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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.72 no.2 Rio de Janeiro May/Aug. 2020

https://doi.org/10.36482/1809-5267.arbp2020v72i1p.105-120 

ARTIGOS

 

Significados da paternidade em contextos de vulnerabilidade social

 

Paternity's meanings in contexts of social vulnerability

 

Significados de la paternidad em contextos de vulnerabilidad social

 

 

Ana Paula BenattiI; Caroline Rubin Rossato PereiraII

IPsicóloga. Prefeitura Municipal de Doutor Maurício Cardoso. Docente e tutora da Rede Nacional de Tanatologia. Doutor Maurício Cardoso. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo investigou o significado da paternidade vivenciada em contextos de vulnerabilidade social. Participaram do estudo seis pais e seis mães de crianças que se encontravam cadastrados em um Centro de Referência de Assistência Social de um município do interior do estado do Rio Grande do Sul. Os dados foram coletados através de um questionário sociodemográfico e de uma entrevista semiestruturada e foram analisados por meio da Análise de Conteúdo. Pais e mães indicaram certo consenso com relação ao papel atribuído à figura paterna - como o de responsável pelo sustento financeiro dos filhos e da família. Além disso, ao considerar a paternidade ideal, o "bom pai" foi definido como aquele que se faz presente na rotina familiar e na vida dos filhos.

Palavras-chave: Relações pai-criança; Paternidade; Vulnerabilidade social.


ABSTRACT

The present study investigated the meaning of fatherhood experienced in contexts of social vulnerability. Study participants were six parents and six mothers of children, who were registered in a Reference Center of Social Assistance of a city in the interior of the state of Rio Grande do Sul. Data were collected through a sociodemographic questionnaire and a semi structured Interview and were analyzed through Content Analysis. Fathers and mothers indicated a certain consensus about the role attributed to the paternal figure - as the responsible for the financial support of the children and the family. In addition, when considering ideal fatherhood, the "good father" was defined as one that is present in the family routine and in the lives of the children.

Keywords: Father child relations; Paternity; Social vulnerability.


RESUMEN

El presente estudio investigó el significado de la paternidad experimentada en contextos de vulnerabilidad social. En el estudio participaron seis padres y seis madres de niños que se encontraban registrados en un Centro de Referencia de Asistencia Social en un municipio del interior del estado de Rio Grande do Sul. Los datos se recopilaron a través de un cuestionario sociodemográfico y de una entrevista semiestructurada y se analizaron a través del Análisis de Contenido. Padres y madres indicaron cierto consenso con respecto al papel atribuido a la figura paterna - como responsable por el sustento financiero de los hijos y de la familia. Además, al considerar la paternidad ideal, el "buen padre" fue definido como aquel que se hace presente en la rutina familiar y en la vida de los hijos.

Palabras clave: Relaciones padre-niño; Paternidad; Vulnerabilidad social.


 

 

Introdução

Embora nas últimas três décadas a Psicologia tenha se ocupado em estudar o fenômeno da paternidade, principalmente através da interação do pai com a criança, foi a partir da década de 1970, com os estudos de Lamb sobre a importância do pai para o desenvolvimento infantil, que ele passou a ser mais explorado cientificamente (Goetz & Vieira, 2013). Anteriormente a este período, a maior ênfase dos estudos recaía sobre o binômio mãe-filho, ou seja, a importância do papel materno para o desenvolvimento infantil (Borsa & Nunes, 2011). Entretanto, da mesma forma como o contexto histórico e social influencia a ciência, as descobertas científicas influenciam o contexto, de modo que, cada vez mais o pai passou a participar da vida familiar e dos filhos, bem como tornou-se objeto de estudo e investigação científicos (Bossardi, Bueno & Vieira, 2015).

Neste sentido, Bueno, Bossardi e Vieira (2015), ao tratar do papel do pai no contexto contemporâneo, apontam que o mesmo já sofreu inúmeras alterações, tendo em vista as transformações ocorridas na família, fruto das mudanças econômicas, sociais e culturais de cada época. Entretanto, para eles, apesar das transformações pelas quais a família tem passado, continua sendo a principal tarefa, tanto de pais quanto de mães, oferecer condições para que os filhos cresçam e se desenvolvam com saúde. Assim, independentemente da configuração familiar e do contexto no qual a família viva, os pais possuem compromisso com os cuidados e a educação dos filhos.

Consoante tal ideia, a revisão de literatura desenvolvida por Vieira, Bossardi, Bolze, Crepaldi e Piccinini (2014) acerca da produção nacional sobre paternidade e sua relação com o desenvolvimento infantil, entre os anos de 2000 e 2012, apontou que, assim como o papel paterno tem passado por inúmeras transformações, cada vez mais é reconhecida sua importância para o desenvolvimento infantil. Por outro lado, o estudo indicou a coexistência de resquícios de uma concepção tradicional sobre a paternidade, associando ao pai a responsabilidade pelo sustento financeiro da família e o papel de mero coadjuvante nos cuidados com os filhos.

Neste sentido, Bueno et al. (2015), inspirados nos estudos de Paquette, abordaram a importância do pai para o desenvolvimento infantil, enfatizando as diferenças na forma de pais e mães interagirem com as crianças. Um exemplo disto consiste em o pai realizar, com maior frequência que a mãe, brincadeiras turbulentas, envolvendo contato físico com a criança, as chamadas brincadeiras de "lutinha". Nestas brincadeiras, além de estimular o desenvolvimento físico e motor da criança, o pai contribui para o seu desenvolvimento emocional, ao alternar situações de dominação-subordinação, bem como a aprendizagem de habilidades para lidar com a frustração e a agressividade. Ademais, nestas brincadeiras, se faz presente o que os autores denominam de relação de ativação, na qual a criança é, ao mesmo tempo, estimulada à "abertura ao mundo", ou seja, explorar ambientes, aceitar desafios, superar limites, persistir nas adversidades, assim como disciplinada a lidar com limites, os quais garantem proteção e segurança a ela. Todavia, os autores lembram que tal relação depende de fatores individuais e contextuais como, por exemplo, as relações familiares, o relacionamento da díade parental (aprovação ou desaprovação, por exemplo) e influências culturais, ou seja, aquilo que culturalmente se atribui ao papel de homem e de pai.

