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Revista da Abordagem Gestáltica

Print version ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.14 no.1 Goiânia June 2008

 

ARTIGOS

 

Abuso sexual contra crianças: em busca de uma compreensão centrada na pessoa

 

Sexual abuse against children: to a centered person approach understanding

 

Abuso sexual contra niños: en la búsqueda de una comprensión centrada en la persona

 

 

Leonardo Cavalcante de Araújo Mello; Elza Dutra

 

 


RESUMO

O trabalho consiste numa reflexão acerca do fenômeno da violência sexual, especificamente o abuso sexual praticado contra crianças, e suas implicações na constituição do self nesses sujeitos. Trata-se de um trabalho de caráter bibliográfico. Inicialmente, empreende-se uma discussão sobre violência sexual, suas características e formas de ação. Enfoca-se no tema “abuso sexual” de crianças, além de discutir historicamente o sentido que a infância tem na atualidade. Em seguida situa-se na psicologia a noção de self, definindo-o a partir da psicologia do desenvolvimento e da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP). Num terceiro momento, o trabalho relaciona o conceito self e o fenômeno abuso sexual. Uma consideração importante refere-se à difícil identificação desse fenômeno, uma vez que os estudos, no âmbito da Psicologia, encontram-se dispersos, tal como dispersa é a ciência psicológica. Observa-se a pouquíssima existência de estudos específicos acerca da formação do self em crianças vitimizadas por esse tipo de violência. Constata-se que a ACP constitui-se em instrumento eficaz no atendimento dessa demanda, propondo escutas e olhares diferenciados. Finalizando, sugere-se que mais trabalhos de pós-graduação sejam realizados na área, a fim de que o arcabouço teórico-prático enriqueça a luta contra esse tipo de violência.

Palavras-chave: Violência sexual; Abuso sexual na infância; Autoconceito (Self); Abordagem centrada na pessoa.


ABSTRACT

The present paper is a reflection about the sexual violence phenomenon, especially sexual abuse practiced against children and its implications on the consolidation of the self of these subjects. This paper also debates that question based on the person centered approach. It has a bibliographic sort. At the first moment it is established a discussion about the sexual violence, its types and ways of action. It focalizes the term “sexual abuse” of children besides the today`s childhood’s historical debate of sense. The second moment brings the significance of self or “self concept” on psychological terms and defines it on the center of the psychology of development and the Person Centered Approach. At the third part, the paper defines a relation between the concept of self and the sexual violence phenomenon. One of the more important considerations it is that this phenomenon has a very hard identification, and the study, inside Psychology field it’s found dispersed, which the own Psychology Science is dispersed itself. It can be seen with this study that there is rare knowledge about the consolidation of self on children, those who are victims of this kind of violence. An important verification it is that the person centered approach position can define an efficient instrument at the attending of this demand, purposing positions and different ways of view. Finally, this paper is suggesting that more papers and studies at university should be developed, multiplying the knowledge on this area which is necessary.

Keywords: Sexual abuse childhood; Self concept; Person centered approach.


RESUMEN

El presente trabajo es una reflexión acerca del fenómeno de la violencia sexual, especialmente el abuso sexual practicado contra niños, y sus implicaciones en esos sujetos, en la constitución del self. Se trata de un trabajo de carácter bibliográfico. Inicialmente, se emprende una discusión sobre la violencia sexual, sus características y sus formas de acción. Se enfoca el tema “abuso sexual” de niños, además de discutir históricamente el significado que la infancia tiene en la actualidad. Luego, se sitúa en la psicología la noción de self, definiéndolo partiendo de la psicología del desarrollo y del Enfoque Centrado en la Persona (ECP). En un tercero momento, el trabajo relaciona el concepto de self y el fenómeno del abuso sexual. Una consideración importante se refiere a la identificación difícil de ese fenómeno, ya que en el ámbito de la psicología, esos estudios se encuentran dispersos, así como es dispersa la ciencia psicológica. Se observa la poquísima existencia de estudios específicos acerca de la formación del self en los niños que son víctimas de ese tipo de violencia. Se constata que el ECP se constituye en un instrumento eficaz para la atención de esa demanda, proponiendo escuchas y miradas diferenciadas. Para concluir, se sugieren que más trabajos de pos-grado sean realizados en el área, con la finalidad que el instrumental teórico-práctico enriquezca la lucha contra ese tipo de violencia.

Palabras clave: Violencia sexual; Abuso sexual en la infancia; Autoconcepto (Self); Enfoque centrado en la persona.


 

 

Introdução

O fenômeno do abuso sexual comercial contra crianças e adolescentes é atualmente, prioridade das agendas de políticas públicas de muitos governos democráticos dos países ocidentais e setores da sociedade civil, além de se constituírem em objeto de estudos em diferentes áreas de conhecimento.

No Brasil, as crianças e adolescentes são amparados por legislação avançada, garantindo-lhes direitos fundamentais, assim como proteção integral. Contudo, a lei, apesar de também prever penas para quem não cumpre ou transgride esses direitos, muitas vezes não consegue por si só garantir a essa população um desenvolvimento sadio e integral. Esse é o caso das crianças vítimas de violência sexual1.

Este estudo visa a enfocar o desenvolvimento do self em crianças vítimas de violência sexual (abuso sexual) a partir de pressupostos da abordagem centrada na pessoa. Nessa perspectiva, buscaremos nortear a noção de self a partir das teorizações de Carl Rogers, mais especificamente, da sua teoria da personalidade e do desenvolvimento humano, as quais compõem a ACP.

