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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.72 no.2 Rio de Janeiro May/Aug. 2020

https://doi.org/10.36482/1809-5267.arbp2020v72i1p.141-154 

ARTIGOS

 

Prazer em ler e formação de leitores: uma abordagem analítico-comportamental

 

Pleasure of reading and readers' training: a behavioral analytical approach

 

Gusto de leer y formación del lector: un enfoque conductual

 

 

Rosângela Araújo DarwichI; Paulo Martins NunesII; Maria do Perpétuo Socorro Cardoso da SilvaIII; José Guilherme de Oliveira CastroIV; Lucilinda Ribeiro TeixeiraV

IDocente. Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura. Universidade da Amazônia. Belém. Estado do Pará. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-graduação em Comunicação Linguagens e Cultura. Universidade da Amazônia. Belém. Estado do Pará. Brasil
IIIDocente. Universidade da Amazônia. Belém. Estado do Pará. Brasil
IVDocente. Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura. Universidade da Amazônia. Belém. Estado do Pará. Brasil
VDocente. Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura. Universidade da Amazônia. Belém. Estado do Pará. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este é um estudo teórico sobre formação de leitores em uma perspectiva analítico-comportamental. Objetiva-se discutir o prazer em ler, concretizado pela prática de leitura continuada e voluntária. São apresentadas diferentes qualidades de interações sociais e relações entre literatura, leitura e formação de leitores. Destacam-se aspectos cognitivos, emocionais e relacionais aí envolvidos, indicativos de que a compreensão ampla da formação social do sujeito leitor é favorecida pela ocorrência de não coerção e reforçamento natural em situação de leitura. Conclui-se que o exercício espontâneo e gratificante do papel de leitor traduz transições entre o literário e o extraliterário, com avanços positivos para o indivíduo e os contextos sociais dos quais participa.

Palavras-chave: Análise do Comportamento; Literatura; Formação de Leitores; Prazer em Ler; Coerção e Não Coerção.


ABSTRACT

This is a theoretical study regarding readers' training from a behavioral analytical perspective. The objective is to discuss the pleasure of reading, based on the practice of continuous and voluntary reading. The article presents different qualities of social interactions and relationships between literature, reading and readers' training. Additionally, it highlights cognitive, emotional and relational aspects involved in such interactions, indicating that the broad understanding of the social formation of reading competence is favored by non-coercion and natural reinforcement in reading situations. We conclude that by exercising spontaneous and rewarding readings, the reader's role translates transitions between the literary and the extraliterary, with positive advances for the individuals and their social contexts.

Keywords: Behavior Analysis; Literature; Readers' Training; Pleasure of Reading; Coercion and Non-Coercion.


RESUMEN

Este es un estudio teórico sobre la formación de lectores desde una perspectiva analítica del comportamiento. Su objetivo es discutir el placer de la lectura, materializado por la práctica de la lectura continua y voluntaria. Se presentan diferentes cualidades de las interacciones sociales y las relaciones entre literatura, lectura y formación de lectores. Se destacan los aspectos cognitivos, emocionales y relacionales allí involucrados, lo que indica que la comprensión amplia de la formación social del lector está favorecida por la no coerción y el refuerzo natural en una situación de lectura. Se concluye que el ejercicio espontáneo y gratificante del papel del lector traduce las transiciones entre lo literario y lo extraliterario, con avances positivos para el individuo y los contextos sociales en los que participa.

Palabras clave: Análisis de la Comportamiento; Literatura; Formación de Lectores; Placer de Leer; Coerción y No Coerción.


 

 

Introdução

A literatura pode ser vista como um espaço que incentiva avanços pessoais e relacionais. Tem-se, assim, o texto que "faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem" (Barthes, 1977, p. 22). A psicologia, por sua vez, afastou-se da filosofia em busca de um lugar entre as ciências. De acordo com Castro (2008), "enquanto a Psicologia trabalha as reações verbais, as emoções positivas ou negativas que se revelam por meio do discurso, a Literatura problematiza a criação que, na realidade, é uma recriação da natureza, também utilizando o discurso" (p. 63). Tão diversas, literatura e psicologia têm seus pontos de aproximação - e um deles está exatamente no discurso, a interseção necessária.