Consoante tal assertiva, Benczik (2011) ressaltou que, atualmente, o pai participa, divide e compartilha aspectos importantes da vida dos filhos, tanto no que se refere ao aspecto emocional, como ao social e cognitivo. Porém, há como contraponto, em nossa sociedade, os pais que não ocupam tal lugar. Segundo a autora, isso se dá em decorrência da ausência de desejo por parte deles ou por não acreditarem que são capazes. Tais fatores seriam fomentados por um discurso biologicista, muito presente no senso comum, que atribui à mãe, por sua natureza feminina, habilidades inatas ao cuidado e criação dos filhos. Outro fator, questionado pela autora, refere-se a não permissão, por parte da mãe, de que o pai desempenhe um papel alternativo ao seu, junto aos filhos, por não o considerar apto a tal. Com isso, haveria uma desqualificação por parte da mãe ao exercício da paternidade. Essa compreensão vai ao encontro do que foi proposto por Cúnico e Arpini (2013), ao referirem que pensar a paternidade, no cenário atual, implica também problematizar o papel materno, o qual, historicamente, esteve atrelado à afetividade e ao saber sobre os filhos. Desta forma, conferir à mulher um saber natural sobre a maternidade priva e, até mesmo, exclui o homem de sua participação como sujeito ativo no cuidado e na criação dos filhos, ou seja, no exercício da paternidade.

Além disso, no que se refere aos papéis parentais, Bueno et al. (2015) afirmam que estes não são estanques, alterando-se ao longo do ciclo de vida familiar, de modo a ajustar-se às necessidades dos membros da família em momentos específicos. Portanto, no que diz respeito ao papel paterno, é esperado que, em famílias com filhos pequenos, ele esteja voltado para a educação e cuidados básicos para com a criança. Na fase de família com filhos adolescentes, é esperado que seu papel se altere e assim sucessivamente, conforme cada momento do ciclo de vida familiar.

Há que se considerar que os aspectos até aqui salientados referem-se a uma concepção generalista acerca da temática, todavia, o presente estudo visa compreender o significado de ser pai para homens e mulheres cujas famílias encontram-se em situação de vulnerabilidade social. Para tanto, faz-se necessário considerar a influência do contexto social no exercício da paternidade. Segundo Sarti (2011), em famílias pobres1, há certa tendência de que os papéis parentais sejam desempenhados de forma complementar por pais e mães, baseados nas diferenças de gênero. Assim, caberia ao homem a responsabilidade pela família, em termos de sustento financeiro e no exercício de sua autoridade; e à mulher caberia a responsabilidade pela casa, ou seja, a realização dos afazeres domésticos, e o cuidado para com seus membros mantendo, assim, a unidade do grupo familiar.

Bustamante e Trad (2005), em estudo etnográfico realizado com sete casais de um bairro popular da cidade de Salvador, com o objetivo de compreender a participação paterna no cuidado e criação de crianças menores de seis anos, apontaram que, nestas famílias, o fato de ter filhos era compreendido como fundante da família, ou seja, o nascimento do primeiro filho significava para os participantes a constituição de novos núcleos familiares. Da mesma forma, em seu estudo com moradores da periferia paulista, Sarti (2011) identificou que a família ideal era entendida como aquela formada pela tríade: casamento, casa e filhos.

O estudo de Bustamante e Trad (2005) ainda indicou que, na população estudada, a participação paterna na criação dos filhos se dava através de três dimensões: 1) educação, em que o pai era visto como figura central e responsável por exercê-la junto aos filhos; 2) cuidados corporais, percebidos como atribuição feminina, sendo o pai auxiliar ou ajudante da mãe nos momentos em que realiza tais cuidados; e 3) preservação da integridade dos filhos, de responsabilidade de todos os membros familiares. Neste último ponto, ao referir-se à responsabilidade paterna quanto à preservação da integridade dos filhos, esta esteve associada às vulnerabilidades presentes no contexto em que a família vivia (por exemplo, drogadição, violência física e sexual) e aos riscos presentes no ambiente doméstico (por exemplo, construções precárias e/ou que ofereçam risco de acidentes).

Portanto, considerando a necessidade de estudos envolvendo a temática da paternidade em contextos de vulnerabilidade social, este estudo se propõe a compreender o seu significado a partir da perspectiva de pais e mães provenientes do contexto em questão. Assim, espera-se contribuir para com a comunidade acadêmica e científica, bem como para com os profissionais que atuam em contextos de vulnerabilidade social, no sentido de aproximar o entendimento técnico do significado que a própria população atribui à paternidade.

A psicologia, enquanto uma das especialidades em saúde, também passa a intervir diretamente na vida das famílias, principalmente no âmbito das políticas públicas. Neste sentido, considerando a recente atuação do psicólogo no campo da assistência social, incluído como membro obrigatório das equipes de referência apenas em 2011 (Resolução CNAS n. 17, 2011), pode-se compreender que ela se constitui um desafio a estes profissionais. Neste contexto, o psicólogo necessita desenvolver um fazer que respeite a cultura dos usuários e do contexto no qual estes estão inseridos, para, então, realizar uma prática crítica e eficaz. Neste sentido, conhecer o modo como os próprios pais e mães compreendem a paternidade deve servir como suporte aos profissionais que atuam com famílias, auxiliando-os a desenvolver estratégias baseadas em uma visão psicossocial acerca do fenômeno (Dimenstein, 2000; Macedo & Dimenstein, 2012). A partir do exposto, o presente estudo objetivou compreender o significado atribuído por pais e mães acerca da paternidade em contextos de vulnerabilidade social.

