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Revista da Abordagem Gestáltica
Print version ISSN 1809-6867
Rev. abordagem gestalt. vol.24 no.2 Goiânia May/Aug. 2018
https://doi.org/10.18065/RAG.2018v24n2.1
ARTIGOS: RELATOS DE PESQUISA
Oficina de desenvolvimento da escuta: prática clínica na formação em psicologia
Talleres de desarrollo de escucha: práctica clínica en la formación en psicologia
Shirley MacêdoI; Gledson Wilber de SouzaII; Monzitti Baumann Almeida LimaIII
IProfessora do Colegiado de Psicologia, do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Dinâmicas de Desenvolvimentodo Semi-Árido (PPGDiDes) e da Residência Multiprofissional em Saúde Mental da Fundação Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF).É Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco; Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, SP; Especialista em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco; Graduada e Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco; e Bacharel em Administração pela Faculdade de Ciências Humanas ESUDA. E-mail: mvm.shirley@gmail.com
IIGraduado no Curso de Psicologia pela Universidade Federal do Vale do São Francisco
IIIGraduado no Curso de Psicologia pela Universidade Federal do Vale do São Francisco
RESUMO
Esta pesquisa teve por objetivo geral compreender sentidos da experiência de participação em oficinas de desenvolvimento da escuta entre estagiários de Psicologia, que as frequentaram antes de adentrar o estágio. Especificamente, buscou-se descrever como competências despertadas e desenvolvidas naquelas oficinas estariam sendo operacionalizadas no estágio; compreender como mudanças em modos de subjetivação desses estudantes favoreceram a inserção e a manutenção no estágio; e avaliar, na perspectiva destes estagiários, a operacionalidade da oficina para ser ofertada ao estudante em formação. Usando a hermenêutica colaborativa, uma proposta em pesquisa fenomenológica, entrevistaram-se 14 estagiários, subdivididos em três grupos de discussão, que puderam resgatar e analisar conjuntamente o sentido daquela vivência. Os resultados apontaram que a oficina promoveu alcance terapêutico; favoreceu autoconhecimento; teve o sentido de ressignificação compartilhada da angústia em relação à futura prática do estágio; dirimiu ansiedade em relação às limitações pessoais; promoveu desenvolvimento de competências; e favoreceu organização, sistematização e foco da escuta. Os colaboradores reconheceram a necessidade da oficina antes do estágio, mas sem ser obrigatória. Concluiu-se, principalmente, que essa pode ser uma prática de capacitação, humanização e cuidado a futuros estagiários num serviço-escola de Psicologia, pois foi reconhecida pelos colaboradores como espaço de acolhimento e cuidado de si.
Palavras-chave: Escuta; Pesquisa Fenomenológica; Formação do Psicólogo.
RESUMEN
Esta investigación buscó comprender sentidos de la experiencia de participación en talleres de desarrollo de la escucha entre pasantes de Psicología. Se buscó describir cómo competencias despertadas y desarrolladas en aquellos talleres estarían siendo instrumentalizadas; comprender cómo cambios en modos de subjetivación de estos estudiantes favorecieron la inserción y el mantenimiento en la pasantía; y evaluar, en la perspectiva de estos pasantes, la instrumentalización del taller para ser ofrecida al estudiante. Usando la hermenéutica colaborativa, una propuesta em investigación fenomenológica, 14 pasantes, subdivididos en tres grupos de discusión, pudieron rescatar y analizar el sentido de aquella vivencia. Los resultados mostraron que el taller promovió alcance terapéutico; favoreció el autoconocimiento; tuvo el sentido de buscar una significación compartida de la angustia concerniente a la futura práctica de la pasantía; dirimió la ansiedad relacionada a las limitaciones personales; promovió el desarrollo de competencias; y favoreció la organización y foco de la escucha. Los colaboradores reconocieron la necesidad del taller antes de la pasantía, pero sin obligatoriedad. Se concluyó que esa puede ser una práctica de capacitación, humanización y cuidado a futuros pasantes en un servicio-escuela de Psicología, reconocida por los colaboradores como espacio de acogida y cuidado de si.
Palabras clave: Escucha; Investigación Fenomenológica; Formación del Psicólogo.
Introdução
A escuta clínica na prática psicológica não se caracteriza como uma escuta comum, mas como um ouvir diferenciado, pois quem escuta e quem fala se abrem à experiência alteritária e produzem novos significados que favorecem novos modos de sentir, pensar e agir (Dourado, Macêdo & Lima, 2016).
Bandeira et al. (2006) e Heckert (2007) já defenderam que, mesmo a escuta clínica sendo parte das habilidades interpessoais que devem ser desenvolvidas num curso de Psicologia, nem sempre a academia permite alcançar tal objetivo, pois ensinar a escutar seria impossível apenas por um ato pedagógico ou por conteúdos teóricos que se aplicam em sala de aula visando a aprendizagem de uma técnica. Para os autores, a escuta se desenvolve na experimentação, no caminhar da formação como psicólogo.
Tendo em vista, contudo, que os processos de formação graduada do psicólogo, na maioria das vezes, desprezam os saberes e a experiência dos aprendizes, constituiria um desafio a quem ensina criar modos de educar de maneira a fomentar experimentação, reflexão, pensamentos e troca de experiências, para que os educandos possam reinventar o mundo e eles mesmos, no contato diário com a diferença do outro, já que todo processo de formação é um processo de produção de subjetividades (Heckert, 2007). Portanto, seria no contato com o outro, na experiência da prática, que o estudante de Psicologia poderia lançar mão do dispositivo da escuta clínica, aprimorando sua competência de ouvir e, como diria Lima (2005), transitando entre o cuidar e o saber de si, para ajudar quem porta certo tipo de sofrimento.
