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Revista da Abordagem Gestáltica
Print version ISSN 1809-6867
Rev. abordagem gestalt. vol.28 no.1 Goiânia Jan./Apr. 2022
https://doi.org/10.18065/2022v28n1.2
RELATOS DE PESQUISA
Os sentidos da justiça: aspectos existenciais constitutivos de uma magistratura dissidente1
The meanings of justice: existential aspects constituting a dissident bench
Los significados de la justicia: aspectos existenciales que constituyen una magistratura dissidente
André GuerraI; Pedrinho Arcides GuareschiII
IPsicólogo, mestre e doutor em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Email: guerra.andreguerra@gmail.com
IIPós-doutor em Ciências Sociais na Universidade de Cambridge (2002), Pós-doutor em Ciências Sociais na Universidade de Wisconsin (1991). Coordenador do Grupo de Pesquisa Ideologia, Comunicação e Representações Sociais. Email: pgguareschi@gmail.com
RESUMO
O artigo problematiza o fenômeno jurídico a partir da interface das contribuições advindas da psicologia social e da psicologia fenomenológico-existencial, apresentando parte dos resultados de uma pesquisa realizada junto a quinze magistrados/as (juízes/as e desembargadores/as) "dissidentes", em que se buscou compreender as condições existenciais e psicossociais que, por um lado, possibilitam a presença de tais agentes minoritários na magistratura e, por outro lado, ajudam a compreender por que tais posições permanecem sendo minoritárias. Através da análise argumentativa e do referencial da hermenêutica de profundidade foram encontrados vários eixos de sentidos, dentre os quais aqui são expostos os achados referentes ao papel que a própria dimensão do sentido, bem como a vivência de trajetórias de vida adversas desempenham na materialização e configuração das práticas jurídicas - uma prática essencialmente hermenêutica. Compreender as condições de possibilidade existenciais da hermenêutica jurídica contemporânea torna-se um tema fundamental, especialmente para a sociedade brasileira, já que suas especificidades sociohistóricas demarcam a coexistência de ontologias, epistemologias e cosmovisões radicalmente distintas que participam de conflitos ético-políticos em torno dos sentidos da justiça no interior do Poder Judiciário e da magistratura.
Palavras-chave: Magistratura; Poder Judiciário; Sentidos de Justiça; Afeto; Ética; Dissidência.
ABSTRACT
The article discusses the contributions of the socio-psychological and the phenomenological-existencial approaches to the legal phenomenon, presenting part of the results of a survey carried out with fifteen "dissident" Judges, in which it is sought understand the existential and psychosocial conditions that, on the one hand, enable the presence of such minority agents in the Judiciary and, on the other hand, help understanding why such positions remain minority. Through argumentative analysis and depth hermeneutics framework several axes of meanng were found, among which are exposed here the findings regarding the role that the dimension of meaning itself, as well as the experience of adverse life trajectories play in the materialization and configuration of legal practices - an essentially hermeneutic practice. Understanding the conditions of existential possibility of contemporary legal hermeneutics becomes a fundamental theme, especially for Brazilian society, since its socio-historical specificities demarcate the coexistence of radically distinct ontologies, epistemologies and worldviews that participate in ethical-political conflicts related to the meanings of justice within the Judiciary and the Bench.
Keywords: Magistrature; Judiciary; Meanings of Justice; Affection; Ethics; Dissent.
RESUMEN
Lo artículo analiza el fenómeno legal desde la interfaz de las contribuciones de la psicología social y la psicología fenomenológica-existencial, presentando parte de los resultados de una encuesta realizada con quince jueces "disidentes" (jueces y jueces de apelación), en el que buscamos comprender las condiciones existenciales y psicosociales que, por un lado, permiten la presencia de tales agentes minoritarios en el Poder Judicial y, por otro lado, entender por qué tales posiciones siguen siendo minoritarias. A través del análisis argumentativo y la hermenéutica profunda se encontraron varios ejes de discusión, entre los cuales se exponen aquí los hallazgos sobre el papel que desempeña la dimensión del significado, así como la experiencia de trayectorias de vida adversas en la materialización y configuración de prácticas legales, una práctica esencialmente hermenéutica. Comprender las condiciones de posibilidad existencial de la hermenéutica legal contemporánea se convierte en un tema fundamental, especialmente para la sociedad brasileña, ya que sus especificidades sociohistóricas marcan la coexistencia de ontologías, epistemologías y cosmovisiones radicalmente distintas que participan en conflictos ético-políticos en torno de los sentidos de la justicia dentro del Poder Judicial y la magistratura.
Palabras clave: Magistratura; Poder Judicial; Sentidos de la Justicia; Afecto; Disidencia.
Introdução
Dentre as inúmeras maneiras de se abordar o fenômeno jurídico, aquela mais imediata é a que o toma como um fenômeno estritamente técnico, produzido e praticado por agentes dotados de competências igualmente técnicas conferidas por uma racionalidade jurídica autônoma em relação a outras racionalidades como a econômica ou a política. Essas condições supostamente garantiriam a efetivação do Rule of Law (Estado de Direito ou o império das leis). Tal pretensão não é completamente inviável, tanto que pode ser demonstrada sua efetividade em inúmeras situações corriqueiras do cotidiano jurisdicional; no entanto, ao menos em algumas delas - naqueles hard cases (casos difíceis) -, um aspecto eventualmente negligenciado pela ciência jurídica termina se desvelando: o fato de as práticas jurídicas não poderem ser dissociadas dos atravessamentos existenciais que as constituem. Ao abordarmos esses atravessamentos - que também poderíamos denominar, com muitas aspas, de "subjetivos" -, somos capazes de perspectivar o fenômeno jurídico com a devida complexidade que ele requer, colocando perguntas para o Poder Judiciário e para o próprio Direito capazes de exigirem respostas renovadas por parte da ciência jurídica e da política jurisdicional.
Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa realizada entre os anos de 2016 e 2020 que contou com quinze entrevistas de magistrados/as (juízes/as e desembargadores/as) dissidentes. A pesquisa almejou compreender, a partir do viés desses participantes, as condições existenciais e psicossociais que, por um lado, possibilitam a presença de tais agentes minoritários na magistratura e, por outro lado, compreender por que tais posições permanecem sendo minoritárias. Utilizamos o termo "dissidente" para designar pessoas que, ao longo de suas carreiras, vivenciaram direta ou indiretamente episódios em que sua atuação profissional se desviou dos consensos em torno dos quais a magistratura tende, majoritariamente, a se conduzir, resultando desses "desvios" perseguições ou hostilizações perpetradas desde dentro ou de fora da magistratura e do Poder Judiciário. A partir da realização das entrevistas e da análise argumentativa identificamos cinco temas fundamentais para a compreensão das práticas jurídicas: experiências pessoais; fatores organizacionais da produção jurisdicional; estruturação psicossocial hegemônica do Judiciário; visibilidade midiática do Judiciário; e (im)possibilidades de um outro Judiciário. Neste artigo, apresentaremos os resultados em torno do primeiro tema, em que apontamos para o fato de que uma adequada compreensão das práticas jurídicas requer a consideração de seus atravessamentos existenciais. Verificou-se que os/as magistrados/as entrevistados buscam na dimensão do sentido e em suas trajetórias existenciais o fundamento a partir do qual a racionalidade jurídica é operacionalizada. A partir dos argumentos utilizados, explicitou-se que as práticas jurídicas, especialmente da magistratura dissidente, não podem ser compreendidas a partir da dimensão estritamente técnica, racional e objetivista, tal como se dá a entender a partir de discursos formais em torno do funcionamento do Poder Judiciário. Os aspectos existenciais - como o sentido e as respectivas trajetórias pessoais - desempenham um papel cuja relevância muitas vezes pode ser decisiva. Entretanto, a centralidade desses aspectos tendem a ser ignorados pela ciência jurídica, o que demonstra a relevância das contribuições fenomenológico-existenciais para esse campo de estudo.