 

Método

Participantes

Participaram deste estudo seis pais e seis mães de crianças com até doze anos incompletos, cujas famílias encontravam-se cadastradas em um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de um município de pequeno porte do interior do Rio Grande do Sul. A escolha dos participantes realizou-se através do critério de amostragem intencional, sendo que estes foram definidos tendo em vista a inclusão de, ao menos, um pai ou mãe representativos de cada uma das seguintes configurações familiares: nuclear, recasada, monoparental e extensa. Salienta-se, também, que o número de participantes - seis pais e seis mães - foi limitado tendo em vista o tamanho total do corpus a ser analisado a partir destas 12 entrevistas, de modo a não comprometer a qualidade e a profundidade da análise (Gaskell, 2015). Foram excluídos da pesquisa os pais e mães que apresentavam algum comprometimento cognitivo significativo que impedisse a compreensão da entrevista, bem como os que possuíam filhos com problemas de desenvolvimento, tais como síndromes, deficiência intelectual ou física. Além disso, poderiam participar da pesquisa pais e mães que compunham um casal, ou seja, que constituíssem o mesmo núcleo familiar, todavia, isto só ocorreu em um caso: com o casal constituído pelo pai P1 e pela mãe M1.

Com relação ao perfil dos participantes, no momento em que se realizou a coleta dos dados2, os pais possuíam idades entre 27 e 60 anos (M = 43,5 anos) e as mães compreenderam as idades entre 25 e 41 anos (M = 33 anos). A escolaridade dos participantes variou entre o Ensino Fundamental incompleto e o Ensino Médio incompleto, sendo que dois dos 12 participantes apresentavam escolaridade superior ao Ensino Fundamental. A ocupação dos participantes foi considerada variada e suas configurações familiares foram as seguintes: monoparental feminina simples, monoparental feminina extensa, nuclear simples, recasada e família convivente (Moreira, 2013; Carter & McGoldrick, 1995). O Quadro 1 ilustra o perfil e as configurações familiares dos pais entrevistados.

O Quadro 2 ilustra o perfil e a configuração familiar das mães entrevistadas.

Delineamento e procedimentos

Trata-se de uma pesquisa qualitativa (Minayo, 2012), transversal, exploratória e descritiva que descende da pesquisa intitulada "Psicologia e políticas públicas: saúde e desenvolvimento em contextos de vulnerabilidade social", desenvolvida pelo Programa Nacional de Cooperação Acadêmica (Procad), sob o Edital nº 071/2013.

No que tange aos procedimentos para a execução deste projeto de pesquisa, inicialmente, solicitou-se a autorização institucional do gestor da Secretaria de Desenvolvimento Social do município em questão, uma vez recebida a autorização, o projeto foi submetido à apreciação pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sendo aprovado com o registro CAAE 65392217.4.0000.5346. Posteriormente, solicitou-se aos técnicos do CRAS (assistente social, psicólogo e técnico do Cadastro Único para Programas Sociais - CadSUAS) a indicação dos pais e das mães aptos a participar do estudo. Foi estabelecido, então, contato telefônico com as famílias indicadas com o objetivo de apresentar a pesquisa e convidá-las a participar do estudo. Havendo o aceite dos participantes, foi agendado um horário para a apresentação e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e aplicação dos instrumentos.

As entrevistas ocorreram de forma individual, com cada um dos participantes e foram gravadas em áudio sendo, posteriormente, transcritas na íntegra. O local para a coleta dos dados foi definido de acordo com a preferência dos participantes, de modo que as coletas realizadas com os pais ocorreram todas nas residências dos mesmos, em horários alternativos ou aos finais de semana e das seis coletas realizadas com as mães, cinco ocorreram no CRAS e apenas uma na residência da participante. Todas as coletas foram realizadas por uma das autoras deste estudo.

Ressalta-se, ainda, que foram tomados todos os cuidados éticos exigidos na pesquisa com seres humanos. Além disso, a fim de manter o sigilo da identidade dos participantes, na apresentação dos resultados, pais e mães foram identificados por uma letra maiúscula e um número cardinal, sendo a letra P correspondente aos pais e a letra M às mães, ou seja, P1, P2, P3 etc., M1, M2, M3 e assim sucessivamente.

Instrumentos

Na realização desta pesquisa foram utilizados dois instrumentos, ambos construídos pelas pesquisadoras, sendo eles: um questionário sociodemográfico e uma entrevista semiestruturada intitulada "Entrevista sobre parentalidade em contextos de vulnerabilidade social". O primeiro foi utilizado com o objetivo de obter informações acerca das características gerais das participantes, tais como: idade, escolaridade, profissão etc. A entrevista, por sua vez, foi construída para fins do presente estudo e visou explorar o significado de ser pai de crianças em famílias em situação de vulnerabilidade social, com o objetivo de melhor compreender o exercício da paternidade em tais contextos. A fim de alcançar o objetivo proposto, a mesma abordou dois tópicos centrais: a) o papel do pai na criação dos filhos: rotina familiar, educação, cuidados diários e relacionamento com os filhos; b) o significado da paternidade: importância do pai para os filhos e para a família e a definição de paternidade ideal.