Reunindo tais argumentos, Oatley (2016) destacou, acerca de efeitos psicológicos da arte literária, que "leitores podem se tornar mais capazes de empatizar e compreender outras pessoas, e mais capazes de compreender e mudar a si próprios" (p. 236). Para Jorge Luis Borges,

dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso, sem dúvida, é o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio, o telescópio, são extensões de sua vista; o telefone é extensão da voz; depois temos o arado e a espada, extensões de seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação (Borges, 2011, p. 11).

Eco (2003) partiu da narrativa hipertextual, que corresponde à possibilidade de histórias serem arbitrariamente reescritas, para destacar o que há de imodificável, eternamente verdadeiro, já que irrefutável, nos textos literários: "a narrativa hipertextual pode nos educar para a liberdade e para a criatividade. É bom, mas não é tudo. Os contos 'já feitos' nos ensinam também a morrer" (p. 21). Aí se tem a proposição da educação ao destino e à morte como uma das principais funções da literatura e, por isso mesmo, parâmetro para que o lugar do leitor, com suas escolhas próprias, seja constantemente atualizado por ele. Também segundo Eco, "a literatura, contribuindo para formar a língua, cria identidade e comunidade" (p. 11).

Na medida em que ler é pré-requisito para a aquisição do conjunto de conhecimentos acadêmicos que caracteriza o ensino regular, sua importância é destacada, mas não necessariamente seu alcance. Tal conclusão tem como base a constatação de relação desproporcional entre aqueles que sabem ler e aqueles que gostam de ler. Habilitação de leitura e gosto pela leitura são apresentados por Bomeny (2009) como processos distintos e raramente combinados, de modo que "são remotas as chances de selecionar, do grande público, pessoas capazes de decifrar, ler, estudar e interpretar mensagens com o refinamento que o hábito e o gosto da leitura propiciam" (p. 27).

Práticas de letramento vêm sendo aperfeiçoadas visando a formação de leitores identificados como proficientes ou ainda como literários, com ênfase em fatores cognitivos (Conde, 2015; Gabriel, 2016; Goulart, 2014; Oliveira & Santos, 2016). Uma ideia parece dar sustentação a tal movimento: quanto mais um indivíduo for capaz de abstrair significados dos textos, mais poderá assumir posicionamentos críticos e, portanto, mais terá condição de se manter em posição de leitor, ou seja, lendo.

Diversas abordagens psicológicas têm desenvolvido estudos na área da leitura (Placco, 2002). No âmbito da Análise do Comportamento, um fator relevante para a compreensão do comportamento, de modo geral, deriva de relações estabelecidas entre uma ação e a consequência por ela gerada no ambiente circundante, a qual também explica as emoções que são experienciadas naquele momento. Além disso, a consequência pode ser produto direto do próprio ato, ou seja, resultado natural do responder (Catania, 1979). Este é o caso do ler acompanhado do prazer sentido diante da leitura.

Neste estudo, argumentos que destacam diferentes qualidades de interações sociais são fundamentados em obras de Burrhus Frederic Skinner (1904-1990) e Murray Sidman (1923-2019), enquanto os temas "literatura", "leitura" e "formação de leitores" são relacionados em coerência com propostas de Paulo Freire e Hans Robert Jauss (ambos nasceram em 1921 e morreram em 1997). Objetiva-se discutir o prazer em ler, concretizado pela prática de leitura continuada e voluntária, em uma perspectiva analítico-comportamental. Para tanto, apresenta-se uma seção voltada ao estabelecimento de relações entre não coerção e literatura, fundamentando desdobramentos da participação em interações sociais coercitivas ou aversivas, e não coercitivas ou positivas. A partir da investigação de diferentes funções da leitura e do leitor diante e por meio da literatura, argumentos que relacionam prazer em ler e formação de leitores complementam a investigação proposta. A reunião de fatores cognitivos e emocionais destaca o papel das relações sociais na formação do sujeito - e do sujeito leitor.

Não coerção e literatura

Se a Psicologia pretende ser uma ciência, a Análise do Comportamento deriva da tentativa de construção de uma ciência natural, por B. F. Skinner, com sustentação filosófica no Behaviorismo Radical, também desenvolvido por ele (Bock, Furtado, & Teixeira, 1999; Skinner, 1974/1993). Filogênese, ontogênese e cultura participam, portanto, do encontro assim descrito por Schlegel (1800, citado por Briese, 2012): "como cada homem tem sua própria natureza e seu próprio amor, também traz em si sua própria poesia" (p. 284).

