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Pesquisas e Práticas Psicossociais
On-line version ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.10 no.2 São João del-Rei Dec. 2015
DOSSIÊ PSICOLOGIA COMUNITÁRIA
Mangueira: a cultura comunitária e o centro cultural cartola
Mangueira: a community Culture and "Cartola" Cultural Center
Mangueira: la cultura comunitaria y el Centro Cultural Cartola
Cibele Mariano Vaz de MacêdoI; Regina Gloria Nunes AndradeII
IDoutora (2013) e Mestre (2009) em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Psicoterapia de Criança, Casal e Família (2008), em Gestalt-terapia (2006) e Graduada em Psicologia (2003) pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Pesquisadora Associada ao Núcleo de Estudos Relações Raciais: memória, identidade e imaginário, na PUC-SP. Professora na Universidade Ibirapuera e na Universidade Santo Amaro. E-mail: cibelevaz@gmail.com
IIGraduada em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (1974). Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal da Bahia (1965). Doutorado em Comunicação Social pela ECO Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988). Professora Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia - Pós-graduação em Psicologia Social. Atualmente é pesquisadora visitante da UERJ - Coordenadora do Convênio CAPES-COFECUB com a Université Lille
RESUMO
O presente trabalho analisa as relações entre os processos de investigação e de intervenção no campo comunitário, enfatizando duas questões centrais: a) se a investigação (pesquisa) deve conduzir a ações que também sejam comprometidas com a realidade e a transformação social; e b) se o processo de intervenção em comunidade gera conhecimentos socialmente relevantes. Para isso procede-se a uma reflexão sobre os dilemas e desafios éticos que estão presentes nas práticas comunitárias: a) relacionados às exigências metodológicas e de produção de conhecimento; b) ligados à "sensibilidade cotidiana e histórica". Indaga-se se a intervenção psicossocial capta os processos de participação e conscientização. Finaliza-se com uma exposição de aspectos importantes para a congruência metodológica e política entre intervenção e investigação psicossocial em comunidade, na perspectiva da Psicologia Social Comunitária Latino-Americana.
Palavras-chave: Investigação-intervenção em Psicologia Social Comunitária; Ética e práticas comunitárias; Relação profissional-comunidade.
ABSTRACT
This paper analyzes the relationships between the processes of investigation and intervention in the community field, emphasizing two central questions: (a) if the investigation (research) should lead to actions that are also committed to reality and social change; and (b) if the community intervention process generates socially relevant knowledge. For it the paper proceeds to a reflection on the dilemmas and ethical challenges that are present in community practices: (a) related to methodological requirements and to the production of knowledge; (b) linked to "daily and historical sensibility". It asks if psychosocial intervention captures the processes of participation and awareness. It ends up with an exposure of significant aspects to the methodological and political congruence between intervention and psychosocial research in community from the perspective of Latin American Social Community Psychology.
Keywords: Research-intervention in Social Community Psychology; Ethics and community practices; Professional-community relationship.
RESUMEN
Este trabajo analiza las relaciones entre los procesos de investigación e intervención en el ámbito de la comunidad, haciendo hincapié en dos cuestiones centrales: (a) si la investigación (pesquisa) debe conducir a acciones que también están comprometidos con la realidad y el cambio social; y (b) si el proceso de intervención comunitaria genera conocimiento socialmente relevante. Para tanto el documento procede a una reflexión sobre los dilemas y desafíos éticos que están presentes en las prácticas en la comunidad: (a) en relación con los requisitos metodológicos y de la producción de conocimiento; (b) ligados a "la sensibilidad cotidiana y histórica". Se pregunta si la intervención psicosocial captura los procesos de participación y toma de conciencia. Se termina con una exposición de los aspectos importantes de la congruencia metodológica y política entre la intervención y la investigación psicosocial en la comunidad desde la perspectiva de la Psicología Social Comunitaria Latinoamericana.
Palabras clave: Investigación-intervención en Psicología Social Comunitaria; Ética y prácticas de la comunidad; Relación profesional en la comunidad.
Introdução
Desde 2004, a pesquisa Construções de identidade cultural e autoestima com jovens e crianças no Centro Cultural Cartola (CCC), inserida na linha de pesquisa Contemporaneidade e processos de subjetivação do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), desenvolve projetos de temáticas diversas como cultura e identidade cultural, território, autoestima e imagem corporal, processos de composição musical e literária, vulnerabilidade e autonomia, ética, cidadania na contemporaneidade.
Dentre os projetos realizados está o que resultou na Dissertação de Mestrado Identidade Cultural e Imagem de Si: Construções de Subjetividades no Território do Centro Cultural Cartola - Mangueira/RJ, que investigou, por meio do Grupo Operativo, os processos de subjetivação de crianças e jovens que frequentam a Ação Griô1 do Centro Cultural Cartola (CCC), na Mangueira/RJ, a partir das relações estabelecidas entre território, identidade cultural e imagem de si.
Para empreender a presente discussão, reconheceu-se a relevância de construir um percurso, partindo do macro, a Mangueira, para o micro, o CCC, com o intuito de possibilitar a compreensão dos sentidos e significados dados pelas crianças e jovens que participaram do Grupo Operativo. A atenção voltou-se não só para o desenvolvimento da Mangueira, a história de sua ocupação, seus primeiros moradores, a fundação da Estação Primeira, como também para o trabalho no campo social de referência para a reelaboração de práticas e narrativas de identidade culturais. Abordou-se ainda a história, os objetivos e as práticas do CCC, com ênfase na vida do músico que inspirou sua fundação, Angenor de Oliveira, o Cartola. Além disso, fez-se o relato de como se fundamentaram e realizaram-se os Grupos Operativos neste contexto.
Uma só denominação: Mangueira
Cabe ressaltar a opção de chamar a Mangueira pelo seu nome próprio, sem qualitativos adicionais como favela, morro ou comunidade, os quais, embora abarquem tantas significações, não dão conta das especificidades do campo social da Mangueira. Tal decisão justifica-se, pois Mangueira representará sempre marcante identificação, essa denominação tem valor especial por ter sido dada pelos próprios moradores. Quando alguma criança do CCC responde à pergunta "onde você mora?", a resposta é sempre a mesma: "eu moro na Mangueira" ou "eu sou da Mangueira".