Método
Para a realização desta pesquisa foram efetuadas quinze entrevistas, sendo dez com juízes/as e cinco com desembargadores/as, representando cinco instituições do Poder Judiciário brasileiro em que se almejou compreender por que, ao invés do conformismo, tais magistrados/as se colocavam criticamente diante do Judiciário e da própria magistratura. Inicialmente obtivemos a aceitação em participar da pesquisa de três magistrados, cuja seleção se deu em virtude de terem vivenciado direta ou indiretamente episódios jurídico-políticos que geraram grandes repercussões midiáticas. A partir desses primeiros participantes, através da técnica "bola de neve" (Biernacki & Waldorf, 1981), fomos remetidos a outros potenciais participantes. A decisão pela quantidade de entrevistas (15) se deu em razão do ponto de saturação teórica (Bauer & Aarts, 2008). Para chegarmos até os primeiros participantes, de 2016 a 2019 analisamos diversos materiais midiáticos (notícias, entrevistas, reportagens etc.) que demarcavam conflitos em torno de sentidos distintos em relação às práticas jurisdicionais e que receberam notoriedade nos meios de comunicação - com especial destaque àqueles considerados de "esquerda" ou alternativos. Embora a discussão em torno dos critérios que distinguem esses veículos ultrapasse o escopo deste texto, eles foram privilegiados porque davam espaço a integrantes da magistratura que faziam contrapontos às práticas de magistrados em torno dos quais naquele período se estabeleceram explícita ou implicitamente consensos sociais. Também não abordaremos neste artigo os critérios e aspectos que nos levaram à seleção dos episódios midiáticos, mas escolhemos alguns daqueles que melhor sintetizaram os diversos conflitos em torno de visões distintas em relação ao Poder Judiciário. Os episódios foram reduzidos a oito para serem levados às entrevistas e servirem de estímulo às falas. As entrevistas duraram entre 1:30h e 2h, totalizando aproximadamente 24h de gravação, as quais foram devidamente transcritas pelo próprio pesquisador. A técnica de entrevista utilizada foi a semi-dirigida episódica (Flick, 2008). As cinco instituições representadas nas entrevistas foram: Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas; Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro; Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul; Tribunal Regional Federal da 4ª Região; Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Treze magistrados/as eram do Rio Grande do Sul. Ao todo foram entrevistadas duas mulheres, dois magistrados/as aposentados e um magistrado/a negro/a. O ano de ingresso na magistratura variou desde 1976 até pós-2001 (optamos por não precisar o ano de ingresso mais recente para resguardar o anonimato do/a participante). A década de noventa concentrou o ingresso da maior parte dos participantes: nove (9).
Para categorizarmos nossos dados, após a transcrição efetuamos uma "conversão argumentativa" das entrevistas. Esse processo se baseou na técnica de análise argumentativa adaptada para a pesquisa em psicologia social por Liakopoulos (2008). Após leituras sucessivas de todas as entrevistas, extraímos de cada uma delas todos os argumentos pertinentes ao nosso problema de pesquisa. Esses argumentos foram organizados a partir dos seguintes elementos adaptados do modelo de análise argumentativa: 1. Dado (premissas, pressupostos, de onde se parte); 2. Proposição (afirmação, colocação, ponto chave, onde se chega); 3. Garantia (o que reforça a proposição); e 4. Apoio (aquilo que assegura tanto a ligação da proposição com a garantia, como serve de reforço à própria garantia). Cada um desses argumentos foi reunido naquilo que denominamos "clusters argumentativos", isto é, um conjunto de argumentos parciais apresentados para sustentar os argumentos gerais e centrais utilizados em cada uma das entrevistas. A partir da reunião e categorização de todos os clusters (154), chegamos aos cinco temas principais já referidos anteriormente (experiências pessoais; fatores organizacionais da produção jurisdicional; estruturação psicossocial hegemônica do Judiciário; visibilidade midiática do Judiciário; e (im)possibilidades de um outro Judiciário). Neste artigo abordaremos apenas o primeiro tema. Para a interpretação dos dados coletados nos servimos do referencial da hermenêutica de profundidade (HP) desenvolvido por Thompson (2011). Esse referencial metodológico oferece um roteiro de investigação abrangente e útil para pesquisas qualitativas hermenêuticas, isto é, cujo interesse é compreender tanto a "doxa", como os sentidos de determinado campo e sujeitos, ou seja, os referenciais e fundamentos que orientam a vida prática cotidiana de determinados agentes ou instituições.
A pesquisa foi realizada com base no que prevê a Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), sendo aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CEP-PSICO). A participação na pesquisa foi voluntária e todos os participantes receberam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), bem como foram informados da possibilidade de retirarem seu consentimento em qualquer momento da pesquisa e de que o único risco acarretado por sua participação era o de uma eventual identificação por terceiros no momento da publicação dos resultados. Após a conclusão do trabalho, todos os participantes receberam a versão preliminar da produção, sendo incentivados a apontarem quaisquer desconfortos ou discrepâncias identificadas, o que configura aquilo que Gaskell e Bauer (2008) denominam de "validação comunicativa" em pesquisas qualitativas. Apenas um dos participantes solicitou que fossem efetuadas alterações em suas falas.
Resultados e discussão
1. As contribuições fenomenológico-existenciais para uma inversão epistemológica
Em razão dos aspectos existenciais em geral não serem considerados pertinentes à ciência jurídica, especialmente em sua versão positivista - juspositivista nesta discussão - que é a corrente prevalente no campo jurídico (Mascaro, 2018), a abordagem do fenômeno jurídico tende a ficar restrita às especificidades técnicas de sua própria racionalidade. Em certo sentido, tal abordagem expressa a natureza cartesiana das ciências humanas e sociais que emergiram na modernidade a partir do século XIX - dentre estas, o Direito moderno. Entretanto, o resgate de filósofos como Nietzsche e Espinosa, por exemplo, marca a história da filosofia contemporânea justamente por inverterem os pressupostos dessa epistemologia, ao colocarem a razão como objeto dos afetos e das paixões - e não o inverso. Essa inversão fez com que a racionalidade deixasse de ser visada a partir de uma pretensa universalidade, recolocando o contexto material e particular de sua emergência como uma condição originária de sua existência. Em outras palavras, a razão deixou de ser concebida de um modo desespacializado e destemporalizado, como se pairasse em alguma dimensão além ou aquém deste mundo.
A partir daí se começa a empreender uma compreensão "mundana" da racionalidade e do conhecimento, estes agora tomados como produtos de batalhas e guerras correntes na dimensão pré-reflexiva que lhe servem de fundo e fundamento. É o que Foucault (1973/2013), valendo-se das contribuições de Nietzsche, pretende dizer com a afirmação de que o "conhecimento" - o que aqui denominamos racionalidade - foi "inventado". E é nesse exato sentido que usamos aqui o termo "existencial", ou seja, os aspectos materiais e simbólicos que servem de condição de possibilidade para a emergência do modo de ser daquilo que somos enquanto sujeitos encarnados social e historicamente. Neste artigo não vamos adentrar no problema da subjetividade, tampouco nas divergências que existem entre as vertentes fenomenológicas e humanista-existenciais acerca desse termo, oportunidade em que remetemos a outros autores (Feijoo & Mattar, 2016; Feijoo, 2011; Moreira, 2007). Nossa intenção com o termo subjetividade é tão somente enfatizar a dimensão vivencial e experiencial desse ente que nós somos, em oposição à pretensa objetividade imaculada que constituiria a racionalidade que emergiu na modernidade. Assim, tomamos o sujeito como a condição de possibilidade de nossa experiência do mundo, na concepção de Merleau-Ponty (1945/2015). Os leitores mais especializados certamente perceberão que ao longo desta discussão serão utilizados autores oriundos de tradições distintas no que se refere ao tema da subjetividade, mas nossa intenção é problematizar o fenômeno jurídico a partir da interface das contribuições advindas da psicologia social e da psicologia fenomenológico-existencial, exatamente no ponto onde estas confluem e se interpenetram: na crítica à noção moderna de racionalidade e no reconhecimento das condições de possibilidade de produção do sentido como um aspecto central dos desdobramentos de fenômenos humanos e sociais. Ainda sobre esse ponto, entendemos a noção de sentido como o produto vivencial e experiencial do encontro e enfrentamento das condições materiais e simbólicas que constituem o ente que nós somos, o nosso "quem" (Arendt, 1958/2011). O reconhecimento desse caráter ontologicamente relacional da existência aponta para a nossa condição de ser-no-mundo, o ser-aí heideggeriano, em que o Dasein, "na medida em que é, já se remeteu cada vez a um 'mundo' que vem-de-encontro" (Heidegger, 1929/2012, p. 259).
