud:
O que procuro é tentar mostrar como as relações de poder podem passar materialmente na própria espessura dos corpos sem ter de ser substituídos pela representação dos sujeitos. Se o poder atinge o corpo, não é porque ele foi inicialmente interiorizado na consciência das pessoas (Foucault, 2014, p. 38).
Foucault dá a ver a conexão somatopolítica, revelando que o poder investe diretamente a singularidade somática, buscando conduzi-la de modo a melhor extrair sua potência produtiva e reduzir sua potência política. Antes de ser uma ideia que convence ou uma ordem que determina, o juízo de Deus é um conjunto de afecções (Spinoza, 2007) que dá forma ao corpo, de marcas intensivas que engendram gestos, desejos, formas de se relacionar, pensar, viver. Assim, não se deixar governar, tornar-se ingovernável, remete a uma recusa que não se restringe ao plano da vontade ou da consciência. Por este motivo, não se trataria exatamente de uma recusa (oriunda da vontade soberana do sujeito), mas de um escape ao sistema do julgamento por meio da ativação de conjugações sensíveis, que fazem fugir o sujeito em favor de outros de si. Escape que se dá ao desprogramar intensivamente o corpo, retirando suas estratificações, fazendo surgir corpos sem órgãos capazes de experimentar os acontecimentos em sua deriva singularizante.
"Ser revolucionário no plano físico", como propôs Artaud, é combater nas vísceras, restaurando certa porosidade e plasticidade do viver que desmanchem o corpo do juízo e do governo, instaurando outros vetores de existencialização. Sair do ponto de vista do colonizado, do juízo de deus e do cidadão temente ao Estado. Ser a revolução na densidade de si mesmo, si mesmo que é sempre um si-mundo. Estar de corpo presente e conectado às variações intensivas de si e dos demais corpos. Abertura ao acontecimento e ao intempestivo. Corpo-encruzilhada. Abertura ao que desarticula e ocupa. Revolução visceral. Corpo sem órgãos periférico, anacrônico, dissonante. Combate por contágio e propagação sonora, sensível, política.
Meu corpo tem sido tingido pelas cores e saberes invisibilizados deste país. tem sido inundado pela minha própria história, apagada pela suavidade brutal da narrativa familiar de uma bisavó indígena "pega no laço". Tenho descoberto outros brasis no meu corpo de mulher. De estupros e violências intangíveis. Mas também de ritmos e alegrias e resistências da música periférica brasileira, apresentada por Eduardo de Matos Silva, aluno de quem sou declarada fã. Rael da Rima, Inquérito, Rincón Sapiencia, Racionais MC, Linn da Quebrada. Terra de dores marcadas a ferro e palavra na pele preta, pobre, racializada, generificada, psiquiatrizada, encarcerada, enquadrada, catalogada, diagnosticada. Tenho desaprendido neste ofício de professora. Meu corpo tem entrado em transes, transições, trânsitos. Às vezes bruscos, às vezes sutis, nas salas de aula e fora delas: ocupações, oficinas, estudos, festas, ruas, gargalhadas, abrigos, encontros de saberes. Ervas, seres invisíveis, saberes ancestrais e insurgências contemporâneas têm visitado minhas aulas. Além das cotidianas bruxarias de Lygia Clark em nossos corpos, a pesquisa nos limites de nossa pele3, das nossas sensações e subjetivações - atualizando outras virtualidades relacionais, para usar uma expressão de Foucault (1981) referindo-se ao modo de vida gay - entre professora-alunas, pesquisadores -"objeto" de pesquisa, pensamento-corpo. A sala de aula sem cadeiras comporta sacos de água, almofadas de areia, pedrinhas, corpos em comunicação sensorial e intensiva e certa deriva experimental. Em tempos de zumbis, corpos plastificados e sensações fast food. Quilombolas e indígenas tem me contagiado com sua cosmovisão politeísta e com seu ethos de vida guerreiro, que renuncia à guerra. Sem Estado. Antonio Bispo (Santos, 2015), liderança quilombola do Piauí, a quem tive o privilégio de ouvir recentemente, falava de um ensinamento de um tio, se não me engano, de que se devia usar a arma do inimigo pra se defender e não para atacar, pois se usamos a arma do inimigo pra atacar, viramos o inimigo... (esta é minha versão do que ouvi, aqui não tem aspas, nem literalidade). Amigos antigos continuam me acompanhando, agora também acompanhados de novos: Foucault, Artaud, Deleuze, Guattari, Espinosa, Nietzsche, Clarice, Pessoa, Manoel, Leminski, João, Heliana, Cecília, Catirina, Fanon, Bel Hooks, Abdias, Eduardo, Andréa, Maju, Paloma, Marcelle, Anas muitas, Bela, André, Pedros, Gabi, Kaíque, Camila, Henrique, Bárbara, Júlia, Letícia... A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) vive e nós também. A UERJ vive em nós, entre nós, VIVE e grita em mim. A Maré vive. Quintino, Mesquita, Deodoro, São Gonçalo. Rocinha e o muquifo sem nome certo. Os loucos, oficiais ou não, também vivem. A moça do café e o engraxate na rua. Em meio à devastação do golpe no qual vivemos, a esquerda estabelecida em siglas, bandeiras e orçamentos, troca a luta de agora pela guerra em 2108, de olho no juízo de deus democrático-eleitoral. Tenho me perguntado que luta merece ser vivida e qual a melhor maneira de incorporá-la, vesti-la, fazê-la rodopiar e voar, como as baianas do carnaval, as giras de terreiro, os sufis ou os parangolés de Hélio na Mangueira. Às vezes pode ser estratégico conjugar o combate contra ao combate entre, mas como fazê-lo sem entristecer, maldizer, julgar, mortificar? Como fazê-lo sem deixar o sangue disponível para os vampiros de plantão? O precioso sangue e outros tantos líquidos que nos mantém vivos: lágrimas, suores, gozos, humores, linfa, liquens, licores... como usá-los pra umedecer as mucosas, as palavras ressecadas, os sentidos gastos, os silêncios ocos, os automatismos permanentemente investidos contra um corpo que insiste em ranger, cantar, pulsar? Como não atrapalhar o desgoverno dos corpos? Todas essas coisas têm transpirado e transtornado as aulas, meu corpo, minha vida. Minha...??!
