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Arquivos Brasileiros de Psicologia
On-line version ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.70 no.spe Rio de Janeiro 2018
ARTIGOS
O governo da subjetividade por meio da judicialização no dispositivo de segurança
The government of subjectivity through judicialization in the security device
El gobierno de la subjetividad por medio de la judicialización en el dispositivo de seguridad
Flávia Cristina Silveira Lemos
Docente. Instituto Politécnico de Lisboa. Escola Superior de Educação/Centro de Investigação em Educação do Instituto Universitário de Ciências Psicológicas Sociais e da Vida (CIE-ISPA). Lisboa. Portugal
RESUMO
Este artigo, em formato de ensaio teórico, visa analisar práticas de judicialização, no neoliberalismo, em especial, na economia política, no Estado de Direito. A tríade poder, direito e verdadeforma um triângulo cuja base está assentada no funcionamento da soberania jurídica em correlação com o poder disciplinar. Com efeito, na soberania e disciplina há uma vigilância da sociedade e regulação das liberdades como dinâmica social do direito focado na defesa, o qual desemboca em uma inflação jurídica. Além desta soberania disciplinar funciona também um governo das condutas, no neoliberalismo realizado enquanto dispositivo de segurança para controle em prol da instauração e manutenção da encomenda de lei e ordem, em meio à lógica do mercado e da racionalidade empresarial das existências bem como na gestão da vida, na biopolítica.
Palavras-chave: Governo; Judicialização; Neoliberalismo; Verdade; Segurança.
ABSTRACT
This article, in a theoretical essay format, aims to analyze practices of judicialization, in neoliberalism, especially in political economy, in the Rule of Law. The triad of power, law and truthforms a triangle whose base is based on the functioning of juridical sovereignty in correlation with the disciplinary power. Indeed, in sovereignty and discipline there is a vigilance of society and regulation of freedoms as social dynamics of the law focused on defense, which leads to legal inflation. In addition to this disciplinary sovereignty there is also a governance of conduct, in neoliberalism carried out as a security device for control in favor of establishing and maintaining the order of law and order, amid the logic of the market and the business rationality of existences as well as in the management of life, in biopolitics.
Keywords: Government; Judicialization; Neoliberalism; Truth; Safety.
RESUMEN
Este artículo, en formato de ensayo teórico, busca analizar prácticas de judicialización, en el neoliberalismo, en especial, en la economía política, en el Estado de Derecho. La tríada poder, derecho y verdadforma un triángulo cuya base está asentada en el funcionamiento de la soberanía jurídica en correlación con el poder disciplinario. En efecto, en la soberanía y disciplina hay una vigilancia de la sociedad y regulación de las libertades como dinámica social del derecho enfocado en la defensa, el cual desemboca en una inflación jurídica. Además de esta soberanía disciplinaria funciona también un gobierno de las conductas, en el neoliberalismo realizado como dispositivo de seguridad para control en favor de la instauración y mantenimiento del orden de ley y orden, en medio de la lógica del mercado y de la racionalidad empresarial de las existencias así como en la gestión de la vida, en la biopolítica.
Palabras clave: Gobierno; Judicialización; Neoliberalismo; Verdad; Seguridad.
Introdução
Este artigo, em formato de ensaio, aborda uma análise das práticas de judicialização, articuladamente à interrogação da mercantilização do Direito, no neoliberalismo, a partir de alguns estudos e operadores conceituais de Michel Foucault. Trata-se de um artigo que é resultado de um recorte teórico de uma série de análises, realizadas por meio de pesquisas, há alguns anos com as práticas de judicialização da vida. A expansão da inflação jurídica ocorre em um contexto da ruptura com o Estado de Bem-estar Social e a proposição de uma emergente racionalidade neoliberal.
Ao final da década de 70, do século XX, o neoliberalismo emerge juntamente com a intensificação da mundialização, a partir, da crise internacional do petróleo; a queda do muro de Berlim, da década de 1980; a financeirização mundial; a digitalização das práticas empresariais e das bolsas de valores, sobretudo, por meio da internet; o aumento da rapidez na comunicação global; a formação de blocos político-econômicos etc. (Giddens, 2000). O mercado sem as regulações estatais de defesa da soberania nacional se torna um vetor crucial da racionalidade neoliberal com a proposta de retração das políticas sociais concomitantemente ao avanço do aumento de um dispositivo denominado judicialização da sociedade.