Localizada na Zona Central da cidade do Rio de Janeiro, a Mangueira começou seu processo de ocupação no século XIX. Dados da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, de acordo com Constant (2007), mostram que ela é o terceiro morro habitado mais antigo da cidade, tendo sido precedida apenas pelos morros da Providência e de Santo Antônio.
A Mangueira ocupa uma área de 79,81 hectares e divide-se em núcleos populacionais, como Morro dos Telégrafos, Candelária, Pindura Saia, Santo Antônio, Chalé, Faria, Tengo-Tengo, Buraco Quente, Curva da Cobra, Pedra, Joaquina, RedIndian, entre outros. Cada um deles possui característas próprias, bem distintas e dinâmicas, em relação às construções habitacionais, às atividades profissionais desenvolvidas pelos moradores, às inter-relações cultivadas.
O Buraco Quente constutui um exemplo na dinamicidade na formação do espaço. Oficialmente denominado Travessa Saião Lobato, localiza-se num espaço de passagem para as regiões mais ígremes da Mangueira. Por muito tempo, foi visto como um lugar de encontro de sambisdas, dos grandes compositores. Atualmente, a frequência no local não é recomendada. A Griô do CCC relatou por diversas vezes: "O Buraco Quente é o lugar mais perigoso e enojante da Mangueira".
Por ser uma região onde havia muitos pés de manga, ficou popularmente conhecida como Morro da Mangueira. Em 1889, quando foi inaugurada a Central do Brasil, a estação, que ficava vizinha ao morro, foi chamada de Estação Mangueira, oficializando o nome do lugar.
O início de sua ocupação ocorreu no final do século XIX. Em 1908, ainda sob os efeitos da Reforma de Pereira Passos, obras na Quinta Imperial demoliram o quartel do 9º Regimento de Cavalaria e, consequentemente, os alojamentos dos soldados, localizados nas imediações. Os soldados foram autorizados, pelo Exército, a utilizarem os materiais das demolições na construção de suas novas moradias, feitas no Morro dos Telégrafos, nome em referência a uma torre de comunicações telegráficas instalada ainda no século XIX, e a primeira área a ser habitada na Mangueira. O cabo ferrador Cândido Tomás da Silva, o Mestre Candinho, foi o primeiro morador do morro (Constant, 2007).
Em 1916, um incêndio atingiu o Morro de Santo Antônio, fazendo com que os moradores se mudassem para a Mangueira. Algum tempo depois, demolições no Morro da Favella, para a construção da linha férrea, fizeram com que seus moradores também se mudassem para lá (Constant, 2007). Quando as famílias de ex-escravizados chegaram à Mangueira, o português Tomás Martins, como arrendatário do Visconde de Niterói, primeiro proprietário daquelas terras presenteadas pelo Imperador, já havia construído barracos de aluguel. O responsável por receber os aluguéis era o afilhado de Tomás, Carlos Moreira de Castro, um rapaz de 14 anos, nascido na Mangueira, que exercia a tarefa de cobrador desde os oito anos e que, mais tarde, ficou conhecido como Carlos Cachaça.
O crescimento populacional da Mangueira deu-se a partir da década de 1930, período no qual se observou o desenvolvimento da ocupação de outras encostas da cidade, a maioria delas impulsionadas por migrações procedentes de Minas Gerais, de estados do Nordeste, do interior do estado do Rio de Janeiro, de portugueses e por escravizados libertos.2
Atualmente, a Mangueira é a nona maior favela do Rio de Janeiro, com população de 17.860 moradores, o que corresponde, aproximadamente, a quatro mil famílias.3 Para a Griô do CCC, as famílias numerosas são uma herança africana: "As famílias dos africanos eram reprodutoras, tinham muitos filhos. As famílias da Mangueira, descendentes dos africanos, têm muitos filhos também". Informação corroborada pelos depoimentos daqueles que participaram da atividade da Árvore genealógica do Grupo Operativo. Juliano4 (sete anos): "Tenho 10 irmãos". Márcia (10 anos): "Minha mãe tem 10 irmãos de pai e outros que nem sei [quantos, de mãe]".
Conforme observado por Constant (2007), por estar rodeada por fábricas, como a Cerâmica, o Chapéu Mangueira, a fábrica de escovas, o Café Capital e a fábrica de cordas, essa localização constituiu fator importante para sua ocupação. A autora relata que a proximidade da Quinta da Boa Vista, do centro da cidade e da linha férrea foram outros atrativos para as imigrações, que, com o passar dos anos, se ampliaram, dado que a Mangueira se encontra próxima à linha do trem e do metrô, ao estádio do Maracanã e à Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Nas histórias contadas pela Griô do CCC, o período próspero das indústrias é sempre lembrado:
Há muita riqueza na Mangueira. Na Av. Visconde de Niterói tinham mais de 8 indústrias, empresas, bancos, o IBGE [prédio cedido pela Prefeitura ao CCC], então a mão de obra vinha do morro. Mas a violência veio e as empresas foram embora. Os moradores da Mangueira não conhecem miséria, fome... Todas as casas têm TV, freezer. Porque eram todos trabalhadores, tinham as boleiras. Mas agora a violência não os deixa sair (Ação Griô, 26/09/2008).
A organização social na Mangueira, segundo Costa (2003), aconteceu por intermédio da música e do carnaval - veículos por meio dos quais os acontecimentos da comunidade se inseriam na sociedade. Na década de 1910, a Mangueira tinha dois cordões de carnaval: "Guerreiros da Montanha", com sede da casa da Tia Chiquinha Portuguesa, e "Trunfos da Mangueira", sediado na casa de Leopoldo da Santinha, ambos moradores do Buraco Quente. Formados por uma comissão de frente de índios, apresentavam uma coreografia indígena, e o estandarte era um pau com quase dois metros de altura. Depois vieram os ranchos: "Pingo do Amor", "Príncipe das Matas" e "Pérolas do Egito", este fundado por Bendita de Oliveira, a Tia Fé.5
Entretanto, manter os ranchos era muito caro, pelo custo das fantasias e dos instrumentos; então, começaram a aparecer os blocos, como: "Bloco da Tia Fé", "Bloco da Tia Tomásia" e "Bloco do Mestre Candinho". Desfilando pela primeira vez no Carnaval de 1927, a Mangueira teve ainda o "Bloco dos Arengueiros",6 presidido por Zé Espinguela e comandado por Cartola, Saturnino Gonçalves, Carlos Cachaça, Massu, Zé Bolero, Antonico e Arturzinho. Três anos mais tarde, o "Bloco dos Arengueiros" reuniu os demais blocos da Mangueira e juntos fundaram o "Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira".