Skinner (1984) iniciou seus estudos na Psicologia por meio de pesquisa básica com animais não humanos e, em seguida, direcionada a características tipicamente humanas, com ênfase no papel de trocas sociais para a compreensão da ontogênese, em interação com variáveis filogenéticas e culturais. De acordo com Skinner (1953/1965), "o comportamento é uma matéria difícil não por ser inacessível, mas porque é extremamente complexo. Desde que é um processo e não uma coisa, não pode ser facilmente imobilizado pela observação" (p. 27).

Ações, pensamentos e emoções são identificados com a noção de comportamento, compreendido como relação indivíduo-ambiente. Assim, cada ser humano, em sua totalidade, não apenas sofre influência do contexto social do qual participa, como o cria, transformando a si próprio e à sociedade por meio de seus atos (Skinner, 1945, 1953/1965).

Diferentes relações, ditas de contingência, são definidas de acordo com a consequência gerada por um ato, no sentido de ser proporcionado contato com determinados estímulos ambientais ou, pelo contrário, afastamento deles, ou mesmo sua não ocorrência. As consequências apresentam diferentes funções em relação à probabilidade futura da ação e às emoções que as acompanham. Assim sendo, existe uma relação importante entre maneira de agir e experiência emocional (Darwich & Tourinho, 2005; Skinner, 1953/1965).

Relações de contingência costumam permanecer inconscientes, de forma que o indivíduo não necessariamente percebe a quais influências é exposto nas interações que estabelece (Skinner, 1974/1993). Segundo Foucault, em comunicação pessoal (citado por Dreyfus & Rabinow, 1982), "as pessoas sabem o que fazem; elas frequentemente sabem por que fazem o que fazem; mas o que elas não sabem é o efeito produzido por aquilo que fazem" (p. 187). Reconhecer o impacto do efeito sobre o que o causa coloca o ser humano no plural: somos seres sociais, constituídos por meio de trocas socialmente estabelecidas.

Skinner (1953/1965) derivou a noção de contingência operante da identificação de relações entre contexto, ação e consequência, enfatizando o papel de estímulos consequentes, que podem apresentar função reforçadora ou aversiva. Assim, reforçamento positivo e negativo são caracterizados pelo aumento na probabilidade futura de respostas da mesma classe, sendo aquele demarcado pelo contato com estímulo reforçador e este, pela retirada ou não apresentação de estímulo aversivo. Na punição é esperado que outras respostas se tornem mais frequentes do que aquela que gerou contato com estímulo aversivo ou a perda de estímulo reforçador. Reforçamento positivo ocorre, por exemplo, quando se alcança um resultado desejado, e reforçamento negativo, quando um movimento de esquiva ou fuga demonstra ser eficiente. Punição é bastante conhecida e por isso não precisa de maiores explicações.

A análise de relações de contingência auxilia a compreensão de por que determinadas ações se repetem, muitas vezes tornando-se hábitos indesejados, em que emoções assumem o controle apesar de quaisquer decisões ou argumentações lógicas. É importante, portanto, reconhecer ligações entre contingências e emoções que costumam acompanhá-las, mesmo porque prazer advém apenas da ocorrência de reforçamento positivo. O desconhecimento de tal perspectiva favorece a ocorrência de punição, a qual se seguem emoções negativas e a busca por reforçamento negativo, em que o alívio imediato é acompanhado por aumento no nível de ansiedade em situações futuras semelhantes. Ansiedade crescente diante de simples pensamentos voltados a estudo é um indício da presença de reforçamento negativo, indicando que punição relacionada ao fracasso é tão aterrorizante que todo movimento que resta é de esquiva (Skinner, 1989). Estudar perde o sentido de descobrir o novo, ampliar perspectivas ou abrir espaço a erros para que acertos aconteçam, transformando-se em tentativa de evitar fracassos imaginados como devastadores. O mesmo vale para ler um texto como forma de cumprir com uma obrigação escolar, apenas no sentido de evitar notas baixas.

