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Pesquisas e Práticas Psicossociais

On-line version ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.13 no.4 São João del-Rei Oct./Dec. 2018

 

Violência contra a mulher, polícia civil e políticas públicas

 

Violence against women, civil police and public policies

 

La violencia contra la mujer, la policía civil y políticas públicas

 

 

Tatiana Machiavelli Carmo SouzaI; Flávia Resende Moura SantanaII; Thais Ferreira MartinsIII

IProfessora Adjunto II na Universidade Federal de Goiás no curso de Psicologia e no Programa de Pós-graduação em Psicologia. Doutora e Mestre em Serviço Social pela Unesp. Atua nas áreas de Processos Psicossociais com ênfase em práticas psicossociais, gênero, violência e famílias
IIPsicóloga pela Universidade Federal de Goiás/Regional Jataí
IIIGraduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Goiás/Regional Jataí. Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica

 

 


RESUMO

A violência contra a mulher (VCM) se estabelece como uma das principais formas de violação dos direitos humanos, representando desafio para a polícia e para as políticas públicas. Buscou-se conhecer as concepções de policiais civis a respeito da VCM. Partindo da perspectiva qualitativa, os dados foram obtidos de cinco participantes por meio de entrevistas semiestruturadas, individuais, audiogravadas e transcritas na íntegra. O tratamento dos dados foi realizado mediante a análise de conteúdo, permitindo a construção de categorias a posteriori. Embora tivessem domínio jurídico sobre as leis, os participantes demostraram ter conhecimentos superficiais sobre os elementos psicológicos, sociais e culturais que possibilitam a manutenção da VCM. Verificou-se que a precária implantação das políticas públicas de enfrentamento à VCM prejudica o efetivo trabalho da Polícia Civil.

Palavras-chave: Violência doméstica. Violência intrafamiliar. Política pública. Gênero. Polícia.


ABSTRACT

Violence against women (VCM) establishes itself as one of the main forms of violation of human rights, representing challenge for the police and for public policy. To meet the conceptions of civil police regarding VCM. From the qualitative perspective, data were obtained from the five participants by means of semi-structured interviews, individual, audiogravadas and transcribed in full. The treatment of the data was performed using content analysis, enabling construction of subsequent categories. Although legal domain about the laws, the participants demonstrated superficial knowledge about the psychological, social and cultural elements which allow the maintenance of VCM. It was found that the precarious implementation of public policies for combating the VCM undermines the effective Civil Police work.

Keywords: Domestic violence. Intrafamiliar violence. Public policy. Gender. Police.


RESUMEN

Violencia contra la mujer (VCM) se establece como una de las principales formas de violación de los derechos humanos, que representan el reto para la policía y de las políticas públicas. Conocer los conceptos de policía civil acerca de VCM. Desde la perspectiva cualitativa, los datos obtenidos de los cinco participantes por medio de entrevistas semi estructuradas, individuales, audiogravadas y transcritas en su totalidad. El tratamiento de los datos se realizó mediante análisis de contenido, permitiendo la construcción de categorías subsiguientes. Aunque dominio legal sobre las leyes, los participantes demostraron conocimientos superficiales sobre los elementos psicológicos, sociales y culturales que permiten el mantenimiento de la VCM. Se encontró que la precaria implementación de políticas públicas para la lucha contra el VCM perjudica el efectivo trabajo de la Policía Civil.

Palabras clave: Violencia doméstica. Violencia doméstica. Políticas públicas. Género. Policía.


 

 

Introdução

A violência contra a mulher (VCM) é uma das principais formas de violação dos direitos humanos e uma das problemáticas mais graves enfrentadas pela mulher na atualidade (Ministério da Justiça, 2011) e deve ser entendida como um fenômeno social e complexo que se manifesta de diversas formas, sendo influenciada pelo contexto sociocultural no qual ocorre (Secretaria de Atenção à Saúde, 2012).

Historicamente, a VCM decorre das relações hierárquicas de poder, especialmente no âmbito da família, constituídas na determinação de condutas que dizem respeito àquilo que é de ordem do feminino e masculino (Piosiadlo, Fonseca & Gessner, 2014). Na sociedade, o homem tem sido detentor de poder e do direito de ser livre e a mulher tem assumido o lugar de submissa a ele, cuja maior responsabilidade é voltada aos serviços domésticos. Essa conjuntura precede e embasa a violência de gênero, explicada pelas autoras como resposta a um relacionamento desigual e discriminatório.