O homem que vive a sua vida nunca se viveu a si mesmo, nunca viveu seu si mesmo, como um fogo que vivifica todo um corpo na extensão integral do corpo, a força de consumir esse corpo, o homem não se vive todo de si mesmo a cada minuto de seu corpo, num espaço absoluto do corpo, ele está tanto de pé quanto de joelho, tanto occipital quanto orelha, tanto pulmão quanto fígado, tanto membrana quanto útero, tanto ânus quanto nariz, tanto sexo quanto coração, tanto saliva quanto urina, tanto alimento quanto esperma, tanto excremento quanto ideia, quero dizer que o que é o eu ou o si não está num eixo de percepção única, e que o eu não é mais único porque ele está disperso no corpo em vez do corpo estar reunido sobre si mesmo numa igualdade sensorial absoluta, e também não compõe uma percepção do absoluto. - Porque o homem não está apenas derramado no seu corpo, ele está derramado no fora das coisas, como um morto esquecido de seu corpo e que nada em torno ao seu corpo porque esqueceu seu corpo e seu corpo o esqueceu, e o homem que não se vive todo si mesmo comete a cada instante o erro de crer ser esse si mesmo, espírito, ideia, concepção, noção, que flutua num ponto do corpo, em vez de ser ele mesmo seu corpo e a todo instante todo seu corpo. - Porque não se trata de se esgotar todo em si mesmo, de um só golpe, sob o pretexto de se viver tudo, - mas de descer ao fundo desse tudo e daí trazer o si mesmo, para se chegar a esse cálculo de corpo onde a alma uterina do corpo se reúne em todo o corpo, para nele compor a estatura, e não mais situar a estatura nem fora nem dentro da estatura do corpo, mas na estatura uterina da alma que é o ser risonho do corpo (Artaud, 1947/2017, p. 115-116).
Porque o homem não está apenas derramado no seu corpo, ele está derramado no fora das coisas. Derramado no fora das coisas. Porque o homem não está apenas. Ele está no fora das coisas. No fora das coisas. Na estatura uterina da alma que é o ser risonho do corpo.
Referências
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Endereço para correspondência:
Adriana Rosa Cruz Santos
arosacs@uol.com.br
Submetido em: 01/05/2018
Revisto em: 23/09/2018
Aceito em: 17/10/2018
1 Esta é uma versão modificada do trabalho apresentado no III Colóquio Internacional Michel Foucault: a judicialização da vida, no dia 24 de novembro de 2017, na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói. Durante a apresentação contei com a participação de Andréa Carvalho Barbosa, Isabela Gama Barbosa, Mariana Soares Dantas e Paloma Meirelles Oliveira na leitura dramatizada de alguns trechos de Artaud. Como nossa aposta era falar com e a partir de Artaud, convidei as participantes do grupo de estudos que coordeno para fazerem essas inserções em pontos diferentes da plateia, brincando também com a apresentação radiofônica irrealizada de "Para acabar com o julgamento de deus", quando Artaud pôde contar com a participação de alguns amigos. Nesse sentido, tentaremos manter neste escrito algo da vitalidade que a oralidade e o dispositivo de apresentação coletiva propiciaram. Agradecemos mais uma vez à organização do evento pelo convite e pela oportunidade de conversar com, conversar entre.
2 Em 1946 Artaud realizaria no Thèatre du Vieux Colombier a leitura de um longo texto escrito por ele, após afastamento de mais de dez anos da cena parisiense, período em que viajou ao México, esteve preso na Irlanda e "desapareceu" em diferentes internações psiquiátricas, durante a ocupação nazista.
3 Refiro-me à pesquisa "Memória da pele, membrana da alma: corpo, pensamento e subjetividade", coordenada por mim, que investiga a composição corpo-subjetividade a partir da proposição estética de Lygia Clark com os objeto relacionais (Santos, 2017)..