Aborda-se a judicialização por meio das contribuições de Michel Foucault e comentaristas, busca-se assinalar alguns efeitos e elementos em jogo na tríade poder, direito e verdade, além de destacar as relações entre poder soberano e disciplina, na esfera jurídica das tensões sociais. Por fim, interroga-se a defesa da sociedade como um elemento de composição do dispositivo de segurança e da governamentalidade neoliberal na mercantilização correlata da judicialização da vida. Por isto, Foucault (1996), em A verdade e as formas jurídicas, declarou que a disciplina é parajudiciária e que a visão de risco e perigo faz proliferar uma perspectiva normalizante, punitiva, preditiva e corretiva de condutas.
Uma instituição ou mecanismos ser classificada como parajudiciária implica em funcionar articuladamente com as organizações e práticas judiciárias, lado a lado, adjacente à prática jurídica. Neste aspecto, a educação, a saúde, a assistência social e a cultura, entre outras instituições poderão ser correlatas aos atos jurídicos, paralelamente. As normas sociais, usadas para normalização das condutas, operam por organizações e práticas parajudiciárias e estão ligadas às leis, as quais estão no campo judiciário. Portanto, normas e leis estão em ampla e intensa materialização no cotidiano da sociedade contemporânea.
"O advento de uma sociedade de mercado foi um fator central para o nascimento de novas formas de representação política bem como de novos direitos e liberdades" (Rosenfield, 2008, p. 31). A soberania jurídica do Estado Moderno foi constituída pela economia liberal, no arcabouço jurídico representativo do Direito público e administrativo. As leis se tornaram soberanas, na construção da democracia, paralelamente à noção da vontade de uma maioria enquanto base de uma decisão participativa, considerada com legitimidade democrática.
Contudo, a liberdade do povo decidir foi ganhando dimensão de gerenciamento da vida, na racionalidade liberal do mercado. Com efeito, a lógica da liberdade na democracia tornou-se reificada no deslizamento de um ir e vir, sobretudo, em função do investimento a realizar, de uma existência e relações a empresariar. Deste modo, um dos eixos centrais da judicialização foi assentado no movimento, ou seja, no mapa da circulação regulada, em uma dinâmica da busca de segurança. Sinteticamente, a vigilância foi alçada a estatuto de uma liberdade regulada, agenciada por um dispositivo de segurança, em uma economia política liberal, no denominado Estado Democrático de Direito.
A judicialização pressupõe um governo das condutas por meio do qual há uma tentativa de organizar o tempo em fluxos dispersos, em modos de produção burocráticos. Nestes processos existenciais, o legalismo opera na prática de governamentalidade por meio dos mecanismos de segurança, entrecruzados com as políticas: educativas, formativas, reguladoras das profissões, das normas de funcionamento das empresas internacionais e das ações concretas do Estado e da saúde.
O dispositivo de segurança é um conjunto de práticas voltadas à seguridade social, tais como: biopolítica, soberania, regulação e disciplina. Na esfera da justiça e da psicopedagogia, a seguridade foi empreendida pelo controle comportamental dos processos vitais e pela mediação do denominado desenvolvimento humano, em que entra em cena um governo do juízo moral de cunho construtivista. Assim, a fabricação de uma defesa social passa a ser forjada pela racionalidade da civilização.
Tanto o objeto de desenvolvimento quanto o de humanidade surgem com o nascimento da Biologia e da Antropologia, de acordo com Foucault (2016). Estes objetos são efeitos de saberes e poderes constituintes da figura abstrata do Estado enquanto um entrecruzamento de forças múltiplas conjugadas, em metamorfose permanente, apesar de, em alguns aspectos, emergirem cristalizadas em procedimentos de opressão e dominação, resultando em desigualdades econômicas e sociais intensas.
Judicialização e empreendedorismo na economia política neoliberal
Conforme Foucault (2008a), a judicialização foi ampliada intensivamente, a partir da emergência do neoliberalismo, ao final da década de 70 do século XX. Ele denominou de judicialização este processo de inflação jurídica de aumento exorbitante das encomendas ao Poder Judiciário do que outrora era resolvido no plano da sociabilidade e das relações cotidianas. Um segundo aspecto relevante ressaltado por Foucault (2008a) é o fato de que a judicialização se dá no bojo da mercantilização do Direito e do empresariamento da vida bem como de todas as relações sociais, afetivas, educativas, culturais e políticas.