Fundada em 28 de abril de 1928, na casa de Euclides Roberto dos Santos, no Buraco Quente, a Estação Primeira de Mangueira contou com a presença, registrada em ata, além do dono da casa, de Saturnino (pai de D. Neuma), Marcelino José Claudino, o Massu, Angenor de Oliveira, o Cartola, José Gomes da Costa, o Zé Espinguela, Pedro Caim e Abelardo da Bolina. O nome e as cores - verde e rosa - foram escolhidos por Cartola. Ficaram, assim, organizados o desfile de carnaval e o espaço de sociabilidade entre a comunidade e a cidade.
A Escola ganhou prestígio depois que o samba deixou de ser foco de repressões policiais. A era do rádio, nos anos 1930, estimulou a passagem do samba para o asfalto (Constant, 2007). Ainda assim, a Mangueira nunca teve facilidade para organizar o desfile do carnaval. Foi um longo período até que a Escola saísse de sua precária sede no Buraco Quente, passasse para o clube da fábrica Cerâmica, até conseguir construir, em 1972, sua quadra atual, conhecida como o "Palácio do Samba".
A Estação Primeira alçou a Mangueira ao mundo, por conferir a ela status de patrimônio cultural e local de nascimento ou moradia de grandes poetas do samba. Por sua trajetória dos bairros populares e das favelas à sociedade como um todo, o samba se destaca como principal elemento integrador desse processo. Sem dúvida, a música e a Escola de Samba constituíram-se, ao longo do tempo, como mediadores do diálogo entre a favela e a cidade, ao desempenharem uma adesão de realidades sociais heterogêneas.
Observam-se, com frequência, crianças do CCC cantando os sambas-enredo da Mangueira. Algumas delas, enquanto pintavam a atividade Lugares que eu conheço do Grupo Operativo, se deixavam embalar pela música. Maurício (11 anos) cantava o samba-enredo de 2008, 100 anos de frevo [...], quando Camila (10 anos) comentou: "Esse ano a Mangueira tem que fazer bonito e ganhar, porque, desde 2000 sem ganhar, não dá mais". São inúmeros os exemplos de que a Estação Primeira está presente na vida dos moradores da Mangueira.
Por ser considerada uma referência no cenário cultural carioca, o orgulho de ser mangueirense fica evidente no discurso dos moradores. Constant (2007) relata que "ser da Mangueira" significa muito mais que apenas habitar uma favela ou ser filiado a uma escola de samba; "ser da Mangueira" significa pertencer a um grupo social rico em seus valores e cultura. Consoante entendimento apresentam Maia e Krapp (2005), ao afirmarem que há, por parte dos moradores, um evidente sentimento de orgulho em pertencer à Mangueira. Orgulho que não está vinculado ao orgulho da Escola de Samba, do qual se distingue, por estar relacionado ao local onde vivem.
No decorrer dos anos, as cores verde e rosa foram além da representação da Escola de Samba e tornaram-se capazes de remeter as pessoas à Mangueira como um todo. Constant (2007) cita como exemplo que evidencia a identidade e o orgulho em pertencer à Mangueira o Jornal A Voz do Morro, lançado em março de 1935. A autora menciona a matéria de capa da primeira edição, cuja manchete era Samba; o texto referia-se à importância do samba para a cidade do Rio de Janeiro e para a própria existência do jornal, dedicado ao samba. Tal iniciativa serve para corroborar o pensamento de Maia e Krapp (2005), assim como o de Constant (2007), acerca do sentimento de orgulho e pertencimento a um grupo social dos habitantes da Mangueira, presente desde os anos 1930.
A riqueza simbólica da Mangueira é inegável e vem expressa na construção/reconstrução de mapeamentos e imaginários que perpassam grupos e regiões locais, na linguagem por meio de gírias e de vícios de linguagem, compreendidos por todos os moradores. É um espaço simbólico que propicia entendimento entre jovens ou velhos, ou entre moradores de diferentes regiões da Mangueira. Maia e Krapp (2005) relatam a possibilidade de, ao passar-se por becos e ruelas, desfrutar-se das histórias cotidianas, compartilhadas pela expressão oral dos habitantes.
As relações sociais na Mangueira são marcadas por particularidades que lhes dão identidade própria. Maia e Krapp (idem) destacam as formas ampliadas do estabelecimento da intimidade, da propriedade e da divisão do espaço.
Uma mesma casa expande-se e divide-se inúmeras vezes durante sua existência; uma laje não é um mero elemento construtivo, mas um espaço em branco a ser preenchido com o casamento de um filho, o nascimento de um neto ou a dificuldade de um amigo (MAIA & KRAPP, 2005, p. 39).
A maneira como as relações na Mangueira são estabelecidas, de forma a reforçarem a produção de uma cultura plural, criativa e de resistência aos processos de massificação e totalização, permite ao mangueirense conceber um sentido específico para o local.
A Mangueira consolidou-se, na cena carioca, como berço rico em cultura, criatividade e força para superar dificuldades - poucos recursos, repressão policial e atuação do tráfico - sem nunca deixar que suas manifestações culturais desaparecessem. Isso foi possível por intermédio de iniciativas pessoais, coletivas e institucionais, ao serem implantados diversos projetos sociais direcionados aos moradores.
Angenor de Oliveira - Cartola: a inspiração
Foi em 1919 que a história da Mangueira recebeu uma nova personagem que a marcaria para sempre. Angenor de Oliveira, ainda menino, acompanhado da família, chegava para viver no local. Mas essa história começou em um domingo de primavera, no dia 11 de outubro de 1908, na Rua Ferreira Viana, número 9, no Catete, dia em que nascia Angenor, auxiliado por uma parteira, filho de Sebastião Joaquim de Oliveira e Aída Gomes de Oliveira, negros, ex-escravizados e semialfabetizados.