Retornando ao ponto inicialmente discutido, uma outra especificidade das reflexões que partem dessa inversão dos pressupostos da tradição epistemológica moderna é o contraste que estas estabelecem com a ambição da modernidade por certeza e exatidão. O cogito de Descartes e sua dicotomia entre res extensa e res cogitans promoveu a renovação dos fundamentos epistemológicos platônicos que opunham corpo e razão (Foucault, 2011). Essa perspectiva cartesiana foi conveniente a um contexto político onde uma classe ascendente de mercadores buscava se desvencilhar dos fundamentos que lhe mantinha submetida ao arbítrio de uma aristocracia decadente. É por isso que essa ruptura epistemológica favoreceu a associação do corpo às restrições impostas pela tradição, ao passo que a racionalidade de uma diminuta elite iluminada e esclarecida foi associada ao farol da liberdade que iluminaria um novo regime. É assim que, para assegurar a superioridade da racionalidade sobre a superstição, as propriedades "subjetivas" do corpo (paladar, olfato, tato, audição etc.) foram acusadas de serem meramente aproximativas, confusas e ambíguas; ao passo que as propriedades "objetivas" da racionalidade físico-matemática (número, movimento, figura, posição etc.) foram louvadas como certeiras, indubitáveis, precisas e exatas (Japiassu, 2011).
Essa cisão foi a pré-condição para que um novo tipo de sujeito pudesse, finalmente, realizar a ambição cartesiana de se tornar mestre e possuidor da natureza. O marco decisivo dessa revolução copernicana é situado por Hannah Arendt (1958/2011) no momento em que a a luneta fora inventada e usada nos experimentos de Galileu, já que, a partir dali, passou a ser estabelecida uma relação até então inédita com a verdade - esta entendida não mais como desvelamento, aletheia, mas como certeza e exatidão. Esse cataclismo, além de polarizar objetividade e subjetividade, terminou também excluindo um dos polos da equação, reduzindo o ser humano apenas aos aspectos cognitivo-comportamentais que ele compartilha - ainda que em quantidades distintas - com todos os demais animais sencientes. Entretanto, como mesmo Kant percebeu, o ente que nós somos dispõe de faculdades gnosiológicas distintas e irredutíveis uma à outra, em que a primeira, Vernunft (razão/pensamento), almeja compreender o sentido, enquanto a segunda, Verstand (intelecto/conhecimento), almeja apreender cognitivamente os estímulos que são dados aos cinco sentidos (Arendt, 2018). Sendo assim, o moderno método científico não inaugurou apenas um modo de conhecer inédito, mas também a delimitação do que poderia - e deveria - ser "conhecível" cientificamente.
As ciências modernas, derivadas dessa sociedade emergente regida pelos princípios da técnica, contribuíram para a construção de representações da sociedade e do ser humano cada vez mais distantes das coisas mesmas, é daí que emerge a figura do sujeito de direito, da subjetividade jurídica (Mascaro, 2013). Ora sobre um polo da dicotomia indivíduo-sociedade, ora sobre outro, as ciências humanas e sociais fizeram dessas duas abstrações (indivíduo e sociedade) objetos reduzidos a seus aspectos ônticos, perdendo de vista as características singulares e irrepetíveis - ontológicas - que os constituem em seu percurso histórico. Foi Edmund Husserl um daqueles que não apenas reconheceu essa limitação da epistemologia moderna, como também, por conta desse reconhecimento, terminou assumindo a psicologia como a "ciência primeira", já que qualquer conhecimento necessariamente é o conhecimento de uma psique, de um sujeito - ou de qualquer outro nome que se queira dar a essa entidade sem a qual nenhum conhecimento é possível de ser materializado (Goto, 2008).
É diante de tais impasses relegados pela modernidade que a tradição fenomenológico-existencial auxiliou a delimitar alguns dos pressupostos da epistemologia moderna - sobre os quais também está assentado o desenvolvimento da ciência jurídica. Especificamente em relação ao fenômeno jurídico, abordar sua complexidade exige compreender a raiz de algumas de suas importantes limitações, sobretudo no que tange a sua desconsideração dos aspectos existenciais constitutivos de suas práticas. Uma prática deve ser compreendida como a materialização da ação em termos de seus efeitos concretamente produzidos no mundo, tal como aborda Guareschi (2003).
Ao desconsiderar as relações mundo-racionalidade, corpo-razão, a ciência jurídica perde de vista as condições de possibilidade da produção do sentido e, portanto, termina ignorando o papel desempenhado pelos atravessamentos existenciais na constituição das práticas jurídicas e das produções jurisdicionais - ações de natureza essencialmente hermenêutica. Apesar dessa desconsideração por parte da ciência jurídica, como veremos na apresentação de nossos resultados, os/as magistrados/as buscam justamente na dimensão do sentido e nas condições de sua produção o fundamento a partir do qual a racionalidade jurídica é operacionalizada.
2. O corpo da razão
A inversão dos pressupostos da epistemologia moderna produziu um duplo impacto no desenvolvimento das ciências humanas e sociais: ela foi vital tanto para a emergência de novas chaves interpretativas da existência, a exemplo da tradição fenomenológica, como também impactou campos como a psicologia social (Farr, 2004). Esses impactos repercutiram, por exemplo, no desenvolvimento da vertente francesa da psicologia social, terreno onde os saberes singulares e particulares derivados de contextos específicos - aquilo que Platão abominava sob a alcunha doxa - terminou ganhando a centralidade das discussões e investigações.
Uma poderosa antinomia à descontextualização do conhecimento humano foi a tradição fenomenológica, a cujo legado a teoria das representações sociais deve muito. (...) Os fenomenólogos mostraram que antes mesmo de podermos pensar em conhecer nós pertencemos: nós partimos da pertença, não do conhecimento. (...) Com Merleau-Ponty esta pertença a um contexto foi levada a novos níveis de radicalidade, pois ele mais do que qualquer outro apontou para a corporificação do saber: o sujeito do conhecimento não apenas pertence a um contexto multidimensional, mas é também o sujeito de um corpo cuja realidade não pode ser descartada. A corporificação das estruturas psicológicas e sociais configura a percepção e, consequentemente, o saber. (Jovchelovitch, 2011, p. 91)
Muitos outros autores que foram fundamentais para o desenvolvimento da psicologia compartilharam dessa intuição de que a produção de racionalidades é indissociável das relações existenciais de onde elas se originam. Piaget, Vygotsky, Freud, Durkheim, Mauss e Lévy-Bruhl "todos eles concordam que o desenvolvimento dos saberes é social e que é a sociedade que confere lógica aos sistemas de conhecimento" (Jovchelovitch, 2011, p. 121). O consenso entre esses autores, entretanto, não chega a avançar para a consequência lógica dessa premissa: se a racionalidade varia, então os princípios que classificam aquilo que é ou não racional podem divergir entre si. Quando reconhecemos essa indissociabilidade das relações sociais na formação das racionalidades, isto é, que existem "inúmeras formações sociais que produzem diferentes formas de conhecimento social", então somos lançados ao desafio de reconhecer que até mesmo "as estruturas psíquicas e cognitivas mudam à medida que mudam as condições sociais" (Jovchelovitch, 2011, p. 121). Tal reconhecimento fere de morte o paradigma cartesiano que está no núcleo da epistemologia moderna, uma vez que, no lugar da transparência, reconhece a inevitabilidade de rastros deixados na racionalidade pela cultura, costumes, tradições e paixões. É por isso que, se concordarmos com o que demonstramos até aqui acerca da estruturação da racionalidade, verificaremos que os pressupostos da ciência jurídica moderna, e, portanto, da materialização e configuração das práticas jurídicas, acabam se tornando incompatíveis com isso que vai se desenhando ser a condição humana: seu irremediável pertencimento ao mundo. Essa incompatibilidade deriva do fato de a racionalidade jurídica ocidental moderna ter como pressuposto não criticado uma epistemologia em que toda racionalidade deve ser, necessariamente, universal, unívoca, progressiva e sistemática (Kronman, 2009). Em outras palavras, os pressupostos advindos da ciência astronômica de Galileu, da ciência física de Newton e da ciência biológica de Darwin, ao pavimentarem a emergência das ciências humanas e sociais do século XIX, determinaram também os princípios, métodos e finalidades da ciência jurídica.
