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Arquivos Brasileiros de Psicologia
On-line version ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.71 no.3 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2019
https://doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i3p.152-165
ARTIGOS
Arte e catarse para Vigotski em Psicologia da Arte
Art and catharsis for Vigotski in Psychology of Art
Arte y catarsis para Vigotski en Psicología del Arte
Paula Maria Ferreira de FariaI; Maria Sara de Lima DiasII; Denise de CamargoIII
IDoutoranda. Mestre em Educação. Universidade Federal do Paraná (UFPR). Curitiba. Estado do Paraná. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade/Departamento de Estudos Sociais. Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Curitiba. Estado do Paraná. Brasil
IIIDocente. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestrado em Psicologia Social Comunitária. Universidade Tuiuti (UTP). Curitiba. Estado do Paraná. Brasil
RESUMO
Este artigo, de cunho teórico, pretende refletir sobre a concepção de arte apresentada pelo psicólogo russo Lev Semionovich Vigotski na obra Psicologia da Arte. O estudo destaca a importância da arte como mediação para a expressão e reelaboração emocional humana, por meio da reação estética expressa pela catarse na apreciação artística. A partir das contribuições de Vigotski, enfatiza-se o potencial criativo e transformador do homem sobre a obra de arte, propiciando a ressignificação humana em seu contexto cultural e histórico. Nesse sentido, ressalta-se o papel da arte e da vivência artística enquanto instrumentos essenciais à sociedade moderna para a reconexão com os aspectos sensíveis e subjetivos que integram a psique humana.
Palavras-chave: Arte; Catarse; Vigotski.
ABSTRACT
This theoretical article intends to reflect on the conception of art presented by the Russian psychologist Lev Semionovich Vigotski in the work Psychology of Art. The study highlights the importance of art as mediation for human emotional expression and reprocessing, through the aesthetic reaction expressed by catharsis in artistic appreciation. From the contributions of Vygotsky, the creative and transformative potential of man on the work of art is emphasized, favoring human resignification in its cultural and historical context. In this sense, the role of art and artistic experience as essential instruments to modern society is emphasized for the reconnection with the sensitive and subjective aspects that integrate the human psyche.
Keywords: Art; Catharsis; Vygotsky.
RESUMEN
Este artículo, de cuño teórico, pretende reflexionar sobre la concepción de arte presentada por el psicólogo ruso Lev Semionovich Vigotski en la obra Psicología del Arte. El estudio destaca la importancia del arte como mediación para la expresión y reelaboración emocional humana, por medio de la reacción estética expresada por la catarsis en la apreciación artística. A partir de las contribuciones de Vigotski, se enfatiza el potencial creativo y transformador del hombre sobre la obra de arte, propiciando la resignificación humana en su contexto cultural e histórico. En ese sentido, se resalta el papel del arte y de la vivencia artística como instrumentos esenciales a la sociedad moderna para la reconexión con los aspectos sensibles y subjetivos que integran la psique humana.
Palabras clave: Arte; Catarsis; Vygotsky.
Introdução
A contribuição do psicólogo russo Lev Semionovich Vigotski (1896-1934) ao campo da Psicologia é inestimável. Fundador da Psicologia Histórico-Cultural, muitos conceitos desenvolvidos por ele são considerados diretrizes para a compreensão do homem enquanto ser de relações, que modifica e também é transformado pelo ambiente com o qual se relaciona. Vigotski dedicou-se a diversos objetos de estudo, muitos dos quais não foram profundamente delineados devido à sua morte precoce, dentre os quais pode-se citar a definição da psicologia enquanto ciência, a consciência, o pensamento e a linguagem, o processo educativo e a educação de pessoas com deficiência. Cabe destacar, contudo, as contribuições do autor ao contexto da arte - desde o início de sua carreira e ao longo de toda a sua vida, Vigotski sempre nutriu grande interesse pelas questões artísticas, razão pela qual inicialmente aproximou-se da Psicologia.
Lev Semionovitch Vigotski nasceu em 5 de novembro de 1896, na cidade de Orsha, mas sua família se mudou para Gomel durante seu primeiro ano de vida. Segundo entre oito filhos de uma família judia, Vigotski cresceu em um contexto culturalmente privilegiado e sua família era considerada uma das mais instruídas da cidade (Vygodskaya, 1995).
Embora preferisse literatura e filosofia, essas áreas lhe permitiriam somente exercer o cargo público de professor - o que era proibido para judeus, na Rússia czarista (Prestes, 2010a; Vygodskaya, 1995). Dessa forma, considerando essas restrições e atendendo ao pedido de seus pais, Vigotski começou a cursar Medicina em Moscou, transferindo-se logo depois para o curso de Direito. Paralelamente, iniciou os estudos de História e Filosofia na Universidade de Shanavsky, instituição não oficial prestigiada por acolher a diversidade política e religiosa. Foi nesse período que seu interesse pela área da Psicologia foi despertado - desde então, Vigotski nunca interrompeu os estudos nessa área (Vygodskaya, 1995).