Análise dos dados

Os dados coletados através das entrevistas individuais foram analisados através da Análise de Conteúdo (Bardin, 1977), de modo que os conteúdos apresentados foram agrupados em categorias semânticas. Estas, por sua vez, foram elaboradas a partir do modelo aberto (Laville & Dionne, 1999), sendo definidas após a coleta dos dados, tendo em vista a frequência e/ou relevância dos conteúdos manifestados pelos participantes. Para a definição das categorias e vinculação das falas dos participantes a estas, duas juízas trabalharam em conjunto, sendo uma delas autora do presente estudo. Cada juíza avaliou separadamente as entrevistas com vistas a propor as categorias temáticas e associar as respectivas falas, sendo que eventuais discordâncias quanto à categorização das falas foram sanadas por uma terceira juíza, também autora do presente estudo.

 

Resultados e discussão

A partir das entrevistas realizadas com pais e mães, buscou-se compreender o significado da paternidade em contextos de vulnerabilidade social. Desta forma, elaboraram-se três categorias temáticas: "A parte financeira, o responsável sou eu": sobre questões financeiras e domésticas; "O esteio da casa é o pai": sobre autoridade e apoio; e "O filho é um pedaço da vida da gente": sobre cuidado, proteção e afeto, as quais serão apresentadas e discutidas a seguir.

"A parte financeira, o responsável sou eu": sobre questões financeiras e domésticas

Esta categoria engloba os significados atribuídos à paternidade em contextos de vulnerabilidade social no que se refere ao papel do pai em relação ao sustento financeiro da família e dos filhos, bem como sua participação nos afazeres domésticos. Em relação ao aspecto financeiro, três dos seis pais participantes eram o único provedor doméstico (P4, P5 e P6): "Eu trabalho e a mulher fica em casa com o nenê, cuidando do nenê e da casa" (P4); "Só eu trabalho, né. Então, a parte financeira, o responsável sou eu" (P6). Mesmo para os pais que dividiam com as esposas as despesas da casa, o aspecto mais enfatizado pelos mesmos referiu-se ao sustento financeiro: "Tarefa de um pai, ajudar eles (filhos) no que for possível, o que a gente puder ajudar, ajudar; quando tem (referindo-se ao poder aquisitivo) pra ajudar" (P3); "Eu faço tudo pensando nela (referindo-se à filha). [...] Trabalho pensando que tem que levar o dinheiro pra casa pra sustentar ela" (P6).

Essas falas remetem a um papel tradicional desempenhado pela figura paterna - o de provedor financeiro. Embora se considere fundamental ampliar a visão sobre o papel paterno na família, incluindo questões como o envolvimento com os filhos e divisão de tarefas domésticas, não se deve desqualificar a importância do papel do pai como provedor financeiro, de modo especial às famílias em situação de vulnerabilidade social, uma vez que significa a possibilidade de sobrevivência para as mesmas. Obviamente, este papel não precisa ser desempenhado apenas pelo pai. Questiona-se, contudo, a rigidez de tal atribuição, sendo associada, inclusive, à percepção de sucesso ou fracasso como pai, desconsiderando-se aspectos sociais políticos e econômicos envolvidos. Sarti (2011) e Nogueira e Miranda (2017) indicaram que, na impossibilidade de o pai assumir a provisão financeira, podem surgir sentimentos de inadequação e desvalia, tanto no que se refere à percepção do homem sobre si mesmo, quanto da família para com este, uma vez que, de acordo com os autores, o trabalho e a capacidade de gerar renda ainda são considerados socialmente como funções que enobrecem o homem.

Consoante a fala dos pais, as mães também afirmaram que o principal papel do pai estava em prover a família financeiramente: "Um bom pai que trabalhasse e não deixasse faltar as coisas pros filhos" (M6); "O pai pra família é trazer os alimentos pra dentro de casa, pagar água e luz, roupa, calçado, fralda pros nenê..." (M3). Entretanto, apesar de acreditarem na importância do papel de provedor, na prática, o discurso das mulheres não ocorria em suas vidas familiares. Nos casos em que as mães não coabitavam com os pais de seus filhos (M2, M4, M5 e M6), com exceção de M6, cujo companheiro encontrava-se em regime de reclusão, a pensão alimentícia só era paga corretamente pelo ex-companheiro de M4. Esta situação é exemplificada nos seguintes fragmentos: "Olha, pensão é aquela história, manda quando quer, quando não quer não manda" (M2); "Ele dá o que ele pode, né, fora da pensão, só que ele não é um pai presente com ele. Ele não dá muita atenção" (M4); "Tinha mês que ele me dava 100 pila e achava que estava pago. Às vezes, tinha mês que ele me dava 50 e achava que estava OK. Só que não é justo. [...] Os filhos são dele" (M5).

As falas destas mães demonstraram um pai que não exerce o papel de provedor e que não é presente na rotina familiar e na vida dos filhos, o que difere das afirmações expressas pelos pais entrevistados, uma vez que eles parecem estar mais envolvidos com seus filhos e famílias do que os pais descritos pelas mães participantes. Para compreender tal incongruência, cabe lembrar que, como já descrito no método, apenas um pai e uma mãe deste estudo formavam um casal (M1 e P1). Assim, percebe-se que o significado atribuído à paternidade em relação ao aspecto financeiro era compartilhado entre pais e mães, todavia, houve uma enorme lacuna entre este e o papel paterno, uma vez que o papel desempenhado pelos pais participantes do estudo pode não se aplicar a outras famílias, não sendo representativo dos demais pais provenientes deste contexto. A este respeito, lembra-se que todos os pais participantes possuíam convívio próximo aos filhos.

Dentre os pais, apenas P1 e P4 fizeram uma referência alterativa ao papel paterno, indicando a cooperação entre pai e mãe para com os afazeres domésticos e a manutenção da casa: "No dia a dia, cada um vai fazendo uma coisa ou outra, um ajuda o outro conforme as necessidades" (P1); "Ajudar em casa, no que for preciso... [referindo-se ao papel do pai na família]" (P4). Já entre as mães, M4 e M5, além da divisão de tarefas, apontaram o pai desempenhando a coparentalidade com a mãe, sendo esta definida como uma relação de ajuda mútua entre dois adultos cuidadores em prol de melhor atender as necessidades das crianças "Cuidar, também, um pouco da casa, ajudar (referindo-se às tarefas do pai)" (M4); "Pra mim um bom pai é um pai presente, que te ajuda, auxilia" (M5).