Atividades de sala de aula, estritamente acadêmicas, não permitem ao estudante de Psicologia aprofundar a escuta. Esse aprofundamento está muito atrelado ao próprio cuidado e escuta de si mesmo, e o estudante só vem a se preocupar com isso, muitas vezes num processo psicoterapêutico individual, nos momentos de estágios de final de curso (Meira & Nunes, 2005), investindo muito tardiamente na ferramenta que vai lhe permitir ser mais eficaz na carreira. E é apenas no último ano que efetivamente os educandos têm experiências de formação estruturada, sendo este período um marco na vida universitária, pois ocorre nele a preparação para o ingresso no mundo profissional (Dourado, Quirino, Lima & Macêdo, 2016). Antes disso, no entanto, a supervalorização do conhecimento teórico em detrimento do conhecimento prático não tem permitido que as instituições de graduação em Psicologia garantam uma formação sólida e superem a dissociação entre teoria e prática (Cruz & Schultz, 2009).
Alguns autores problematizam a formação do psicólogo ao longo do curso de graduação, questionando a necessidade de novas formas de ensinar e aprender face às mudanças contemporâneas e lembram que a formação deve ser ampliada a partir de novos projetos pedagógicos. Contudo, as mudanças nos currículos têm sido lentas e superficiais e há pouca atenção dispensada aos estágios práticos, sem muita preocupação com a realidade concreta do mercado de trabalho. A literatura aponta, portanto, a necessidade de mais atividades práticas para que os estudantes estabeleçam diferentes formas de relacionamentos interpessoais com os colegas, outros profissionais, gestores e usuários (Ceceim & Bilibio, 2004; Abbad & Mourão, 2010; Mendes, Fonseca, Brasil & Dalbello-Araújo, 2012).
Ainda que, desde o ingresso na universidade, o estudante tenha representações do que seja um psicólogo e as vá incorporando à medida que o curso avança (Gondim, Luna, Souza, Sobral & Lima, 2010), as atividades práticas nos períodos de estágio vêm se tornando um importante eixo estruturante da identidade profissional, enquanto via de formação, ascensão e realização. Mas, se os estudantes não estiverem conscientes de seus modos de relações interpessoais com pacientes, equipes e supervisores, nem de como seus sentimentos podem interferir em suas habilidades profissionais, suas experiências de estágio podem comprometer sua saúde, ou mesmo impedir que ele compreenda a si e ao outro na relação com um paciente (Rudnick & Carlotto, 2007).
Necessário se faz, pois, que as Instituições de Ensino Superior (IES) de Psicologia empreendam esforços para oferecerem práticas nas quais os universitários possam ter a chance de ampliarem suas possibilidades de capacitação. Nesta perspectiva, Dourado, Quirino, Lima & Macêdo (2016), tendo em vista as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação em Psicologia (Resolução CNE/CES Nº 5, de 15 de março de 2011), perspectivaram uma prática clínica em Psicologia Organizacional e do Trabalho (POT), contextualizada para contribuir com a formação de psicólogos em Instituições de Ensino Superior (IES), e propuseram oficinas de desenvolvimento da escuta com grupos de graduandos de diversos períodos do curso. Partiram da ideia de que elas permitiriam aos estudantes a apropriação de suas singularidades e promoveriam novos modos de subjetivação (sentir, pensar e agir), tendo, por isso, um alcance terapêutico. Segundo os autores, os colaboradores de sua pesquisa reconheceram que escutar não é algo puramente de um, mas acontece na relação, no contato com o outro: é preciso se dizer e ser escutado para poder se escutar o que se diz. Reconheceram, também, na prática e na experimentação do escutar, a necessidade de desenvolver esta competência para seus futuros exercícios profissionais como psicólogos.
Os autores defenderam que seus resultados favoreceram o desenvolvimento de competências instituídas pelas DCN do Ministério da Educação (MEC), que propõem que o futuro psicólogo deve ser capaz de realizar orientação, aconselhamento psicológico e psicoterapia; e gerar conhecimentos a partir de sua prática profissional. Também referendaram que essas oficinas permitem atender ao perfil exigido para a profissão, perfil proposto por autores como Malvezzi, Souza & Zanelli, (2010).
A originalidade do estudo de Dourado, Quirino, Lima & Macêdo, dentre outros fatores, está no fato da pesquisa se inserir na interface entre a POT e a Psicologia Clínica, pois foi realizada com estudantes de todos os períodos, inclusive com estagiários de diferentes ênfases do curso, abordagens e áreas da Psicologia. Os resultados encontrados fazem pensar que oficinas de desenvolvimento da escuta - se inseridas no processo de formação de psicólogos, como prática clínica de POT em IES - podem permitir ao estudante em formação esse encontrar consigo mesmo e com o outro, apreendendo os sujeitos, pelos significados da experiência compartilhada em grupo, os elementos necessários para a transformação pessoal no sentido de maior efetividade para atuação futura no mercado profissional.
Segundo Braga, Daltro & Danon (2012), a escuta clínica é um instrumento essencial e indispensável ao fazer psicológico, que se constitui como seu principal dispositivo de cuidado e que diferencia seu trabalho em comparação com outros profissionais. Portanto, oficinas de desenvolvimento da escuta parecem constituir uma possibilidade de, como prática clínica em POT, alargar a capacitação dos estudantes, propiciando-lhes uma alternativa eficaz ao investimento na carreira e ao futuro ingresso no mercado de trabalho.
Diante do exposto, a intenção que permeou o presente estudo, realizado com estagiários que quando cursavam o oitavo período, prestes a adentrar o estágio obrigatório, participaram de oficinas de desenvolvimento da escuta, foi alimentada pelos seguintes questionamentos: quais os sentidos que as experiências de participação nessas oficinas estavam tendo para a prática do estágio desses estudantes? Quais mudanças em modos de subjetivação favoreceram inserção e manutenção no estágio? Quais competências foram despertadas e desenvolvidas nas oficinas e estavam sendo operacionalizadas no estágio? Como esses estagiários avaliariam a operacionalidade da oficina para ser ofertada ao estudante em formação antes de realizar o estágio?