A gama de interesses de Vigotski era ampla: "poesia, teatro, língua e problemas dos signos e da significação, teorias da literatura, cinema, problemas de história e de filosofia, tudo o interessava vivamente" (Ivic, 2010, p. 12). Vigotski envolveu-se em diversas atividades profissionais, lecionando Literatura, Psicologia, Lógica, Estética, Filosofia e Teoria da arte, tendo também organizado o Departamento de Psicologia da Escola Técnica de Pedagogia.
Vigotski tinha presença ativa na vida cultural de Gomel (Van Der Veer & Valsiner, 2014) e foi fundador e redator de uma revista semanal, na qual apresentava novelas, notas literárias e resenhas de teatro (Prestes, 2010b). Ao longo de sua vida ocupou diversos cargos relacionados ao campo da arte, tendo sido ator, diretor teatral e também diretor do Subdepartamento Teatral e Chefe de Arte e Educação Estética do Departamento de Educação de Gomel. Nesse período Vigotski aprofundou-se acerca do teatro e chegou a escrever mais de 70 resenhas teatrais (Barros, Camargo, & Rosa, 2011; Prestes, 2010b).
Como se pode perceber, os anos iniciais de sua biografia evidenciam o interesse do autor pela arte, culminando em um de seus primeiros escritos, no ano de 1925, a obra Psicologia da Arte. Nessa obra, Vigotski (1965/1999b) discute a função da arte, os mecanismos que a compõem e a questão da recepção estética, propondo a criação de um método de análise e estudo (Reis & Zanella, 2014; Santos & Leão, 2014). Em Psicologia da Arte, concebe a arte como forma de expressão e reelaboração emocional que delineia o início de seus esforços no sentido de desenvolver uma nova abordagem para a psicologia. A obra inclui a monografia sobre Hamlet, de Shakespeare (1601/1997), escrita por Vigotski (1965/1999b) dez anos antes em Shanavsky e que permaneceu inédita durante toda a vida do autor (Vygodskaya, 1995). No Brasil, o livro foi lançado após mais de 30 anos, em 1999, tendo havido uma única edição até o momento.
Considerando que as reflexões de Psicologia da Arte constituem importante marco para compreender o posterior desenvolvimento das ideias de Vigotski (1965/1999b), apresenta-se um panorama geral da obra, enfatizando a elaboração do conceito de catarse como resposta estética à fruição artística, cujo entendimento é essencial para a compreensão das relações entre a arte e o desenvolvimento dos processos psicológicos, tal como concebe o autor.
O presente artigo apresenta, portanto, os conceitos de arte e catarse elaborados por Vigotski (1965/1999b) no início de sua carreira. Configura-se em um estudo de cunho teórico, cuja análise se apoia em fontes primárias e secundárias. Fundamentado teoricamente no estudo primário da obra Psicologia da Arte e amparado pela revisão da literatura secundária acerca das relações entre os conceitos de arte e de catarse sob a perspectiva vigotskiana, busca-se enfatizar a relevância da arte e da catarse como instrumentos psicológicos promotores de transformação e ressignificação de si mesmo e da própria realidade, tendo em vista novas formas de ser e agir no mundo.
A obra Psicologia da Arte
Em Psicologia da Arte, Vigotski (1965/1999b) pretendia revisar a Psicologia tradicional e definir o problema de investigação, o método e os princípios básicos de pesquisa em Psicologia. Nesse sentido, o autor procura desenvolver o estudo da Psicologia da própria arte, de seu material e forma, sem tender a vieses relacionados ao autor ou ao espectador/leitor, contrapondo-se às teorias vigentes na época, como a concepção defendida por Freud (1911/2010), na Psicanálise.
Vigotski interessou-se pelos estudos desenvolvidos por Freud (1911/2010) e considerava suas ideias originais e inovadoras, dignas de uma análise mais profunda (González Rey, 2018; Van Der Veer & Valsiner, 2014). Em Psicologia da Arte, Vigotski (1965/1999b) empreende um diálogo crítico com a obra de Freud (1911/2010), buscando pontos de convergência às suas próprias ideias - e, frequentemente, apontando também suas inconsistências (como costumeiramente se pode observar nas obras do psicólogo russo, nas quais analisa e se posiciona frente a outros grandes pesquisadores de sua época).
Destacam-se, em Freud (1911/2010), momentos em que o entendimento da obra de arte se dá, por um lado, através de acontecimentos da vida do artista, isto é, compreendendo a obra pelo autor e, por outro, inferindo o que se passa no psiquismo do autor pelo que comparece em sua criação (Autuori & Rinaldi, 2014). Esse posicionamento opõe-se à visão de Vigotski (1965/1999b), que destaca a influência da cultura na mediação da obra de arte; o autor pontua que a Psicanálise tende a aplicar seus métodos de interpretação para a arte considerando o conflito pessoal entre as manifestações do consciente e subconsciente. Sob o ponto de vista de Vigotski (1965/1999b), no entanto, não existe nenhuma diferença fundamental entre os processos de criatividade popular e individual - desde o princípio, a psicologia individual é ao mesmo tempo uma psicologia social.