Além de ocorrer por questões associadas ao patriarcalismo, Souza e Moraes (2015) salientam que os modelos tradicionais de família influenciam o controle e o domínio da mulher pelo homem, tanto em casa quanto nos ambientes de trabalho. No entanto, afirmam que há uma tendência significativamente maior a uma ruptura nesses padrões tradicionais, configurando as novas relações familiares e as transformações econômicas e políticas que incidem no papel e no lugar da mulher na sociedade.

No Brasil, há três momentos importantes que contribuíram para facilitar o enfrentamento da VCM: a implantação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deam), a partir de 1985; o surgimento dos Juizados Especiais (Jecrims), a partir de 1995; e a promulgação da Lei nº 11.340, em 2006, que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher (Souza & Cortez, 2014). Esses marcos consolidaram a possibilidade do Estado de interferir na dominação do homem sobre a mulher, ou seja, da esfera pública intervir na vida privada.

As Deams visam atender às demandas das mulheres que se encontram em situação de violência com o objetivo de propiciar condições adequadas para que possam denunciar os crimes de forma segura e humanizada (Tavares, Rodrigues, Barroso, Vieira & Sousa, 2017). No rol de políticas públicas, entre 1985 e 2002, a implantação das Deams foi considerada prioridade para a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres e para o Programa Nacional de Combate à Violência contra a Mulher, com o intuito de propiciar segurança pública e assistência social (Ministério da Justiça, 2011). O surgimento das delegacias configurou um marco na luta feminista em prol dos direitos humanos, uma vez que reconhece formalmente a VCM como crime e requer a responsabilização do Estado na promoção de políticas que permitam o combate a esse fenômeno (Observe, 2010; Ministério da Justiça, 2010; Souza & Cortez, 2014, Tavares et al., 2017).

Embora diversos pactos, programas e políticas tenham sido desenvolvidos nas últimas décadas, o grande "salto qualitativo" adveio com a criação da Lei nº 11.340/06. Conhecida como "Lei Maria da Penha", a referida lei busca assegurar facilidades e oportunidades para que as mulheres possam viver sem violência, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião. Ademais, define os tipos de violência que podem ser cometidos contra a mulher no contexto doméstico e familiar: a violência física, conceituada como qualquer conduta que ameace a integridade ou a saúde corporal da mulher; ações que causem à mulher prejuízo emocional e diminuição da autoestima são consideradas violências psicológicas; a violência sexual ocorre quando a mulher é levada a presenciar, manter ou a participar de uma relação sexual não consentida, mediante intimidação, ameaça ou uso da força; a violência patrimonial é caracterizada pela retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos, podendo ser instrumento de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos; por fim, a violência moral é considerada como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria (Lei nº 11.340/06).

A Lei nº 11.340/06 representa um avanço na luta em prol dos direitos das mulheres, visto que tem o poder de impedir o convívio do agressor com a mulher por meio de medidas protetivas. No entanto, há que se preocupar com as sequelas psicológicas que são enfrentadas pelas mulheres e que podem influenciar diretamente na qualidade de vida e em relacionamentos futuros. É necessário, portanto, que os diversos profissionais envoltos no processo de judicialização estejam preparados para lidar com tais situações e se engajem na promoção de ações que estimulem o processo de empoderamento das mulheres em situação de violência (Pasinato, 2015).

Nesse contexto, as Deams, especialmente, são importantes instrumentos de enfrentamento da VCM. No Brasil, são associadas às policias civis e se encontram subordinadas às políticas de segurança pública de cada estado. As ações de prevenção, registros de ocorrências, investigação e repressão de atos ou condutas que dizem respeito ao gênero, configuradas como crimes ou infrações penais e pautadas na Lei nº 11.340/06, devem ser feitas por acolhimento baseado na escuta ativa, realizado preferencialmente por delegadas e/ou por equipe de agentes policiais profissionalmente qualificados (Ministério da Justiça, 2010).