Tendo em vista estes questionamentos, o objetivo geral do presente estudo foi compreender sentidos da experiência de participação em oficinas de desenvolvimento da escuta para a prática do estágio obrigatório entre estagiários de Psicologia. Traçaram-se como objetivos específicos: descrever como competências despertadas e desenvolvidas naquelas oficinas estariam sendo operacionalizadas no estágio; compreender como as mudanças em modos de subjetivação desses estudantes favoreceram a inserção e a manutenção no estágio; e avaliar, na perspectiva destes estagiários, a operacionalidade da oficina para ser ofertada ao estudante em formação.
Metodologia
O presente estudo se fundamentou na abordagem humanista-fenomenológica, para a qual a pesquisa qualitativa é mais adequada, tendo em vista que o conhecimento vai sendo construído de acordo com as realidades subjetivas que são próprias de sujeitos inseridos em determinados grupos sociais.
Assim, optou-se por investigar os sentidos e significados de experiências humanas para indivíduos que as vivenciaram e as compartilham num contexto de diálogo. Neste tipo de pesquisa, se inclui a subjetividade no próprio ato de investigar, tanto do pesquisador como do sujeito investigado, reconhecendo-se a alteridade. Escolheu-se, diante desta prerrogativa, o método da Hermenêutica Colaborativa, proposto por Macêdo (2015), que consiste numa inovação metodológica e, apesar de ter sido contextualizado inicialmente como uma possibilidade de ação humanista-fenomenológica em clínica do trabalho, vem se sedimentando como práxis de pesquisa interventiva.
Resultante de aproximações contemporâneas entre humanismo e fenomenologia, tão bem refletidas por Holanda (2014), a proposta se embasa nas perspectivas teóricas de Carl Rogers (mais especificamente em conceitos como consideração positiva incondicional e autenticidade - condições facilitadoras de um processo clínico); no humanismo crítico e pressupostos filosóficos de Maurice Merleau-Ponty (considerando as noções de intersubjetividade, mundo da vida e epocké incompleta); e nas preposições da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer (nas suas concepções de tradição, fusão de horizontes, conversação e jogo de perguntas e respostas).
A Hermenêutica Colaborativa, assim denominada por Macêdo (2015), foi construída para intervenções em grupo e consiste num processo conjunto de interpretação, pautado no confronto de tradições, que viabilizam um encontro intersubjetivo e a retomada da consciência histórica entre os envolvidos num diálogo. Neste sentido, o facilitador ou pesquisador - sem ser instigado a suspender totalmente os próprios a prioris de sua experiência, mas compartilhá-los naquilo que perceber como significativo para os colaboradores (o que se denomina de epokhē incompleta) - busca promover uma ação intersubjetiva criativa de produção de significados na qual os sujeitos, sendo afetados pelas suas tradições, engajam-se na conversa e, encarnados que estão no mundo, compartilham experiências pela intercorporeidade, produzindo novos sentidos.
Neste contexto dialógico, considera-se importante a confiança genuína entre os envolvidos - o que permite o respeito pelas descrições e histórias de cada um (consideração positiva incondicional), assim como promove um espaço para que as pessoas sejam mais autênticas ao compartilhar experiências e expressar opiniões. A confiança, estando presente e suportada no processo dialógico, favorece o eclodir de um fundamento de coesão, e o comprometimento comum emerge quando o diálogo caminha e se expande entre os sujeitos, que argumentam e contra argumentam, num jogo contínuo de perguntar e responder. Propõe a autora que "no jogo hermenêutico, a compreensão do outro passa, necessariamente, pela compreensão de si [...]. Trata-se de apreender o sentido considerando-se as tradições dos envolvidos e suas encarnações no mundo como constituintes e constituidoras dos sentidos que emergem" (Macêdo, 2015, p.210).
Nessa contextualização metodológica, os colaboradores da pesquisa foram 14 estagiários do 9° e 10º período do curso de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), em Petrolina/PE, que estavam realizando estágio há no mínimo dois meses, independentemente da ênfase e da área escolhida para estagiar e que participaram de oficinas de desenvolvimento da escuta nos anos de 2014 e 2015, quando estavam no 8º período.
O estudo foi realizado com recursos do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC CNPq/UNIVASF 2015-2016) e atendeu aos preceitos éticos de pesquisas com seres humanos, contidos na Resolução CNE/CNS 466/2012. A coletaapenas se iniciou após aprovação pelo Comitê de Ética e Deontologia em Pesquisa (CEDEP) da UNIVASF, registrada sob CAEE 44219715.1.0000.5196 e autorizada pelo parecer favorável Nº 1.068.786, de 18 de maio de 2015.
Os colaboradores foram convidados para o estudo em reuniões de estagiários do Centro de Estudos e Práticas em Psicologia (CEPPSI), serviço-escola da UNIVASF, em meados dos semestres 2015.2 e 2016.1, e apenas participaram da pesquisa após se disponibilizarem a colaborar de forma voluntária e terem assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A pesquisa foi conduzida em contexto de grupos de discussão, que são considerados por Laville e Dionne (1999) como um instrumento original em pesquisa qualitativa. Nesses grupos, o sujeito pode defender suas opiniões e contestar as dos outros, permitindo ao pesquisador aprofundar sua compreensão das respostas obtidas. Por isso foi promovida em grupos pequenos (dois com cinco e outro com quatro colaboradores), que se reuniram, cada um, uma única vez.
As entrevistas nos grupos de discussão, que foram conduzidas a partir de uma pergunta disparadora, levaram em torno de noventa minutos cada e foram gravadas em áudio digital. Esse tipo de entrevista é indicada quando o pesquisador quer explorar atitudes, opiniões e comportamentos, assim como observar processos de consenso e divergência (Turato, 2003).