Progressivas abstrações foram necessárias para que o desenvolvimento dessas ciências pudesse contornar o problema nevrálgico inaugurado pela difícil posição que o ente humano passou a ocupar: simultaneamente sujeito e objeto do conhecimento (Foucault, 2000). Isso quer dizer que, embora a ciência jurídica desconheça ou minimize o papel que os atravessamentos existenciais desempenham na materialização e configuração das práticas jurídicas, isso não diminui ou atenua os dilemas que provoca. A questão, portanto, não é apenas debater a natureza do problema ignorado, mas também apontar para as consequências efetivas que ele produz. No caso do Poder Judiciário, assumir a imagem de uma racionalidade meramente técnica e instrumental, desconsiderando as efetivas condições de produção de sentido que a materializam e a configuram, ao invés de promover imparcialidade, independência ou autonomia na produção jurisdicional, termina, contraditoriamente, generalizando um sentido de justiça parcial, dependente de condições materiais e simbólicas particulares e submetido a condições sociohistóricas específicas; tudo isso, contudo, por extravasar a seara exclusivamente jurídica, tende a ser ignorado pela ciência jurídica, reforçando ainda mais a mistificação de que existiria uma identidade absoluta entre o discurso jurídico e as práticas jurídicas.
Tais constatações, por si sós, já demonstrariam a relevância de compreendermos como se dão os atravessamentos de aspectos existenciais na configuração do fenômeno jurídico. Porém, ao reconhecermos que a prática jurídica é essencialmente hermenêutica - sobretudo em se tratando da magistratura -, a compreensão das condições de possibilidade existenciais da hermenêutica jurídica torna-se um tema ainda mais fundamental, especialmente para a sociedade brasileira, já que suas especificidades sociohistóricas demarcam a coexistência de ontologias radicalmente distintas que convivem espaço-temporalmente - situação típica, aliás, das sociedades latinoamericanas (Santos, 2018).
Especificamente em relação à sociedade brasileira, em razão de sua desigualdade estrutural - cuja origem remonta um passado colonial e escravocrata -, a composição e estruturação do seu Poder Judiciário é peculiar, já que a parcela majoritária de seus agentes tende a ser oriunda de uma diminuta fração da sociedade. Embora o debate dessas peculiaridades ultrapasse o escopo deste artigo, ele pode ser consultado em Souza (2018; 2017), e uma breve síntese de suas repercussões passa por constatarmos que há uma fratura distinguindo o horizonte pré-compreensivo dos membros do Poder Judiciário daquele do restante da população. Dito de outra forma, ao passo que a parcela majoritária da sociedade brasileira é constituída e estruturada por sentidos existenciais e psicossociais oriundos de adversidades derivadas de uma desigual distribuição de recursos materiais e simbólicos; o Poder Judiciário, por sua vez, é composto, majoritariamente, pela ínfima parcela de sujeitos que estão resguardados de tais adversidades. Ao reconhecermos a íntima afinidade entre subjetividade e racionalidade, tal constatação nos permite desvelar um problema a ser colocado para o campo jurídico que não pode ser abordado mediante intervenções exclusivamente circunscritas à racionalidade jurídica, já que apresenta desdobramentos ético-políticos oriundos de aspectos existenciais - nisso incluído os sentidos derivados das trajetórias existenciais de seus agentes. A repercussão das trajetórias existenciais na modulação da racionalidade jurídica é tão importante que um aspecto comum à magistratura dissidente é ter vivenciado pessoalmente experiências adversas. Abordaremos mais detalhadamente a especificidade dessas trajetórias de vida que serviram de base à produção dos sentidos com os quais a magistratura dissidente significa suas práticas jurídicas; antes disso, porém, vamos apresentar algumas passagens que circunscrevem e explicitam o lugar privilegiado que a dimensão do sentido ocupa na produção jurisdicional.
2.1. Sentido
Um consenso identificado nas entrevistas é que as práticas jurídicas não podem ser compreendidas fidedignamente a partir da dimensão estritamente técnica, racional, cognitiva ou lógico-matemática. Essa constatação se torna especialmente verdadeira para as práticas jurídicas dissidentes porque, não raras vezes, a inconformidade dessa magistratura implica inúmeras consequências subjetivas que, perspectivadas desde um ponto de vista utilitarista, não aparecem como vantajosas. Ou seja, as motivações mais profundas das práticas da magistratura dissidente não podem ser encontradas no plano estritamente pragmático de sua profissão. Isso é expressado na fala seguinte:
Eu vou te dizer que eu faço análise há muito tempo, e essa é uma questão [o que explicaria a atuação da magistratura dissidente] que eu levei pra análise. Por que eu continuo insistindo em agir assim, se isso sempre tem um retorno tão desgastante algumas vezes, e em alguns períodos da minha vida profissional muito pesado. Esse negócio ...[episódio]2, nem foi o pior, têm coisas internas, e às vezes muito sutis, que você não tem nem como explicitar, de pessoas que podem incidir sobre o seu trabalho, como o Tribunal, Corregedoria, e de uma forma muito sutil elas vão minando. Não é um ato que você possa dizer 'oh, estou sendo injustiçado'. E eu comentei isso com ele [analista] e ele disse 'não é uma escolha, quem nasce com senso de justiça social e com a capacidade de empatia, com uma capacidade de alteridade, de reconhecer a dor do outro, não tem escolha'. E eu pensei, 'que bom, resolvi um problemão da minha vida, se eu não tenho escolha, está resolvido'.
Vários elementos dessa fala apontam para a prevalência de aspectos existenciais na configuração das práticas jurídicas, mas daremos ênfase a dois: em primeiro lugar, o fato de a noção de justiça ter sido relacionada a um "senso"; e, em segundo lugar - um aspecto não menos sugestivo - que é o dessa discussão em torno das motivações das práticas jurídicas e das consequências que elas acarretam estar sendo tecida em uma sessão de análise. Esse último aspecto denota uma tácita afinidade entre as motivações das práticas jurídicas dissidentes e características pessoais de ordem existencial.
Com relação ao primeiro aspecto, dado que a faculdade da razão quase sempre é caracterizada como aquela responsável pela capacidade de oportunizar ao agente as escolhas mais vantajosas, essa referência a uma motivação não plenamente racionalizável aponta para uma dimensão pré-reflexiva intimamente vinculada ao sentido, ao "senso", que em outras entrevistas também apareceu tangenciando termos como "crença" e "fé":
Uma boa pergunta.É uma boa pergunta... Quer que eu te responda? Pessoalmente eu acho que é o senso de justiça. Mas não é o senso de justiça de você ter comprado um quilo e eu te dou tanto, é mais além. Eu acho que esses sensos de justiça que são culturais e movem também muito. Nós temos grandes fés, o capitalismo, como diz o Harari [Yuval Harari], ele é uma grande fé. A moeda é uma grande fé. Você acredita em coisas. E eu acho que o senso de justiça, os direitos humanos também é uma fé. (...) Eu acredito que as pessoas têm fé, se mobilizam (...)