Percebe-se que os conceitos de punição e reforçamento negativo estão intimamente relacionados, pois imposições fundadas em ameaças pelos detentores de poder, como pais ou professores, caracteriza punição, enquanto obediência cercada de temor demarca a ocorrência de reforçamento negativo e, para todos os envolvidos, a participação em relações coercitivas ou aversivas. Por outro lado, posturas socialmente habilidosas, coerentes com o estabelecimento de limites entre os envolvidos, implicam a ocorrência de reforçamento positivo social mútuo em relações não coercitivas ou positivas e, portanto, solidárias, respeitosas e éticas (Estes & Skinner, 1941; Sidman, 1989).

O envolvimento em contextos predominantemente coercitivos é relacionado à ocorrência de danos de diferentes ordens. É necessário, portanto, o conhecimento de alternativas que possibilitem mudanças nas trocas sociais estabelecidas, correspondendo ao estabelecimento de relações não coercitivas, favorecedoras de trocas interpessoais construtivas, criativas e reveladoras das potencialidades de cada um.

A aprendizagem é marcada por trocas sociais, quer por meio de relações de contingência (experiência própria), de regras (experiências repassadas por terceiros), de imitação (modelação) e discriminação ou generalização (respectivamente, apresentação de uma ação específica em um contexto único ou em contextos variados) (Skinner, 1953/1965). Destaca-se ainda a aprendizagem por meio de compreensão de relações lógicas entre eventos, como demonstrado nos estudos de equivalência de estímulos (Sidman, 2000).

Skinner (1945, 1953/1965, 1974/1993, 1989) desenvolveu estudos em diferentes frentes, construindo as bases experimentais, conceituais e filosóficas da Análise do Comportamento. Sua obra corresponde a uma tentativa de elaborar respostas científicas que possibilitassem, aos seres humanos, vida plena e respeitosa também para com a natureza e as gerações futuras. Um caminho para longe de opressão, competição e violência e, assim, em direção à colaboração e à solidariedade, corresponde à substituição de relações coercitivas por não coercitivas.

Conhecer ideias e alternativas de ação não significa, porém, conseguir colocá-las em prática. A humanidade chegou aos dias de hoje acompanhada por grandes avanços científicos, mas as possibilidades de contato com tecnologias e de ampliação de conhecimento convivem com graves crises pessoais e em relações interpessoais, com ocorrência elevada de transtornos ditos mentais. Estudos que avaliam fatores de proteção ao desenvolvimento infantil e que auxiliam a manutenção de equilíbrio ao longo da vida apontam para o papel de habilidades sociais sobre a qualidade de vida. Dentre tais habilidades, Del Prette e Del Prette (2014) destacam a civilidade, representada por ações como cumprimentos e demonstrações de interesse, a empatia, referente a demonstrações de afeto positivo, e a assertividade, no sentido de defesa de direitos pessoais.

Importante para o treinamento de habilidades sociais é a utilização de reforçadores sociais, representados por atenção, elogio, sorrisos e outras demonstrações de afeto, contribuindo não apenas para o fortalecimento de comportamentos, mas para o fortalecimento de vínculo entre os envolvidos (Benvenutia, Oliveira, & Lyle, 2017). Abrindo também espaço para a construção de habilidades de autorreferência, como autoestima e autoconfiança (Guilhardi, 2002), fica reiterada a relação entre reforçamento positivo, característico de trocas não coercitivas, e sensação de prazer, indo da alegria mais breve à sensação de plenitude. Além disso, "habilidades de comunicação, expressividade e desenvoltura nas interações sociais podem se reverter em amizade, respeito, status no grupo ou, genericamente, em convivência cotidiana mais agradável" (Del Prette & Del Prette, 2005, p. 16), o que indica que indivíduos com habilidades sociais bem desenvolvidas, tocados pela não coerção, tendem a levá-la adiante.

Na medida em que permite o contato com realidades e emoções alternativas àquelas cotidianas ao leitor, a literatura o aproxima de si próprio e também de perspectivas diferentes das suas, sendo um recurso importante para a superação do encontro entre punições e ameaças com passividade, isolamento e medo. A situação de leitura para crianças, por exemplo, pode ser compreendida como espaço de construção de diferentes habilidades positivas, inclusive sociais.