A pergunta disparadora, proposta por Amatuzzi (1993), é uma interrogação que coloca o sujeito em contato com suas experiências e permite que ele as descreva de modo que o pesquisador alcance o sentido delas. Tendo a função de abrir o diálogo, essa pergunta permite um desencadear da narrativa da experiência, narrativa que tende a ser detalhada com enfoque em acontecimentos e ações (Jovchelovitch & Bauer, 2001). No entanto, o pesquisador deve ficar atento ao fenômeno que emerge e inserir outras perguntas ao longo do diálogo, abrindo espaço para atender aos objetivos da pesquisa.
Neste estudo, a pergunta disparadora proferida foi: "Como você descreveria a sua experiência em ter participado de oficinas de desenvolvimento da escuta para a sua atuação prática como estagiário em Psicologia?". Com a pergunta proferida, a ideia era que o pesquisador acessasse o vivido e favorecesse possibilidades de, efetivamente, os sujeitos narrarem e compartilharem, num contexto de diálogo, suas experiências.
Para fins de compreensão dos registros das entrevistas nos grupos de discussão, a equipe de pesquisa (formada pelos bolsistas de iniciação científica e a orientadora) esteve atenta aos passos de análise fenomenológica definidos por autores como Giorgi (1985), Forghieri (1993) e Macêdo (2000, 2006); ou sugeridos por Amatuzzi (2009) e Macêdo (2015). No entanto, respeitando que uma pesquisa fenomenológica se faz ao caminhar, conduziu o processo de análise conforme descrito abaixo, a fim de partir do contato com as gravações até a descrição final dos elementos significativos e dos sentidos em comum da experiência investigada. Os passos percorridos foram:
a) Os conteúdos gravados nos grupos de discussão foram posteriormente transcritos na íntegra pelos bolsistas. No entanto, cada membro da equipe de pesquisa escutava a gravação de cada grupo e lia a transcrição quantas vezes fossem necessárias para descrever os elementos significativos da experiência do diálogo compartilhado entre pesquisadores e colaboradores. Cada componente da equipe de pesquisa, usando a ferramenta "inserir comentários" do editor de texto Word for Windows, escrevia sobre os significados que tinham percebido na transcrição.
b) Em um segundo momento, os membros da equipe de pesquisa se reuniam, liam quantas vezes fossem necessárias a conversa registrada e os comentários feitos por cada um, negociando divergências para se chegar a um consenso de como registrariam os elementos significativos da experiência. Esta negociação muitas vezes levou vários encontros da equipe de pesquisa e culminou em uma análise coletiva preliminar sobre o que se percebia do que estava sendo compartilhado pelos colaboradores de determinado grupo de discussão, ao que se chamou de presentificação dos sentidos das experiências compartilhadas. Este processo foi feito separadamente para cada um dos grupos investigados.
c) Cada análise preliminar resultou em um texto para a entrevista devolutiva de cada grupo. Esse conteúdo era encaminhado por e-mail a cada colaborador integrante de um referido grupo, a fim de que ele revisasse o texto, desse sugestões, acrescentasse novos elementos e/ou realizasse mudança(s) na análise do grupo que participou. Era dado um prazo de retorno de dez dias para as devolutivas, considerando o tempo definido para conclusão da pesquisa. Poucos colaboradores responderam aos e-mails enviados, no entanto, esses não propuseram nenhuma mudança ao que tinha sido percebido pela equipe de pesquisa.
d) Após as devolutivas, a equipe de pesquisa, novamente reunida, procedeu à descrição final das Unidades de Sentido da experiência investigada, considerando o que de comum foi descrito em todos os grupos de discussão, passando essas unidades destacadas em negrito no próximo tópico - a serem a base para a discussão dos resultados desse estudo.
Resultados e Discussão
Para se manter o sigilo quanto às falas de cada colaborador, usar-se-á as siglas de C1 a C14 como forma de nomeá-los e preservar suas identidades, assim como utilizar-se-á as siglas P1 e P2 para os auxiliares de pesquisa envolvidos com a coleta: pessoas que, necessário ressaltar, eram estudantes do mesmo curso que conduziram algumas das oficinas como trainees quando os estagiários colaboradores desta pesquisa cursavam o oitavo período.
Vale aqui destacar como a metodologia da pesquisa esteve ancorada num resgate de tradição. Na Hermenêutica Colaborativa, o papel do pesquisador é, através da conversação, contestar tradições para que os envolvidos, ao contra argumentarem, cheguem a um novo olhar sobre seu caminhar (Macêdo 2015). O fato dos bolsistas de PIBIC terem sido os próprios trainees em oficinas ajudou em dois aspectos: eles compartilharam com os sujeitos a experiência relatada e puderam alcançar com mais clareza os sentidos da experiência investigada, o que foi comprovado em algumas entrevistas devolutivas possíveis. Além disso, os bolsistas desenvolveram a própria escuta, pois tanto nas oficinas quanto na coleta de dados da pesquisa foi promovido um contexto de diálogo grupal, focado no compartilhamento de experiências. Em adição, estarem compartilhando ansiedades e conhecimentos sobre o processo de tornar-se psicólogo na mesma instituição exigiu dos bolsistas uma tomada de consciência de diferenciar os processos dos outros dos deles e não deixarem que suas percepções interferissem a ponto de macularem o que ouviam, sendo isso algo perspectivado pelo método utilizado.
Tendo isso posto, partindo do conteúdo analisado nos grupos de discussão, tentaram-se compreender as Unidades de Sentido das experiências dos colaboradores conforme foram aparecendo com recorrência, levando em consideração também os elementos em comum, isto é, os significados que eram compartilhados pelos participantes de um grupo também estavam presentes nos relatos dos demais colaboradores de todos os grupos da pesquisa. Vale destacar que os recortes de relatos e de diálogos estabelecidos entre auxiliares de pesquisa e colaboradores foram extraídos tendo em vista a proposta metodológica de um processo conjunto de interpretação da experiência compartilhada em grupo.