É importante deixar claro que este trabalho não pretende esgotar as discussões acerca da temática, assim como não pretende chegar a conclusões fechadas e definitivas. Ao contrário, o nosso intuito é lançar um olhar humanista sobre uma questão que exige não só iniciativas objetivas de enfrentamento, mas também reflexões teóricas que possam subsidiar tais iniciativas. Nesse sentido, as considerações finais desse estudo poderão servir como sugestões para outros que possam vir a ser desenvolvidos a partir das reflexões aqui surgidas.

 

O Fenômeno “Abuso sexual” contra Crianças: Uma Caracterização

Antes de situar esse fenômeno é necessário caracterizá-lo como uma forma de violência contra seres humanos em condições peculiares de desenvolvimento. Além disso, é importante também que se situe historicamente a infância e o lugar que ela ocupa, atualmente, em nossa sociedade, assim como situar a história da violência contra crianças.

Quando falamos de crianças não necessariamente estamos falando de “infância”. Autores como Ariès (1978) e Corazza (2002) expõem em seus trabalhos que a história da construção do que conhecemos, hoje, como infância, é fruto de um longo e tortuoso percurso sócio-histórico. Mais do que uma etapa da vida muitas vezes delimitada por faixas etárias, a infância se constitui na pluralidade de suas possíveis manifestações. A infância não é algo definido em definitivo, é um processo que está sempre em construção e que varia bastante de acordo com os contextos nos quais se manifesta, os períodos históricos e econômicos. A infância é mais uma condição do que propriamente uma etapa. Muitas vezes a infância de um sujeito não coincide com o significado que lhe é atribuído pelo senso comum, considerada como uma fase só de brincadeiras, de aprendizagens agradáveis, etc. Existem infâncias vividas em situações de risco ao desenvolvimento e à saúde do sujeito: crianças que trabalham (produtivamente), crianças que sofrem violências corriqueiramente, crianças que não freqüentam escolas, crianças vítimas de abuso e exploração sexuais, entre outras.

A atual concepção de infância é resultado de inúmeras transformações e ainda está em construção. Assim,

(...) para compreender a história da infância, faz-se necessário considerar a produção discursiva e os lugares sociais atribuídos à infância, na íntima relação que tais discursos têm com as práticas sociais concretas, oriundas da história da família, da condição feminina, dos vínculos parentais, das variações demográficas ligadas aos problemas econômicos, da evolução das condições sanitárias, do início da pediatria e das idéias pedagógicas, etc. Através dessas condições podemos compreender certas dinâmicas e circunstâncias que influenciaram as formas de experienciar a infância (Macedo, 2005, p. 93).

Neste trabalho estaremos focalizando uma determinada infância: a que é perpassada por episódios de violência sexual. Consideramos que criança é o sujeito cuja idade encontra-se no intervalo de 0 a 12 anos, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Assim, como essa infância é transgredida por um tipo específico de violência, é necessário uma caracterização desta. Violência pode ser descrita e definida, operacionalmente, como o uso da força (ou poder), objetivando alguma espécie de exclusão, abuso e aniquilamento do outro. Este outro pode vir a ser um indivíduo, grupo, segmento social ou até mesmo uma nação (país) (Minayo, 2002).

A violência está intimamente ligada a relações que envolvem o uso do poder. Este passa a ser violento quando, numa relação de força (física, política, psicológica, etc.), alguém faz uso desse poder visando a alcançar vantagens previamente definidas (Faleiros, 2005). A violência, em tal caso, estrutura-se num processo de dominação de um sujeito por outro. Em se tratando de crianças, é importante ressaltar que essa população tem na figura dos adultos seus agentes socialmente responsáveis e autorizados a exercer poder, visando ao desenvolvimento e à socialização. Entretanto, esse poder conferido aos adultos por vezes assume o caráter de violência dentro de diversas instituições da sociedade. Assim, em concordância com Minayo (2002), a violência contra crianças pode se constituir como todo ato ou omissão de pais, parentes, outras pessoas e instituições, capazes de causar danos físicos, sexuais e/ou psicológicos à vítima.

Existem variadas formas de classificação dos tipos de violência. Autores como Faleiros (2005), Minayo (2001, 2002) e Westphal (2002), trazem uma classificação ampla, dividindo-a em diversos tipos e expressões. Neste trabalho utilizaremos a divisão adotada por Faleiros (2005), qual seja: física, psicológica, e sexual. Essa divisão elenca subdivisões, onde as principais são a violência institucional, simbólica, estrutural, doméstica, a fatal e a exploração econômica. Nesta discussão abordaremos a violência sexual, a qual é classificada amplamente como abuso e exploração sexual. Tal classificação ainda recebe uma subclassificação, mais minuciosa, em que o abuso sexual é visto como intra e extra-familiar, e a exploração sexual comercial pode ser dividida em prostituição, pornografia, turismo sexual e tráfico de pessoas para fins sexuais.

A violência sexual, quando praticada contra crianças, torna-se ainda mais transgressora e perversa, pois viola direitos peculiares de sujeitos em fase especial de desenvolvimento físico, psicológico, moral e sexual. Compromete o seu percurso sadio de desenvolvimento, além de destituir o direito à proteção integral assegurada a esses sujeitos (Faleiros, 2005).

No âmbito legal, o Brasil adota o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8069/1990, que dispõe sobre os direitos e deveres que envolvem essa população, desde os que estão relacionados diretamente a ela, quanto aos seus responsáveis, ao governo e à sociedade civil. O ECA traz o paradigma da proteção integral a essa população, que historicamente teve seus direitos de sujeitos em condições peculiares de desenvolvimento negligenciados.