Com efeito, os direitos se tornaram alvo de um intenso investimento do mercado empresarial, em especial, pelo fato da racionalidade da economia política neoliberal ter focado na amplitude das gerações de direitos uma oportunidade de comércio e modulação dos negócios variados. A mediação de conflitos entre contratos diversos quebrados e a realizar uma fonte rica de empreendimentos a constituir permanentemente. Diante da ampla contratação, sobretudo na esfera do direito trabalhista, e da grande expansão de microempresas, ganha relevante importância a prática da mediação de conflitos; da reparação de danos; do zelo cauteloso com a conservação da propriedade privada e com o aumento da construção civil; do controle da renda e benefícios pagos aos trabalhadores; do comércio exterior; da governabilidade pautada na tentativa de realizar dinâmicas de um equilíbrio econômico entre os países tanto na gestão da segurança internacional quanto do balanço global dos riscos e perigos a gerir no plano da seguridade social.
Este conjunto de elementos e aspectos Foucault (2008b) nomeou de dispositivo de segurança. Um dispositivo pode ser definido enquanto um conjunto de práticas discursivas, não discursivas, arquiteturas, enunciados, forças, conjugadas por um diagrama de saber, poder e subjetivação (Foucault, 2004). A segurança é conectada por uma rede de práticas articuladas por uma multiplicidade de forças, em que a liberdade, a proteção, a economia e a seguridade operam o deixar passar com o estabelecimento dos controles rápidos e sutis.
A proposta neoliberal é apresentada, neste âmbito como uma suposta solução para organizar os dramas do liberalismo, nas últimas duas décadas do século XX, desmantelando as políticas sociais e instaurando um império do mercado. No bojo destes acontecimentos, os direitos funcionam muito mais pela lógica da defesa do que das garantias, sobretudo, no campo do Poder Judiciário.
As encomendas realizadas ao Poder Judiciário crescem exponencialmente, nas últimas décadas, gerando uma inflação jurídica sem proporção, a qual, o próprio Judiciário não consegue administrar. Assim, as práticas de judicialização e as de punição tornam-se cada vez mais exacerbadas e, paralelamente, desacredita-se de mediar tensões por meio de outras instituições fora o Poder Judiciário (Foucault, 2008b).A extensão massiva da punição é apresentada para todos os que são enquadrados em ausência do valor de uso, no mercado neoliberal; ou seja, para aqueles que são desqualificados como capazes e lançados à adjacência da sociedade, na condição de desfiliados sociais e econômicos (Wacquant, 2003). Na medida em que as punições são ampliadas pelo recrudescimento penal, os direitos fundamentais passaram a figurar como impedimentos à mercantilização acentuada e se tornam matéria de comércio e/ou são subsumidos face às encomendas de livre mercado (Casara, 2017).
Dessa maneira, a judicialização cresce em concomitância com a ampliação e generalização da visão contratual dos julgamentos jurídicos para todas as esferas da sociedade, em pequenos tribunais das normas e também pelos legais-jurídicos. Nesta relação entre ajustamento de condutas disciplinares, gerência da população em nome da vida e do governo pela segurança social, a segurança se sustenta na governabilidade econômica e política, ancorada nos contratos das relações de trabalho, de compra e venda dos objetos, em encaminhamentos aos seguros diversos, na mediação das relações entre direitos civis e comerciais, da oferta de serviços e aquisição de bens etc.
Os contratos quebrados são mediados pelo Direito, nos tribunais das pequenas causas, cada vez mais lotados e lentos mesmo com a estratégia da conciliação, utilizada constantemente na tentativa de dar alguma efetividade ao andamento dos processos e litígios jurídicos rumo à resolução de conflitualidades acirradas. Uma parte da complexa inflação jurídica resulta da descrença na sociabilidade e no diálogo plural como eixos a sustentarem a mediação dos desentendimentos, gerados pela diversidade de demandas da sociedade contemporânea.