Uma primeira Unidade de Sentido a se destacar foi o alcance terapêutico que as oficinas proporcionaram aos colaboradores, na época em que eles participaram delas quando eram estudantes do oitavo período. Elas foram consideradas por eles espaços onde podiam falar de si, porém diferiram, na perspectiva deles, de uma psicoterapia individual, já que as atividades mantinham o objetivo de focar no processo intersubjetivo de produção de sentido sobre ser estudante prestes a adentrar o estágio. Mesmo assim, parece ter havido processos terapêuticos, pois eles puderam falar de suas questões e refletir sobre estas em um ambiente de compartilhamento de experiências que promoveu mudanças em seus modos de sentir, pensar e agir. O trecho abaixo exemplifica essa possibilidade:
Você não está falando de teoria, você não está falando de fulano, não está falando de sicrano, você está falando de você. (...) Eu acho assim, que lá a gente estava como estudante de psicologia do oitavo período que ia adentrar o estágio, apesar de ter coisa da gente que isso ai a gente não pode separar, mas a gente buscou trabalhar, o enfoque era o estudante que estava adentrando no estágio, (...) eu acho que isso quebra muito a possibilidade de você falar mais de si (C1).
Ainda neste sentido, faz-se mister destacar uma observação por parte dos colaboradores quando apontaram que a formação, embora ofereça suporte no sentido técnico, não atenta às questões ligadas à subjetividade deles, especificamente em suas necessidades de cuidado, como se pode compreender no trecho do relato de C2:
Eu acho muito importante a oficina nesse sentido, de se criar um momento da gente se cuidar, de ver suas questões, por mínimo que seja, porque são poucos encontros, mas, de se cuidar antes de cuidar do outro. (...) A gente tem muita técnica, é muito bom o curso, a gente se sente muito preparado para fazer um mestrado, uma especialização, mas não é um curso que se preocupa em cuidar da subjetividade dos estudantes que estão fazendo.
Este recorte de relato aponta para a possibilidade da oficina atender ao preposto de autores como Heckert (2007), Heckert & Neves (2010), Rudnicki & Carloto (2007) e Mendes, Fonseca, Brasil & Dalbello-Araújo (2012), que, ao discutirem a formação do psicólogo, atentam para a limitação do ensino que visa apenas o rigor teórico. Para os autores, é necessário que o estudante de Psicologia vivencie o processo de escuta e cuidado para, então, trabalhar como profissional que se debruça sobre tais dimensões da vida humana.
Vale, aqui, lembrar Amatuzzi (1990), que já ressaltava a importância de se ouvir e se deixar afetar num processo de escutar. Para o autor, o primeiro conhecimento que se tem acerca do humano é o conhecimento íntimo, aquele produzido pelo contato direto com o centro da pessoa, que presume uma abertura inicial para se despir de qualquer outro conhecimento a fim de se ouvir e acolher a experiência, que, no caso do presente estudo, é a própria experiência de escutar.
Também lembra-se Gadamer (2003), um dos filósofos em cujas bases o método deste estudo se apoia, quando discorreu a respeito do resgate da tradição, ou resgate da consciência histórica, como um movimento do sujeito de se conhecer a partir da imersão em suas raízes e experiências passadas. Segundo ele, esse percurso tem como resultado um novo saber sobre si. No caso dos estagiários colaboradores desse estudo, a oficina, antes do período de estágio, parece ter propiciado uma apropriação do autoconhecimento em prol de se encontrar novos modos de ser para estar diante do outro.
O autoconhecimento, enquanto Unidade de Sentido, é compreendida como processo de fundamental importância para a entrada no estágio, como mostra o diálogo a seguir:
C4: Eu me senti assim (risos), um freio de mão: Para! Porque não é só de literatura que se vive sua profissão, mas também do autoconhecimento, das entrelinhas que têm que ser tecidas e observadas. Então, foi um freio de mão para mim, que normalmente verbalizo muito, no oral e no papel. Foi um exercício para mim.
P 2: Então você traz um dos pontos do tripé da clínica, que é o trabalho pessoal, a necessidade de cuidar de si e tal.
C4: Sim!
P2: Você sente isso no estágio hoje?
C4: Difícil pensar como eu estaria no estágio hoje se não tivesse feito isso, porque não tem outra forma, já foi.
Outra Unidade de Sentido a ser destacada diz respeito à melhoria nas relações interpessoais que os estagiários perceberam ao adentrarem na prática e que atribuem à oficina, como mostra o trecho:
Ouvir um pouquinho sobre as batalhas que cada um enfrenta, foi interessante para não perpetuar essa falta de escuta. Parte da gente também o compromisso de escutar um pouquinho. Já que não tem essa escuta para conosco algumas vezes, que tenha esse momento com o outro, e isso no estágio é fundamental (C5).
Como já nos diziam Lima (2005) e Coelho & Figueiredo (2004), o ofício do psicólogo consiste em se deparar no encontro dos sentidos, de modo que o compartilhar das experiências e o reconhecimento da alteridade se tornem imprescindíveis para a atuação desse profissional. A oficina, assim, favoreceu aos colaboradores identificarem o seu lugar diante do outro e, portanto, atentarem para suas questões pessoais.
Foi compreendida, também, pelas discussões suscitadas nos grupos, que a oficina teve o sentido de ressignificação da angústia em relação à futura prática do estágio, propiciada pelo compartilhamento de experiências dessa angústia entre colegas de um mesmo período e/ou do curso. Para além disto, os estagiários revelaram uma diminuição da ansiedade em relação às limitações pessoais que reconheciam possuir à época das oficinas, ao poder, naqueles momentos, perceber que os colegas também tinham tais limitações. Vê-se isso no recorte de diálogo abaixo:
P1: Então há como se fosse uma ressignificação daquilo ali não é? [angústia e ansiedade anteriormente descritas] Por ser compartilhado já muda, é isso?