Assim como o pai, que decidiu aprender a ler e a escrever sozinho (decidiu sair do analfabetismo quando, no dia de seu casamento com dona Aída, o juiz falou que era uma vergonha um rapaz tão bonito não saber escrever), Cartola foi um autodidata, aprendeu a tocar violão sozinho e foi poeta sem ter estudado literatura (Barboza & Oliveira Filho, 2003; Ramalho, 2004).
Depois de servir como cozinheiro ao senador Dr. Nilo Peçanha, o avô materno de Cartola, o senhor Luís Cipriano Gomes, em 1916, foi trabalhar como encarregado na Fábrica Fiação Tecelagem e Tinturaria Aliança, em Laranjeiras (Diniz & Bonito, 2004). A fábrica têxtil foi uma das indústrias que, em 1900, recebeu incentivo do Governo para construir casas para seus então mil funcionários (Abreu, 2008). Uma das casas da vila operária foi ocupada pela família de Cartola.
O período em que morou em Laranjeiras desenvolveu em Angenor duas paixões. A primeira, pelo Fluminense, pois acompanhou toda a construção da sede do clube. E a segunda, pelos ranchos carnavalescos do bairro (Diniz & Bonito, 2004). Entretanto, o seu preferido era o Rancho Arrepiados, o maior destaque do carnaval, cujas cores, verde e rosa, influenciaram uma escolha feita por Cartola alguns anos mais tarde. No Rancho Arrepiados, Cartola tocava cavaquinho, que aprendeu vendo o pai tocar.
Menino muito vaidoso, gostava de estar bem vestido. Muito mais velho, com quase setenta anos, ainda dizia: "Antes de o meu avô morrer, não havia pretinho mais bem vestido do que eu em todo o bairro de Laranjeiras. Depois que ele morreu é que as coisas pioraram muito para mim" (Barboza & Oliveira Filho, 2003, p. 31).
Em 1919, a morte do senhor Luís Cipriano obrigou a família de Cartola a abandonar a vila operária e mudar-se para a Mangueira, que contava, à época, com quase cinquenta barracos (Ramalho, 2004). O senhor Sebastião escolheu uma das casas mais bonitas para a família morar. Mas as dificuldades financeiras fizeram com que Cartola precisasse trabalhar; apesar de ser o terceiro filho de dez irmãos, era o filho homem mais velho.7
Empregou-se em uma gráfica, passava todo seu salário para o pai pagar as despesas familiares. Sonhava em trabalhar na construção, admirava a possibilidade de trabalhar em cima dos andaimes e poder ver as meninas passando. Conseguiu o trabalho de servente, mas, como sempre foi vaidoso, incomodava-se com o cimento caindo em seu cabelo. Começou a trabalhar com um velho chapéu-coco e passou a usá-lo mesmo quando não estava trabalhando (Ramalho, 2004). O chapéu se tornaria a sua marca, sua referência; Cartola, o apelido adquirido na adolescência, o nomearia até o fim da vida.
Com a morte de dona Aída, o senhor Sebastião abandonou a Mangueira e o filho rebelde. Aos 12 anos, Cartola ficou morando sozinho num barraco (Barboza & Oliveira Filho, 2003). Acompanhado por Carlos Cachaça, seu amigo inseparável, futuro parceiro de composições e futuro concunhado, começou a frequentar as rodas de samba da Mangueira. Aprendeu a gostar da malandragem, seu herói era o velho Massu, que viria a ser o primeiro mestre-sala da Mangueira. Com ele aprendeu o que era ser malandro: "Malandro não trabalhava, se vestia bem, tocava violão, jogava remada e vivia à custa de mulher" (idem, p. XVI).
Aos 17 anos caiu doente,8 uma vizinha mais velha, casada e com uma filha de dois anos, foi quem se encarregou de cuidar dele, dona Deolinda da Conceição. O marido dela, Astolfo, percebeu que a mulher andava diferente, e ela revelou sua paixão por Cartola. Abandonada pelo marido, dona Deolinda foi com a filha viver com ele; viveram juntos até quando ela morreu (Barboza & Oliveira Filho, 2003; Ramalho, 2004). A vida com Deolinda, que trabalhava passando, lavando e cozinhando, permitiu que Cartola deixasse o trabalho de pedreiro em segundo plano para compor suas primeiras músicas, entre um gole de cerveja e outro nos botecos da Mangueira (Ramalho, 2004).
Talvez por saudade dos ranchos carnavalescos da infância, ou pelo fato de ele e de seus amigos não serem bem-vindos aos blocos da Mangueira, por se comportarem mal, por beberem, falarem palavrões, brigarem e namorarem demais, Cartola decidiu unir-se a Carlos Cachaça, José Espinguela, Saturnino Gonçalves e Marcelino e juntos fundaram o Bloco dos Arengueiros (Constant, 2007).
Em 1920, nascia, no Estácio de Sá, a Escola de Samba Deixa Falar, que virou Unidos de São Carlos e, depois, Estácio de Sá. Cartola percebeu que, se os blocos da Mangueira se unissem e não mais disputassem entre si, também poderiam fundar uma Escola de Samba. Desse modo, como resultado da mudança de comportamento dos Arengueiros a favor da união, comandados por Cartola, os principais blocos carnavalescos da Mangueira fundaram a Estação Primeira de Mangueira (Ramalho, 2004).
Cartola teve presença decisiva desde os primeiros anos da escola de samba. Foi ele quem escolheu as cores verde e rosa, o que seria uma homenagem aos carnavais da infância no Rancho Arrepiados. Escolheu também o nome da escola, Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, como ele mesmo gostava de explicar: "Eu resolvi chamar a Estação Primeira porque era a primeira estação de trem, a partir da Central do Brasil, onde havia samba" (Ramalho, 2004, p. 3).