Um dado relevante é que a "justiça" não apareceu como sendo um ideal, nem sequer um valor, princípio ou finalidade, mas precisamente como um "sentimento", melhor retratado por essa noção de "senso", adjetivo que não remete à dimensão cognitiva, mas a uma dimensão corpórea e afetiva. Sobre isso é importante destacar que, se por um lado, a dimensão cognitiva permite uma defasagem entre aquilo que é representado e a pessoa que representa, por outro lado, quando abordamos a questão dos afetos, não é possível estabelecer uma distância entre quem sente e aquilo que é sentido. É por essa razão que, quando diante de situações que exigem apenas o processamento cognitivo de informações, é possível ao agente estabelecer uma defasagem maior entre si próprio e suas práticas a partir de um cálculo custo-benefício que leve em consideração apenas as vantagens da situação imediatamente colocada; todavia, quando implicado afetivamente, não há uma defasagem possível entre a existência presente, passada e futura do agente e suas práticas. Tanto é assim que em uma das entrevistas foi associado ao adoecimento uma eventual omissão perante as práticas majoritárias da magistratura ou a impossibilidade de afirmar sua própria singularidade combativa:
Por que eu não vou pra praia? [risos] Olha, ou a gente consegue continuar, ou a depressão toma conta. E dá menos trabalho lutar do que ficar parado. (...) Porque é perfil, personalidade, formação. Eu acho que cada um reage de uma maneira. Eu não consigo deixar de me meter nas coisas. É uma coisa muito forte. Eu tento, às vezes isso é perturbador.
Em várias outras oportunidades evidenciou-se como a dimensão do sentido compõe e atravessa as práticas jurídicas, sendo, em grande parte, responsável pela materialização e configuração dessas práticas. Diante dessa evidência, questionamos os participantes acerca do que eles consideravam ser a fonte ou origem desse sentido, momento em que a história de vcc
Uma eterna insatisfação [P: De onde ela vem?]3 A minha história. Além dos componentes genéticos, a minha história [P: Qual é a tua história?] De onde eu nasci, os livros que eu li, essa força de pensar que surgiu não sei da onde, que alguns têm, outros não têm, que são dados que você vai juntando e vai dando essa coisa toda aí, que poderia dar ou não dar [P: Tem um componente de classe nisso?] Acho que soma, soma. Como também, em outras pessoas, o componente de classe faz com que eu fique com raiva da classe. E tá cheio de caras que são assim, que é a maioria de novo... Eu não estou querendo ser niilista, longe disso. Mas o que eu acho que é a diferença é essa insatisfação, que pode ser para o bem ou para o mal (...)
Na maioria dos relatos, essa história de vida entendida como condição de possibilidade para a emergência de determinados sentidos tendeu a ser caracterizada especialmente em virtude das adversidades que a constituíram. Entretanto, por outro lado, em algumas entrevistas também foi destacado o papel desempenhado pela transmissão de valores familiares:
E as lições que meu pai trazia. O meu pai era ...[episódio] isso foi uma coisa que surpreendeu todo mundo (...) Então ele [pai] ensinou tudo isso pra mim 'Olha, você tem que ter tua consciência, se você acha que o certo é esse, faz o que é certo'. E foi muito fácil. Esse contato humano no cotidiano, que era a minha vida como advogado, como cidadão do interior. Tentei não perder a simplicidade. Tentei 'Bom, vou sair do interior, mas não vou deixar o interior sair de mim'. Acho que foi isso aí, não sei exatamente. Não fiz terapia, não fiz nada para alcançar o que eu alcancei.
Em outras entrevistas, essa transmissão de valores familiares também apareceu vinculada a valores religiosos:
Talvez venha de uma formação da família. Minha família sempre foi humanista, muito católica, meu pai muito conservador, mas humanista. Eu não tenho religião, mas tem uma base de humanismo no cristianismo, inegavelmente a gente tem que reconhecer isso. Então, ao modo deles, apesar do conservadorismo todo, te trazem alguns valores, de você conseguir ver injustiça - o que você pode ver perfeitamente sem ser religioso, sem ter uma formação católica -, mas essa parte, hoje eu reconheço na minha vida que esses valores deles me traduziram, porque eu consegui perceber isso e aplicar e fazer de uma outra forma, acho que me ajudou na minha formação mais de esquerda.
Como dissemos anteriormente, quase todas as respostas das entrevistas se voltaram para aspectos de cunho existencial diante de questionamentos que remeteram ao porquê de, ao invés do conformismo, a magistratura dissidente insistir em confrontar as exigências que lhe são cobradas implícita ou explicitamente pela magistratura hegemônica. Em nenhuma das entrevistas a resposta a tal questionamento remeteu a atributos meramente racionais como, por exemplo, o estrito cumprimento de um dever legal ou constitucional. Ao contrário, foram destacados elementos que apontavam para as condições de subjetivação. Essa constatação pode ser contrastada frontalmente se buscarmos falas públicas de magistrados em torno dos quais se formam consensos e hegemonias acerca da produção jurisdicional. Eles dão a entender que a participação de sua subjetividade em suas práticas jurídicas se reduz tão somente à atividade meramente cognitiva de expressar aquilo que a legislação já diz, nem mais, nem menos.
Agora abordaremos o segundo elemento identificado nas entrevistas que, apesar de intimamente relacionado com a dimensão do sentido, aponta para uma peculiaridade comum às trajetórias de vida da magistratura dissidente: de algum modo, todas as trajetórias estabeleceram encontros e contatos com adversidades vivenciadas direta ou indiretamente. Por essa razão é importante compreendermos de que modo a dimensão ético-política pode ser impactada por adversidades existenciais.
3. Os sentidos da adversidade
O progresso cartesiano das ciências forjou uma descaracterização do sujeito e da subjetividade, relegando-os ao desaparecimento. É essa a constatação do psicólogo social cubano, Fernando González Rey (2012), quem insistiu até o fim de sua vida para que a pergunta fundamental pelas condições de possibilidade do sentido não se perdesse nas investigações de psicólogos e outros pensadores. A discussão que ele propunha ia na direção de reconhecer e resgatar o papel inexorável das condições de produção dos sentidos, já que são elas que imprimem na existência humana essa misteriosa abertura que torna o ente que nós somos uma permanente questão para si próprio. São elas, portanto, as responsáveis pela singularização das trajetórias de vida em que os sujeitos irão se constituir de um modo irrepetível a partir de sua confrontação com a facticidade imediata em que são lançados.
Dessa maneira, a produção jurisdicional de uma nação, por exemplo, não pode estar dissociada de questões ético-políticas, já que, como pontua Lynn Hunt (2009), mesmo a noção de direitos humanos não é senão efeito da invenção de novos contextos de pertencimento que modulam afetos e racionalidades comuns. Sendo assim, ao se reduzir a compreensão jurídica aos parâmetros técnicos de sua racionalidade, encobre-se a pergunta pelo sentido da justiça, deixando à mercê dos instrumentos que conformam a produção jurisdicional a decisão de deliberar sobre questões essencialmente ético-políticas, tais como: justiça de quem e para quem? Essas perguntas fazem reverberar a radical alteridade presente na noção de justiça. Tal como propõe Derrida (1991/2010), a "definição" de justiça deriva de um sentido que está sempre em movimento, daquilo é, na verdade, um "desejo de justiça".
Se no lugar de "artesãos do justo", a modernidade passou a demandar dos juristas uma expertise restrita ao gerenciamento técnico de conflitos, é porque se estabeleceu uma ruptura brutal em que, como aponta Arendt (2011), a questão pelo "quem" do ser humano não só deixou de ser a pergunta fundamental da existência humana, como a obsessão pelo "o quê" do ser humano terminou sendo elevada ao posto supremo das investigações. A pergunta que deriva dessa constatação é se é possível conceber um sentido universal de justiça na magistratura que esteja dissociado e apartado dos aspectos existenciais que conformam cada uma das trajetórias singulares dos agentes imbuídos da legitimidade jurídica? Para quem é descrente dessa possibilidade, torna-se premente compreender os aspectos existenciais e como eles se materializam efetivamente nas práticas jurídicas, pois são tais aspectos que desvelam as possibilidades críticas de se abordar o fenômeno jurídico (Herrera Flores, 2009).