Neste sentido, a pesquisa realizada por Jablonski (2010), cujo objetivo foi investigar a negociação de tarefas dentro do lar entre 20 membros brasileiros de casais heterossexuais de classe média, identificou que a participação masculina nas tarefas domésticas era complementar à da mulher. Contudo, houve discrepâncias entre a percepção de ambos sobre o assunto, sendo que os homens afirmavam participar de forma igualitária e as mulheres tenderam a não reconhecer tal participação por parte destes. Apenas com relação aos cuidados com os filhos a participação masculina foi maior, todavia, subsidiária a da mulher. Desta forma, um aspecto importante apontado por este estudo refere-se ao fato de que a manutenção de papéis estereotipados de gênero e parentais independem do nível socioeconômico e escolaridade dos casais, remontando a questões sócio-históricas e culturais.

"O esteio da casa é o pai": sobre autoridade e apoio

Esta categoria engloba os significados atribuídos à paternidade em contextos de vulnerabilidade social no que se refere ao papel de autoridade familiar, desempenhado pelo pai. Com relação ao papel do pai para a família, este foi descrito pelos pais entrevistados como sendo uma figura central, responsável pela manutenção e organização da família: "Pai pra família é, como diz, é o cabeça, o responsável. É a união, como se diz" (P1); "O pai, pra família, não comparando, é o esteio da casa. [...] Então, até quando o pai tá ele tem uma posição positiva, troca uma ideia com a mãe: 'Vamos fazer isso, fazer aquilo'. É um esteio que segura a ponta" (P5); "Ah, é o alicerce da casa, acho. Acho que é o alicerce da casa. Porque sem o pai em casa, não tem, acho que a casa cai" (P6).

Tais falas vão ao encontro da pesquisa de Santos (2007) acerca dos modelos de masculinidade na percepção de 17 homens jovens de baixa renda da cidade de João Pessoa (PB). Os resultados deste estudo apontaram a permanência do modelo hegemônico de masculinidade, baseado nos padrões patriarcais, em que a responsabilidade (para consigo mesmo e para com seus dependentes, como esposa e filhos) e o trabalho são atribuições da figura masculina. Desta forma, considerando os resultados do presente estudo, assim como os resultados apontados na pesquisa de Santos (2007), parece haver uma predominância dos valores patriarcais associados à masculinidade e à paternidade, indicando dificuldade em flexibilizar os significados atribuídos aos papéis de gênero e aos papéis parentais.

Entre as mães, uma considerou o pai como um representante da autoridade familiar: "Olha [o pai] é o chefe, é a cabeça como diz o ditado. Tipo assim, caso precise de alguma coisa o pai vai lá e busca, ou vai lá e leva, essas coisas" (M1). As demais entrevistadas não relacionaram esta característica ao papel paterno, o que permite pensar que para estas o pai não desempenhe um papel de autoridade e/ou centralidade devido ao fato de suas configurações familiares serem representadas pela ausência da figura paterna (M2, M4, M5 e M6). Todavia, mesmo na família de M5, na qual o pai não coabitava e não desempenhava um papel de apoio e segurança, ele era visto pela mãe como uma figura de referência, funcionando para ela como um suporte para a criação dos filhos e para a tomada de decisões: "O pai também é muito importante. Eu sei como ele faz falta... Até pra me apoiar [...] Porque não é a questão só financeira, mas questão de te amparar, até pra mim, como pras crianças também. Então, eu sinto que um pai faz muita falta" (M5).

Esta situação também foi evidenciada por Cúnico e Arpini (2014), em pesquisa realizada com dez mães que compunham famílias monoparentais de uma periferia urbana do Rio Grande do Sul. As mães também definiram o pai através de adjetivos que remetem à ideia de centralidade e de sustentação como, por exemplo, a palavra "estrutura". Além disso, as mães consideravam o pai como um representante da ordem e do respeito na família, sendo que, na sua ausência, a mãe sentia-se sobrecarregada e sem o apoio necessário para desempenhar as tarefas que lhe competiam.

No que se refere à educação dos filhos, apenas P6 afirmou que esta é uma responsabilidade exclusiva do pai. P1, P3 e P4 afirmaram que as ações que envolviam educação dos filhos eram compartilhadas entre eles e as mães: "Tipo, é eu e ela, os dois" (P1); "Nós [referindo-se a pai e mãe] ensinamos eles" (P3). Os pais P2 e P5 afirmaram que a mãe era a pessoa mais presente com os filhos, sendo a responsável por tal função. Contudo, reconheciam a necessidade do pai auxiliar neste sentido: "Ah, tipo, a mãe é mais presente lá, né, mas os problemas, tipo, que tem, ela sempre me passa pra mim, também, auxiliar" (P2); "Tem que dar um pouco de obediência pra criança, senão, também fica ruim" (P5).

Este resultado pode ser comparado aos achados de Wagner, Predebon, Mosmann e Verza (2005), em estudo que investigou o compartilhamento de tarefas referentes aos papéis de pais e mães de 100 famílias de classe média da cidade de Porto Alegre/RS. Os resultados apontaram a existência de dois grupos de estruturas familiares, sendo o grupo I definido como aquele em que as mães eram responsáveis pela criação e educação dos filhos, sem a participação dos pais e os pais eram os principais responsáveis pelo sustento financeiro da família, com uma pequena ou nula participação da mulher na economia familiar. O grupo II, por sua vez, foi definido como aquele em que havia um compartilhamento de tarefas entre pais e mães, tanto no que se referia aos cuidados e educação dos filhos, quanto ao sustento financeiro da família, ou seja, por estruturas familiares que se distanciavam dos modelos clássicos de papéis de gênero e parentais. O presente estudo identificou que a maioria dos pais entrevistados compartilhava com as mães a tarefa de educar os filhos. Portanto, este resultado aproxima-se, em parte, aos achados de Wagner et al. (2005), bem como ao que foi proposto por Sarti (2011) em relação à participação do pai em famílias de baixa renda, a qual se daria, principalmente, através dos papéis de provedor financeiro e de autoridade familiar.