O mercado, a circulação do dinheiro e dos bens ganham mais relevância do que o direito à vida. Esta realidade fica mais dramática face à mundialização da economia e da cultura, pois a complexidade de trocas comerciais e pressões por aumento dos contratos reguladores das práticas econômicas sustenta o termômetro das governabilidades neoliberais, modulando a temperatura das gerências múltiplas, entrelaçadas em macro e micropolítica. É neste plano dos recorrentes contratos de empresariamento da vida que somos incentivados a estabelecer cláusulas para os chamados empreendimentos cotidianos, em um contexto multifacetado e nada simples da gestão de riscos dos negócios, em tempos de uma vida financeirizada ao máximo (Casara, 2017).
No caso específico da biopolítica, ou seja, na gestão da vida, de acordo com Foucault (2008a), a judicialização e a criminalização passaram a ser relevantes em termos de funcionamento da economia política, tanto em nome do aumento e expansão da vida quanto na dimensão de um direito fundamental. Todavia, o paradoxo da própria biopolítica ocorreu em função do contrato liberal de sociedade, pois, em nome do governo da população colocou-se em primeiro plano o direito ao patrimônio, por exemplo.
Para Foucault (2008b), o neoliberalismo passa a ser fundamental para o desenvolvimento de uma biopolítica e de um capitalismo voltados à liberdade política e econômica do mercado, pois tem como alvo a população em todos os movimentos que impliquem em alteração financeira e política.
Nesta sociedade neoliberal e empresarial, os empreendedores vão ganhando centralidade política enquanto sujeitos de direitos; e, no bojo deste acontecimento, emerge a figura do empreendedor como mais um modo de ser e um objeto problemático para o pensamento, na atualidade, se transformando em um elemento de análise importante para pensarmos a judicialização e a criminalização da vida, pois permite explicitar o entrecruzamento dos direitos com a economia de maneira mais acirrada. De certa maneira, ser sujeito de direitos é consumir e empreender para gerar renda e fazer circular bens, serviços e créditos (Sorj, 2006).
A pós-democracia, então, caracteriza-se pela transformação de toda prática humana em mercadoria, pela mutação simbólica pela qual todos os valores perdem importância e passam a ser tratados como mercadorias, portanto, disponíveis para uso e gozo seletivos, em um grande mercado que se apresenta como uma democracia de fachada (Casara, 2017, p. 37).
Um exemplo da problemática jurídica comercial é o cálculo do produto interno bruto (PIB) de um país e dos câmbios flutuantes das bolsas de valores internacionais, das violações de direitos e das violências concomitantes aos destinatários das contas de uma manutenção da falsa estabilidade de uma economia global em flutuação. O impacto da governabilidade sobre a população é grande tanto financeiramente quanto em termos das perdas de direitos fundamentais. A diferença do liberalismo para o neoliberalismo é que a governamentalidade no liberalismo está ligada à planificação administrativa e ao financiamento público das políticas sociais. No neoliberalismo, o financiamento é delegado cada vez mais à esfera privada e o ônus dos investimentos foi dirigido à individualização da gestão de riscos, a qual passou a ganhar mais importância, sendo que o plano coletivo das práticas se tornou intensamente vinculado à judicialização enquanto esta fosse uma única possibilidade de lidar com as situações tensas e complexas da sociedade atual.
Por isso, Foucault (2008a) ressaltava o quanto a encomenda por direitos é infinita dentro de um sistema finito, ou seja, há um limite para aprovação de leis e aplicação das mesmas. Em, praticamente todo o curso Nascimento da Biopolítica (2008a), Foucault analisou esses acontecimentos relacionados à economia neoliberal, em uma sociedade de direitos e o quanto a democracia foca a mediação de interesses, em litígios permanentes.
Nesta sociedade do empreendedorismo e da ruptura com o Estado de Bem-estar Social, quanto mais são constituídos os sujeitos empresários de si, menos existirão sujeitos de direitos sociais. Simultaneamente, quanto mais direitos comerciais e regulamentação pública das políticas privadas, mais existirá uma gerência de redução dos danos e prejuízos produzidos por esta ampla privatização dos direitos, no mercado neoliberal. Com efeito, a criação das normatizações legais ocorrer paralelamente à emergência das encomendas normativas para referenciarem os processos e disputas jurídicas, os quais não cessam de proliferar na hipervalorização do Poder Judiciário.