Não reconhecer ou não assumir um problema em nada modifica o seu estatuto, todavia, ao colocá-lo adequadamente pode-se vislumbrar seus contornos. A inversão epistemológica sobre a qual insistimos anteriormente contribuiu para reconhecermos o papel ocupado pelo sentido bem como pelas trajetórias de vida como fontes originárias de conhecimento e racionalidade, já que são esses caminhos que vão compor o modo da relação do sujeito consigo mesmo, com os outros e com o mundo. Além disso, se esses rastros existenciais do passado possuem tal relevância para a constituição existencial do sujeito, não podemos menosprezar também o papel do futuro e do presente que esses percursos singulares fazem florescer. Como enfatiza Hannah Arendt (2018), tanto as determinações do passado - do qual herdamos a facticidade de quem somos -, bem como as do futuro - que restringem as possibilidades de quem podemos ser -, ambas são perspectivadas pelo instante decisivo aberto pelo pensamento que coloca em xeque as determinações passadas e futuras a partir de uma irrepreensível potencialidade de dizer "não". Em outros termos, uma adequada compreensão do papel do sentido nas trajetórias existenciais exige que as tomemos como o campo - o ethos - onde os sujeitos se constituem enquanto tais. Nesse ethos, alegria e tristeza, amor e ódio, esperança e medo - tal como concebe Espinosa em sua antropologia materialista (Moreau, 2018) - vão participar de um dinâmica afetiva que será o motor constitutivo e modulador da "potência de agir" dos sujeitos.
Uma compreensão como essa - em que a produção de sentidos derivada da dinâmica de tais afetos está implicada na materialização e configuração das práticas e da própria racionalidade - permite reconhecermos uma inusitada relação entre sentido e trajetórias existenciais: as adversidades e sofrimentos como promotores de singularização das práticas. Encontramos a evidência dessa relação nos relatos da magistratura dissidente, a partir dos quais podemos dizer que uma abordagem ético-política da racionalidade expõe o papel que as vivências desempenham nas produções hermenêuticas. Na apresentação da segunda parte de nossos resultados, o sofrimento provocado pelas adversidades foi apontado como um elemento ativo capaz de produzir sensibilidades e sentidos em torno da alteridade, efeito que ultrapassa a capacidade que podem produzir aprendizados meramente intelectuais ou cognitivos oferecidos pela formação jurídica formal. Esse ultrapassamento aponta para o modo de pertencimento ao mundo como sendo a fonte originária da qual derivam sentidos de justiça ou injustiça.
Ao propor o conceito de "sofrimento ético-político" como categoria de análise psicossocial da desigualdade social, Bader Sawaia (2001) encontrou em Espinosa uma chave de leitura para uma compreensão existencial da realidade humana: "Em síntese, Espinosa apresenta um sistema de ideias onde o psicológico, social e político se entrelaçam e se revertem uns nos outros, sendo todos eles fenômenos éticos e da ordem do valor" (Sawaia, 2001, p. 101). A partir de Espinosa - e também de Ágnes Heller e Vygotsky - Sawaia (2001) demonstra que as condições excludentes produzem uma qualidade de sofrimento distinto, um sofrimento que, por não decorrer de uma dor biofísica, é psicossocial - mas nem por isso menos devastador.
Em síntese, o sofrimento ético-político abrange as múltiplas afecções do corpo e da alma que mutilam a vida de diferentes formas. Qualifica-se pela maneira como sou tratada e trato o outro na intersubjetividade, face a face ou anônima, cuja dinâmica, conteúdo e qualidade são determinados pela organização social. Portanto, o sofrimento ético-político retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade. Ele revela a tonalidade ética da vivência cotidiana da desigualdade social, da negação imposta socialmente às possibilidades da maioria apropriar-se da produção material, cultural e social de sua época, de se movimentar no espaço público e de expressar desejo e afeto. (Sawaia, 2001, p. 104)
Por certo não é possível generalizar que pessoas acometidas por um sofrimento ético-político vão desenvolver uma capacidade de alteridade para com o outro, já que, como pontua Rey (2012), duas pessoas até podem ter sido vítimas de uma mesma injustiça, mas terão afetos diferentes em relação a ela, portanto sendo indeterminada a sua ação daí decorrente. Aliás, é possível que uma delas, em razão desse sofrimento, até mesmo introjete o ideal do opressor como uma ambição a ser perseguida, tal como discute Paulo Freire (1974/2019). Entretanto, podemos considerar que, ao menos em alguns casos - e nas entrevistas com a magistratura dissidente esse aspecto se destacou -, a vivência de adversidades e de um eventual sofrimento ético-político decorrente delas fez emergir uma potência. É como se a contrapartida da injustiça sofrida tenha promovido uma sensibilização potencializadora em direção à negação não só da injustiça particular sofrida pessoalmente, mas da negação da própria injustiça enquanto tal. Ou seja, contraditoriamente, do sentido derivado da injustiça, produziu-se uma afecção, uma sensibilidade, um desejo por justiça. É o que podemos depreender quando Sawaia (2001) aponta que "No livro IV da Ética, Espinosa fala que a capacidade do homem de ser afetado e o modo como o é, é determinante à constituição dos valores éticos, pois o que faz a coisa boa ou má é o afeto de que deriva" (p. 113).
É importante destacarmos que a ênfase dessa discussão extraída de Sawaia (2001) não deve ser dada ao sofrimento, mas justamente aos fundamentos éticos e políticos da produção de sentidos que dele derivam. Assim podemos destacar as limitações inerentes às perspectivações do fenômeno jurídico que tendem a excluir desse debate o problema da subjetividade. O fato é que, em grande medida, a subjetividade não apenas faz parte do problema em torno da justiça, mas muito mais do que isso, ela própria, enquanto tal, deve ser considerada como um problema fundamental a ser discutido, já que, em razão das limitações da ciência jurídica - tributária dos pressupostos da epistemologia moderna -, a pergunta pelo sentido da justiça é posta de lado em favor de uma pretensa universalidade e instrumentalidade de uma racionalidade jurídica pretensamente desencarnada.
Como apresentado até aqui, nas respostas de nossas entrevistas acerca de questões que almejavam compreender por quê, ao invés do conformismo, tais magistrados/as se colocavam criticamente diante do Judiciário e da própria magistratura, identificamos argumentos que explicitaram dois aspectos prevalentes e interdependentes: a priorização da dimensão do sentido em detrimento da dimensão cognitiva ou lógico-matemática e a importância atribuída às trajetórias de vida pessoais como condição de possibilidade para a produção desses sentidos. Em relação a esse último aspecto, chamou nossa atenção o fato de em grande parte das entrevistas ter sido salientada uma característica semelhante dessas trajetórias pessoais: as adversidades vivenciadas ao longo de suas vidas. Para a compreensão da relevância desses achados é preciso perspectivá-los a partir de um dado de realidade da composição do Poder Judiciário brasileiro - tema que não será abordado neste artigo, mas que é vital: a magistratura - bem como a composição majoritária do Poder Judiciário como um todo - tende a ser ocupada por pessoas com trajetórias de vida muito semelhantes e homogêneas (famílias de classe média detentoras de privilégios objetivos e subjetivos); disso decorre que - assumindo as conclusões de nossos resultados (a prevalência de aspectos existenciais na configuração das práticas jurídicas) - os mecanismos que restringem e filtram a origem social e de classe de novos/as magistrados/as e de outros agentes do Poder Judiciário terminam desempenhando - mesmo que indiretamente - um papel decisivo nos resultados da produção jurisdicional brasileira. Em outro trabalho discutimos especificamente essa relação entre os mecanismos e dispositivos organizacionais do Poder Judiciário - dentre eles o processo seletivo da magistratura - e os resultados da produção jurisdicional. Agora vamos expor como a adversidade aparece nos argumentos da magistratura dissidente participando dos fundamentos de suas práticas jurídicas.