No que diz respeito às falas das mães, estas consideravam a educação dos filhos como uma atribuição do papel paterno: "Ajudar na parte de educação, dizer o que é certo e o que é errado" (M2); "Bom pai também, educando amando seus filhos, principal é educar" (M1). Entretanto, dentre as seis mães entrevistadas, apenas M3 indicou que seu companheiro desempenhava um papel ativo no que se refere à educação dos filhos - "Eu acho que ele cuida, educa as crianças. É bom, ele explica o que deve, só o certo, e o errado ele também explica, o que não é pra fazer" - e a entrevistada M1, esposa de P1, que concorda com o companheiro quando ele afirma que esta atividade é compartilhada por ambos os pais. As demais mães não mencionaram a participação dos pais na educação dos filhos.

Este dado pode estar relacionado ao fato de que quatro destas mães (M2, M4, M5 e M6) residiam com seus filhos sem coabitar com os pais dos mesmos. Desta forma, os pais não estavam presentes no dia a dia da família e, portanto, estavam menos disponíveis para o desempenho de tais tarefas. Todavia, sabe-se que o fato de pai e mãe não coabitarem no mesmo espaço físico, ou seja, na mesma casa - tanto por não haver um relacionamento amoroso e/ou conjugal entre os mesmos ou, ainda, por motivo de divórcio e/ou separação conjugal -, não justifica sua não participação na criação e educação dos filhos, tendo em vista o que propõe a legislação vigente (Lei 13.058, de 22 de dezembro de 2014, a qual institui a Guarda Compartilhada).

Ainda em relação à educação, alguns valores foram apontados pelos pais como de extrema importância para a criação dos filhos. O valor mais relatado pelos pais foi a importância do estudo e da profissionalização: "O estudo, que sem o estudo hoje em dia não é nada, essa é a verdade" (P1); "Explico pra eles como que tem que ser: estudar, ser uma pessoa trabalhadeira" (P3); "Explicar o que, no meu sentido, o que eu acho que é melhor, né, pra eles: estudar, que no meu tempo não tinha essas possibilidades, hoje eles tem, então, pra ser favorável pra eles" (P5). Além disso, a honestidade foi bastante citada através da expressão "não roubar e não mexer nas coisas/objetos alheios", conforme verifica-se nos fragmentos: "Importante é não mexer no que não é deles, tipo não roubar" (P1); "Importante ensinar eles a dar uma pessoa de bem, né, não seja como diz o outro, não faz mal pros outros ou mexer nas coisas dos outros, roubar as coisas, isso que procuro ensinar pra eles [...] dar uma pessoa de bem" (P3). Outros valores relatados foram o respeito e a obediência: "Eu sou bem exigente nesse negócio dos meus filhos saber respeitar os outros, ser obediente" (P3); "Ser educado, respeitar pra ser respeitado e ser um bom menino" (P4); "Respeito. Respeitar os outros. Essencial é o respeito..." (P6).

Estas falas acerca dos valores considerados importantes aos pais, permitem uma reflexão acerca da moral das famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade social. Há, no senso comum, a ideia de que as famílias provenientes destes contextos não valorizam, assim como não ensinam seus membros, a manter valores e princípios morais. Todavia, as falas dos pais pesquisados indicam o contrário, revelando os estereótipos e preconceitos existentes nesta noção.

"O filho é um pedaço da vida da gente": sobre cuidado, proteção e afeto

Esta categoria engloba os significados atribuídos à paternidade em contextos de vulnerabilidade social no que se refere ao papel do pai frente ao cuidado, proteção e afeto para com os filhos. Em relação ao cuidado e proteção dos filhos, dois pais apontaram esta tarefa como atribuição do papel paterno: "Cuidar bem dele, proteger ele de tudo [...] Cuidar pra que não aconteça nada de mal (P4); "Fora educação, ser um pai protetor, eu acho. Proteger. [...] cuidar. Cuidado. Prevenir de acontecer as coisas" (P6). As mães, por sua vez, não apontaram o cuidado e a proteção diretamente como papel do pai, porém indicaram uma variação do mesmo, ou seja, a necessidade do pai se fazer presente fisicamente no dia a dia dos filhos: "Bom pai pra mim é aquele que está presente em tudo, participa no geral da vida do filho: saúde alimentação, educação, tudo. Um bom pai é esse que está presente, que se preocupa, que corre atrás, que se interessa com o filho" (M2); "Pra mim um bom pai é um pai presente, que te ajuda, auxilia, né" (M5); "O pai pra família é [...] também participar [...] e não abandonar as crianças [referindo-se ao pai], tem pai que abandona, deixa só com a mãe" (M3).

Alguns pais concordaram com o fato de que se fazer presente na vida dos filhos é de suma importância para os mesmos sendo, portanto, uma tarefa do pai: "Um bom pai...? [...] Presente, tenta sempre ser presente. Acredito que seria o básico" (P1); "Um bom pai é tu estar ali, né [...] Estar nas horas boas e horas ruins, tudo [...] auxiliar o filho em tudo que ele precisa. Independente de qualquer coisa, ser um pai presente" (P2); "Ser presente sempre, no que for preciso" (P4).