Fundou ainda a ala dos compositores; a Mangueira foi a primeira escola de samba a ter essa ala. Foi o primeiro diretor de harmonia e o compositor, com Carlos Cachaça, do primeiro samba-enredo da escola, Chega de Demanda (Constant, 2007). Entre os anos de 1928 e 1948, venceram onze disputas de samba-enredo e foi com seus sambas que a Escola foi tricampeã nos anos de 1932 (A Floresta - Cartola e Carlos Cachaça), 1933 (Uma segunda-feira no Bonfim da Bahia - Cartola e Carlos Cachaça) e 1934 (Divina Dama/República da Orgia - Cartola). O samba Não quero mais (Cartola, Carlos Cachaça e Zé da Zilda) foi campeão do carnaval em 1936.
Em 1931, Cartola vendeu seu primeiro samba, prática corrente num momento da história em que não se falava em direito autoral. Entretanto, o interessado em comprar o samba de Cartola, Mário Reis, famoso cantor da época, teve de insistir muito para Cartola descer o morro e cantar Infeliz sorte e teve ainda que aceitar a exigência de Cartola de que a música permanecesse de sua autoria (Ramalho, 2004). Quem acabou cantando a música foi Francisco Alves, que ficou melhor em sua voz.
Em 1940, foi convidado por Villa-Lobos para participar das gravações com o maestro Leopoldo Stokowski (1882-1976), com Donga, Pixinguinha, João da Baiana, Heitor dos Prazeres, Zé Espinguela e outros. As gravações foram feitas a bordo do Navio Uruguai, ancorado no píer da Praça Mauá, e resultaram em dois álbuns de quatro discos de 78 rpm, lançados pela Columbia, nos Estudos Unidos da América.
Ainda em 1940, Cartola e Paulo da Portela fundaram o programa A Voz do Morro, na Rádio Cruzeiro, onde eles se apresentavam com outros sambistas, cantando composições próprias ou de outros compositores. Em 1941, formou também, com Paulo da Portela e agora com Heitor dos Prazeres, o Conjunto Carioca, chegando a se apresentar por um mês na Rádio Cosmos, em São Paulo (Barboza & Oliveira Filho, 2003).
O grande compositor sustentou a sua posição de liderança na Estação Primeira até 1946. A partir de então, começou a perder a autoridade e foi ficando cada vez mais isolado. Cartola teve meningite e Deolinda cuidou dele. Porém, logo que se recuperou, ela morreu de parada cardíaca. A morte da companheira, em 1948, deixou Cartola muito triste; fez duas músicas em homenagem a ela: Sim e Rolam dos meus olhos. Foi nesse mesmo ano que a Mangueira entrou, pela última vez, na avenida com um samba, Vale do São Francisco, de sua autoria e de Carlos Cachaça, ficando somente com o quarto lugar (Ramalho, 2004).
No ano de 1949, Ramalho (2004) relata que o fato de Hermes Rodrigues ter assumido a presidência da Estação Primeira e ter mudado as regras para a escolha do samba-enredo era o que faltava para fazer com que Cartola deixasse a Mangueira e sumisse por alguns anos. Chegou a ser considerado morto e tornou-se figura mitológica. Viveu em Nilópolis e depois no Caju, período em que emagreceu, perdeu dentes, apareceram os primeiros sintomas da rinofíma - o nariz começava a escurecer -, doença que precisou ser operada mais tarde.
Preocupado com o amigo, Carlos Cachaça o convidou para passar a tarde com ele e sua esposa, Menina. O convite fez com que Cartola reencontrasse Euzébia Silva do Nascimento, Zica, a cunhada do parceiro. Não demorou muito do início do romance até decidirem viver juntos, em 1952 (Ramalho, 2004). Zica não se conformava com o fato de Cartola estar afastado da música, então o convenceu a voltar para a Mangueira.
Em consequência da meningite, Cartola não pôde mais trabalhar como pedreiro. Passou por vários empregos, inclusive o de lavador de carros na Garagem Oceânica, em Ipanema. Um dia, tomando café num botequim ao lado da garagem, o jornalista e produtor de rádio, Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, o reconheceu e o relançou, proporcionando-lhe a gravação de seu disco, o primeiro aos sessenta e seis anos (Ramalho, 2004; Constant, 2007).
A partir de 1961, sua casa e de Zica tornou-se um ponto de encontro de sambistas. Mais tarde abriram um restaurante, onde podiam unir a música de Cartola às receitas de Zica. Inaugurado em 1963, na Rua da Carioca, 53, o Zicartola foi um sucesso, e tornou-se local de encontro de gerações e de estilos musicais, virou moda entre representantes do samba e novos compositores da geração pós-bossa nova (Constant, 2007).
Foi somente na década de 1970 que Cartola foi reconhecido pela crítica musical. Em entrevista ao jornal O Globo, desabafou: "Eu já tinha até pensado que ia morrer sem gravar um disco. Tava até perdendo a vontade de cantar, vendo tanta gente que gravava e só não chegava a minha vez. Quando o disco saiu, voltei a fazer música correndo" (Ramalho, 2004, p. 32). Seu primeiro Long Play, Cartola, gravado em 1974, pelo selo Marcus Pereira, rendeu-lhe todos os prêmios do ano. Em 1976, gravou o segundo LP, com o mesmo título Cartola; entre as músicas estava As rosas não falam.
Motivado pelo reconhecimento e pelo aumento dos shows, compôs, nesse período, seus maiores clássicos: Acontece, O mundo é um moinho e Autonomia. De origem simples e pouca escolaridade, tinha a formação primária incompleta, o que não o impedia de compor versos elaborados, frutos de sua sensibilidade lírica apurada. Entretanto, Cartola confessava ler as poesias de Castro Alves, Olavo Bilac, Camões e Guerra Junqueiro para melhorar suas letras (Ramalho, 2004). Não eram composições óbvias: falavam de amor, mas não eram vulgares ou melodramáticas. Suas melodias rendiam-lhe admiração e elogios.
Em 1977, gravou seu terceiro LP, Cartola-verde que te quero rosa, dessa vez pelo selo RCA Victor, com igual sucesso de crítica. Ainda em 1977, descobriu um câncer e o operou no mesmo ano; assim como de outras vezes, não seguiu o tratamento indicado pelo médico. Em 1978, decidiu mudar-se para Jacarepaguá, para ter mais tranquilidade; o assédio constante na Mangueira tirava-lhe o sossego para compor. No mesmo ano, lançou seu show solo, Acontece. Em 1979, quando gravava seu quarto LP, Cartola - 70 anos, também pela RCA, foi acometido por outro câncer, que causaria a sua morte. Passou os últimos anos de sua vida escrevendo, até que a doença se agravou e morreu, aos setenta e dois anos, no dia 30/11/1980.