Inicialmente, as Deams foram criadas para atendimento especializado de mulheres em situação de violência. Após a Lei nº 11.340/06, passaram a acolher aquelas vítimas de toda e qualquer violência ligada ao gênero, independentemente da natureza e do vínculo com o agressor. Na atualidade, algumas Deams têm optado por limitar aceitar somente os crimes que se enquadram nessa legislação, ou seja, violência praticada no âmbito das relações familiares e/ou violência doméstica. Essa falta de padronização na forma de atendimento configura-se em um dos problemas enfrentados por essas instituições, afetando seu funcionamento (Observe, 2010).

O atendimento a mulheres em contexto de violência é considerado, na maioria das vezes, ineficiente, visto que há um despreparo dos profissionais em atendê-las e encaminhá-las a outros serviços (Amaral, Vasconcelos, Sá, Silva & Macena, 2016, Tavares et al., 2017, Castro & Silva, 2017). Diante disso, há necessidade de criação de uma rede de atendimento intersetorial que facilite o acolhimento às mulheres, tendo em vista que atualmente é necessário que elas percorram uma longa trajetória em busca de auxílio e/ou respostas que não necessariamente resultam em soluções, levando ao desgaste emocional e à revitimização (Ministério da Justiça, 2011, Secretaria de Atenção à Saúde, 2012, Cavalcanti, Oliveira, Carvalho, Araújo & Miranda, 2014). Sendo assim, a rede de atendimento deve buscar uma atuação articulada entre instituições/equipamentos governamentais e não governamentais e a comunidade, proporcionando uma melhor qualidade no atendimento, identificação e encaminhamento adequado das mulheres em situação de violência, além do desenvolvimento de estratégias efetivas de prevenção (Sani & Morais, 2015).

Os policiais civis, usualmente, são os primeiros profissionais a terem contato pessoal com as mulheres em situação de violência doméstica. Nessa situação, o contato inicial é muito importante, podendo ser fundamental para a descrição da queixa e posterior investigação criminal. É necessário que esses agentes recebam as mulheres despidos de preconceitos, acolham a partir de um atendimento humanizado, levando sempre em consideração o discurso e preocupando-se com a privacidade da mulher no momento do depoimento. Ademais, é recomendado que as equipes responsáveis por esses acolhimentos sejam preferencialmente do sexo feminino e estejam atentas às diretrizes e procedimentos da Deam (Ministério da Justiça, 2010; Ministério da Justiça, 2011, Romagnoli, 2015).

Nesses contextos, os policiais se tornam responsáveis por realizar encaminhamentos, orientando as mulheres sobre as alternativas existentes para enfrentar a violência (Porto, 2014). Nos casos de encaminhamento, a Lei nº 11.340/06 estabelece medidas para prevenção cautelar da integridade física, moral e patrimonial da mulher em contexto de violência, assegurando, quando necessário, proteção policial. Nessa conjuntura, é dever da polícia comunicar a ocorrência da violência imediatamente ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, bem como encaminhar a mulher ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal para os devidos exames. Os policiais são orientados a fornecer transporte para a mulher e seus acompanhantes para um abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida e, se necessário, acompanhá-la até sua residência para que sejam retirados seus pertences (Porto, 2014).

É necessário reconhecer que os profissionais das delegacias nem sempre têm treinamento ou supervisão no trabalho, podendo agir de forma inadequada diante das demandas das mulheres que procuram esse serviço (Souza & Cortez, 2014, Tavares et al., 2017). Portanto, é de extrema importância que os policiais recebam apoio e sejam preparados para lidar com mulheres em situação de violência (Amaral et al., 2016, Ministério da Justiça, 2010, Souza & Sousa, 2015).

Tendo em vista a complexidade da questão apresentada, a pesquisa buscou investigar as concepções de VCM em policiais civis alocados em uma Deam e, de modo secundário, almejou conhecer as práticas profissionais com mulheres em situação de violência e problematizar as políticas públicas que incidem nesse contexto.

 

Método

Trata-se de pesquisa empírica fundamentada na perspectiva qualitativa (Minayo, 2000), com aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Goiás, sob o número 556.030. A amostra foi composta por todos os profissionais que atuavam em uma Deam de um município do sudoeste goiano, no segundo semestre de 2015, sendo eles cinco sujeitos: dois agentes policiais, duas escrivãs e um delegado. Os participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e suas identidades foram preservadas por meio do uso de pseudônimo.