Esta afirmação, por parte de pais e mães quanto à importância de o pai ser presente na vida dos filhos vai ao encontro do que Lamb, Pleck, Charnov e Levine (1985) e Lamb (1992) teorizaram como envolvimento parental, aqui entendido como envolvimento paterno, pois a temática em estudo faz referência à figura do pai. De acordo com os autores, o envolvimento parental possui três componentes, ou seja, a interação, a acessibilidade e a responsabilidade. O primeiro componente refere-se aos momentos de interação direta entre pai e filhos, como em situações de alimentação, brincadeiras ou na realização das tarefas escolares, por exemplo. O segundo componente refere-se aos momentos em que o pai está realizando outra tarefa, mas está ao alcance ou disponível para o filho caso o mesmo necessite. Por exemplo, quando o pai está lendo o jornal na sala e a criança está brincando em um cômodo próximo a ele, ou mesmo, no chão da sala. E, por fim, o terceiro componente implica em uma série de sentimentos (ansiedade, preocupação etc.) e de planejamento, por parte do adulto cuidador, para tomar as medidas necessárias quanto aos cuidados e ao bem-estar da criança, mesmo não estando em interação direta com esta, mas sim, em meio a outras atividades. Este é o caso do pai que está trabalhando e, num momento de intervalo lembra-se de que é necessário agendar a consulta de rotina com o pediatra, e assim o faz. Portanto, entende-se que o "ser presente", citado por pais e mães, relaciona-se à noção de envolvimento paterno e aos seus três componentes, ou seja, um pai presente para interagir com os filhos, para estar acessível aos mesmos e para ser responsável por estes.

Além disso, outras características em relação ao papel paterno foram apontadas pelos pais, como: ser amigo/companheiro dos filhos, envolver-se em atividades de lazer com os filhos, dar amor e carinho: "ser amigo, ser companheiro tem que, tipo, várias situações tem que fazer das tripas coração para tu não decepcionar os filhos" (P1); "Bom pai é tratar os filhos bem, dar carinho pra eles, levar passear, pescar com eles..." (P3); "E dar amor pra ele, cuidar" (P4). As mães também concordaram que o amor e o carinho devem ser características do papel paterno: "Eu acho que seria dar carinho, atenção, sair passear [...] com o filho" (M2); "Ter carinhos com os filhos e com a esposa também, isso é um bom pai" (M4); "Pra mim um bom pai [...] que dê amor, dê carinho, né..." (M5). A fala de M4 amplia a concepção do papel paterno frente ao afeto, uma vez que considera que este não deve ser direcionado apenas aos filhos, como também à esposa, entrelaçando a compreensão de parentalidade à de conjugalidade.

Portanto, considerando o que foi afirmado pelos entrevistados, parece haver um consenso entre pais e mães acerca da importância da presença do pai no dia a dia com os filhos, bem como da afetividade como uma atribuição paterna. Consoante tal entendimento, o estudo de Zampieri, Guesser, Buendgens, Junckes e Rodrigues (2012), o qual entrevistou cinco casais grávidos de Florianópolis/SC com o objetivo de conhecer o significado da paternidade para estes, bem como seus aspectos favoráveis e limitantes, encontrou dois significados atribuídos à paternidade pelos sujeitos pesquisados: 1) o pai como provedor financeiro da família e 2) o pai como figura de afetividade, envolvido com o nascimento e criação dos filhos. O primeiro significado - pai provedor - foi apontado pelo presente estudo como atribuição do papel paterno, enquanto que o segundo - pai afetivo - vai ao encontro do que pais e mães descreveram como paternidade ideal, ou seja, um pai "amoroso/carinhoso". Portanto, ao mesmo tempo em que o pai é convocado a assumir novos papéis em relação à família e aos filhos, ainda, o seu papel tradicional, de provedor, é considerado por homens e mulheres como uma exigência à masculinidade.

Por outro lado, contrariando essa ideia de realizar uma paternidade mais engajada, relatada pelos pais, algumas mães consideraram o papel paterno substituível e de menor importância à criança quando comparado ao papel materno: "se elas (crianças) sabem que tem um pai e ele não está ali elas sentem falta. Que eu sei por causa das minhas, que elas choravam, ficavam doente. [...] Depois acostumam sem o pai" (M6); "Eu acho que o pai faz falta pra criança, mas o essencial é a mãe [...] Mãe não tem quem tu por substituir, o pai é um caso à parte, faz a diferença mas ao mesmo tempo não" (M2). Essa ideia, por parte das mães - e não apenas pelas mães deste estudo, mas pelas mães num geral - pode ser um fator que contribui para o menor envolvimento da figura paterna na criação dos filhos, uma vez que denota certa indiferença para com o mesmo, como se o seu papel não fosse relevante. Desta forma, discursos como este funcionam de forma a desautorizar o pai de seu papel e de suas competências como tal, afastando-o da participação na criação dos filhos e, por outro lado, mantendo a figura da mãe como soberana neste aspecto.

 

Considerações finais

Com relação ao papel desempenhado pelo pai no contexto de vulnerabilidade social, ressalta-se o peso vivenciado eles ao ter que, em meio a um contexto de pobreza e baixos salários, responder à expectativa social de provedor financeiro. Por isso, defende-se que a função de prover financeiramente a família não deve ser desqualificada frente às demais, principalmente ao considerar as adversidades enfrentadas por estes pais, como é o caso da baixa escolaridade e pouca qualificação profissional.

Não houve consenso entre pais e mães no que se refere à concepção do pai como representante da autoridade familiar, sendo este aspecto mais enfatizado pelos pais do que pelas mães. Apesar de as mães não relacionarem esta característica, tendo em vista que a maioria destas constitui famílias monoparentais femininas, ainda assim, houve relatos mencionando o pai como importante figura de apoio emocional à mãe. Para além de sua tarefa tradicional de provedor financeiro, os pais também referiram participar de outros aspectos da rotina familiar e da vida dos filhos, como a educação e o ensinamento de valores, o cuidado e a proteção, bem como o exercício da afetividade, o que leva a pensar que o papel paterno não se apresenta como coadjuvante ao papel materno no que tange à criação dos filhos.