C1: Saber que aquilo não era uma coisa isolada, era uma coisa do contexto, que todos de certo modo estavam vivenciando aquilo (...) compartilhar as experiências, aquele momento foi bastante importante.
C6: Mas ai no momento da oficina você vê que é um sentimento compartilhado, que todos os seus colegas que estão ali com você durante esses primeiros quatro anos do curso, e não é só você que está sem saber o que fazer.
Estes dados indicam ser confirmativos da proposta de Roriz (2010), que aponta para a necessidade de se ofertar práticas clínicas que permitam ao sujeito se apropriar da sua angústia - que, por sua vez, é constitutiva da existência humana -, fazendo assim com que ele invista em encontrar modos de ser mais autênticos, orientados pelo objetivo do cuidado. A oficina, ao se propor ser prática clínica em instituição, parece alcançar tal êxito a partir do que foi compreendido dos sentidos produzidos nos grupos.
Competências desenvolvidas nas oficinas que estariam sendo operacionalizadas no estágio foram outra Unidade de Sentido identificada. Foi possível perceber, pelas discussões dos grupos, que tais competências parecem atender em significativa medida, mesmo que indiretamente, às DCN (CNE, 2011), as quais defendem, na formação do psicólogo, o desenvolvimento de competências como coordenar e manejar processos grupais e relacionar-se com o outro de modo a proporcionar o desenvolvimento de vínculos interpessoais produtivos com sua classe profissional. Também destacam habilidades a serem adquiridas num curso de Psicologia, como, por exemplo, descrever, analisar e interpretar manifestações verbais e não verbais como fontes primárias de acesso a estados subjetivos. De acordo com os colaboradores, compreende-se que eles puderam, nas oficinas: a) escutar ou silenciar de si, para escutar o outro; b) aprimorar a escuta e a sensibilidade para escutar o outro; c) interpretar diferentes formas de linguagem dos clientes; d) organizar, sistematizar e focar no ato da escuta; e) aprender como lidar com o silêncio de um cliente; e f) trabalhar com grupos.
Na perspectiva dos colaboradores, foi uma característica da oficina ser um espaço no qual puderam refletir sobre a competência de lidar com o silêncio no processo terapêutico, assim como, sobre as competências que ainda não foram desenvolvidas e que são importantes para a prática:
C1: Eu acho que a oficina acaba funcionando como um espaço de percepção. A gente fala quatro anos sobre o silêncio, sobre o olhar, mas acho que são poucos os espaços que a gente acaba tendo no curso para vivenciar o silêncio, e ai quando a gente tem oportunidade de encarar isso, as pessoas ficam sempre desconsertadas, sem saber como agir.
C7: Escutar o silêncio para mim hoje é muito mais tranquilo, aceitável, fácil, do que foi naquele dia que foi nosso primeiro contato direto com isso naquela oficina (...) Foi possível desenvolver a partir da oficina. Aprimorando com as nossas práticas obviamente.
C14: Para mim foi maravilhoso, a dinâmica do olhar, o silêncio é muito importante. Eu acho que é uma das coisas que eu estou levando hoje para a clínica.
Para além das competências listadas acima, as falas abaixo apontam para ganhos de aprendizagem relacionados a técnicas de dinâmica de grupo. Os colaboradores parecem ter chegado a um nível de experiência compartilhada que contribuiu para suas vivências atuais nas atividades de estágio, sobretudo aquelas que envolvem processos grupais. Ainda é possível compreender que foi desenvolvida mais paciência para esperar o tempo inerente a processos como esses - o que se pode considerar como mais uma competência adquirida:
C3: Foi muita expectativa por ser em grupo e hoje no estágio, por eu estar trabalhando com grupos, eu achei interessante o fato de em um grupo você compartilhar coisas em comum (...) Hoje, no estágio, eu percebo que no grupo as pessoas fazem isso também, como se fosse uma repetição do que aconteceu na oficina. Foi interessante.
P1: Você se sente, de certa forma, mais confortável hoje no estágio?
C3: Sim, por ter percebido um movimento durante a oficina de como é no grupo, e hoje, interessante perceber também esse movimento. (...) da mesma coisa, foi interessante perceber. Ter um pouquinho mais de paciência, eu acho, para lidar com os grupos hoje.
É possível compreender, portanto, que a oficina parece ter permitido a capacitação do estudante, ao colaborar com o desenvolvimento de competências básicas propostas pelas DCN para um psicólogo ingressar no mercado de trabalho da profissão (CNE, 2011), assim como com a futura carreira do estagiário de Psicologia, como descrita por Malvezzi, Souza & Zanelli (2010).
A partir da identificação dessas competências, defende-se que a oficina de escuta parece funcionar como um chamamento ao estudante de Psicologia para a responsabilidade de desenvolver uma escuta qualificada. Os colaboradores perceberam que a preparação para escutar o outro está relacionada à necessidade de escutar a si mesmo, sabendo identificar questões pessoais que não interfiram na sua atuação prática no estágio. Isso constituiu a Unidade de Sentido cuidar de si para cuidar do outro -unidade atrelada a outra - pois eles reconheceram o processo vivido como um ganho de aprendizagem, percebendo a oficina como o primeiro momento de contato com a escuta clínica na prática, entendida, aqui, como mais uma Unidade de Sentido da experiência investigada. Veja-se o trecho do diálogo abaixo:
C11: Como é que eu vou parar para escutar, como é que eu vou parar para ouvir o que aquelas pessoas vão levar para o serviço-escola se eu não estou conseguindo parar para mim, sabe?