 

Abuso Sexual contra Crianças: Caracterizações

Por se constituir numa violência, o abuso sexual é também uma forma de poder desigual, onde a natureza da manifestação desse poder se direciona à sexualidade da vítima. Segundo Faleiros (2000), a violência é categoria explicativa da vitimização sexual, ou seja, refere-se ao processo, à natureza da relação de poder existente quando há abuso ou situações de exploração sexual.

Na literatura pertinente ao assunto existem definições diferentes do que vem a ser a situação de abuso. Faleiros (2000, p. 9) traz uma reflexão acerca do abuso sexual, entendendo que “o conceito e a designação dos diferentes tipos de violência sexual deve ter como critério a natureza da relação que se estabelece em cada um dos cenários em que a mesma ocorre”.

Para Faleiros (2005), a criança, na relação de abuso sexual, é usada para a gratificação de adultos (ou até mesmo de adolescentes mais velhos), baseando-se em situações e relações que envolvem poder. Inclui-se nessa descrição situações em que há desde manipulação de genitália, mama ou ânus, exploração sexual, voyeurismo, pornografia, exibicionismo, ato sexual em si (com ou sem penetração, com ou sem violência física). O abuso sexual contra crianças “é um relacionamento interpessoal sexualizado, privado, de dominação perversa, mantido em silêncio e segredo” (Faleiros, 2005, p. 79). O autor expõe ainda que os episódios de abusos sexuais são bastante distintos entre si, e quase nunca são idênticos. Muitos fatores colaboram para isso, seja pelo autor da violência sexual, seu grau de parentesco, autoridade e responsabilidade em relação ao vitimizado, tipo de violência cometida, duração, local e freqüência com que ocorrem, além da idade e sexo da vítima e do abusador.

Faleiros (2005) mostra que a dominação sexual perversa

(...) é uma construção deliberada, paciente e ritualizada de um relacionamento perverso, que se mantém pela dominação psicológica de longa duração. Começa por um processo de sedução, que consiste na conquista sutil, que anula a capacidade de decisão da vítima, e acaba em sua dominação e aprisionamento (p. 79).

Nesse sentido, percebemos que além de toda a violência gerada com essa dominação, tem-se uma espécie de aprisionamento, que impede a vítima de expor a situação para outras pessoas, a fim de conseguir ajuda.

A exploração sexual comercial contra crianças também é terreno de definições plurais e que carrega dificuldades em torno da sua conceituação. Faleiros (2000), em consonância com Leal e Leal (2002, p. 18), define esse fenômeno como

uma relação de mercantilização (exploração/dominação) e abuso (poder) do corpo de crianças e adolescentes (oferta) por exploradores sexuais (mercadores), organizados em redes de comercialização local e global (mercado), ou por pais ou responsáveis, e por consumidores de serviços sexuais pagos (demanda).

Autores como Libório (2005) acrescentam que na situação de exploração comercial há modos de coerção e violência, os quais podem caracterizar formas contemporâneas de trabalho escravo. A compreensão do fenômeno da exploração sexual comercial, por ter caráter econômico subjacente, deve levar em conta a dinâmica do sistema capitalista e as demandas da sociedade de consumo, mediadas e orientadas pelo crivo dos mercados. Nesse caso, o mercado do sexo, que faz parte de toda uma estrutura organizada e articulada. Sustenta-se primordialmente pelo lucro (obedecendo à lógica do capital), gerado pelo trabalho “produtivo” sexual, cuja mão de obra pode ser adulta ou infanto-juvenil (Faleiros, 2000).

A exploração sexual comercial contra crianças se apresenta de diferentes formas, cada uma com especificidades próprias, e de alguma forma estão articuladas e inter-relacionadas, o que torna difícil conceituá-las sem citar outras. Neste trabalho elas apenas serão elencadas, a fim de dar visibilidade às suas existências. São elas: prostituição, pornografia, turismo sexual, e tráfico de pessoas para fins sexuais. Durante muitos anos a exploração sexual infanto-juvenil confundia-se apenas com a prostituição, mas com o incremento do turismo sexual e o surgimento e expansão do sexo via Internet, chegou-se à compreensão de que a pornografia, o turismo sexual e o tráfico para fins sexuais também são formas de exploração no mercado sexual (Faleiros, 2005).

 

O “Pacto do Silêncio”

Diversos profissionais lidam com suspeitas ou confirmações de casos de maus tratos e violências, mas muitos não se mobilizam ou não sabem como proceder para gerar uma denúncia a um órgão ou autoridade competente, acabando por reproduzir e contribuir, mesmo que involuntariamente, a favor da dinâmica de manutenção das situações de vulnerabilidade e violência. O mesmo acontece com os casos de abuso e exploração sexual comercial. As práticas de violência são fortemente sujeitas a essa “inércia” social, pois suas características são de difícil resolubilidade, principalmente no que se refere ao aspecto da identificação de uma prática de violência. Para as violências de ordem sexual, como o abuso e a exploração sexual, parecem existir ainda mais dificuldades, pela forma como as violências se manifestam e pelas dinâmicas relacionais que orientam (Minayo, 2002). Pelo fato de se constituir numa relação de poder, identificar ou intervir em casos de violência sexual é bastante complicado e delicado. Conforme já apresentado neste trabalho, nos casos de abuso, por exemplo, muitas vezes a vítima é coagida violentamente por seu(s) abusador(es) a jamais falar nada para ninguém, sob ameaça de sofrer punições violentas, ser morta, ou ter um ente querido ou familiar posto também em situação de ameaça e de risco de morte (Faleiros, 2005; Minayo, 2002). Nos casos de exploração isso também é bastante recorrente, só que geralmente é mais freqüente que os exploradores sejam pessoas que não fazem parte do convívio social da criança explorada, além de quase sempre pertencerem a uma rede de exploração criminosa, que sustenta e mantém tais práticas.