Os sujeitos tinham idades que variavam entre 32 anos e 48 anos, sendo três do sexo feminino e dois do sexo masculino. Com exceção de um, que era formado em História, todos tinham formação superior no curso de Direito. O tempo de atuação na delegacia variou de um ano e sete meses a 10 anos. Apenas um dos participantes relatou ser solteiro, enquanto todos os outros se declararam casados.

Utilizou-se como instrumento para a obtenção de dados a entrevista semiestruturada (Minayo, 2000), que foram realizadas na sede da instituição policial, audiogravadas e, posteriormente, transcritas na íntegra. Por meio desse instrumento, buscou-se conhecer o posicionamento dos participantes acerca da VCM, observando os aspectos relacionados ao atendimento às mulheres em contexto de violência, o conhecimento das leis que as amparam, além das dificuldades encontradas no cotidiano profissional.

O tratamento dos dados foi realizado por meio da análise de conteúdo (Bardin, 1977), possibilitando a elaboração de sentidos e significados e permitindo a constituição de categorias a posteriori, denominadas: a) papel da mulher e concepções de VCM; b) limites da atuação da Deam; e c) papel da polícia e da lei.

 

Resultados e discussão

Papel da mulher e concepções de VCM

Compreender os elementos que compõem o fenômeno da VCM é importante para que os/as policiais que atuam nas delegacias saibam diferenciar os crimes que decorrem do machismo e desigualdade de gênero de outros tipos de delitos, podendo atuar com o intuito de diminuir e coibir tais agressões. Percebeu-se que os sujeitos, embora demonstrassem preocupação e exercessem seu trabalho com responsabilidade, tinham dificuldades em caracterizar a VCM como fenômeno sócio-histórico e percebê-lo como fruto das desigualdades de gênero e poder entre homens e mulheres. Quando perguntados a respeito desse conceito, referiam-se apenas à tipificação da violência.

[...] Bom, a VCM, ela pode ser enxergada de diversos ângulos. É... a violência não é somente a violência física, né, aquela violência corporal []. (Aurélio, Delegado)

[...] Isso ai é muito subjetivo, né? Mas eu, como mulher, eu percebo que a VCM seria... tem tanto a forma psicológica, que a gente sabe que existe, da opressão psicológica; a agressiva, né, que é a violência mesmo, em si e a..., e muitas mulheres ainda sofrem uma violência econômica, principalmente as mulheres de classe mais baixa em relação, principalmente, quando elas tem filhos. [...] (Amanda, Escrivã de Polícia)

Para além de tipificar as formas de violência, compreender a conjuntura sociopolítica que envolve a violência doméstica é tarefa importante para o desenvolvimento de ações assertivas para com as vítimas, autores de agressão e demais familiares. Os participantes reconheceram que a problemática da VCM afeta a sociedade e acarreta prejuízos incalculáveis às mulheres que a sofrem, principalmente quando não recebem o atendimento adequado. Sinalizaram ainda as modificações advindas da intervenção do Estado nas questões da vida privada, fato que, para eles, tem contribuído para o enfrentamento da VCM.

[...] Porque a violência doméstica, ela sempre foi meio um tabu né!? Até tinha aquele famoso ditado "em briga de marido e mulher, não se mete a colher", hoje todo mundo mete a colher, né!? A polícia mete a colher, o promotor mete a colher, o juiz mete a colher e o vizinho do lado também, porque pra gente basta que alguém denuncie uma violência que a gente vai lá verificar, a gente vai ver, a gente recebe denúncia anônima... a nossa obrigação é verificar []. (Ronaldo, Agente de Polícia)

Os participantes reconheceram o constante crescimento do papel da mulher na sociedade e demonstraram preocupação quanto às represálias que elas podem sofrer ao assumirem tais lugares. Dessa forma, acreditavam que as desigualdades entre os gêneros têm sido diminuídas.