C10: Talvez seja a primeira experiência com esse dosar do que é seu e do que é do outro, porque naquele momento você está num turbilhão (...) E, ai, talvez tenha sido uma primeira experiência para você saber dosar, porque a vida continua com seus turbilhões.
P2: Então, vocês viram a oficina como um ganho de aprendizagem em relação a esse dosar do que é meu e do que é do outro, do que é que precisa ser escutado em mim, o que é que precisa ser escutado no outro?
C10: Acho que sim, acho que isso a gente não aprende em livros.
Os colaboradores também referendaram que, através da oficina, houve um aprimoramento da escuta clínica, devido à atividade permitir uma discussão acerca das experiências vivenciadas, assim como uma maior sensibilidade ao sentido e à ressignificação do que está sendo dito pelos clientes que são atendidos pelos estagiários. Veja-se abaixo um trecho de diálogo, constitutivo dessa Unidade de Sentido:
P2: Qual sentido da sua participação?
C1: Bom, eu acho que o que ficou mais para mim foi o momento inicial, da gente poder meio que debater as versões de sentido, eu acho que isso é o que de fato treina, vamos dizer assim, nossa escuta (...) Eu lembro um pouco da gente no plantão psicológico, que quando, na supervisão, vem um caso todo mundo participa e acaba que isso ajuda um pouco.
P1: E o que você acha que você tira hoje, no estágio, de proveito dessa característica [da oficina ser um ambiente de compartilhamento das experiências]?
C1: Acho que você fica mais atento para alguns sentidos de algumas coisas que não estão evidenciadas logo assim na fala. E tem uma sensibilidade maior de buscar um pouquinho mais, e isso é totalmente importante na clínica.
Compreende-se, também, que a metodologia e operacionalidade da oficina foi reconhecida pelos colaboradores como tendo o sentido de uma inicialização prática para o estágio, principalmente no que diz respeito a uma capacitação para a compreensão da linguagem, favorecendo o despertar de uma atenção para as diversas formas de linguagem comunicadas pelos clientes durante os atendimentos que eles realizavam:
C5: Eu percebi muito durante os encontros das oficinas e eu vim perceber um retorno disso agora já no estágio, é que a gente aprende que a escuta não é só o ouvir literalmente, é você escutar o gesto, é você escutar o silencio.
C7: Me trazia muito a experiência das oficinas, quando eu fui atender o primeiro paciente que teve o silêncio. E você vai escutar o silêncio, que você não pode se desesperar, você não pode sair dali.
C13: Na prática, os atendimentos que eu realizei com certeza aparece, a gente ficar atento, conectando ali ao discurso das pessoas, não só a fala, mas o corpo, como ela se apresenta.
Uma outra Unidade de Sentido diz de organização e foco da escuta que a oficina propiciou. Segundo os colaboradores, nas oficinas eles puderam se organizar e se disciplinar mais no ato de ouvir o outro:
C5: A gente quando chega na oficina, já sabe a importância da escuta, mas eu acho que a forma como as oficinas foram organizadas fazem a gente vivenciar a escuta.
C7: Será que eu estou pronto para a escuta clínica? (...) Às vezes, escutar traz uma coisa que é sua mas que não cabe naquele processo, e você tem que se distanciar disso. Eu acho que foram encontros que possibilitaram esse tipo de reflexão para a gente.
As falas acima são bem representativas daquilo que no método da pesquisa é considerado como epokhē incompleta. Numa perspectiva merleau-pontyana, poderia-se dizer que os colaboradores se esforçaram para suspender o que impediria o encontro intersubjetivo e que a oficina parece ter permitido o amadurecimento daquilo que Merleau-Ponty (2006) lembra: o maior ensinamento da redução fenomenológica é a impossibilidade de uma redução completa.
Ademais, os colaboradores reconheceram que a fase que antecedeu o estágio foi um momento significativo na sua trajetória acadêmica, por isso consideraram positiva a oferta da oficina nesse período específico:
Eu acho que influencia indiretamente, se mistura com muitas outras experiências da mesma fase, mas, eu acho que influencia positivamente, uma vez que você consegue pensar sobre isso, acho que por mais que você não consiga calcular os ganhos disso, eu acredito que tenha uma influência positiva nesse período, nesse início de estágio. Talvez um aspecto do que estão inerentes a isso (C10).
Foi possível compreender, também, que para os colaboradores, a oficina permitiu a compreensão de que escutar independe de abordagem e área de aplicação da Psicologia. Os relatos abaixo, além de tornarem possível essa ideia, abrem à possibilidade de compreender que a forma como a oficina foi conduzida não enviesou os estudantes para uma escuta pautada no método de trabalho utilizado:
P2: Vocês acham que esteve presente na oficina em algum momento a abordagem de quem estava mediando?
C10: Eu não acho que isso foi negativo, mas acho que sim. Isso tanto não inviabiliza que a gente hoje está aqui em abordagens diferentes, mas não deixamos de pontuar os ganhos da oficina.
C8: O que é que une a psicologia? É escutar, porque independente da abordagem que você for levar, de como você vai talvez interpretar o que o cliente diga, você tem que escutar o que ele vai lhe trazer, até mesmo o silêncio.
C7: A forma como as oficinas foram acontecendo, de forma muito metódica e explicativa, todas as atividades foram exaustivamente explicadas e ao final de cada encontro a gente poderia fazer uma versão de sentido e concretizar na escrita aquela vivência e no próximo encontro ler aquilo e rememorar e no próximo encontro conseguir fazer uma ligação. Eu acho que foram alguns dos pontos que facilitaram vivenciar a oficina.
Diante desses recortes de diálogo, parece que, mesmo que não tenha sido colocada em cheque a abordagem teórico-metodológica que estava subjacente à condução da oficina, os colaboradores conseguiram perceber e reconhecer a importância de uma sistematização metodológica que ajudou na condução do processo. Sinalizaram, também, que os ganhos de aprendizagem promovidos pela oficina independiam, inclusive, da abordagem que o próprio estagiário viria a eleger para a prática de estágio.