Dessa forma, se constrói o dito “pacto de silêncio”, que é também uma demonstração da relação do poder instituído de uma pessoa para outra; neste caso, de um adulto ou adolescente mais velho, para uma criança. Ninguém pode comentar sobre a dinâmica do que acontece, sob pena de perder a vida ou ter alguém ameaçado. Tudo é silenciado.

O pacto do silêncio muitas vezes não é algo explícito, o que o torna ainda mais difícil de ser quebrado, quando se busca a identificação de situações de violência. Quando a vítima é uma criança, o silêncio é mantido pelo sentimento de que não existem pessoas que possam protegê-la, uma vez que, na maioria das vezes, o agressor é seu pai ou mãe, ou responsável, e a criança mantém uma crença de que o cônjuge não agressor sabe que existe a violência e nada faz para que esta deixe de acontecer. A criança pode temer perder o afeto do agente agressor, principalmente quando a relação entre os dois é muito próxima, e também pode existir o medo de que outros membros da família não acreditem nela (Silva, 2002).

Tendo em vista a problemática que o silenciar produz e contribui na reprodução de situações de violência sexual, algumas questões emergem: que implicações tem a violência sexual (abuso sexual) para sujeitos em fase tão peculiar do desenvolvimento (a infância) enquanto pessoas possuidoras de subjetividade? Como elas são afetadas em suas significações de mundo e em relação à construção de um self (autoconceito)? Daremos prosseguimento ao trabalho buscando a compreensão dessas circunstâncias, a partir da noção de self.

 

A Construção do Self: Abordagens Psicológicas

Para se compreender a construção do self em crianças vítimas de abuso sexual, é necessário primeiro entender o que vem a ser o autoconceito (self) e depois situá-lo dentro da perspectiva humanista centrada na pessoa, adotada neste trabalho.

O conceito de self, ou autoconceito, tem se constituído como um tema central em grande parte das teorias psicológicas. A própria noção do que vem a ser psicologia traz em si a idéia de indivíduo como sendo constituído por disposições internas e mentais; noções que hoje integram grande parte das significações de nossa cultura ocidental sobre este tema.

Os indivíduos nascem com uma predisposição para aprender sobre si mesmos, e é nesse processo de aprendizagem que se inicia a formação de um self, momento em que a criança começa a diferenciar entre o “eu” e o “não eu”, num processo que a acompanha por toda a vida.

Alguns autores, como May (1973), definem o self como “ (...) a função organizadora no íntimo do indivíduo, por meio da qual um ser humano pode relacionar-se com outro. (...) É o centro do qual vemos e temos consciência das diferentes facetas de nossa personalidade” (pp. 75-76). O self é a significação que damos a nós mesmos mediante um processo reflexivo, por mais precário que este seja, e que emerge, ao mesmo tempo, a significação do mundo (Pacheco, Ribeiro & Silva, 2007).

De acordo com Bee (1986), o desenvolvimento acontece desde o nascimento dos sujeitos, quando o bebê se percebe, junto de sua mãe (ou de quem exerça esse papel parental), como um indivíduo único; aos poucos ele vai tomando consciência de que existe uma diferenciação, começando, assim, a construir seu autoconceito.

Na medida em que a criança vai tomando consciência de que ela é um ser distinto dos demais, inicia-se um processo de auto-avaliação de seus gestos, de suas atitudes, tendo como referência, sempre, os outros, e dessa forma inicia-se a construção de valores próprios, importantes na formação do self (Bee, 1986).

Segundo as autoras Papalia e Olds (2002), o desenvolvimento do autoconceito (self) perpassa o desenvolvimento da auto-regulação, em que a criança começa a ter um controle de seu comportamento para, de alguma forma, “satisfazer” as demandas e expectativas de seu cuidador, até mesmo quando este não está presente.

De acordo com Bee (1986) e Papalia e Olds (2002), a criança, quando nasce, não tem ainda uma consciência total de si mesma como ser singular, diferenciada dos outros, principalmente da figura materna. Com o passar do tempo, a criança vai percebendo que existe algo de individual naquilo que ela percebia outrora como um todo, e que esse individual é ela. Nesse processo de diferenciação do outro, suas autopercepções vão se firmando cada vez mais e, dessa forma, a criança vai incorporando as suas experiências e construindo paulatinamente o que se configurará como o seu autoconceito. As figuras parentais são de extrema importância nesse processo, tendo em vista seu papel ativo no processo de formação e diferenciação do autoconceito da criança. (Galvão & Melo, 2006).

 

A Contribuição das Idéias de Carl Rogers

A teoria de desenvolvimento desenvolvida por Carl Rogers representa um importante referencial quando se pretende abordar o desenvolvimento humano.