3.1. Trajetórias adversas
Uma constatação bastante marcante é o fato de a magistratura dissidente não identificar na formação formal (acadêmica ou judicial) o fundamento de sua atuação. Sendo assim, por um lado fica evidenciado que, na opinião dos magistrados, a configuração das práticas jurídicas não depende, em um primeiro momento, de fatores de ordem racional, mas, ao invés disso, de sentidos atribuídos às situações jurídicas que lhes são apresentadas; por outro lado, também é evidenciado que tais sentidos - justamente por serem de âmbito pré-reflexivo - não derivam de um repertório meramente cognitivo, mas da própria trajetória existencial que atravessa e constitui esses sujeitos desde muito antes deles sequer terem o campo jurídico ou a magistratura como horizontes para suas vidas profissionais. Apesar da diversidade dos relatos, grande parte dessas trajetórias tiveram em comum as adversidades vivenciadas, ainda que de natureza e graus distintos.
A coragem vem, primeiro, pela minha formação, por sempre ter acreditado que o Direito [P: Formação técnica jurídica, do livro do Direito?] Não, a formação não só jurídica, porque a faculdade não é grande coisa. Uma formação que tem um outro elemento que eu não quis falar lá no começo, que tem a ver com a elite, que é o seguinte: a maioria desses juízes, eles não trabalharam, não pegaram ônibus, então eles não sabem essas dificuldades. Então normalmente acho que são pessoas [dissidentes] que experimentaram mais adversidades na vida, não é que eu deseje que todo mundo tenha dificuldade, não, que bom que não tenham.
As adversidades relatadas foram de ordens variadas, mas grande parte delas referiram-se a questões sociais e de classe. É interessante também pontuar que muitos desses magistrados constataram terem vivenciado adversidades semelhantes às daqueles colegas com os quais estabeleciam relações mais estreitas:
Algumas questões nos chamam a atenção: num certo momento você vê pessoas das classes sociais mais baixas entrando na magistratura e, por incrível que pareça, não são tão poucos casos assim, é bem significativo. É interessante que as pessoas não falam muito, mas quando você começa a falar e contar a sua história, as pessoas se sentem autorizadas a contar a história delas. E você vê que há muitos pontos de contato nessas histórias. Eu diria que é um grupo de uns 20% ou 30% da magistratura ...[unidade federativa], em um determinado momento que tiveram uma história parecida. A minha história, por exemplo, eu sou uma pessoa que estudou sempre em colégio público estadual, claro, tive a felicidade de ingressar ...[universidade federal], mas uma renda familiar muito baixa. A renda da minha família sempre foi abaixo dos dois salários mínimos, a renda familiar! Renda bruta. Então você imagina. Em geral a gente não conta essas histórias, porque elas, enfim... conta para quem são os teus amigos. Mas com o tempo eu comecei a conversar, tendo até uma posição de mais liderança, e eu vi que muita gente tinha histórias comuns, era filho de agricultores, de pessoas que trabalhavam com mais ou com menos dificuldade, isso tudo estava bem presente.
Além deste relato, em outros também é possível perceber que há uma consciência por parte dessa magistratura que essas adversidades constitutivas dessas trajetórias de algum modo constituem um elemento de identidade desse grupo:
Então eu não sei se é um dado que foi sempre assim, mas a impressão que eu tenho é que está cada vez mais elitizado [magistratura]. Tirando um exemplo da minha história, eu tenho ...[anos] de magistratura, quando eu entrei tinha um pessoal de periferia, eu e um amigo meu, colega de infância, entramos no mesmo grupo de juízes, a gente morava na mesma vila, estudamos no mesmo colégio público e éramos gurizada de periferia, da vila mesmo. (...) Eu morei na vila ...[localização] e ali dois colegas meus são juízes hoje, um desse concurso que eu passei e um outro colega passou no concurso seguinte. E tinha outros que vinham dessa condição. Não sei se você vai entrevistar ...[nome], mas ele também veio dessa periferia. E nós temos um colega, ...[nome], que é filho de assentado, sem terra, agricultor.
Essa consciência da relação entre o pertencimento a uma classe e os sentidos que irão permear as práticas jurídicas também pode ser reconhecida na fala seguinte:
Mas o que acontece, eu sou integrante de uma classe, talvez hoje eu não conseguisse entrar mais em concurso, porque também isso mudou muito. (...) Eu... antes de entrar [na resposta à pergunta de o que torna possível a existência de magistrados dissidentes] primeiro: eu não me encaixo nesse perfil de família em que o pai podia bancar. Eu sou de uma família numerosa do interior, meu pai era alfaiate. Muito conservadora a família, eu saí meio como ovelha negra. Então eu já era. Eu já tinha uma posição de esquerda. Eu não virei de esquerda na faculdade, na carreira. Eu já vinha com meus valores.
Além dos relatos que reconheceram nas adversidades das trajetórias uma fonte da singularidade dos sentidos constitutivos das práticas jurídicas dissidentes, também em várias passagens foi explicitada uma relação entre a vivência dessas adversidades e a capacidade de alteridade - algumas vezes referida como "empatia":
E para minha formação isso foi o que mais importou [ter trabalhado em outras profissões]. Eu tinha trabalhado com carteira assinada, atendendo em loja, em escritório, dei aula cinco anos. Então eram profissões que faziam obedecer ordens, o que é o empregado, o que é o empregador, ter que engolir sapo. Agora você imagina um juiz que nem isso fez, ficou toda a faculdade só estudando, se formou, estuda, estuda, estuda, faz concurso, passa; daí no outro dia tem que ir lá com aquela pilha de processos para resolver, vai julgar pessoas de verdade, ele não tá brincando. E vai julgar com aquilo que ele tem de conhecimento da vida, que às vezes é uma pessoa de 25, 26 anos, que não tem conhecimento nenhum, porque nunca trabalhou, que não tem filho, que não tem experiência de vida. (...) eu brinco que concurso para juiz tinha que exigir três anos de carteira assinada, porque sem essa experiência, as pessoas têm dificuldade, porque a sociedade já é feita pra gente não ter empatia.
Nas duas próximas falas é destacada uma nuance que vai se avolumar adiante: o efeito das adversidades na produção de sentidos não se restringe apenas àquelas vivenciadas diretamente pelo sujeito, já que vivenciar os sofrimentos que acometem terceiros também foi reconhecido como capaz de impactar a produção de sentidos.
(...) mas eu era de uma época em que a gente se incomodava profundamente de ver pessoas sofrendo. Umas quantas vezes eu chorava vendo uma pessoa na rua, eu sou um pouco assim até hoje. Acho que isso tem a ver com a minha formação, os pais que eu tive, os locais que eu frequentei... Eu sou de classe média baixa, bem baixa, meu pai nasceu na favela... Acho que tudo isso acaba repercutindo um pouco. As histórias que eu via (...) A pessoa se interessa porque tem a ver com a tua vida, tem a ver com as experiências que você teve, que você sofreu, que você não sofreu, as escolas que você estudou, tudo isso vai formando a tua personalidade. É difícil, não tem uma fórmula. Mas acho que isso de se importar com o outro, que está cada vez...
Puxa, que difícil isso... [pergunta "por que você é quem é?"] Eu acho que da vida... A minha trajetória anterior ao Judiciário passou por dois momentos bem importantes. Com 16 anos, eu comecei a dar aulas, porque eu fiz magistério. Eu divido em dois momentos porque eu tive contato com crianças, e acho que nessa relação a gente desenvolve muito a nossa sensibilidade, o olhar para o outro, ver um ser em desenvolvimento, ver a sua evolução, ver como ele vai se transformando ao longo de um ano, dois anos. (...) E o outro momento, dando aulas ainda, eu saio de uma escola particular e vou trabalhar na periferia. E aí eu encontro uma realidade social muito dura, com muitas privações. E eu tendo que, de algum modo, realizar o meu papel ali, com todas as privações que viviam aquelas crianças, que iam para o colégio só para se alimentar. (...) E acima de tudo, acho que a minha própria existência, enquanto indivíduo, uma mulher negra, vivendo num estado branco e fazendo uma trajetória de exceção. Eu saio lá daquele lugar, parto de um lugar, ainda que não com privações materiais, mas de um lugar social esperado para uma mulher negra, e venho entrar no Judiciário, contrariando tudo o que a sociedade, como um todo, previa para mim.