De modo geral, o impacto favorecedor da literatura sobre habilidades sociais do leitor foi destacado por Calarco, Fong, Rain e Mar (2017) por meio da apresentação de resultados de diferentes pesquisas empíricas. Vários outros estudos voltados à Teoria da Mente, termo com significado aproximado ao de empatia, também vêm demonstrando vantagens advindas do contato com a literatura (Kidd & Castano, 2013). Por fim, estudos recentes, desenvolvidos pelas neurociências, demonstram benefícios ao nível do funcionamento cerebral de crianças que participam de intervenções baseadas em leitura (Blair & Raver, 2016). Exemplos são encontrados na revisão de literatura realizada por Barquero, Davis e Cutting (2014), que permitiu correlacionar, a tal tipo de procedimento, diferenças na ativação funcional de diferentes regiões cerebrais.

É fundamentado, assim, o contexto geral que reúne não coerção e literatura. Coerente com tal proposição, a Análise do Comportamento destaca que, assim como ações, pensamentos e emoções, ler também é um comportamento e sofre os efeitos das consequências que gera, inclusive quanto aos desdobramentos emocionais. A definição de leitor proficiente traz consigo um tipo de reforçamento diferente do social e do arbitrário, o reforçamento natural ou intrínseco, relação em que a consequência reforçadora é produto direto da resposta (Catania, 1979; Vaughan & Michael, 1982). É o caso de ler, para os amantes de livros.

Prazer em ler e formação de leitores

Em contexto de inter-relações, encontra-se a literatura como fonte de experiência direta e imediata, com desdobramentos amplos. "O discurso literário não é isolado [...]: ele participa de um plano determinado da produção verbal, o dos discursos constituintes, categoria que permite melhor apreender as relações entre literatura e filosofia, literatura e religião, literatura e mito, literatura e ciência" (Maingueneau, 2006, p. 60). Oatley (2016) complementa, destacando a psicologia, para a qual "o envolvimento imaginativo nas simulações próprias da ficção pode ser tão importante quanto os achados empíricos das causas do comportamento" (p. 236).

Em um mundo coercitivo, no entanto, é mais fácil aprender a ler do que desenvolver prazer pela leitura, principalmente quando se considera o contexto escolar, em que reforços arbitrários, como é o caso de notas e conceitos, ainda se fazem muito presentes. Um experimento realizado a fim de verificar o efeito do contato com sinalização de respostas corretas ou incorretas sobre a aprendizagem e emoções aí envolvidas, com estudantes universitários e por meio da utilização de adaptação do paradigma de equivalência de estímulos, permitiu verificar que os participantes adquiriram ou não o desempenho previsto independentemente do procedimento empregado. No entanto, diante do reconhecimento de dificuldades ou mesmo de ausência de aprendizagem, apenas na condição de sinalização de acertos foram relatadas emoções positivas. Neste sentido, a sinalização de acertos e de erros possibilitou aprendizagem, mas apenas aquela, relacionada ao contato com estímulos reforçadores, favoreceu o prazer em tentar investir esforço e perseguir um objetivo desafiador. Percebe-se, assim, o papel de relações não coercitivas para uma aprendizagem prazerosa e manutenção da motivação diante de erros (Darwich & Celso, 2010).

Especificamente quanto à formação de leitores, termos como "literacia", "letramento" e "leitura proficiente" destacam relações entre capacidades individuais e seus possíveis desdobramentos em contextos que as favorecem. Literacia é referente às "capacidades de processamento de informação escrita na vida quotidiana. Trata-se das capacidades de leitura, escrita e cálculo, com base em diversos materiais escritos (textos, documentos, gráficos), de uso corrente na vida quotidiana (social, profissional e pessoal)" (Benavente, Rosa, Costa & Ávila, 1996, p. 4). De um modo complementar, letramento destaca "o valor social da aprendizagem da escrita, os usos e funções sociais desta modalidade de linguagem" (Goulart, 2014, p. 37), o avanço em direção à possibilidade de percepção de aspectos sócio-históricos mais amplos em torno do que é designado como realidade (Tfouni, 1995). Letramento é relacionado ao termo "formação de leitores" quando diretamente aproximado ao contato com o gênero literário na escolarização (Conde, 2015). Leitura proficiente, por seu turno, reúne fluência na leitura a processos inconscientes de automatização no que tange à decodificação e representações de palavras (Gabriel, 2016), com compreensão e abstração de ideias que demonstram ser relevantes em um texto, representando, assim, a possibilidade de posicionamentos reflexivos e críticos (Oliveira & Santos, 2016).