Judicialização, saberes e poderes em uma sociedade entre a lei e a norma
O Direito é responsável por traçar limites ao poder de um soberano e de criar regras para a regulação das condutas e/ou para a sua proibição e prescrição. De certa maneira, o sistema do Direito está centrado em um plano de dominação, cuja aposta se dá na figura de um rei e/ou de um soberano, na política (Foucault, 1979). A obrigação geral da obediência é colocada pela obrigatoriedade das leis em sua força coercitiva e punitiva, em um determinado conjunto de práticas jurídicas, em coexistência com a economia política, operacionalizada na disputa entre a liberdade e a segurança e, sobretudo, na tentativa de criar um equilíbrio entre ambas.
Os regulamentos, os aplicadores das leis e os aparelhos que institucionalizam o Direito forjam um ideal de funcionamento das práticas jurídicas enquanto técnicas de assujeitamento e controle constante dos corpos aos quais tanto as leis quanto os equipamentos judiciais estão dirigidos. Porém, Foucault (1979) preocupava-se para além da dimensão de soberania do Direito moderno. Ele buscava estudar os efeitos locais, regionais e múltiplos das práticas jurídicas nas regulações sociais. Neste aspecto, Foucault passou a analisar as punições e disciplinas, biopolíticas e governamentalidade como poderes e saberes entrelaçados com as leis, sem ficar limitado somente a elas, na medida em que eram procedimentos e mecanismos da normalização e prescrição mais incisivos do que a vingança da lei de um soberano.
Segundo Ewald (1993), o Direito, a partir do século XX, atuou cada vez mais articuladamente à Psicologia, à Pedagogia, à Geografia, à Estatística, à Demografia e ao Serviço Social, constituído um dispositivo de segurança, em que se antecipa a ideia da modulação governamental entre o risco e perigo, forjando uma intensa judicialização da sociedade, no contemporâneo. A virtualidade de um ato é computada praticamente como se o acontecimento tivesse de fato ocorrido, assim, se julga fatores de risco, probabilidades de que algo aconteça.
Tem se expandido, nas últimas décadas, uma relação entre sociedade e o Poder Judiciário, pautada na busca de ampliação das leis e tipificações penais como maneiras de governar condutas, no campo de um legalismo securitário. O Poder Judiciário parece converter-se em uma espécie de arena única para a qual converge toda sorte de tensão e desentendimento, e as leis, assim, transformam-se na linguagem dessa mediação. Uma sociedade punitiva se amplia por meio da relação judicializante da vida; todavia, ela igualmente se materializa na normalização do Direito e na expansão intensiva da lógica de tribunais para as relações cotidianas de nossa sociedade.
Nesse sentido, Michel Foucault (1999) observou que as escolas, as famílias, as fábricas, os hospitais se parecem com as prisões e estas se assemelham às outras. Obviamente, há diferenças entre elas, porém, há práticas vizinhas em efeitos recíprocos. Michel Foucault é um interlocutor importante e que traz contribuições relevantes para pensar a sociedade contemporânea, sobretudo as práticas punitivas, porque ele pontuou algo a que poucos prestam atenção, no debate a respeito do encarceramento em massa e na ampliação da racionalidade penal. Para Foucault (1996, 1999, 2008a, 2008b), a punição é mais ampla que a pena, pois a penalidade imputada pelos princípios do Direito Penal é apenas um dos aspectos de uma sociedade baseada na aposta da segurança e da punição como maneira de gerir a vida.
Com efeito, Foucault nos auxilia a pensar a relação entre lei e norma, em efetuação em outros equipamentos sociais para além da prisão e da pena. A lei e a punição que reivindica reparação de danos se tornam a referência para atuar, dificultando saídas singulares e inventivas. A sociedade contemporânea criou uma maquinaria jurídica sem igual, os discursos recorrentes dão conta de que as leis devem ser utilizadas com rigor e, em geral, são vistas como sendo insuficientes para os que clamam pelo recrudescimento penal. Portanto, "o respeito à legalidade é condição para a vida democrática, mas não a assegura" (Casara, 2017, p. 60).
Nesse cenário, uma das encomendas mais reivindicadas é a criação de mais leis, uma proliferação legalista e punitiva. Porém, mais que isso, a máquina jurídica se multiplica nas ações cotidianas. No bojo desta intensa legislação, há uma complexidade de práticas correlatas de justiça, punição, assistência e educativas em direitos, sendo que muitas operam em nome da vingança reativa do Direito Positivo Penal e Retributivo.