O interesse de Vigotski (1965/1999b) pela obra de Freud (1911/2010) revela sua curiosidade pela vida interior emocional e seu caráter inconsciente, evidenciando que sua orientação, em Psicologia da Arte, estava "claramente direcionada ao estudo do lado afetivo do ser humano" (González Rey, 2018, p. 341). Cabe ressaltar, contudo, que Vigotski (1924/2004) rejeitava a apreciação exagerada da sexualidade, uma vez que para ele o seu significado é limitado e frequentemente convencional - o autor enfatizava a diferença essencial que a cultura introduz no comportamento.
Embora incialmente tenha demonstrado interesse pela Psicanálise, ao longo de sua vida, Vigotski (1965/1999b) estabeleceu seu próprio posicionamento frente às questões defendidas por essa abordagem, discordando de diversos de seus pressupostos - opondo-se, entre outros aspectos, "ao caráter universal e a-histórico dado por Freud ao inconsciente" (González Rey, 2018, p. 349). É preciso frisar, no entanto, que "embora tenha ficado cada vez mais crítico quanto a muitos dos conceitos de Freud, Vygotsky ainda valorizava profundamente seu trabalho" (Van Der Veer & Valsiner, 2014, p. 117).
Vigotski (1965/1999b) critica a concepção psicanalítica da consciência como um processo passivo em relação ao inconsciente ao alertar que esta abordagem acabava "reduzindo o papel da consciência a zero e reconhecendo para ela apenas a capacidade de servir de instrumento cego nas mãos do inconsciente" (Vigotski, 1965/1999b, p. 93). Aponta também a importância excessiva atribuída aos eventos relacionados à sexualidade e à infância, afirmando que a psicanálise busca "reduzir a qualquer custo todas as manifestações do psiquismo humano à mera atração sexual" (Vigotski, 1965/1999b, p. 92). Em relação aos aspectos de forma e conteúdo da arte, Vigotski (1965/1999b) denuncia a ênfase da Psicanálise sobre o conteúdo, sendo incapaz de explicar a questão da forma. Segundo o autor, a Psicanálise restringe a criação artística à esfera individual e é incapaz de explicar a evolução histórica e social das artes, "porque desse ponto de vista a arte sempre foi, dos primórdios aos nossos dias, uma expressão permanente dos instintos mais antigos e conservadores" (Vigotski, 1965/1999b, p. 92). A arte, segundo o autor, nunca reflete a realidade toda em sua plenitude e verdade real; é um produto sumamente complexo de elementos da realidade, resultado da incorporação à realidade de elementos inteiramente estranhos a ela.
Vigotski (1965/1999b) elenca três elementos constituintes da obra de arte: forma externa (material de base), forma interna (a forma definida pelo artista) e conteúdo (o que a obra representa); para o autor, a arte consiste no amálgama desses três elementos. Por isso, não se pode dizer que a emoção evocada pela arte é gerada somente por seu produto final, visto que todos os elementos se reúnem produzindo um todo coeso e indivisível. Assim como a arte parte da forma, também "a emoção da forma é o momento inicial, o ponto de partida sem o qual não ocorre nenhuma interpretação da arte" (Vigotski, 1965/1999b, p. 43). Dessa maneira, Vigotski (1965/1999b) opõe-se à fragmentação entre forma e conteúdo proposta pelos teóricos da arte de sua época, considerando que ambos os elementos possuem uma relação íntima e indissociável (Ramos, 2015; Schühli, 2011; Zanatta & Silva, 2017). A forma, portanto, deve ser compreendida não somente como o invólucro da obra, mas como elemento fundamental da criação artística. A arte é, simultaneamente, forma e conteúdo; é expressão e intenção, é razão e emoção. O objeto de estudo da Psicologia da Arte, portanto, para Vigotski (1965/1999b), ultrapassa a posição individualista de quem cria ou usufrui da obra de arte; trata-se da análise da estrutura psicológica da obra, voltando-se à compreensão da experiência estética e à noção da arte enquanto sistema de estímulos que aproxima e restitui a relação do sujeito sensível com o real (Guimarães, 2000). Para o autor, existiam em sua época dois tipos de psicólogos: os que eram propensos a negar quase todo sentido educativo às vivências estéticas e aqueles que exageravam na ênfase às emoções estéticas e tendiam a ver nelas todo o sentido para resolver os problemas complexos da educação. O equívoco cometido pela educação e pela Psicologia tradicional, para Vigotski (1965/1999b), era reduzir toda a estética ao sentimento agradável suscitado pelo prazer da fruição obra de arte, reduzindo todo o sentido das emoções ao sentimento imediato de prazer ou desprazer suscitado em um observador passivo da realidade.
De acordo com Vigotski (1965/1999b), constantemente o ser humano recebe estímulos que, na maioria das vezes, permanecem inconscientes e são vivenciados como angústia, demandando uma solução que pode ser realizada por meio da arte. A vivência artística permite a significação dos conteúdos inconscientes que são trazidos à consciência e transformados, criando algo novo e solucionando o conflito (Santos & Leão, 2014). Nesse aspecto reside uma crítica do autor em relação ao uso da arte no contexto educacional, quanto às possíveis conclusões morais em que sempre se procurou enquadrar qualquer vivência estética na escola - ignorando inteiramente o fator psicológico das possíveis e diversas interpretações da arte.