[...] mesmo diante das adversidades, das dificuldades, da diferença né, que existe entre o homem e a mulher, ela tem se mostrado capaz de superar, de se qualificar e tanto é que temos várias mulheres em chefias, cargos de confiança, em todas as áreas profissionais do nosso país. É, então, a mulher tem um papel, até pela sua sensibilidade, a capacidade também intelectual nesse sentido. [...] (Rita, Escrivã de Polícia)

[...] Bom, atualmente a mulher é peça importante na sociedade, né? Ocupa um papel superimportante, igualmente ao papel do homem... Eu penso que não tem profissão que a mulher não possa exercer como o homem exerce [...] (Sandra, Agente de Polícia)

A mulher tem um papel fundamental na sociedade, né? [...] hoje ela é de fundamental importância, tanto na parte doméstica, né? Do lar, de constituir família, como no sentido profissional, onde ela... agora abrange novas áreas, né? (Ronaldo, Agente de Polícia)

Os discursos dos participantes relativizaram as diferenças existentes entre homens e mulheres, contudo, reproduziam valores patriarcais, pois reafirmaram a importância do papel da mulher em gerenciar as múltiplas tarefas em prol da família, do trabalho e da vida pessoal. Essa valorização da dupla jornada de trabalho carrega consigo um paradoxo: por um lado, permite maior visibilidade e inserção da mulher em contextos outrora destinados exclusivamente aos homens; por outro, reforça estereótipos e a ideia de que os cuidados com o lar e a família devem ficar a cargo da mulher. Nesse sentido, esse paradoxo pode contribuir para a manutenção da desigualdade de gênero e para a reprodução da VCM.

 

Limites da atuação da Deam

Historicamente, as relações de poder desiguais entre homens e mulheres têm culminado na problemática da VCM (Piosiadlo, Fonseca & Gessner, 2014). Além da iniquidade entre os gêneros, outros fatores contribuem para a permanência da mulher em uma relação violenta: as pressões sociais; o sentimento de vergonha em denunciar o autor da agressão; a falta de informação sobre a justiça, a assistência e a proteção; e os precários meios educacionais e outros dispositivos de combate à violência.

Quando questionados a respeito dos elementos que contribuem para a permanência da mulher na relação violenta, verificou-se que os sujeitos os atribuíram à vergonha, à dependência financeira, às questões sociais e culturais e à baixa autoestima. Em consonância, dentre os elementos que contribuem para a manutenção na relação violenta está o medo e a insegurança em romper a relação, tendo em vista que o rompimento pode acarretar outras consequências, inclusive a morte da mulher (Souza & Sabini, 2015). Os entrevistados relataram que a experiência de trabalho demonstrava que muitas mulheres atendidas na Deam cultivavam a esperança de que o marido/companheiro mudasse seu comportamento, ou seja, alimentavam a expectativa de mudança no relacionamento afetivo.

[...] a maioria das mulheres que vem aqui, quando elas chegam... elas vieram porque elas estão no limite, né, no limite de superar a vergonha que ela passa pela sociedade... Muitas vezes (não denunciam) pela vergonha, né? Outras eu acho que é devido ao sentimento, que ela acha que o comportamento pode mudar. [...] (Amanda, Escrivã de Polícia)

[...] Alguns dizem que mulheres que sofrem violência é porque gostam de apanhar, isso não é verdade. É... o que ocorre é que realmente a mulher fica subjugada ali, ela fica numa situação de inferioridade, e acaba que isso faz com que ela fique sem apoio. (Aurélio, Delegado).

Dentre as dificuldades para o enfrentamento da VCM, destaca-se a ineficiência da rede intersetorial de apoio, que contribui para que as mulheres não queiram denunciar os agressores e procurar ajuda. Os entraves existentes tanto no atendimento policial quanto na efetivação das ações da rede intersetorial de acolhimento a mulheres em situação de violência são questões que têm sido problematizadas pela literatura. Romagnoli (2015) ressalta que as mulheres sentem pouco amparo no atendimento realizado pelos agentes policiais e se afastam das delegacias pelo descrédito na resolução de conflitos. Castro e Silva (2017) sinalizam a importância da qualificação técnica especializada dos profissionais que atuam no enfrentamento da VCM. Somado a isso, Tavares et al. (2017) salientam que as mulheres não encontram informações sobre os seus direitos no atendimento recebido nas delegacias; esse contexto interfere na efetividade da Lei Maria da Penha.

Os participantes relataram ser comum as vítimas não consentirem a realização do boletim de ocorrência ou mesmo, após realizarem esse procedimento, retornarem à delegacia solicitando a suspensão do processo. Nesse sentido, os participantes acreditavam que essas situações estavam vinculadas à descrença das mulheres na efetiva punição do agressor e/ou por considerarem a pena muito branda para a gravidade do delito.