Percebe-se, nas diferentes definições, a ênfase em fatores cognitivos e o distanciamento da tradicionalmente conhecida alfabetização. Esta, no entanto, ainda é reconhecida, conforme Gabriel (2017), como um primeiro passo para a formação de leitores proficientes e, portanto, críticos e conscientes. Alfabetizar letrando, no sentido de consideração às práticas sociais de leitura e escrita, é a alternativa de escolha apontada por Soares (2001).

Pode-se avançar com Paulo Freire (1989), para quem "a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo, mas por uma certa forma de 'escrevê-lo' ou de 'reescrevê-lo', quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente" (p. 13). Ao contrário do que caracteriza a educação identificada por Freire como bancária, os saberes que o educando traz consigo constituem a base da mediação realizada pelo educador no Método Paulo Freire, elaborado a partir dos anos 1960 para alfabetização de adultos no sentido mais amplo, que aproxima conscientização e libertação. O livro "Pedagogia do Oprimido" inicia os anos 1970 e finaliza com uma frase que hoje, quase meio século depois, parece fazer do mundo um lugar ainda no futuro: "se nada ficar destas páginas, algo, pelo menos, esperamos que permaneça: nossa confiança no povo. Nossa fé nos homens e na criação de um mundo em que seja menos difícil amar" (Freire, 1970/1987, p. 107).

Freire (1970/1987) constrói suas ideias a partir de uma visão de homem enquanto ser da práxis, que corresponde ao "quefazer" e traz consigo um sentido de reflexão e ação para além de dicotomias, pois "ação e reflexão e ação se dão simultaneamente" (p. 72). A ênfase nas relações sociais é central em qualquer nível: "ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão" (p. 29), assim como "ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo: os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo" (p. 39).

Além disso, o termo "opressão" indica o reconhecimento de relações que precisam ser superadas por meio de "ação revolucionária", e o caminho é representado por movimentos de transformação individual e social em direção ao objetivo de libertação, que, alcançado, passa a corresponder a um processo permanente. Tais situações são representadas pelo confronto entre teorias da ação antidialógica, opressora, e da ação dialógica, revolucionária-libertadora (Freire, 1970/1987), que encontram eco nas representações de relações sociais coercitivas e não coercitivas, respectivamente (Sidman, 1989; Skinner, 1953/1965, 1989). Também no sentido de encontro das duas perspectivas vale ressaltar que o Método Paulo Freire é baseado em experiências de construção social da leitura, de modo que a absorção da experiência estética é acompanhada por benefícios amplos, inclusive de ordem afetiva.

No contexto de estudos propriamente literários, vale destacar que a história da teoria literária moderna passou da preocupação com o autor à preocupação com o texto e, por fim, com o leitor. Importante para este estudo é justamente a ênfase no papel atribuído ao leitor, a exemplo do posicionamento assumido por Jauss (1967/1979) em uma conferência que fundou as bases da Estética da Recepção. Jauss relacionou o envolvimento das abordagens tradicionais de estudos literários, marxista e formalista, a uma "pseudo-história", indicando a necessidade de a história da literatura ser repensada a partir da perspectiva do leitor. Segundo ele, os métodos das abordagens marxista e formalista

restringem o fato literário ao círculo fechado de uma estética de produção e representação. Retiram, assim, da literatura, uma dimensão indispensável, que faz parte de seu caráter estético e também de sua função social: a dimensão de sua recepção e de seu efeito. Leitores, ouvintes e espectadores, em resumo - a audiência - desempenha um papel extremamente limitado em ambas as teorias literárias (Jauss, 1967/1979, p. 126).

Destaca-se a compreensão de obras literárias a partir da leitura, identificada como sua finalidade, bem como do leitor, enquanto produtor de sentidos. Experiência de vida e aspectos emocionais, vivências políticas e sociais do leitor são tão importantes que ressignificam o texto lido. É fundamental a relação entre literatura e vida, no sentido de a experiência estética da literatura possibilitar, ao leitor, a adoção de novas perspectivas diante de seu cotidiano. Percebe-se, assim, o caráter emancipatório da literatura, muito presente em diferentes frentes de investigação literária (Jauss, 1967/1979).