A análise da estrutura dos estímulos da arte, ou seja, os mecanismos que compõem a obra artística, evidencia os sentidos e permite a recriação da estrutura das respostas pelo indivíduo através de mecanismos psicológicos. Dessa forma, para Vigotski (1965/1999b), a análise da resposta estética envolve a contradição dialética entre forma e conteúdo, criando uma dinâmica qualitativamente diferente sobre a qual se fundamentam os processos psicológicos determinantes da psicologia da arte (Namura, 2007).
Vigotski (1965/1999b) rejeita uma compreensão intelectualizada do fenômeno artístico, ou seja, a ideia de que a arte é compreendida apenas pelo pensamento; mais do que isso, a arte permite ultrapassar o pensamento, gerando emoções que o próprio espectador não é capaz de definir ou explicar. As emoções suscitadas pela arte não podem ser explicadas por seus elementos isoladamente, mas somente pelo produto que o conjunto da obra produz - pois, além do pensamento, a arte envolve diretamente o sentimento. Desse modo, o autor aponta que a ideia de que a vivência artística é absolutamente passiva, comum no contexto da educação estética de sua época, é errônea. Tão logo o fruidor entre no papel ativo de participante da obra de arte por ele percebida, o campo da estética é abandonado e a percepção da arte passa a envolver uma postura ativa do sujeito - assim, ela chega por meio dos órgãos dos sentidos, mas também é percebida através de uma atividade interior sumamente complexa, na qual ouvir ou ver são somente os impulsos básicos iniciais. Envolve, para além da percepção, também a emoção de cada pessoa. Dessa maneira, as múltiplas interpretações que se atribui às obras de arte não são apenas juízos cognitivos, senão atos emocionais do pensamento: "a arte é trabalho do pensamento, mas de um pensamento emocional inteiramente específico" (Vigotski, 1965/1999b, p. 57).
A subjetividade que envolve o campo das emoções demanda a análise dos mecanismos pelos quais ele opera. Vigotski (1965/1999b) ressalta a inter-relação dialética entre sentimento e ação, entre individual e social, afirmando que os sentimentos são social e culturalmente determinados; nesse sentido, pode-se afirmar que as condições sociais são determinantes indiretas da natureza e dos resultados produzidos pela obra de arte. A arte é produto de um determinado contexto e se relaciona com as vivências sociais, culturais e históricas do artista no momento de sua produção. Por isso, "a arte nunca poderá ser explicada até o fim a partir de um pequeno círculo da vida individual, mas requer forçosamente a explicação de um grande ciclo da vida social" (Vigotski, 1965/1999b, p. 99).
Para realizar essa análise, Vigotski (1965/1999b) propõe um novo método, objetivo-analítico, que permite o estudo da obra de arte sob uma perspectiva social e cultural, que não a reduza à individualidade do autor e do espectador. Esse método rompe e supera as concepções subjetivistas da Psicologia antiga, que concebiam a arte ou como imitação da realidade ou como manifestação da psicologia individual de quem cria ou frui da obra artística. O método objetivo-analítico proposto por Vigotski (1965/1999b) considera a dialética entre aspectos individuais e sociais, propondo a análise dos efeitos da arte sobre o receptor a partir das especificidades da própria obra (Namura, 2007; Reis & Zanella, 2014; Zanatta & Silva, 2017).
Em Psicologia da Arte, Vigotski (1965/1999b) define a emoção, a fantasia e a imaginação como elementos centrais da psique. A partir dessa definição, o autor compreende que a reação estética causada pela fruição da obra artística inicia-se pela via sensorial, porém depende fundamentalmente da ação conjunta dos processos da imaginação e da emoção (Japiassu, 1999; Leite, 2015; Zanatta & Silva, 2017). As pesquisas de Vigotski (1965/1999b) nesse campo demonstram que essas categorias se revestem de importância fundamental no estudo da Psicologia da Arte. Vigotski (1965/1999b) diferencia a emoção comum da emoção artística, demonstrada, por exemplo, pelos atores durante a encenação de uma peça teatral, ou por uma criança durante uma brincadeira de faz de conta. Para o autor, essas emoções têm origem em diferentes processos psicológicos: o sentimento artístico, embora de grande intensidade, é sustentado pela fantasia e não prescinde de manifestações externas, podendo ser controlado e objetivado por meio de uma produção artística (Japiassu, 1999; Leite, 2015; Reis & Zanella, 2014).
Por isso, Vigotski (1965/1999b) afirma que "as emoções da arte são emoções inteligentes. Em vez de se manifestarem de punhos cerrados e tremendo, resolvem-se principalmente em imagens da fantasia" (p. 267). A reação estética, portanto, constitui-se em um complexo processo, no qual a imaginação tem um papel determinante: embora o espectador tenha consciência de que os sentimentos suscitados pela vivência artística são ilusórios, ainda assim os vivencia com intensidade (Ramos, 2015; Zanatta & Silva, 2017). A questão da emoção e das suas relações com a imaginação constituem, portanto, um dos grandes problemas da Psicologia moderna; o efeito da arte é muito mais complexo e implica em algo muito mais distinto do que a pura transmissão de sentimentos.