Com essas falas anteriores vai se materializando o fato de que as adversidades parecem ser aspectos caracterizadores dessas trajetórias, claro que experimentadas em intensidades distintas, além de vivenciadas em alguns casos diretamente e em outros indiretamente. As duas últimas falas que se seguem explicitam como essa vivência indireta de adversidades pode repercutir na produção de sentidos pessoais:
Olha, eu tenho uma história de vida. Meu pai e minha mãe foram presos na ditadura. Meu nome é ...[próprio nome] em homenagem ...[liderança comunista]. Eu já nasci marcado em ferro pela opressão do Estado. Isso está na minha história.
Para encerrar, na fala seguinte ficará claro que, apesar das adversidades serem aspectos comuns à magistratura dissidente, em alguns casos elas apareceram vivenciadas indiretamente. Dito em outros termos, embora algumas dessas trajetórias existenciais tenham sido protegidas de adversidades diretas, encontros com o sofrimento de terceiros parecem ter suscitado a emergência de sentidos também marcados pela adversidade:
Acho que vem da história de cada um e às vezes de eventos que tocam, necessariamente. Você está supertranquilo em termos de classe média, você vai indo, daqui a pouco você sofre uma injustiça e daí você vê que aquela injustiça não é uma injustiça que é tua, uma injustiça daquele caso, é uma injustiça (...) No meu caso, a minha mãe pegava os caras de rua, de manhã cedo eu me acordava e estava lá os caras sentados na mesa comendo, a minha mãe adoidada, e estava lá os caras, ela não tinha medo de pobre. Acabei não tendo medo de pobre também. E lutando por pobre.
Considerações Finais
Este estudo buscou compreender os atravessamentos existenciais e psicossociais que constituem as práticas da magistratura, especificamente de seu segmento dissidente. Embora reconhecida essa delimitação, os achados apresentados aqui podem contribuir para compreensão de uma gama bastante ampla de práticas jurídicas, pois apontam para a centralidade que esses atravessamentos podem desempenhar nas práticas das carreiras jurídicas em sentido lato, incluídas aí as carreiras públicas de relevante interesse social (Magistratura, Promotoria e Defensoria Pública).
A importância que os atravessamentos existenciais e psicossociais assumem nas práticas jurídicas deriva deles serem a fonte de onde emerge o sentido a partir do qual os agentes se situam hermeneuticamente em relação ao campo jurídico e de onde conduzem suas práticas. Neste estudo abordamos o papel que a dimensão do sentido e das trajetórias de vida adversas desempenham na constituição das práticas jurídicas, revelando que, por se tratar de uma atividade eminentemente hermenêutica, não é possível compreender adequadamente a atuação do Poder Judiciário sem essa consideração que resgata a natureza humana e social da ciência jurídica.
Embora essas conclusões eventualmente possam parecer óbvias - ao menos desde o ponto de vista da psicologia -, é digno de nota que até o momento o campo jurídico não foi capaz de avançar em direção às consequências lógicas desdobradas dessas constatações. Em outras palavras, ainda que do ponto de vista fenomenológico-existencial seja evidente que a técnica jurídica é incapaz de dar conta de seus dilemas ético-políticos, ainda assim a dimensão existencial permanece sendo um elemento sistematicamente omitido das discussões em torno da estruturação de práticas judiciárias. Sem essa autorreflexão, o Poder Judiciário terá dificuldades em materializar sentidos de justiça que respondam às demandas reiteradamente negadas das camadas mais vulneráveis da sociedade. Além disso, ignorar a insuficiência da ciência jurídica para lidar satisfatoriamente com os desafios advindos do reconhecimento de que as práticas jurídicas são necessariamente permeadas por atravessamentos existenciais não faz com que tais impasses desapareçam. O que ocorre é exatamente o inverso: eles se tornam onipresentes - embora cada vez mais ocultos atrás de sofisticados formalismos.
As pretensões de objetividade, imparcialidade, equidistância e autonomia que fundamentam a ciência jurídica moderna tornam-se natimortas, diante da renúncia em enfrentar seu desafio mais nevrálgico - que é o de fundamentar rigorosamente a legitimidade e factibilidade dessas pretensões. As justificações do Poder Judiciário que omitem como essa instituição lida com os atravessamentos existenciais, faz com que a objetividade e universalidade jurídicas só possam ser consideradas legítimas desde um ponto de vista subjetivo muito específico. Mas por tal ponto de vista ser hegemônico e investido de poder, ele faz com que todos pontos de vista contrastantes consigo apareçam pejorativamente como sendo subjetivos, parciais, ideológicos ou políticos - essa é a situação da magistratura dissidente, que não raras vezes é perseguida por suas posições contra-hegemônicas. A questão central, evidentemente, não é o risco de haver pontos de vista objetivos - ou técnicos - dentro do Poder Judiciário e da magistratura, em oposição a pontos de vista subjetivos - ou políticos. A questão é que alguns pontos de vista subjetivos - por serem hegemônicos e, portanto, constituídos e permeados pelos atravessamentos existenciais e psicossociais dominantes no Poder Judiciário e em toda a sociedade - são assumidos como se fossem desencarnados, objetivos e universais. Entretanto, nos resultados apresentados verificamos que a subjetividade e as condições de produção dessa subjetividade aparecem como elementos intrínsecos e necessários à constituição das práticas jurídicas. Sobre isso constatamos que o tipo de trajetória existencial - trajetórias permeadas por adversidades, no caso da magistratura dissidente - produz sensibilidades ético-políticas que são assumidas como decisivas para a condução das práticas jurídicas que têm como preocupação precípua a condição de vida de camadas específicas da sociedade - no caso da magistratura dissidente as camadas vulnerabilizadas. Essa simetria identificada entre trajetórias de vida e práticas jurídicas sugere importantes discussões em torno do problema de como garantir uma justa justiça para todos em um sistema judiciário que toma como universal a racionalidade de alguns poucos; uma racionalidade forjada em trajetórias de vida muitas vezes completamente dissociadas do mundo da vida da maior parte da população jurisdicionada.
Ao abandonar a ingenuidade que reluta em reconhecer o caráter eminentemente político - e portanto existencial - das práticas jurídicas, somos confrontados com o desafio concreto de como lidar, enquanto sociedade, com os sentidos de justiça contrastantes, derivados de trajetórias existenciais também contrastantes. Tradicionalmente, a estrutura organizacional e política do Poder Judiciário exclui de suas preocupações a questão de como garantir a participação equitativa de agentes com trajetórias existenciais diversas - especialmente de trajetórias marcadas pelas adversidades que estruturam a vida da maior parte da nação brasileira e latinoamericana. Nesse processo, sentidos de justiça divergentes terminam sendo excluídos ou reprimidos por serem minoritários. Contudo, somente porque os fatores de filtragem subjetiva e existencial asseguram a exclusão da quase totalidade da população dessa instituição é que se pode garantir que os sentidos de justiça elitistas persistam ali sendo majoritários e hegemônicos. Esse problema, todavia, não pode ser enfrentado se as discussões permanecerem reduzidas aos aspectos estritamente técnicos da racionalidade jurídica ou do processo judicial em si. Está anunciado aqui um desafio que transcende as formalidades do direito, apontando para a urgência de voltarmos nossas atenções para as vivências e experiências constitutivas do conteúdo material dos sentidos da justiça praticados em nossa sociedade e instituições, sob pena de consolidarmos a racionalidade jurídica como mero instrumento político de legitimação da injustiça.
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Recebido em 21.07.2020
Primeira Decisão Editorial em 16.04.2021
Aceito em 30.07.2021
1 A pesquisa contou com o fomento da CAPES.
2 Para assegurar o anonimato dos participantes, foram feitas supressões de alguns trechos das falas. Nessas ocasiões é indicado entre colchetes o significado geral do conteúdo suprimido. Esses colchetes são precedidos por três pontos, o que os diferencia daqueles que sinalizam acréscimos dos autores às falas dos participantes para contextualizar as falas.
3 Os colchetes iniciados por "P" fazem parte da transcrição das entrevistas, indicando o momento em que foram feitas interpelações dos pesquisadores aos participantes.