De acordo com os sujeitos, esse posicionamento das vítimas constituía-se em uma limitação para o adequado atendimento realizado por eles e somente poderia ser transcendido com um verdadeiro movimento de conscientização da população sobre os serviços prestados pelos policiais e sobre o papel da Lei Maria da Penha. Assim como já foi discutido, atribuíram essas dificuldades à história de dominação do homem sobre a mulher e relataram o sentimento de impotência e fraqueza perante esse contexto.

[...] Aí são ações que você fica de mãos atadas, né, porque diante da situação... [...] (Amanda, Escrivã de Polícia)

[...] A dificuldade que a gente encontra é saber que ainda, nessa atual conjuntura, onde a mulher ocupa tantos espaços importantes, que ainda existe pessoas que pensam que... só por ser mulher, ela é inferior, ela pode ser maltratada, ela pode ser agredida. Então, eu vejo isso como uma dificuldade ainda... eu não vejo como uma coisa normal... [...] (Sandra, Agente de Polícia)

Quando questionados a respeito das dificuldades vivenciadas na instituição policial, os sujeitos destacaram a falta de materiais e o baixo quantitativo de recursos humanos, esses dados corroboram com a pesquisa realizada por Castro e Silva (2017) e Tavares et al. (2017) ao ressaltarem limitações na concretização dos atendimentos e a falta de funcionários. Partindo dessas informações e tomando como referência a Norma Técnica de Padronização das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Ministério da Justiça, 2010), verificou-se que há um distanciamento entre as práticas policiais, a constituição da delegacia e as políticas públicas de enfrentamento à VCM. Em contrapartida, os participantes relataram que embora exista a carência de funcionários e equipamentos, o trabalho realizado na Deam conseguia atender às expectativas da própria equipe.

Outro fator elencado pelos entrevistados diz respeito à estrutura física da Deam: seria essencial que houvesse sede própria, com salas adequadas e espaço disponível para o acolhimento das mulheres, bem como familiares e crianças, pessoas que usualmente acompanham o atendimento. A Deam funcionava em um complexo de delegacias, onde a Polícia Civil e outras delegacias também estavam alocadas. Para a delegacia da mulher, eram disponibilizadas três salas, sendo uma para o delegado, uma para as escrivãs e uma para os agentes de polícia. As escrivãs dividiam a sala com um terceiro, quando precisavam colher depoimento de uma vítima ou de um autor de agressão, não tinham privacidade e corriam o risco de expor os envolvidos.

[...] Falta estrutura física. [...] Eu acho que deveria ter uma sala específica pra gente tá ouvindo as pessoas [...] Por exemplo, aqui nessa sala nossa aqui, você viu... a gente tava ouvindo um agressor, né, se chega uma vítima pra registrar o procedimento, ela vai registrar aqui, junto com ele... (Amanda, Escrivã de polícia)

[...] A Deam não poderia funcionar no mesmo prédio que uma delegacia normal. Eu idealizo uma delegacia da mulher num local mais acolhedor, onde a mulher não tenha contato com nenhum outro tipo de agressor e nem de outras vítimas ali. [...] (Sandra, Agente de Polícia)

Além disso, o baixo número de servidores foi citado como uma das maiores problemáticas enfrentadas pela Deam. Essa realidade estava em desacordo com o que propõe as políticas públicas de prevenção, enfrentamento e coibição da VCM, que preveem equipe composta por uma delegada, 21 agentes de polícia, dois apoios e um auxiliar de serviços gerais (Ministério da Justiça, 2010). É certo que o número reduzido de servidores compromete o desenvolvimento das atividades, causando sobrecarga e precarização do trabalho policial.

 

Papel da polícia e da lei

Os participantes ressaltaram a importância da Lei nº 11.340/06 como mecanismo para o desenvolvimento da igualdade entre homens e mulheres e para o enfrentamento da violência. Contudo, ao avaliarem o número de denúncias e de casos de violência não denunciados formalmente, os sujeitos percebiam que historicamente tal equidade não ocorre na prática. Embora a lei exista desde o ano de 2006, a consolidação das igualdades ainda é considerada um desafio e a implementação das propostas contidas no referido documento estão distantes do cotidiano das mulheres.