Para Vigotski (1965/1999b, p. 3), "a ideia central da psicologia da arte é o reconhecimento da superação do material da forma artística, ou o que dá no mesmo, o reconhecimento da arte como técnica social do sentimento". Defende, portanto, a ideia de que a arte não envolve a mera expressão dos sentimentos, mas sua concretização e superação; por meio da arte, os sentimentos ganham existência social, materializando os processos subjetivos nas relações sociais e transformando-se, ao longo desse processo (Barroco & Superti, 2014; Reis & Zanella, 2014; Schühli, 2011).
O autor defende que é a ação transformadora que permite ao homem compreender e desfrutar da arte. A natureza da arte implica em transformação dos sentimentos; ela representa elementos extraídos das vivências humanas que, ao serem utilizados, são transformados em um elemento novo e diferente, permitindo afirmar que "a arte está para a vida como o vinho para a uva" (Vigotski, 1965/1999b, p. 307). Dessa forma, Vigotski (1965/1999b) enfatiza a natureza transformadora da arte e seu potencial criativo a partir da imaginação humana: livre da obrigatoriedade de ser uma reprodutora fiel da realidade, a arte pode fruir livremente, constituindo-se enquanto ação criativa do homem. Ao afirmar que "a arte recolhe da vida seu material mas produz acima desse material algo que ainda não está nas propriedades desse material" (Vigotski, 1965/1999b, p. 308), o autor revela que a obra artística permite a expressão criadora, capaz de trazer à concretude objetiva elementos da subjetividade e constituir novas formas de relação (Barroco & Superti, 2014; Japiassu, 1999; Reis & Zanella, 2014).
Para Vigotski (1965/1999b, p. 308), "o sentimento é inicialmente individual e através da obra de arte torna-se social ou generaliza-se". O processo de socialização da arte cria uma relação indissociável entre individual e social; o social, no entanto, não se refere simplesmente ao grupamento de pessoas, mas sim à produção que é histórica e culturalmente construída e da qual o sujeito passa a fazer parte desde o momento de seu nascimento. Por isso, dialeticamente, também a obra de arte não se trata de uma criação puramente individual, já que reflete todas as características do contexto que permeiam o artista, que nunca é um ser isolado, mas está em constante relação com os outros e com o meio. Vigotski (1965/1999b) define esse processo complexo intersubjetivo, afirmando que "seria mais correto dizer que o sentimento não se torna social mas, ao contrário, torna-se pessoal, quando cada um de nós vivencia uma obra de arte, converte-se em pessoal sem com isto deixar de continuar social" (p. 315). O social desvela-se na intencionalidade conscientemente determinada pelo artista em sua criação, organizada justamente com o intuito de provocar uma determinada reação estética no público. Dessa forma, individual e social relacionam-se em um indivisível e contínuo processo dialético (Barroco & Superti, 2014; Japiassu, 1999). A arte, compreendida sob este ponto de vista, não é produto individual, mas incorpora-se à história da humanidade, possibilitando a vivência por meio indireto das emoções e das relações que se estabelecem socialmente (Barroco & Superti, 2014; Guimarães, 2000). Assim, a arte constitui um meio psicológico para criar equilíbrio sobre o comportamento; aparece, dessa forma, como um complemento da vida, a expandir as suas possibilidades.
A criação artística, para Vigotski (1965/1999b), não visa transmitir os sentimentos particulares do autor para o fruidor; vai além das emoções individuais, generalizando-as em um plano social no qual são reelaboradas e transformadas, revelando algo inteiramente novo que não pode ser encontrado diretamente na obra, mas só pode ser objetivado concretamente nas relações humanas com a mediação da arte (Magiolino, 2014; Schühli, 2011; Zanatta & Silva, 2017). Essa mediação, segundo Vigotski (1965/1999b), ocorre por meio da catarse.
Reflexões sobre a catarse
Na obra Psicologia da Arte, Vigotski (1965/1999b) discorre sobre a catarse, tecendo reflexões sobre o termo em outros autores e apresentando sua própria formulação do conceito.
Vigotski (1965/1999b) inicia revisando a definição de Aristóteles (335a.C.?/2008), segundo a qual a catarse é o efeito emocional da tragédia sobre o espectador que, identificando-se com as personagens, sentiria piedade e terror (Barros et al, 2011; Leite, 2015; Wedekin, 2015). De acordo com o filósofo grego, as ações do herói trágico têm função de limpeza e purificação das emoções suscitadas pela tragédia; a relação entre herói e espectador, portanto, não envolve uma postura estética ativa e criadora, mas sim uma relação ética predominantemente passiva, de compaixão do espectador pela personagem (Leite, 2015). Contraditoriamente, sob a perspectiva de Vigotski (1965/1999b), não existe espectador passivo; no entanto, para o autor, não há na Psicologia outro termo que expresse de forma tão completa o fato central da reação estética segundo o qual os afetos dolorosos e desagradáveis se descarregam e se transformam em seu oposto - por essa razão, apesar de discordar da posição defendida por Aristóteles (335a.C./2008), mantém o uso do termo catarse.