Para Rogers, o self não é algo estático, imutável, cristalizado. Constitui-se num todo, onde existe uma contínua significação do que é vivido, sempre suscetível à mudança, podendo mudar “radicalmente”, tornar-se “oposto” ao que outrora se apresentava. O self, dessa forma, passa a ser um conjunto organizado e mutável de percepções que se referem ao indivíduo, tais como as características, atributos, qualidades e defeitos, capacidades e limites, valores e relações que ele reconhece como descritivos de si mesmo e que percebe como dados de sua identidade (Rogers & Kinget, 1975). Essa construção e reconstrução baseiam-se sempre em experiências passadas, acontecimentos presentes e expectativas para o futuro (Fadiman & Frager, 1986).

O self é um termo que se usa para se referir ao contínuo processo de conhecimento e ressignificação de si mesmo. O próprio termo “ressignificação” implica a possível existência de mudanças, logo, também denota a transitoriedade a que o self está submetido, ainda que isso não ocorra de forma organizada e coerente (Rogers & Kinget, 1975).

 

O Desenvolvimento do Self nas Crianças: Um Olhar Centrado na Pessoa

Segundo Rogers (1975), a estrutura do self forma-se a partir da interação da criança com o ambiente, de maneira bastante particular, como resultado da interação valorativa com os outros. Um dos primeiros aspectos, e mais importantes, da experiência da criança, é a de ser amada pelos pais. Ela apreende-se a si mesma como amável, digna de amor, e essa experiência é uma relação de afeição, apreciada pela criança com satisfação.

Na medida em que as experiências vão ocorrendo, estas vão sendo simbolizadas, organizadas e apreendidas, quando são percebidas como compatíveis com o autoconceito. Essas experiências também podem ser ignoradas, por não se relacionarem ao eu; ou recusadas à simbolização; ou, ainda, terem uma simbolização distorcida, tendo em vista a incoerência da situação/experiência com a estrutura do eu (Rogers, 1975). É nessa direção que ocorre o que se chama de ajustamento ou desajustamento psicológico, segundo as idéias de Rogers. O ajustamento se dá quando as experiências vividas pela criança são ou podem ser simbolicamente assimiladas em relação coerente com o autoconceito. Enquanto o desajustamento se desenvolve quando as experiências são percebidas como incompatíveis e em desacordo com o autoconceito, sendo, assim, negadas ou distorcidas.

No processo de construção do autoconceito, é importante ressaltar a influência de dois processos: a congruência e a incongruência. A primeira diz respeito a um estado de consistência ou harmonia entre o que é experienciado e a consciência dessa experiência; a segunda constitui-se num estado de discrepância ou desarmonia entre a experiência e a sua simbolização, como dito anteriormente. Essa noção é interessante, pois diz que a pessoa pode se tornar incongruente na medida em que aliena seu autoconceito da experiência natural vivida por ela e seu organismo. Além desses dois conceitos, outro fundamental, e estreitamente relacionado à construção do self é a tendência à atualização, noção primordial na teoria da abordagem centrada na pessoa. Diz respeito a uma tendência inerente ao ser humano para desenvolver todas as suas potencialidades. É uma prontidão para o crescimento, que nos move em direção e em busca de condições favoráveis para o desenvolvimento das capacidades.

Essa visão coloca o ser humano como alguém em permanente construção, e rompendo com os pré-determinismos. Essa perspectiva retira a infância de um lugar de determinismo da personalidade, pois o ser humano é considerado um ser-no-mundo em constante construção, num processo contínuo de desenvolvimento e atualização de suas potencialidades.

Segundo Rogers, “o ser humano tem a capacidade, latente ou manifesta, de compreender-se a si mesmo e de resolver seus problemas de modo suficiente para alcançar a satisfação e eficácia necessárias ao funcionamento adequado” (Rogers & Kinget, 1975, p. 39). Contudo, nem sempre essa capacidade se manifesta, existindo também situações em que esse desenvolvimento saudável não é muito viável. Os autores dizem que o exercício dessa capacidade requer um contexto de relações humanas positivas que possam ser favoráveis à valorização e conservação do eu, ou seja, relações desprovidas de ameaças ou de desafios à concepção que o sujeito faz de si mesmo. O homem tem capacidade e tendência ao crescimento por si só, inerentemente, mas é necessário que existam condições favoráveis para que essa tendência ao possa se desenvolver.

O organismo reage frente a situações de ameaça numa espécie de estado de defesa, ocasião em se deforma a percepção da experiência, minimizando, dessa forma, o estado de desacordo que se instala. É possível que exista um certo estado de rigidez em relação a percepções, julgamentos, valores, sentidos, representando a experiência em termos absolutos e incondicionais (Galvão & Melo, 2006).

O autoconceito da criança se constitui tendo em vista as relações que ela estabelece em seus contextos de vida. Assim, ele pode ser construído em condições favoráveis ou desfavoráveis. Em geral, diante de condições adversas e desfavoráveis emocionalmente, o autoconceito da criança expressa vulnerabilidade e o sofrimento vivenciado (Rogers & Kinget, 1975; Galvão & Melo, 2006). Nesse sentido, é importante tentar compreender como a violência sexual contra crianças pode ter implicações no desenvolvimento do seu autoconceito.

 

O Desenvolvimento do Self em Crianças Vítimas de Abuso Sexual

No intuito de se compreender como pode se dar a construção do autoconceito (self) em crianças vitimizadas pelo abuso sexual, é importante refletirmos sobre como a criança vivencia essas situações.

No caso do abuso sexual, por seu caráter intimista, que, como já descrito, ocorre na maioria das vezes no ambiente familiar (entende-se esse termo em relação aos laços consangüíneos, como de proximidade comunitária), podemos inferir que as características do incesto estendem-se a esse tipo de violência sexual. Felizardo, Zürcher e Melo (2003), descrevem três fases na percepção da criança (geralmente menina) frente a uma situação de abuso sexual, de caráter incestuoso.