A judicialização poderia ser interrogada, em meio a esta racionalidade penal como um acontecimento, o qual marca as últimas décadas do século XX e os primeiros anos do século XXI, manifestando-se nas democracias representativa e participativa, embora de modo heterogêneo, em ambas. Podemos destacar que também é regularmente apresentada no contexto da crise do Estado de Bem-estar, todavia, suas condições de possibilidade são singulares. Prado Filho (2012) pondera que a justiça deixa de ser litígio particular entre indivíduos para ser problema de manutenção de soberania: os conflitos não mais serão negociados e resolvidos entre os envolvidos, mas estes terão agora que se submeter à regulação do Poder Judiciário que passou a ser organizado como poder político.
Judicialização da política e tensões sociais e econômicas
No Brasil, o processo de judicialização é contextualizado, sobretudo, após a promulgação da Constituição de 1988, que trouxe para ordem do dia o tema dos direitos da cidadania e da nascente ordem democrática. A judicialização da política implica a crença e aposta na capacidade do Estado de Direito assegurar a regulação da economia concomitantemente à gerência da política de direitos humanos, operacionalizada pelo paralelo com o mercado, ancorado pela racionalidade neoliberal.
Garantir os direitos fundamentais por meio da política, assentada nos três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário com a proeminência do Poder Judiciário, é disparar e articular práticas de segurança, organizadas em um dispositivo de seguridade, o qual coloca em funcionamento regras do direito, no quadro da soberania, em uma política da verdade. Foucault (1979) descreveu o campo de práticas disciplinares do Direito por meio da governamentalidade da verdade e gestão dos bens e das coisas, no mesmo dispositivo do governo da economia e da defesa social.
A defesa social foi esboçada enquanto uma política da vida, biopolítica, paralelamente à emergência do racismo de Estado e sociedade basilar da governamentalidade moderna, no Estado de Direito. A lei e ordem entram em cena no governo das condutas sob a égide da soberania jurídica em imanência com a norma social (Foucault, 1979, 1999). Esta defesa da sociedade passou a ativar a formação de sujeitos especiais, denominados: sujeitos de direitos. Estes assujeitamentos extrapolam e vão bem além da materialidade legalista e positivista do Direito. Trata-se de um processo de fabricação de subjetividades reguladas pelas normas, instituições e saberes parajudiciários.
Não se limitando propriamente à política representativa, na qual se têm reorganizado os clássicos mecanismos de representação em eleições, a judicialização foi acionada como extensiva à regulação da sociabilidade por meio dos valores culturais e, portanto, racializada e entrecortada pelas classes socioeconômicas (Wacquant, 2003). São os casos da emergência de novos direitos, como, por exemplo, dos direitos culturais e étnico-raciais em resistência ao encarceramento massivo de negros nas prisões, constituídas em formato de guetos, na atualidade.
Tudo e todos passaram a ser passíveis a uma resposta jurídica e de uma explicação qualquer, a partir dos códigos do Direito, que possam porventura justificar a si e as suas ações. A jurisdicionalização se dá em defesa de costumes e na busca por verdades, que é um dos componentes fundamentais da moral. Essas verdades podem se materializar nos códigos jurídicos, por meio das leis e dos aparatos que as sustentam (tribunais, prisões, penas alternativas, justiça terapêutica, entre outros), produzindo modos de vida moralizantes, revestidos pela doutrina do juízo.
Esta doutrina do juízo vem amparada, de acordo com Foucault (2002), nos racismos de Estado e de sociedade, estratégia de normalização que visa a garantir uma suposta superioridade e pureza de uma raça face as outras pela articulação de saberes psicoeducativos e biomédicos com os dispositivos jurídico-institucionais na produção da segurança. Autores como Batista (2009) ressaltam que as formas que tomam nossas relações sociais, na atualidade, são engendradas em uma cultura punitiva. No bojo desta sociabilidade ancorada no castigo e na vingança, a vitimização também é um ingrediente em que a figura da vítima é colocada em oposição ao autor da violência, em uma relação de antagonismo, marcada pelo crime e pela violência. A ênfase na vítima gera mais clamor por judicialização em combinação com a criminalização.