Vigotski (1965/1999b) também faz referências às definições de catarse como efeito moral da tragédia (Lessing, 1877/2019), passagem do desprazer ao prazer (Müller-Freienfels, 1912), purificação e cura no sentido médico (Bernays, 1857) e tranquilização da emoção (Zeller, 1839), enfatizando o caráter incompleto de todas essas explicações. O autor também rejeita a definição psicanalítica de Freud (1895/2016), que parte do entendimento aristotélico e compreende a catarse como uma descarga de energia emocional. Para Vigotski (1965/1999b) o entendimento deve ser mais amplo, pois a catarse não somente descarrega os sentimentos, mas permite sua completa transformação qualitativa.
Declarando não haver encontrado outro termo capaz de abranger a profundidade do conceito, Vigotski (1965/1999b) concebe a catarse como a característica principal da reação estética. Toda obra de arte se estrutura através de processos nos quais emoções angustiantes são opostamente transformadas e destruídas, descartadas; essa transformação complexa dos sentimentos é a catarse, que gera a reação estética. É a catarse que suscita o prazer na arte. Seguindo o mesmo princípio de transformação pelos opostos, a arte sempre destrói o conteúdo por meio da forma, sendo essa a base da reação estética.
Vigotski (1965/1999b) utiliza elementos do teatro e da literatura para demonstrar como ocorre a reação estética, esclarecendo que toda obra artística se caracteriza pela reação estética gerada quando "as emoções angustiantes e desagradáveis são submetidas a certa descarga, à sua destruição e transformação em contrários" (p. 270). Vigotski (1965/1999b) enfatiza que a produção artística busca causar uma reação estética no público, produzida pelo choque entre situações que se opõem em um conflito emocional na obra de arte. A catarse é, portanto, desencadeada por uma contradição emocional presente em todas as formas de arte, e se manifesta em diferentes expressões artísticas. Essa contradição dialética é evidenciada de diferentes formas. Na poesia, esse processo revela-se tanto na oposição entre o ritmo e as palavras como pela exposição de sentimentos antagônicos no texto. Em gêneros literários como o drama, o romance, a tragédia e a comédia, a contradição emocional é evidenciada na descrição do personagem central (o herói), que ao longo da trama pode revelar posições ambíguas, ou mesmo por meio de um desfecho desconcertante para o leitor. Na pintura, os elementos de contraposição entre formas e valores levam à superação através da catarse. De forma semelhante isso ocorre na arquitetura e na escultura, quando elementos artificiais representam os naturais e estruturas físicas pesadas remetem a ideias etéreas de leveza. Em todas essas diferentes formas de produção artística sempre se constatará a duplicidade, em uma luta de opostos solucionada pela catarse, que é exatamente o elemento que confere prazer à fruição artística e sem o qual não existe arte.
Dessa forma, a partir de uma concepção materialista dialética, Vigotski (1965/1999b) compreende que a obra de arte sempre gera sentimentos contraditórios. Em qualquer expressão artística, a reação estética define-se sempre como o produto da superação da contradição dialética entre conteúdo e forma, entre dois polos antagônicos; trata-se, portanto, de "um sistema metodicamente desenvolvido de elementos, um dos quais sempre suscita em nós um sentimento absolutamente contrário àquele suscitado pelo outro" (Vigotski, 1965/1999b, p. 145). A estrutura da arte envolve a contraposição de sentimentos, a existência de dois planos psicológicos diametralmente opostos, que suscita no leitor/espectador emoções intensas e igualmente contraditórias. Esse conflito emocional é resolvido por meio de sua fusão como um curto-circuito através da catarse, reação caracteristicamente humana que resulta da contradição entre forma e conteúdo implícita à obra de arte (Japiassu, 1999; Namura, 2007).
Vigotski (1965/1999b) enfatiza a postura ativa do indivíduo perante a obra de arte, destacando que "o prazer artístico não é mera recepção mas requer uma elevadíssima atividade do psiquismo" (p. 258). Não se trata, portanto, de apenas usufruir da obra de arte produzida por outra pessoa, mas de significá-la e ressignificá-la, em um processo psicológico que dispende envolvimento e energia emocional. Esse desfecho da contradição emocional suscitada pela arte, sua fusão e finalização, é o resultado da reação estética; após atingir o ápice da emoção desenvolvida em dois sentidos contrários, com a descarga explosiva das emoções geradas pela arte, ocorre sua destruição: os sentimentos são profundamente transformados e tranquilizados no processo de catarse.