[...] Eu acho que o intuito da lei foi querer diminuir a violência, né, e querer mostrar pra mulher que ela tem um amparo, né? Uma forma de buscar Justiça por aquilo que ela tá sofrendo. Eu acho que o papel dela é esse, de tentar diminuir e fazer com que o homem se conscientize de que não é porque ele é casado com ela que ele tem o direito de violentá-la, psicologicamente, economicamente e fisicamente [...] (Amanda, Escrivã de Polícia)

[...] A lei tem o papel de proteger as mulheres mesmo. Pra diminuir a incidência da prática de violência doméstica contra as mulheres. Ela tem atingido um pouco do papel dela, porque é uma lei que funciona... de certa forma, nesse país. Ela tem atingido com mais rapidez. Nem todos ficam presos, nem todos param de agredir, mas é um freio [...] (Rita, Escrivã de Polícia)

De acordo com os sujeitos, o número de denúncias na delegacia aumentou consideravelmente após a implantação da Lei Maria da Penha. Em contrapartida, pesquisa realizada por Garcia, Freitas, Silva e Höfelmann (2015) constatou que a referida lei não causou impacto no número de violências letais, ou seja, não houve redução das taxas anuais de mortalidade, quando comparados períodos anteriores e posteriores à sua vigência.

[...] Eu não acredito que o número de casos tenha aumentado, e sim o número de mulheres que perderam o medo de denunciar o seu agressor [...] (Amanda, Escrivã de Polícia)

[...] Hoje não tem uma pessoa que não saiba o que é a Lei Maria da Penha, e ela melhorou bastante no que diz respeito à efetividade do trabalho, ao conhecimento, principalmente pelas forças policiais. (Aurélio, Delegado)

Os participantes ressaltaram a falta de comunicação entre os serviços que atendem mulheres em contexto de violência, apontando a necessidade de maior interligação entre os equipamentos. Esse apontamento é revelador da desarticulação que opera no interior de Goiás, mostrando que a localidade estudada não se diferencia de outros municípios brasileiros, em relação ao isolamento dos serviços e fragilidade da rede intersetorial de atendimento. Souza e Sousa (2015) discutem a precarização no processo de implementação das políticas públicas de prevenção e enfrentamento da VCM no interior do referido estado, destacando a ausência de protocolos e de equipamentos adequados e humanizados para o atendimento das mulheres.

Notou-se que os sujeitos acreditavam na importância do trabalho realizado por outras instituições, como o Centro de Referência em Assistência Social (Cras) e o Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Creas), mas sentiam a necessidade de que todas as instituições promovessem um trabalho interdisciplinar, cujo foco seria o bem-estar da mulher, com atividades que visassem ao seu empoderamento.

[...] Falta esse apoio social, das outras áreas, né, no intuito de proteger a mulher. Porque só o amparo policial, como nós temos uma demanda muito grande e o nosso coletivo é pequeno, nós não temos condições de dar uma proteção contínua para a mulher [...] É... políticas de proteção, é... os Centros de Referência e Apoio de Assistência Social dão esse apoio, só que a estrutura é muito precária também, é uma estrutura que não atende a toda necessidade. Porém, existe sim, por parte dos governos, uma tentativa de estabelecer políticas [...] (Aurélio, Delegado)

[...] Bom, em muitos lugares tem o abrigo, né... que aqui (no município) nós não temos. [...] na capital tem o Cevam, né, que é o Centro de Apoio e Valorização da Mulher [...] (Sandra, Agente de Polícia)

A interligação entre serviços e setores, conhecida como rede de atendimento, se refere à atuação articulada de profissionais e instituições em prol da ampliação e da melhoria da qualidade do atendimento, identificação e encaminhamento adequado das mulheres em situação de violência e do desenvolvimento de estratégias efetivas de prevenção. Nessa direção, a constituição dessa rede visa valorizar o caráter multidimensional do problema que perpassa diversas áreas, tais como: saúde, educação, segurança pública, assistência social, cultura, entre outras (Ministério da Justiça, 2011). Além do conceito de rede de atendimento, é fundamental compreender o significado do termo intersetorialidade: diz respeito à tentativa de fortalecimento de uma assistência integral e amplificada no campo das políticas de proteção social, tendo em vista que pode contribuir para uma maior qualidade na assistência às usuárias em contexto de violência. Sendo assim, a intersetorialidade tem o objetivo de solucionar os problemas sociais que se fazem presentes em uma população, reconhecendo-os de maneira integral, a partir de um novo mecanismo de abordagem (Cavalcanti et al., 2014).