Complementarmente, quando Bomeny (2009) pergunta como é possível formar o que chama de leitor interessado, indica que a resposta

não se satisfaz com a indicação única da leitura pela literatura, ou por outra, a percepção da leitura exclusivamente no marco dos livros. A narrativa oral, transmissora da tradição folclórica, o ato de ouvir histórias e se deleitar, o talento para contar histórias e interessar a audiência - tudo isso e, ainda, as revistas, o material das bancas de jornal, o olhar guloso de crianças e adolescentes no cardápio disponibilizado pela internet se avolumam e armazenam formas e processos cumulativos que podem resultar no prazer de se informar ou no gosto de ler (p. 24).

Da mesma forma, com base em resultados de pesquisa realizada com 667 estudantes universitários de primeiro ano, Moraes e Gruszynski (2019) concluíram que "já não se trata [...] de uma preferência por um meio ou por outro [suporte de texto], mas de uma experiência que passa pela conjugação deles. [...] uma imersão no próprio conjunto de suportes" (p. 14).

Kuusela (2013) lançou mão de ideias que caracterizam a teoria ator-rede (TAR), com foco na natureza processual da criação de significados, objetivando encontrar e testar meios empíricos por meio dos quais estudar a formação de leitores no século XXI. Uma conclusão importante de seu estudo:

Não apenas as páginas do livro [...], mas também [...] toda a tecnologia digital constitui atualmente processos de mediação de textos literários. O livro impresso interage com o digital e essas interações são ordenados de maneiras que muitas vezes ainda são ignoradas ou desconhecidas pela maioria dos estudiosos da literatura (p. 82).

A investigação de variáveis relacionadas à formação de leitores pode abranger, portanto, questões referentes aos diferentes suportes, identificados por Marcuschi (2003) enquanto "base ou ambiente de fixação do gênero materializado como texto" (p. 11). No entanto, argumentar que os suportes mais se completam do que se excluem, como fizeram Bomeny (2009), Moraes e Gruszynski (2019) e Kuusela (2013), é coerente com a perspectiva analítico-comportamental adotada neste estudo. Trata-se de uma opção quanto ao foco de análise, que se distancia de relações do indivíduo com o ambiente externo, físico (ou virtual, no sentido aqui descrito), e se fundamenta em relações sociais.

Tal mudança de foco é percebida, como exemplo, na pesquisa realizada por Côco (2006). Investigando implicações do suporte de textos na configuração das práticas de leitura na alfabetização (este, inclusive, é o título do trabalho), a seguinte observação foi destacada:

A sensibilidade dos profissionais na consideração das atitudes responsivas dos alunos foram elementos (sic) que contribuíram para a construção desse ambiente, favorável às práticas de leitura, pois demonstraram que, apesar de seus discursos pedagógicos ainda serem atravessados por uma concepção de produção de texto/sentido, dissociada da concepção de leitura, estavam abertos a fazer adaptações e adequações em suas propostas de ensino, sempre valorizando as aprendizagens das crianças (Côco, 2006, p. 280).

O reconhecimento da relevância de oportunidades sociais para a formação de leitores proficientes, assegurando o princípio democrático do direito à informação e à cultura e atenuando os efeitos da exclusão social, gerados pelo analfabetismo funcional, vem sendo percebido em diferentes frentes. Com base em tal pressuposto, na Inglaterra, com ações iniciadas em 1999, a instituição de caridade The Reading Agency (Agência de Leitura) visa lançar mão da leitura para facilitar o enfrentamento de desafios que ultrapassam a alfabetização, alcançando o bem-estar e a superação do isolamento e da solidão (The Reading Agency, 2019). No Canadá, em 2008 foi iniciada uma campanha nacional, National Reading Campaign (NRC), com o objetivo de fazer da leitura uma prioridade (Lakoseljac, 2016). Nos Estados Unidos, o programa The Reach Out and Read incorporou, a consultas pediátricas, a oportunidade de pais lerem livros infantis às crianças, favorecendo tanto o desenvolvimento da linguagem destas quanto a interação entre pais e filhos (Blair & Raver, 2016).

Partindo, cada um por seu turno, da identificação de uma "crise na leitura", verificada por meio da comparação de resultados de estudos internacionais, Brasil e Portugal passaram a investir em planos nacionais de promoção e incentivo à leitura em 2006: o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) e o Plano Nacional de Leitura (PNL), respectivamente (Marques, 2010; Santos, Neves, Lima & Carvalho 2007; Silveira, 2010). De acordo com análise realizada por Silveira (2010), ambos os planos "constroem verdades e consagram a leitura como dispositivo capaz de redimir sujeitos e países das dimensões negativas em que estão mergulhados" (p. 118).