A definição de catarse em Vigotski (1965/1999b) estabelece um importante diferencial em relação às teorias psicológicas tradicionais. O autor se opõe à teoria do contágio, segundo a qual os sentimentos individuais do artista contagiavam passivamente o espectador, enfatizando a postura ativa necessária ao espectador que realiza a sua própria catarse. Critica também a visão de que a arte reflete objetivamente a realidade, destacando que a reação estética é resultado de um processo no qual os sentimentos são transformados qualitativamente, superando ativamente o conteúdo pela forma (Ramos, 2015; Schühli, 2011; Zanatta & Silva, 2017). Vigotski (1965/1999b) refuta, ainda, a visão que reduz a arte ao sentimento de prazer; para o autor, o prazer surge como resultado da transformação causada pela catarse, em um processo muitas vezes vivenciado com conflitos e sofrimento (Schühli, 2011).
A arte permite a expressão de emoções que proporcionam o equilíbrio do indivíduo com o meio, levando à sua reorganização psíquica. Esse processo ocorre sempre por via indireta, pois "a arte nunca gera de si mesma uma ação prática, apenas prepara o organismo para tal ação" (Vigotski, 1965/1999b, p. 314). A catarse é, portanto, um processo simbólico, já que as emoções vivenciadas por meio da arte ocorrem no campo psicológico e não se concretizam externamente. A catarse desvela um processo criador que amplia as possibilidades de ação, preparando o indivíduo para a ação prática. Conforme explica Vigotski (1965/1999b), a arte é "uma organização do nosso comportamento visando ao futuro, uma orientação para o futuro, uma exigência que talvez nunca venha a concretizar-se, mas que nos leva a aspirar acima da nossa vida o que está por trás dela" (p. 320). Assim, a arte assume uma função organizadora antecipatória, permitindo uma nova organização do psiquismo (Barroco & Superti, 2014; Guimarães, 2000).
A obra de arte, para Vigotski (1965/1999b), suscita sentimentos contraditórios que provocam um curto-circuito transformador, gerando uma nova organização psicológica (Zanatta & Silva, 2017). No processo de catarse, a forma artística opõe-se diametralmente ao conteúdo, destruindo-o e gerando uma descarga de sentimentos completamente transformados. O processo pelo qual a forma supera o conteúdo em toda obra artística caracteriza a reação estética da catarse: "a oposição que encontramos entre a estrutura da forma artística e o conteúdo é o fundamento do efeito catártico da reação estética" (Vigotski, 1965/1999b, pp. 171-172). Por isso, a emoção refere-se tanto à forma como ao conteúdo da obra artística, em um conjunto indissociável que ultrapassa a vivência de seus elementos isoladamente. A forma e o conteúdo da obra artística se integram, objetivando e desencadeando emoções contraditórias, cuja superação promove um salto psicológico qualitativo (Barroco & Superti, 2014; Guimarães, 2000).
A reação estética permite, por meio da imaginação e fantasia, a solução e reelaboração de sentimentos, mediando aspectos subjetivos e sua objetivação na realidade concreta através da catarse. O processo de catarse, portanto, promove um redimensionamento da consciência, que traz à tona sentimentos e emoções elaborados por meio da vivência estética (Guimarães, 2000; Magiolino, 2014; Wedekin, 2015). Vigotski (1965/1999b) defende que processos cognitivos e afetivos são cultural e historicamente determinados e relacionam-se entre si, afirmando que a vivência artística envolve processos humanos indissociáveis como a cognição, a volição e a emoção (Wedekin & Zanella, 2013). Para o autor, "a arte é a mais importante concentração de todos os processos biológicos e sociais do indivíduo na sociedade" (Vygotski, 1965/1999b, p. 329). Dessa forma, demarca um posicionamento contrário às concepções estéticas de sua época, revelando uma concepção histórico-cultural de homem que viria a caracterizar toda sua obra.
Considerações finais
Na obra Psicologia da Arte, Vygotski (1965/1999b) desenvolve estudos e reflexões acerca da relação da arte com o comportamento humano, ou seja, investiga as relações entre a arte e a vida (Zanatta & Silva, 2017). Para o autor, a arte se constitui em um instrumento que permite à sociedade incorporar aspectos pessoais e íntimos; nesse sentido, ao apreciar uma obra de arte, a pessoa individualiza um processo cuja natureza é social. Ao agir sobre sua realidade, o homem modifica a natureza, criando instrumentos simbólicos que o auxiliem em seu processo de domínio e transformação. Constrói, dessa forma, um ambiente que extrapola as determinações naturais, sendo determinado não somente por seus aspectos individuais, mas pelas influências culturais e históricas que permeiam sua sociedade (Japiassu, 1999; Santos & Leão, 2014).
A arte é compreendida por Vygotski (1965/1999b) enquanto produto e processo do trabalho humano, constituindo-se em uma ação intencional. A objetivação dos sentimentos proporcionada pela ação criadora da obra artística permite a recriação de si mesmo e a transformação da natureza e da realidade, reafirmando o caráter histórico e social do psiquismo humano (Barroco & Superti, 2014; Guimarães, 2000; Japiassu, 1999).
Psicologia da Arte marca a aproximação inicial de Vygotski (1965/1999b) da Psicologia e apresenta importantes contribuições para a compreensão do potencial da arte como instrumento psicológico promotor da catarse. Enquanto produção humana inserida no seio das relações sociais, a arte tem o poder de suscitar vivências mobilizadoras de emoção que possibilitam a geração de novas formas de sentir e estar no mundo. A fruição da obra de arte sensibiliza o sujeito; a catarse promovida por essa fruição conduz à produção de novos sentidos, que geram a ressignificação de si mesmo e ao outro.