No primeiro momento, a criança recebe uma atenção especial de sua figura paternal (considera-se aqui a relação incestuosa mais recorrente, a de pai-filha, onde existem sutis sinais de comportamento fora do “normal” deste pai. Contudo, embora ainda não consiga perceber isso como um início de abuso sexual, a criança já experimenta uma sensação de insegurança, vinda daquele que deveria lhe dar segurança. Nesse momento já existe uma confusão na criança, ao buscar um sentido nas mudanças de comportamento do pai, que continua representando uma figura que reflete confiança.

Num segundo momento, a (o) filha (o) já começa a demonstrar certa insegurança e insatisfação com as atitudes paternas, que as ignora e procura mostrar que não há perigo ou algo de errado em suas atitudes. A criança passa a ter medo e aversão ao pai, ao mesmo tempo em que talvez sinta a ausência da mãe. Nesse momento ela começa a resistir aos comportamentos do pai, movimento que faz com que as ameaças e pressões por parte dele apareçam com grande freqüência, aumentando a insegurança e o sentimento de desalojamento no mundo.

O terceiro momento é caracterizado pelas autoras como “drama do incesto”. Geralmente ocorre já na fase pubertária da criança, quando a possibilidade de expansão das relações sociais desta aumenta, aumentando também o medo que a figura paterna tem em perdê-la. Assim, a figura paterna torna-se mais agressiva, tentando encontrar formas de controlar a vida da criança. Esta, por sua vez, começa a ter sentimentos ambíguos em relação ao pai, pois ao mesmo tempo em que passa a sentir nojo e ódio, mantém ainda um sentimento de amor por ele.

As autoras acreditam, ainda, que muitas questões culminam, involuntariamente, no favorecimento da manutenção desses tipos de relação, principalmente as de caráter de abuso sexual. Um exemplo disso é o papel da família, legitimado socialmente e em lei, mantendo o papel de protetora primeira da criança, e assim a situação muitas vezes nem é identificada pelo fato de existir uma crença instituída na qual a família é uma instituição de “absoluta” legitimidade na educação e resolução de problemas pertinentes aos filhos. Nos casos em que a família tem como “chefe” um homem, a situação fica ainda mais complicada, pois esse, geralmente, assume a postura de “protetor do lar”, “impedindo” a criança vítima de recorrer a outros possíveis protetores. Essa situação é dificultada ainda mais pelo chamado “pacto do silêncio”, já elucidado anteriormente. Assim, a criança vítima fica sem possibilidades de reagir a essa complexa teia de relações, depositando suas esperanças na expectativa de que pessoas de fora percebam seu drama e possam ajudá-la.

Ainda conforme Felizardo e cols. (2003), uma síndrome pode vir a se desenvolver nessas condições, com a finalidade de adaptação da criança vitimizada. A referida síndrome desenvolve-se em cinco etapas, descritas a seguir.

A primeira consiste numa manutenção de segredo, na qual o adulto abusador impõe à criança vitimizada essa condição a respeito do que acontece entre eles. Em alguns casos a criança busca sair dessa condição, mas é coagida por seu abusador. A segunda etapa é muito próxima à primeira e ocorre quase simultaneamente, caracterizando-se pelo desamparo e a subjugação imposta pelo adulto abusador.

A terceira etapa é um momento em que o autor do abuso percebe que pode continuar suas ações, pois já se sente seguro em relação à dependência e subjugação da criança. Portanto, os atos tornam-se mais intensos, e a criança fica “refém” dessa condição, restando-lhe apenas a adaptação à situação. Nessa fase a criança pode experimentar o sentimento de que foi “traída” por alguém em quem confiava e amava. Segundo as autoras, inconscientemente a criança parece fugir, ou se defender desse sentimento. Em alguns casos a criança assume a responsabilidade pelo ocorrido, em razão das ameaças e do sentimento conflitante de amor ainda existente. Os sentimentos de desamparo e raiva são tão intensos que a criança passa a desenvolver comportamentos tais como idéias suicidas, auto-agressões, desobediência exacerbada em qualquer contexto social, fugas de casa, fatos que são indicativos de que ela necessita de ajuda.

No quarto estágio, a criança, muitas vezes, por não suportar mais a situação, acaba revelando, tardiamente, o “segredo” que mantinha em relação ao seu abusador. Contudo esta revelação parece ter pouco impacto e duração, pois os outros membros da família e adultos, em geral, não são capazes de se aliarem à criança em sua revelação. Assim, a criança retira o que havia dito, caracterizando a quinta etapa, a da retratação. Nesse ponto ocorre uma inversão na situação: a criança passa a ser responsabilizada pelo destino da família e, logo, ela começa a experimentar enorme sentimento de culpa. Esse movimento, muitas vezes, faz com que a criança diga aos membros da família que tudo foi obra de sua imaginação e, assim, a “tranqüilidade” superficial da família é restaurada.

Felizardo e cols. (2003) concluem observando que uma criança vítima de violência sexual tem vários aspectos de seu desenvolvimento prejudicados: a segurança (capacidade de desenvolver autodefesa contra experiências desagradáveis), a confiança (competência que só aprenderá se aprender a confiar nos pais), o poder e controle, o sistema de valores e a intimidade. A criança vítima de violência sexual pode se ver incapacitada de fazer escolhas, de tomar decisões, o que faz com que fique em posição de impotência frente à própria vida, o que pode levá-la a sentimentos de culpa, raiva, abandono, decepção. Em longo prazo esses sentimentos podem evoluir para prognósticos de depressão, além de poder acarretar comportamentos autodestrutivos e de autodesprezo (Dutra, 2000, 2002; Galvão & Melo, 2006; Bonavides, 2005).