No que se refere à paternidade ideal, houve certo consenso entre os pais e mães pesquisados, de modo que o "bom pai" é aquele que se faz presente na rotina familiar e na vida dos filhos. Por outro lado, percebeu-se ideias ambivalentes quanto ao papel do pai para a família. Em paralelo ao significado de uma figura central de autoridade familiar - "cabeça", "esteio", "alicerce" - algumas mães referiram a figura do pai, também, como facilmente substituível. Isso faz pensar que, à mãe ainda é reservado um lugar de soberania em assuntos que dizem respeito à criação dos filhos, sendo o pai destituído desta função.

É importante ressaltar, ainda, com relação à realização deste estudo, que houve certa dificuldade em acessar os pais, pois, diferentemente das mães, que prontamente aceitaram participar, muitos pais recusaram o convite para a pesquisa. Desta forma, para se atingir o número de seis pais participantes, foram contatados 16 pais, sendo necessário retornar ao CRAS para solicitar novas indicações. Esta recusa pode ter ocorrido pelos mais diversos motivos, todavia, chamou a atenção o fato de um pai ter mencionado que este era um assunto para ser tratado com sua esposa, ou seja, com a mãe. Isso faz pensar que, provavelmente, os pais que não se dispuseram a participar apresentassem experiências diversas daqueles do presente estudo. Pode-se supor, ainda, que os pais participantes correspondam aos pais que conseguem revisar suas práticas, estando abertos a novas experiências e reflexões. Com isso, não se deseja reforçar um olhar negativo sobre os pais de camadas populares, contudo, sinalizar para um importante achado do presente estudo, que consiste em perceber que pesquisas acerca da temática da paternidade e com este público - pais - não é uma realidade comum para muitos deles.

Outro fato que merece destaque refere-se ao local de coleta dos dados dos pais, uma vez que nenhuma destas foi realizada no ambiente do CRAS, ou seja, todas ocorreram nas residências dos participantes. Um motivo para isto pode ser o horário de funcionamento da instituição, que coincide com o horário de trabalho de muitos dos pais acessados. Assim, as coletas realizadas nas residências ocorreram em horários alternativos, após as 18 horas, e aos finais de semana. Outro fator possivelmente relacionado à escolha pela residência como local de coleta dos dados, diz respeito a pouca familiarização dos homens com o CRAS. As mães, por sua vez, tendem a circular mais pelo espaço do CRAS, tendo em vista que, para a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), são consideradas a "pessoa de referência" para a realização do CadSUAS, do Governo Federal.

Ressalta-se, ainda, que as realidades familiares dos pais e mães participantes deste estudo eram diversas. A realidade familiar das mães era, na maior parte, representada pela ausência paterna, enquanto que os pais eram justamente aqueles que conviviam frequentemente com os filhos e participavam da rotina familiar. Desta forma, as concepções e vivências destes pais podem não representar boa parte dos pais provenientes de contextos de vulnerabilidade social.

De qualquer modo, acredita-se que as reflexões produzidas neste estudo contribuem de forma significativa para com os profissionais inseridos nas políticas públicas brasileiras e que atuam com famílias em situação de vulnerabilidade social, uma vez que permitem aproximar suas concepções, provenientes do saber técnico-científico, às concepções advindas do saber popular. Assim, em consonância com tais concepções, é possível, ao profissional, manter uma atuação crítica e comprometida socialmente, pautada pela ética e pelo respeito às diversidades familiares, o que resulta em ações mais eficazes, uma vez que estas vão ao encontro das reais necessidades e expectativas de seus usuários.

Todavia, o estudo apresenta algumas limitações metodológicas, como o fato de não esgotar a diversidade de configurações familiares existentes em nossa sociedade, uma vez que estas são inúmeras, sendo que cada qual apresenta peculiaridades próprias e que merecem destaque em novos estudos. Além disso, em relação ao contexto de vulnerabilidade social, os resultados produzidos não são representativos de toda a sua população, mas sim de uma pequena parcela desta, a partir da qual não é possível fornecer dados generalizáveis. Entretanto, acredita-se que tais reflexões possam ser transpostas para outras situações e contextos envolvendo relações familiares e paternidade, contribuindo para com a atuação de profissionais de saúde mental e para o desenvolvimento infantil.

 

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Endereço para correspondência:
Ana Paula Benatti
benattianapaula@gmail.com

Caroline Rubin Rossato Pereira
carolinerrp@gmail.com

Submetido em: 24/04/2019
Revisto em: 13/07/2019
Aceito em: 29/07/2019

 

 

1 O termo "famílias pobres" foi utilizado para ser fiel ao empregado pela autora do referido estudo (Sarti, 2011). Contudo, considera-se que pobreza e vulnerabilidade social não são sinônimos, tendo em vista que o conceito de "vulnerabilidade social" refere-se a um fenômeno mais amplo, que inclui uma gama de variáveis, tais como: pouco acesso às políticas públicas; relações familiares e de vizinhança fragilizadas ou com risco para o rompimento de vínculos, devido à alta incidência de conflitos e/ou relações abusivas; riscos provenientes do local de moradia e do contexto em que vivem, dentre outros. Assim, a pobreza pode acentuar a situação de vulnerabilidade social vivenciada por determinada família, mas não seria a causa direta da mesma (Hillesheim & Cruz, 2008; Fonseca, Sena, Santos, Dias & Costa, 2013).
2 Período compreendido entre março e junho de 2017

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