Não teve filhos biológicos com Zica, mas adotou Ronaldo, cuja mãe deu à luz na casa deles e foi embora sem levar o menino. A filha do primeiro casamento de Zica, Regina, também foi adotada por Cartola, e os filhos dela, Pedro Paulo e Nilcemar, eram considerados por Cartola como seus netos (Ramalho, 2004).
Foi reconhecido como o compositor que mais divulgou o nome da Mangueira, sendo consagrado entre os mais importantes nomes da música brasileira. Recebeu homenagens ainda em vida e depois da morte. A frase de Nelson Sargento "Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve"está pintada em uma das paredes de permanente homenagem ao compositor, feita todos os dias, desde que foi inaugurado, em 2001, por dona Zica, e por seus netos Pedro Paulo e Nilcemar Nogueira, o Centro Cultural Cartola.
A criação do Centro Cultural Cartola objetivou realizar um desejo dele, relatado por dona Zica, pouco antes da morte dela, em 2003: "Cartola queria que todas as crianças da comunidade pudessem ter um espaço e não vivessem à margem da sociedade. Tenho certeza de que ele estaria muito satisfeito em saber que sua imagem está vinculada a uma ação como essa" (Ramalho, 2004, p. 39). Zica foi a primeira presidente de honra do CCC, e continua sendo in memorian.
Eleger o Cartola como patrono do CCC reflete o desejo de manter viva a sua história. Além de um dos grandes compositores e divulgadores do samba, constituiu-se como referência por sua luta contra as dificuldades sociais. Por sua cultura e arte, Cartola conseguiu inserir-se na sociedade, transformar sua condição de vulnerabilidade, ser reconhecido e reverenciado.
Centro Cultural Cartola: memória, cultura e cidadania
É dentro do contexto socioespacial da Mangueira que o CCC se encontra. Fundamentado na obra musical de Cartola o CCC constitui uma organização não governamental (OnG), sem fins lucrativos, com o objetivo de promover desenvolvimento social e cultural. Conta com parcerias com o poder público e privado para realizar atividades culturais, musicais e esportivas, direcionadas às crianças, jovens, adultos e idosos moradores da Mangueira e de bairros vizinhos, visando ao desenvolvimento e reconhecimento de valores culturais e do sentimento de pertencimento aos locais em que vivem.
Desde 2003, o CCC ocupa a área de sete mil metros quadrados do antigo complexo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que foi cedida pelo Ministério da Cultura. Como Nilcemar Nogueira descreve:
O Centro Cultural Cartola está localizado na favela da Mangueira, no Rio de Janeiro, em um prédio desativado do IBGE. O espaço foi cedido pelo Ministério da Cultura e ocupa uma área de sete mil metros quadrados e, apesar de não ter suas obras concluídas, desenvolve várias atividades como as oficinas de música e de teatro que resgatam um pouco da memória de um dos ícones da música popular brasileira e do cenário carioca.[9]
A introdução da entrevista concedida por Nilcemar Nogueira, ao site Gol de Letra, esclarece como surgiu a ideia do CCC:10
A inspiração estava dentro de casa. A referência estava na família. O material, guardado em caixas e armários. Só faltava "colocar a mão na massa" e organizar e estruturar o que é hoje o Centro Cultural Cartola (CCC). E foi isso o que fizeram os netos de Angenor de Oliveira, mais conhecido pelo apelido: Cartola. Nilcemar e Pedro Paulo Nogueira descobriram preciosidades que pertenciam ao avô, como letras de música, fotografias, poesias, recortes de jornais, e decidiram, em 2001, que já era hora de criar uma iniciativa que aliasse a defesa da cultura nacional a uma série de atividades de cunho social, combatendo, dessa maneira, a pobreza, a marginalização da população menos assistida, a exclusão social e a falta de expectativas para o futuro.
Para Nilcemar, foi a convivência com Cartola e dona Zica que lhe ensinou o valor de preservar o passado e transmiti-lo aos jovens, para, assim, formar gerações mais conscientes de sua historia.11 Esse é um objetivo claramente percebido na fala de Nilcemar. O CCC oferece atividades musicais, esportivas e culturais, mas, se Nilcemar for questionada sobre sua pretensão de formar músicos ou atletas, ela responderá com a tranquilidade e a firmeza que lhe são características: "Não, eu pretendo formar cidadãos".
Outro momento que exemplifica essa convicção foi quando a Griô do CCC estava contando a história do poeta Solano Trindade e Nilcemar aproximou-se da roda onde estavam as crianças e falou:
O governo deve garantir escola e saúde, mas não dá para esperar o poder público resolver sua vida, nós podemos, através do nosso esforço, mudar a nossa vida. Como o Cartola que nasceu na Zona Sul e teve que vir para a Mangueira, mas não virou traficante ou miserável, mudou sua vida pela arte, não é que todos devam virar artistas, mas fazer o que escolher com arte.
O CCC apresenta como meta a valorização da cidadania, da liberdade, da participação social, do aprendizado musical e da cultura brasileira. Atua em prol do reconhecimento da cultura afro-brasileira, de suas tradições e costumes. Para tanto, o CCC se dedica à educação musical e artística, atuando no desenvolvimento, principalmente, de crianças e jovens, para que eles tenham inserção ativa na sociedade.
Dentre as atividades ali desenvolvidas figuram a Orquestra de Violino, o Curso de Flauta, o Curso de Teoria Musical, Oficinas de teatro, dança e a Ação Griô, além da exposição permanente da obra de Cartola e da história do samba, abriga um Centro de Referência de Pesquisa do Samba e realiza, anualmente, o Seminário sobre o Samba Patrimônio Cultural do Brasil. Além disso, promove rodas de leitura, mostra de vídeos e debates, palestras e eventos culturais com shows e apresentações. Em 2008, inaugurou o Telecentro, e o Cartola em Forma, o que alçou o CCC à categoria de Pontão de Cultura do Ministério da Cultura.