 

A Abordagem Centrada na Pessoa e o Self: Uma Construção Vitimizada

O autoconceito, como já explicado, de acordo com as idéias de Carl Rogers, desenvolve-se através da percepção que o sujeito tem de sua realidade, do mundo que o cerca, da maneira como ele se vê. A necessidade de consideração positiva, na infância, é uma vivência bastante importante para a construção da auto-imagem. A criança vítima de violência sexual (abuso e exploração comercial) desenvolve a sua construção do self com esse grande entrave, tendo em vista que essa aceitação positiva por parte dos outros mais próximos de seu convívio (familiares e pessoas que a cercam) é bastante conflituosa. As dinâmicas relacionais da criança, em situação de violência sexual, com seus familiares e pessoas com quem convive é, na grande maioria dos casos, perpassada por experiências negativas, de abandono e negligência. A criança tem experiências de afetos não positivos, os quais favorecem os primeiros atos de incongruência em seus comportamentos. Os afetos experimentados pela criança vitimizada parecem confusos mas, ainda assim, ela subordina-se a eles, por não conseguir vislumbrar outras escolhas. Assim, a incongruência surge de forma que as experiências internas precisam ser suprimidas ou desvirtuadas, por não se mostrarem congruentes com uma estrutura de self já presente, instalando-se, assim, uma espécie de desajustamento psicológico (Galvão & Melo, 2006; Rogers, 1975).

Dessa forma, os primeiros sentidos e valores que a criança introjeta serão permeados por esses condicionantes. Os valores que lhe são impostos são introjetados, e de forma semelhante, como acontece no mundo externo (seus agressores e cúmplices, e figuras de referência), em seu mundo interno a criança também assume uma postura autodepreciativa. Nesse profundo estado de vulnerabilidade, existe um enorme desacordo entre seu eu – autoconceito- e sua experiência real. À medida que o tempo passa, e com o ampliar da consciência de sua realidade, esse desacordo pode vir a se transformar em sentimentos de angústia e desalojamento psíquicos, os quais se manifestam como recursos de defesa diante da insalubre condição que cotidianamente experimentam.

Pelo contexto que vivencia, de extremos estados de incongruência, a criança pode vir a comprometer profundamente seu autoconceito. A realidade é bastante difícil de ser encarada, e aceitá-la objetivamente é tarefa deveras insensato, sendo mais viável a negação e/ou distorção dessa realidade (Galvão & Melo, 2006). Contudo, a perspectiva humanista centrada na pessoa, detentora de uma visão otimista e positiva de vida e do ser humano, nos traz a confiança na tendência atualizante, a qual significa a tendência para crescer e buscar saídas positivas para o crescimento e desenvolvimento humano. Nesse sentido, não há determinismos nem situações estáticas e definidoras na vida dos sujeitos; o que nos leva a pensar que acontecimentos e dinâmicas, presentes na infância, não necessariamente irão determinar o que será do sujeito para o resto de sua vida. O sujeito vive no mundo no momento presente, e por mais que seu passado se arraste até os dias atuais, marcas e cicatrizes bastante presentes, as experiências do agora e as futuras podem ser diferentes e renovadoras. No próprio conceito de self, discutido neste trabalho, tem-se essa noção de fluidez, do não inerte. Não há qualquer destino traçado previamente na infância que não possa ser revertido.

As crianças vítimas de abuso ou exploração sexual comercial, certamente terão, na construção de suas auto-imagens, visões negativas, carregadas de culpa, sofrimento, dor, além de percepções distorcidas acerca de si mesmas. Contudo, de acordo com a perspectiva centrada na pessoa, a busca do sentido de cada experiência pode ser ressignificada e, assim, possibilitar mudanças na construção do self. Nesse sentido, seria mais interessante se falar constantemente em atualização do self, ou, melhor ainda, em (re) construção do self, tendo em vista que a fluidez que lhe é essencial nos dá a condição de sempre podermos dar novos sentidos às nossas experiências, passadas, presentes e apontar diferentes rumos para as futuras experiências.

Contudo, a tendência atualizante requer um contexto de relações humanas positivas, favoráveis à conservação e valorização do eu, relações desprovidas de ameaça ou de desafio à concepção que o sujeito faz de si mesmo. Enquanto ainda houver vida, existe no ser humano uma tendência “natural” pela busca de melhores condições de sobrevivência e existência. Existem os casos de crianças que tentam suicídio, quando em situações de violência. Entretanto, alguns estudos (Dutra, 2000; 2002) mostram que a tentativa de cometer suicídio não necessariamente indica que a criança deseja sair da vida ou morrer; mas que essa opção parece se mostrar como uma forma de sair daquela condição na qual se encontra, refletindo, de alguma forma, um pedido de ajuda, um socorro.