As normas colonizam o Direito, destaca Foucault (1979; 1996; 1999). Para ele, um direito normalizado e normalizador entra em cena, acionando outras máquinas e equipamentos, outras táticas e instrumentos, novas tecnologias de controle e vigilância que não estão restritas aos muros de uma escola, de uma fábrica e de um hospital, de uma prisão, apesar de por eles passar também. A lei modula mais a pena em muros fechados, a norma modula mais a punição em meio aberto, a despeito de as duas se encontrarem nas duas situações, visto que se combinam na atualidade em quase todas as práticas sociais. Uma encarcera mais e a outra libera mais fluxos de produção com docilidade com poucos muros.
Tornar cada cidadão um vigilante do direito tem produzido relações de ameaça, sustentadas no julgamento sistemático entre as pessoas, pois, todos nos tornamos juízes; todos nós julgamos, punimos e condenamos, ou pedimos a pena; acreditamos na pena e modulamos as punições. Um exemplo são os discursos de especialistas a respeito da causalidade jurídica entre o cometimento da infração com as características das famílias das camadas populares.
Trabalhos de pesquisa, na psicologia forense, tais como os de Gomide (1998), afirmam a culpabilidade da família pelos atos infracionais de seus membros. De acordo com esta autora, as competências educativas parentais seriam responsáveis pelo desenvolvimento antissocial de adolescentes e pela consequente realização dos atos infracionais. Neste diapasão, a infração é um efeito dos usos da lei e da política criminal e opera pela judicialização das condutas, traçando limites para a tipificação do que deve ou não entrar na lógica penal.
Práticas que eram uma rotina, em uma determinada sociedade poderão se tornar crimes, em outra sociedade e/ou em outro tempo histórico. A punição dos desvios das normas sociais pode se tornar uma pena, a partir do momento em que uma atitude foi tipificada como infração. Todavia, a judicialização está além do aumento de leis e das penas correlatas, pois a busca pelas regras do Direito nas relações com a política da verdade pode acontecer em um campo complexo de punições, instituições de sequestro dos corpos como hospitais e escolas, em avaliações no trabalho e em pareceres profissionais, entre outros acontecimentos.
As próprias instituições e organizações são formadas por leis e normas, disparando controles finos na micropolítica quanto na macroesfera dos assuntos denominados de públicos e privados. A prática de mediação de conflitos passa a ser realizada face à ausência de mediações flexíveis entre os usos das normas e das leis. Curiosamente, uma ferramenta denominada de resistência à judicialização por ampliar a conversação entre partes em disputa realiza, ao contrário, mais encomendas para a instalação de tribunais de pequenas causas, formalizados e informais. Os contratos quebrados em diversas cláusulas são alvo constante de intervenção pela mediação de conflitos nos juizados de pequenas causas, nas dinâmicas grupais e comunidades.
Considerações finais
A judicialização se tornou um acontecimento bastante presente nas últimas décadas e cada vez mais acionado na mediação das tensões sociais, culturais, políticas e econômicas, na atualidade. As práticas jurídicas funcionam em correlação com a economia política e com a constituição da verdade, em tribunais não apenas regulados pelas leis, mas por normas em articulação com as leis. As regras do Direito estão em coexistência com os discursos de uma política da verdade e agenciam modalidades de poder específicas, em cada época e em casa sociedade.
Os limites do poder jurídico são fixados por uma gestão mercantil determinada no campo paradoxal de uma política da verdade, em uma sociedade cuja economia atravessou o funcionamento e a construção do Poder Judiciário, em uma lógica burocrática da legalidade. O Estado de Direito está modulado por um conjunto de hierarquias e desníveis sociais, econômicos, políticos, culturais, em tensão permanente de interesses em que o plano das desigualdades materiais instituídas, no neoliberalismo capitalista traça constantemente efeitos perversos e muito difíceis de regular pelas leis e pelas normas (Pachukanis, 2017).
O sujeito de direito não está em contraposição ao empresário de si e dos outros. Estão, sim, cada vez mais interligados e articulados em práticas mercantis, na modulação da liberdade e da segurança, agenciados enquanto empreendimentos de investidores, mediados por regras do Direito em discursos de verdade, na política como guerra continuada por outros meios.
Referências
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Endereço para correspondência:
Flávia Cristina Silveira Lemos
flaviacslemos@gmail.com
Submetido em: 22/06/2018
Revisto em: 30/08/2018
Aceito em: 17/10/2018
Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto UID/CED/04853/2016.