Desse modo, iniciativas como a do CCC procuram encontrar formas para se estabelecerem melhores condições de vida e de bem-estar para a sociedade como um todo, ao incentivar uma compreensão social mais crítica e menos alienada. Suas práticas orientam para o desenvolvimento de um novo nível de atitudes, comportamentos e valores éticos, baseados numa concepção ampliada do que é ser cidadão com autonomia de decisão em suas escolhas cotidianas.
Nilcemar acredita que Cartola, Carlos Cachaça, Saturnino e outros nomes do samba desenvolveram com a Mangueira um laço de amor e respeito e a tornaram uma grande referência na cidade do Rio de Janeiro e no País. Nilcemar relata: "Eles queriam que os outros moradores sentissem orgulho do morro".12 Ainda é possível encontrar um orgulho de ser mangueirense na fala dos moradores; entretanto, Nilcemar considera que, atualmente, há uma falta de referência, na qual "os jovens não têm uma identidade; por isso, é mais fácil assimilar as coisas ruins. Eles não sabem qual o papel que desempenham no meio. Com a violência, eles não estão preocupados em preservar nada".13
Os Grupos Operativos com crianças e jovens no CCC
A escolha por trabalhar com Grupos Operativos partiu da noção que o trabalho em Psicologia Social está incluído, implicado e produz transformação no próprio terreno de suas investigações, assim como fez Pichon-Rivière (2000) ao conceber o Grupo Operativo, na Experiência Rosário, em 1958. Dessa forma, o Grupo Operativo constitui-se, de acordo com o autor, como um grupo formado por um conjunto restrito de pessoas, com um objetivo comum, de duração limitada, centrado em uma tarefa e no qual teoria e prática são articuladas constantemente.
Centrar-se em uma tarefa é a característica principal do Grupo Operativo, tarefa esta que varia de acordo com o objetivo de cada grupo, podendo ser a conquista da cura, em grupos terapêuticos ou obter conhecimentos, em grupos de aprendizagem, por exemplo. Embora, Osório (2003) destaque que todo Grupo Operativo será sempre terapêutico, pois o "fundamental da tarefa grupal é a resolução de situações estereotipadas e a obtenção de mudanças" (p. 29).
Diante disso, o conceito de tarefa guia a ação do grupo. Pichon-Rivière (2000) considera que, na operação de tarefas, se podem resolver situações de ansiedade - tarefa entendida como a inscrição da pessoa no mundo, na sociedade, na política e na descoberta do desejo. Por meio da tarefa realizada no Grupo Operativo, torna-se possível ao sujeito recuperar um pensamento discriminativo, obter consciência de sua identidade e da identidade dos outros integrantes do grupo. Entretanto, Bleger (1993) ressalta que, mesmo que o grupo esteja centrado em uma tarefa, o fator humano preserva sua importância, por ele ser o "instrumento de todos os instrumentos" (p. 55).
Nesse sentido, a técnica do Grupo Operativo orienta-se para a expressão livre e espontânea dos integrantes, no qual eles podem atuar com seu repertório próprio de conduta, evidenciando. Seu processo implica movimento e é dinâmico. Para sua realização, o interesse recaiu mais no "como" do que no "o que"; o processo do Grupo Operativo não enfocou a atividade em si, mas, sim, a condução dessa atividade, ou seja, como ela se desenrolou e como se deram as discussões daí advindas. Isto é, mais importante que o fazer as atividades foram as discussões disparadas por elas, que serviam de estímulo à expressão livre, dentro do tema proposto.
Nesse cenário, para alcançar o objetivo proposto de compreender as formas de apropriação e produção de sentido dos processos de subjetivação, feitas pelas crianças que frequentam o CCC, foram propostas tarefas em diversas disposições. Durante a realização das atividades, foi estabelecido que todos podiam compartilhar e discutir as experiências vividas nas atividades do grupo. As crianças e jovens foram estimuladas a falar, desenhar ou escrever sobre elas mesmas: suas opiniões, gostos, sonhos, desejos, sobre sua família, os lugares que conhecem e o local onde moram.
A realização do Grupo Operativo possibilitou a conscientização das crianças sobre a relevância do outro na construção do autoconhecimento. O Grupo Operativo foi terapêutico, pois criou ambiente para a livre expressão da subjetividade, possibilitando a promoção do diálogo. A construção do autoconhecimento abre caminho para que as crianças se posicionem no mundo de forma ativa, crítica e responsável. Nesse sentido, acredita-se que estratégias podem ser empreendidas para que a criança melhore sua imagem de si, tornando viável a diminuição de conflitos, tanto individuais quanto sociais, dado que propicia ferramentas para lidar de maneira mais efetiva em situações de enfrentamento.
Sem dúvida, fica evidente que trabalhos como o do Grupo Operativo, que por meio de atividades expressivas, estimulam o autoconhecimento, bem como outros realizados no CCC e em diferentes projetos sociais são de grande valia para que crianças e jovens exercitem a autonomia em suas escolhas, se orgulhem de ser quem são e se responsabilizem por sua vida e seu sucesso. Sempre que uma atividade foi realizada na oficina da Ação Griô, era dito às crianças que tudo feito ali era arte, e a primeira coisa que deveriam aprender era valorizar a própria arte e a arte dos colegas. Esse é o primeiro passo para que as crianças desenvolvam uma imagem de si e um sentimento de pertencimento positivo.
A realização do Grupo Operativo permitiu observar que a identidade cultural das crianças e jovens que frequentam o CCC está construída em uma base sem ingenuidades ou ilusões, mas que admite a possibilidade de sonhar, com a certeza de que realizar sonhos significa esforçar-se de forma responsável e crítica. De certa forma, alguns sonhos já se concretizaram para eles, como o de descobrirem-se capazes de tocar violino ou flauta. Talvez fosse difícil imaginar que poderiam se apresentar em lugares como no Teatro Municipal, no Canecão ou ainda no programa de TV Mais Você. Há, igualmente, a realização do sonho de descobrir a existência de novas possibilidades de crescimento, que vão além da música.