Portanto, depositar confiança nos princípios humanistas, presentes na noção de tendência atualizante, na liberdade do ser humano de fazer escolhas, faz-nos crer que deve-se voltar mais a atenção sobre as crianças vitimizadas por abuso e exploração sexual, ou qualquer outro tipo de violência e situações de risco e vulnerabilidade na qual estas se encontrem. Deve-se buscar identificar as situações, se elas estão ocorrendo, e ajudar a criança a superar essas experiências em busca de novas reconfigurações positivas de self, e assim, não condená-las a mais sofrimentos, rotulando-as ou desacreditando que a situação possa mudar, determinando-a a uma vida de sofrimento. Dar voz à criança, ouví-la, crer no seu relato, é o primeiro movimento no qual toda a sociedade civil e Estado deveriam se implicar, para, assim, ajudar a construir novas possibilidades, passíveis de reformulação. Dessa forma poderemos construir maneiras possíveis de se cuidar e de se prevenir as práticas de violência, sem esquecer, igualmente, da família em todo este intercurso.

 

Considerações finais

A violência sexual contra crianças é campo bastante complexo e de difícil investigação. As pesquisas já realizadas na área, apesar de bastante relevantes e vastas, mostram que, para se obter uma compreensão mais ampla acerca do assunto e que permitam buscar ao máximo a extinção dessas práticas, parecem ainda não serem suficientes. Inúmeras são as dificuldades, que vão desde as terminologias utilizadas para as leis, até as definições, que parecem não dialogar entre si.

No Brasil, apesar da legislação para as crianças e adolescentes ser considerada avançada, a dispersão em diversas áreas do conhecimento (cada uma com suas especificidades) e até questões de ordem prática, como a eficácia e cumprimento das leis que já vigoram, ainda se encontram entraves de diversas ordens para a garantia de proteção às crianças e adolescentes. Estas, vão desde problemas burocráticos e políticos, às questões conceituais em relação à construção da condição infância, suas peculiaridades e contextos de desenvolvimento.

A Psicologia, vinda de uma tradição científica naturalista, historicamente vem abordando questões pertinentes ao desenvolvimento humano, incluindo o infantil. A infância e seu desenvolvimento em situações de risco e vulnerabilidade - como é o caso da infância em contextos de abuso sexual – é campo relativamente novo na Psicologia, especialmente no Brasil. Apesar disso, as pesquisas e teorias existentes já demonstram formas de se conceber tais fenômenos sob outras perspectivas, que não a tradicional, como, por exemplo, a humanista.

Com este estudo pode-se perceber que os marcos teóricos que sustentam os estudos na área da violência sexual nem sempre são claros ou bem definidos, encontrando-se, de alguma forma, “dispersos”, tal como dispersa é a ciência psicológica.

O que se buscou neste trabalho foi uma tentativa de reflexão sobre um aspecto da violência sexual contra crianças. E para isso nos utilizamos de um marco referencial claro e definido, como o é a noção de self da teoria de personalidade da ACP, buscando não chegar a conclusões definitivas e conclusivas, mas, sim, a reflexões.

A adoção dos princípios teóricos da ACP, notadamente a noção de self, podem se constituir em instrumentos para o enfrentamento ao abuso sexual de crianças. A postura epistemológica dessa abordagem entende o sujeito como um vir a ser de possibilidades, de potencialidades, ainda que exposto a situações que o desviam de sua trajetória de desenvolvimento considerado sadio. Isso é ainda mais importante quando os sujeitos são crianças, pessoas em condições peculiares e de intenso desenvolvimento de sua personalidade, subjetividade e possibilidades. As crianças abusadas sexualmente são tratadas como objetos, cuja função é satisfazer o desejo do outro sem que se leve em consideração sua condição de peculiaridade, sua capacidade de entendimento, sua vontade, seus direitos, sua possibilidades de desenvolvimento sadio. A ACP é grande aliada desse enfrentamento, por adotar uma concepção de homem potencialmente capaz e criativo, o que pode se constituir numa forma positiva e possível para o enfrentamento ao abuso sexual de crianças. Além do mais, o seu arcabouço teórico e prático pode propiciar o desenvolvimento de reflexões e manejos das questões relativas à violência sexual, permitindo, assim, às crianças vitimizadas, um suporte psíquico e uma gama de novas possibilidades para a sua existência.

Como apontamento para uma possível construção e colaboração, fica explicitada a necessidade de elaboração de estudos que busquem sistematizar e organizar o que já existe de produção teórica e prática no campo da psicologia, na área da violência sexual contra crianças. Um trabalho como um “estado da arte” ou “estado do conhecimento” seria instrumento valioso para que mais estudos fossem realizados nessa área, facilitando, inclusive, o acesso às informações de quem é considerado leigo no assunto, além de que, indiretamente, seria mais um instrumento na luta contra as práticas de violência sexual contra crianças. Além disso, os pesquisadores que se afiliam à Abordagem Centrada na Pessoa também podem se constituir colaboradores na construção de novos conhecimentos, práticas e métodos de investigação acerca das crianças vitimizadas pelo abuso sexual, em função da riqueza epistemológica e ontológica que fundamenta essa abordagem.

 

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Recebido em 05.06.08
Primeira Decisão Editorial em 23.07.08
Aceito em 16.09.08

 

 

1 No presente trabalho, toda vez que nos referirmos à “violência sexual” estaremos nos remetendo exclusivamente aos fenômenos do “abuso sexual” e “exploração sexual comercial”, conceitos discutidos em seção própria.

Leonardo Cavalcante de Araújo Mello - Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Endereço de correspondência: Av. Odilon Gomes de Lima, 2045. Capim Macio, Natal-RN, CEP: 59078-400. Email: <leocaramello@yahoo.com.br>

Elza Dutra - psicóloga e professora doutora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Endereço de correspondência: Av. Prof. Olavo Montenegro, 2887. Capim Macio, Natal-RN, CEP. 59078-330 Email: <elza_dutra@hotmail.com> e <dutra.e@digi.com.br>

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