Por fim, os colaboradores sinalizaram a relevância de se ofertar as oficinas como atividade de formação em Psicologia como uma prática não obrigatória. Segundo eles, seria de suma importância que os participantes tenham disponibilidade e desejo pela vivência, sobretudo pelo efeito terapêutico que a oficina promoveu, embora não tenha se configurado como um grupo terapêutico:
C14: Eu acho que o contato um pouco, desde mais cedo dessas dinâmicas, dessas ferramentas, acho que colaborariam muito para uma imersão nessas formas de entrar em contato com o outro, com o cuidado.
C1: Como algo disponível, vamos dizer, uma disciplina optativa, algo disponível ao longo do curso, poderia ser algo que seria muito válido.
C3: Talvez se a gente fosse obrigada a passar por isso para poder entrar no estágio, a gente não estaria falando aqui de forma tão positiva e nem tão aberta, porque a gente se dispôs. A gente não foi obrigado.
No contexto da oficina, a permissividade do ambiente - denotada na credibilidade e confiança enquanto funções facilitadoras -, foi essencial para a abertura à experiência, num dizer de Rogers (1997), e se revelou na fala dos estagiários ao trazerem aspectos que fazem desta atividade um momento privilegiado de fala e escuta, como o partilhar do mesmo tema em questão, o comprometimento dos sujeitos envolvidos e o acolhimento da alteridade que acompanha o processo. Portanto, como uma prática clínica, a oficina parece ter proporcionado um espaço de confiança entre os membros do grupo para compartilharem suas particularidades. Ao mesmo tempo, indica ter promovido um sentimento de autoconfiança para a entrada na prática do estágio, pelo reconhecimento da trajetória vivenciada nos quatro anos de curso. Veja-se:
C3: E a oficina vem para dar um certo estalo de: olha a gente está aqui, está passando pela mesma situação, mas vocês estão preparados, vocês passaram quatro anos aqui e não foi à toa, e aí eu acho que a oficina pelo menos para mim pôde promover isso.
C8: Eu acho que outra coisa importante também que teve foi a questão do cuidado com o estagiário. (...) Porque na supervisão o que você sabe do paciente vem do estagiário, e como você está? E a oficina vem muito para isso, como você está ai para esse novo contexto?
C9: Eu acho que a oficina se propõe a ser o cuidado ao ouvidor, eu acho que esse diferencial ai vem no momento certo.
C5: E eu achei que foi extremamente importante, um momento de cuidado, um momento que você também pode ser ouvido. Eu também posso ter problemas, eu também posso me expressar, eu também posso, de alguma forma, ser ouvida.
Diante disto, respondendo ao último objetivo da presente pesquisa, parece ter sido possível aos colaboradores conceber a oficina de desenvolvimento da escuta como um espaço não apenas de capacitação para a prática do estágio, mas de humanização e cuidado para com a pessoa do estagiário, o que possibilita pensar nesta como uma prática clínica em instituição de formação de psicólogo, como já propuseram Dourado, Quirino, Lima e Macêdo (2016).
Conclusão
Enfocando aspectos subjetivos envolvidos na formação graduada, esta pesquisa alcançou seus objetivos e permitiu uma expansão das leituras acerca do processo de tornar-se psicólogo, assim como dos temas escuta e cuidado. Como conceitos importantes da ciência psicológica, a escuta e o cuidado foram ressignificados pelos pesquisadores envolvidos, e o olhar sobre eles se enriqueceu com a produção do saber/fazer propiciado pelo estudo.
Acredita-se que os resultados apresentados trouxeram contribuições importantes para produções científicas sobre o tema referido, ratificando a possibilidade de se pensar oficinas de desenvolvimento da escuta como componente de projeto pedagógico de curso de Psicologia, tendo em vista seus alcances positivos com atenção ao desenvolvimento de competências dos colaboradores envolvidos. Além disso, reconhece-se que atividades acadêmicas como essas podem constituir espaços para a troca de experiências de estudantes, a fim de que estes, no ato de serem cuidados num processo de facilitação de grupo, possam também se apropriar de modos de sentir, pensar e agir que favoreçam o cuidado de outrem, no mundo contemporâneo no qual predomina o individualismo em detrimento da solidariedade.
Reconhece-se que houve limitações na pesquisa relacionadas à disponibilidade que os colaboradores tiveram para a devolutiva da análise preliminar, o que reduziu o número de sujeitos que colaborassem efetivamente com a análise dos dados e gerou contratempos para o passo final da análise. Mas isso não prejudicou o estudo de maneira significativa.
Espera-se, portanto, que esta investigação tenha: colaborado para a formação profissional do estudante de Psicologia da UNIVASF; servido como fonte de indicadores para se ofertar essas oficinas como uma capacitação a mais para subsidiar a entrada dos estudantes nos estágios em Psicologia no serviço escola da instituição, mesmo em caráter não obrigatório; e ampliado conhecimentos de como conduzir uma prática clínica em Psicologia Organizacional e do Trabalho no contexto da formação universitária. Neste sentido, sugerem-se estudos que descrevam a condução continuada dessas oficinas e/ou enfoquem o desenvolvimento de competências possibilitados por elas em grupos de estudantes de outros períodos específicos do curso.
Por fim, espera-se que o presente estudo possa ampliar discussões e pesquisas sobre como a formação acadêmica nos cursos de graduação em Psicologia no Brasil tem atendido às DCN instituídas pelo MEC no que concerne ao desenvolvimento de competências e promover reflexões no contexto acadêmico sobre a importância de atividades focadas nas referidas competências para uma atuação prática de futuros psicólogos mais efetiva, em especial no que se refere ao dispositivo da escuta clínica.
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Recebido em 26.05.2017
Primeira Decisão Editorial em 05.09.2017
Aceito em 02.10.2017