A psicologia da arte contemporânea precisa de maiores estudos sobre a percepção, sobre as emoções, sobre a imaginação e a fantasia. A resposta da psicologia da arte começa pela percepção, mas não termina nela; certamente, todos os sistemas psicológicos se revestem de diferentes combinações para buscar explicar a catarse. A partir dos pressupostos de Vygotski (1965/1999b) abre-se para a atuação do psicólogo um novo campo a partir do qual, por meio da mobilização emocional, é possível construir formas qualitativamente novas de pensar, ser e sentir. Considerando que a arte permite ao homem equilibrar-se com o mundo nos momentos críticos de tensão, e por isso pode ser considerada "a mais importante concentração de todos os processos biológicos e sociais do indivíduo na sociedade" (Vygotski, 1965/1999b, p. 329), a obra artística apresenta à Psicologia sua potencialidade não somente de afetar; mas, para além disso, de promover reais transformações sobre a ação humana, a partir da ressignificação da realidade sob um novo prisma. Nesse sentido, a arte pode ser compreendida como instrumento que medeia o contato do sujeito consigo mesmo e com o mundo, promovendo uma ampliação da autoconsciência que repercute na ressignificação da realidade e na transformação qualitativa das relações que estabelece com os demais em seu contexto.
Partindo do conceito vigotskiano da experiência estética como via de expressão emocional, compreende-se que as emoções suscitadas pela fruição demandam um processo de catarse capaz de reelaborar e conferir novo sentido às emoções. Mais uma vez, portanto, evidencia-se o potencial da arte enquanto instrumento psicológico que permite a reelaboração e a ressignificação das vivências emocionais, conduzindo à tomada de consciência e à reflexão sobre as relações que estabelece em seu meio, histórica e culturalmente situado. Trata-se, portanto, da possibilidade de desenvolver a autoconsciência a partir da mediação da arte. A catarse produzida na experiência artística promove o desenvolvimento da autoconsciência e gera novas possibilidades de ação, conduzindo a transformações qualitativas das interações sociais e do posicionamento pessoal frente às demandas concretas da realidade diária.
A análise de Psicologia da Arte revela o potencial da arte como um promissor instrumento psicológico por meio do qual o homem não somente é mobilizado afetivamente, mas pode tornar-se consciente de suas emoções e também ressignificá-las, em um processo dinâmico de transformação qualitativa da própria realidade.
O estudo do conceito de catarse para Vygotski (1965/1999b) revela a importância de que a arte transcenda as emoções da vida cotidiana. A Psicologia, enquanto ciência voltada ao desenvolvimento e às relações humanas, precisa também se apropriar do potencial da arte enquanto promotor do estabelecimento de novas e transformadas relações do sujeito consigo mesmo e com o meio, possibilitando novas formas de interagir, ser e sentir. A catarse promovida pelo encontro com a arte tem justamente esse potencial: estimulando o desenvolvimento de novos sentidos, a ação criadora do homem sobre a obra artística deve proporcionar transformações qualitativas que levem à ressignificação do indivíduo em seu contexto histórico e cultural.
Surpreendentemente, as reflexões realizadas há quase cem 100 anos em Psicologia da Arte permanecem ainda - e cada vez mais - atuais. Em uma sociedade na qual se prima pelo consumo instantâneo, pela agilidade das informações e pela defesa de uma aldeia global, a superficialidade das relações denuncia o distanciamento alarmante da subjetividade e o empobrecimento sensível e afetivo da vida moderna. A sociedade atual precisa redescobrir o potencial criador da arte, promotor de desenvolvimento pessoal e social, e criador de novas formas de subjetivação e de compreensão da realidade.
A Psicologia pode - e deve - contribuir para esse processo, promovendo o reencontro do homem com as próprias emoções através da catarse gerada nas diversas possibilidades de fruição artística que a sociedade atual oferece. Se a arte "é um meio de equilibrar o homem com o mundo nos momentos mais críticos e responsáveis da vida" (Vygotski, 1965/1999b, p. 329), urge, nos tempos atuais, realizar uma reaproximação com a arte. É preciso criar e fortalecer espaços para a vivência estética, possibilitando ao indivíduo um reencontro com as próprias emoções, reconectando-se com seus aspectos de sensibilidade e criatividade.
A vivência das próprias emoções é uma possibilidade que não pode ser negada ao ser humano. A atuação psicológica pode usufruir dos preceitos vigotskianos acerca da arte e da catarse para valorizar esses processos de reencontro e desenvolvimento. Emocionar-se e reconhecer suas emoções por meio da vivência estética da arte implicam em considerar a integralidade do ser humano, como ser que pensa, age e que também sente - e que, por meio da catarse de suas emoções, é capaz de transformar o próprio meio e a si mesmo.
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Endereço para correspondência:
Paula Maria Ferreira de Faria
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Submetido em: 31/07/2018
Revisto em: 19/02/2019
Aceito em: 11/04/2019