Bomeny (2009) afirmou que "ambientes de leitura favorecem o gosto pela leitura" (p. 29), deixando espaço para a qualificação de tais ambientes como sendo sociais e não coercitivos, com destaque ao que é reforçador para cada indivíduo de modo a possibilitar interesse, curiosidade, engajamento e deleite frente a novas possibilidades. Em outros termos, oportunidades sociais de acesso à literatura em contextos positivos favorecem que a leitura ocorra prazerosa e espontaneamente, com desdobramentos possíveis quanto a empoderamento pessoal e revisão de construções sociais.

 

Considerações finais

Diante de tantos indivíduos que não foram alfabetizados, faz sentido perguntar por que muitos dos que o foram também não leem. Sendo assim, este estudo discute o prazer em ler, concretizado por meio da prática continuada e voluntária de leitura que, portanto, adquiriu função de reforçador natural. Para tanto, foi destacada a importância de o acesso a textos literários ocorrer em contextos não coercitivos.

Verifica-se que letramento e coerção são incompatíveis. É muito baixa a probabilidade de procura voluntária por textos literários na ausência de aquisição de função de reforçador natural pelo ato de ler, e o prazer em ler dificilmente deriva do contato com reforçadores arbitrários, como notas e conceitos oferecidos pelas escolas. Seria ideal, portanto, que escolas correspondessem a espaços não coercitivos, em que reforçamento social se fizesse presente.

Um grande desafio está posto: acreditar que o ser humano é capaz de se dedicar a atividades importantes para ele próprio e para a sociedade na ausência de ameaça de punição para movimentos contrários. Skinner (1957/1978) enfatizou o poder transformador das relações sociais a partir de investimentos de todos e cada um: "os homens agem sobre o mundo, o modificam e são, por sua vez, modificados pelas consequências de sua ação" (p. 15). Vale a pena apostar na não coerção, no valor enormemente reforçador dos livros, no reconhecimento de acertos e, mais ainda, em demonstrações da importância de cada indivíduo enquanto ser humano com suas qualidades e dificuldades.

Fernando Pessoa (1997) descreveu a importância da correspondência entre expressão e existência: "quem não vê bem uma palavra não pode ver bem uma alma" (p. 9). Estabelecer relações entre diferentes áreas de estudo é uma tarefa que pode ser realizada de várias maneiras. Este estudo o faz a partir da compreensão da leitura não simplesmente como uma atividade, mas como elemento constitutivo de identidade e desdobramento de qualidades positivas de trocas sociais. A discussão apresentada acerca da formação de leitores proficientes traz consigo o desenvolvimento da capacidade de literacia aliada à participação do gênero literário no letramento, acrescentando, ao papel de fatores cognitivos, o destaque a fatores sociais e afetivos, reconhecidos no prazer em ler.

Os diferentes fatores investigados podem ser apresentados nos seguintes termos: (a) existem caminhos cientificamente descritos para o estabelecimento de contextos que favorecem a ocorrência de ações que são acompanhadas por emoções positivas, e tais caminhos correspondem a não coerção, que pode ser representada pela liberdade de escolha de um texto literário e, além disso, por diferentes oportunidades de troca de ideias acerca da leitura, com ênfase na expressão subjetiva de cada leitor; (b) reforçamento social acrescenta, ao contexto não coercitivo, oportunidade clara de relações entre ação e emoções positivas, o que destaca a importância de ler para ou com uma criança e de viabilizar e valorizar o convívio com a literatura; (c) história de contato com reforçamento social favorece a ocorrência de reforçamento natural, aquele que decorre da própria ação, como no caso de busca espontânea por livros em detrimento de outras escolhas possíveis no momento; (d) ler sensibiliza, coloca o leitor diante de infinitas possibilidades de ação, emoções e contextos que as interligam, enriquecendo suas possibilidades de julgamento, aguçando seu senso crítico. O texto precisa de espaço de liberdade para existir no leitor, exercer efeitos únicos sobre ele, tornar-se parte dele em direção a múltiplas e sempre renovadas produções de sentido.

 

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Endereço para correspondência:
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Paulo Martins Nunes
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Lucilinda Ribeiro Teixeira
lucilindateixeira@gmail.com

Submetido em: 02/06/2019
Revisto em: 26/08/2019
Aceito em: 07/10/2019

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