Nesse sentido, os sujeitos afirmaram buscar alternativas que favorecessem o atendimento à mulher em contexto de violência, já que esse momento foi tido como muito delicado. Afirmaram que os profissionais precisam ter cuidado com a maneira com que atendem as mulheres, objetivando não causar danos adicionais a elas, que tanto já sofreram com a violência. A comunicação entre a rede intersetorial seria vital para evitar a revitimização da mulher em contexto de violência. Nesse sentido, Sani e Morais (2015) alertam para que o atendimento policial aconteça em uma perspectiva de pós-vitimação, ofertando informação e recursos sociocomunitários às mulheres em situação de violência.

[...] Nós, inclusive, confeccionamos um fluxograma de como seria o atendimento... A vítima chegou pra ser atendida no hospital, onde ela será encaminhada, o que será feito, com quem deverá ser tratada, então tudo isso é uma forma de dar uma maior efetividade e proteger mais essa vítima. Então, com relação à violência sexual, existe sim esse trabalho. Aos demais tipos de violência, a violência física também nós temos essa relação, essa rede [...] (Aurélio, Delegado)

Por fim, os participantes consideraram a importância de outras políticas públicas para auxiliar as mulheres em contexto de violência e, especialmente, reiteraram o papel da casa abrigo como equipamento vital de assistência às mulheres e respectivos filhos. Verificou-se que policiais se preocupavam em acolher a vítima, escutando suas angústias, orientá-la quanto ao que poderia ser feito para responsabilizar o agressor e, em alguns casos, os agentes acompanhavam as mulheres até suas residências ou até alguma unidade básica de saúde para a realização dos devidos exames.

 

Considerações finais

Este estudo teve o intuito conhecer as concepções de VCM em policiais civis alocados em uma Deam, bem como investigar as suas intervenções profissionais e as políticas públicas para as mulheres em contexto de violência. A Lei Maria da Penha estabelece as formas de VCM, as punições para os agressores e o papel das organizações políticas e sociais quanto ao acolhimento da mulher em contexto de violência e os processos necessários para punir a pessoa que comete o crime.

A pesquisa sinalizou que, passados mais de dez anos de implementação da lei, ainda se verificam limitações no conhecimento policial sobre as tramas que circundam a constituição da VCM, bem como o atendimento das mulheres que dela necessitam. Essa vulnerabilidade decorre da inexistência de locais que ofereçam abrigo e atendimento multidisciplinar para as mulheres. A questão da falta de acompanhamento psicológico também é nevrálgica, já que a escassez de psicólogas especializadas nas temáticas de violência e gênero compromete o trabalho da rede intersetorial.

Preocupação evidente de toda a equipe da Deam foi a falta de material e de pessoal para atender à população. O sucateamento dos serviços policiais compromete a qualidade do trabalho desenvolvido, assim como suscita a lentidão no processo de obtenção de provas e instauração do inquérito policial. Esse cenário pode contribuir para a morosidade da justiça e para a consolidação do descrédito que historicamente a sociedade nutre pela entidade policial. Ademais, essa conjuntura fortalece o sentimento de desvalorização dessa classe de trabalhadores.

Este estudo também se preocupou em conhecer as políticas públicas que tratam sobre a problemática da VCM e verificou-se que a falta de implantação destas prejudica o trabalho desenvolvido pelos policiais, embora isso também possa estar relacionado ao desconhecimento sobre outras ações/programas do Estado, além da Lei Maria da Penha. Sobre essa questão, percebeu-se ainda que a efetivação das políticas de enfrentamento à VCM vai muito além das responsabilidades da Polícia Civil e precisaria ser discutido entre diversos órgãos.

Por fim, sugere-se que novas pesquisas sejam realizadas, de modo que haja maior apropriação acerca das peculiaridades do trabalho policial e da rede de atendimento à mulher em situação de violência no interior goiano.

 

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Recebido em: 1º/11/2016
Aprovado em: 25/7/2018

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