No Grupo Operativo, as crianças e jovens relataram ainda as oportunidades que tiveram e os lugares que conheceram por intermédio das atividades do CCC. Outro tema recorrente durante as sessões eram as narrativas relacionadas aos medos da realidade em que vivem, por um lado, e à esperança de um mundo melhor, o desejo de paz e alegria, por outro.
A realização do Grupo Operativo propiciou perceber que as crianças e jovens que frequentam o CCC, apesar de conviverem com uma realidade de vulnerabilidade, conseguem apreender fatores positivos quanto ao território que habitam na Mangueira. As discussões decorrentes das atividades possibilitaram-nas expressar sua visão de mundo e as expectativas em relação ao futuro.
Conclusões
Este trabalho não foi o único desenvolvido no Centro Cultural Cartola. Nos Livros Territórios sem fronteiras: o social no contemporâneo (2014) e Território Verde e Rosa: Construções Psicossociais no Centro Cultural Cartola (2010) estão relatados vários outros trabalhos ali realizados desde 2004. Um dos fatos mais importantes é que antes de serem realizados estes trabalhos são submetidos à direção do CCC e ao Comitê de Ética e Pesquisa da UERJ e são realizados com objetivos fixos, limitados em tempo, mas com resultados múltiplos.
Nesse sentido, as atividades do CCC constituem meio para a integração de uma rede de referências, na qual crianças e jovens aprendem, pela cultura, a exercitarem sua cidadania, ao valorizarem suas produções e reconhecerem a produção do outro, a conviverem com vitórias e derrotas, a vencerem pelo esforço pessoal e a desenvolverem a independência, a autoconfiança e a responsabilidade por seus atos. É um trabalho que vai além de evitar o envolvimento com o tráfico e o crime e que, ao fortificar as relações, a cultura proporciona o livre exercício de escolhas mais conscientes e responsáveis. Nesse sentido, em uma conversa com Nilcemar sobre os objetivos do CCC, ela declara:
O objetivo do CCC é a cidadania, a identidade cultural e social, mostrar para as crianças que elas podem fazer escolhas... Eles começam pelo violino, que é algo distante da realidade deles, para eles saberem que, se conseguem tocar violino, quando eles descobrem que não é difícil, eles sabem que podem qualquer coisa.
Percebe-se que o CCC está envolto na possibilidade de ocupar o espaço da cidadania pela apropriação positiva da identidade de ser mangueirense, o que se dá por meio da interação social estabelecida por suas atividades, que influenciam a relação com o processo educacional, com a promoção do lazer e com o conceito de democracia. Na atividade Minha história no CCC do Grupo Operativo, Cristina (13 anos) escreveu sobre sua experiência e sobre o que acha importante: "O que eu mais gosto de fazer no CCC é [sic] dos cursos e o que eu acho interessante é que o CCC tem ajudado a tirado [sic] as crianças das ruas e fazendo das crianças grandes músicos".
Após abordar a formação da Mangueira para apresentar o campo social em que está inserido o CCC, assim como a história de sua fundação, seus objetivos e a vida de Cartola, acredita-se que a descrição histórica da Mangueira serviu tanto para exemplificar o processo de desenvolvimento de uma favela carioca quanto para contextualizar o espaço no qual o CCC está inserido. A Mangueira foi entendida como campo social de referência para a reelaboração de práticas e narrativas, configurando-se como território que resiste aos processos de massificação e naturalização da violência, por meio de práticas culturais variadas.
Iniciativas como as oferecidas pelo Centro Cultural Cartola surgem como alternativa a esse cenário que sustenta estigmas como ser pobre, negro, favelado, bandido, entre tantos outros. O CCC admite a existência da violência e do tráfico, entretanto apresenta aos seus frequentadores muito mais a se buscar: cultura, arte e histórias de vida, de superação de dificuldades, de sucessos e de conquistas da Mangueira.
Referências
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Ramalho, M. (2004). Cartola. São Paulo: Moderna. [ Links ]
Recebido em: 21/08/2014
Aprovado em: 18/09/2015
1 Griô significa contador de histórias. Trata-se de uma figura mitológica africana nômade que percorre as comunidades transmitindo conhecimentos pela oralidade e pelas manifestações da cultura popular. Com a Ação Griô, o CCC objetiva, pela transmissão oral, preservar e valorizar a história cultural da comunidade da Mangueira, formada, sobretudo, por afrodescendentes, abordando desde as suas raízes africanas até a produção cultural contemporânea.
2 Disponível em: www.mangueira.com.br. Acessado em: 20 jul. de 2009.
3 Disponível em: www.mangueira.com.br. Acessado em: 20 jul. de 2009.
4 Por questões éticas, a identidade das crianças que participaram do Grupo Operativo foi preservada e seus nomes substituídos por apelidos.
5 Disponível em: www.mangueira.com.br. Acessado em: 20 jul. de 2009.
6 Arengueiro significava, na gíria carioca, pessoa encrenqueira e brigona.
7 Cartola nasceu entre Lucília e Sebastião, seus nove irmãos eram, em ordem de nascimento: Isaura, Lucília, Sebastião, Luís, Irene, Maria Madalena, Dagmar, Arquimedes e Alcídes. Quando senhor Sebastião ficou viúvo, casou-se novamente e teve mais um casal de filhos: Hirohito e América. Hirohito suicidou-se um mês depois da morte de Cartola (Barboza & Oliveira Filho, 2003).
8 No filme com o título Cartola, lançado em 2007 em homenagem ao músico, dirigido por Lírio Ferreira e Hílton Lacerda, há o depoimento de Arthur de Oliveira que diz que essa doença que acometeu Cartola, aos dezessete anos, foi resultado de suas incursões aos bordéis da cidade.
9 Entrevista ao site Gol de Letra: http://www.goldeletra.org.br/Secao.6,materia.31.aspx#.
10 Entrevista concedida por Nilcemar, no dia 04/02/2004, ao o site Gol de Letra: http://www.goldeletra.org.br/Secao.6,materia.31.aspx#.
11 Entrevista concedida ao Globo.com, em 25/09/2006: http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,AA1284910-5606,00html.
12 Entrevista concedida por Nilcemar, no dia 16/07/2008, ao Viva Favela: http://www.vivafavela.com.br/publique/cgi/public/cgilua.exe/web/templates/htm/princi.
13 Idem.