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Pesquisas e Práticas Psicossociais
On-line version ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.2 São João del-Rei Apr./June 2019
Feira Virtual Bem da Terra: fragmentos de uma utopia menor
Feira Virtual Bem da Terra: fragments of a minor utopia
Feira Virtual Bem da Terra: fragmentos de una utopía menor
Laís Vargas RammI; Édio RaniereII; Cleci MaraschinIII
IMestra em Psicologia Social e Institucional. Doutoranda em Informática na Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
IIProfessor do curso de Psicologia da Universidade Federal de Pelotas. Doutor em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
IIIProfessora titular aposentada. Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional e Informática na Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
RESUMO
O trabalho discute em que medida e de que forma a utopia agencia a participação de sujeitos que constroem a economia solidária. A discussão é disparada por uma experiência de consumo responsável, chamada Feira Virtual Bem da Terra, que acontece no município de Pelotas (RS). Participam dessa experiência produtores, consumidores e incubadoras tecnológicas de empreendimentos de economia solidária. Foram entrevistadas quatro pessoas de cada um desses três grupos. Ao final, avança-se para a compreensão de que a utopia presente na experiência da Feira Virtual Bem da Terra é uma utopia concreta e menor, uma vez que está relacionada ao desejo dos seus participantes e às transformações presentes que ela permite.
Palavras-chave: Economia solidária. Utopia. Utopia menor.
ABSTRACT
The paper discusses to what extent and in what way the utopia agency the participation of the subjects that build the solidarity economy. The discussion is triggered by a responsible consumption experience, called Feira Virtual Bem da Terra, which takes place in the municipality of Pelotas (RS). Producers, consumers and technological incubators of solidary economy enterprise participate in this experience. Four people from each of these groups were interviewed. In the end, it is advanced to the understanding that the utopia present in the experience of Feira Virtual Bem da Terra is a concrete and minor utopia, in the sense that it is related to the desire of its participants and the present transformations that it allows.
Keywords: Solidary economy. Utopia. Minor utopia.
RESUMEN
En este trabajo se analiza en qué medida y cómo la utopía agencia la participación de los sujetos que construyen la economía solidaria. La discusión se desencadena por una experiencia de consumo responsable, llamada Feira Virtual Bem da Terra, que se lleva a cabo en la ciudad de Pelotas (RS). Participan en esta experiencia productores, consumidores e incubadoras tecnológicas de las empresas de economía solidaria. Cuatro personas de cada uno de estos grupos fueron entrevistadas. Al final, se traslada a la conclusión de que la utopía en la experiencia de la Feira Virtual Bem da Terra es concreta y menor, en el sentido de que está relacionada con el deseo de sus participantes y los cambios presentes que ella permite.
Palabras clave: Economía solidaria. Utopía. Utopía menor.
Este trabalho discute a experiência da Feira Virtual Bem da Terra, que acontece no município de Pelotas (RS) desde 2014. A feira é realizada pela Associação Bem da Terra, que reúne produtores da região de Pelotas e um coletivo de consumidores que se organiza como um grupo de consumo responsável (GCR).1A Feira Virtual é balizada pelos princípios da economia solidária e do comércio justo. Procuramos contextualizar o funcionamento da Feira Virtual, bem como sua relação com o chamado consumo responsável para discutir o problema aqui colocado: em que medida e de que forma a utopia agencia a participação de sujeitos na economia solidária, sendo aqui exemplificada2pela Feira Virtual Bem da Terra.
A economia solidária pode ser pensada como fenômeno social, ancorado na práxis das iniciativas, mais do que projeções abstratas a respeito de uma nova sociedade. Desse modo, possibilita indagar: de que maneira a utopia é posta em prática? Parece-nos pertinente perguntar de que forma a economia solidária se constitui como um dispositivo de criação, como algo que bifurca o presente na sua forma mais imediata. Nesse sentido, é necessário pensar de que forma a utopia está presente em seus atores, como ela se relaciona com a produção de desejo.
A Associação Bem da Terra existe desde o ano de 2006 e, a partir de 2009, realiza mensalmente feiras itinerantes. A ideia da Feira Virtual surgiu por meio da relação entre essa associação com as incubadoras da UCPel (Nesic - Núcleo de Economia Solidária e Incubação de Cooperativas) da UFPel (Tecsol - Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Extensão em Tecnologias Sociais e Economia Solidária), e com apoio da incubadora do IF Sul (Nesol - Núcleo de Economia Solidária). O objetivo da Feira Virtual, desde a sua idealização, tem sido ampliar os espaços de comercialização dos empreendimentos de economia solidária e da agricultura familiar de base agroecológica, bem como possibilitar aos consumidores da economia solidária um espaço de compras no qual seja possível encontrar maior variedade de alimentos produzidos em consonância com o princípio da sustentabilidade, além de outros tipos de produto, como artesanato, bebidas e roupas.
Explicitamos a noção de utopia ao longo do artigo, considerando que, durante as entrevistas, método utilizado para investigar as ações utópicas na Feira Virtual, os participantes trouxeram uma variedade de compreensões. Semelhantemente, as discussões teóricas a respeito da utopia também apresentam distintos entendimentos desde: a) a utopia como imaginação, pensamento a respeito de um futuro que se diferencia do presente imediato; b) utopia como projeto político; c) utopia como ação dos sujeitos em sociedade; e d) utopia como modo de singularização, que se diferencia, ainda que fragilmente, das identidades mercantilizadas presentes no capitalismo (Ramm & Raniere, 2019).
A pesquisa cartográfica com a Feira Virtual e a discussão realizada vão nos convocando ao longo do texto, de forma ensaística, a nos debruçarmos sobre o pensamento de autores que discutem o conceito de utopia. Valemo-nos do conceito de utopia concreta, de Ernst Bloch (2006), para situá-la como um conjunto de ações que visam transformar o presente, agenciadas pela reflexão/ação sobre ele e pela proposição de construir um futuro diferente. A utopia concreta, para Bloch (2006), é aquela que assume suas fragilidades e riscos, preservando uma espécie de autocrítica no reconhecimento das dimensões históricas que permitem a inscrição do fazer utópico na realidade vivida. Nesse sentido, a utopia é um exercício ético calcado em ações concretas, que incluem a imaginação/narrativa de outros futuros possíveis, mas não se restringe a ela.
Utilizamo-nos também do conceito de profanação, de Giorgio Agamben (2007), para identificar formas de repensar o consumo individualizado no modo de produção capitalista, por meio da observação de usos diferenciados das práticas de comprar e vender. A partir dos tensionamentos das compreensões de utopia que aparecem nas narrativas dos participantes e nos autores que discutem o conceito, avançamos para a compreensão de que a utopia que agencia as práticas de economia solidária, atualizadas na Feira Virtual Bem da Terra, é uma utopia menor. Inspiramo-nos em Deleuze e Guattari (1977) que se referem à literatura de Kafka como uma literatura menor. Buscamos pensar a utopia menor como uma espécie de linha de fuga aos grandes projetos redentores, salvacionistas, visto que as práticas da Feira Virtual, em vez de reificarem tais modelos utópicos, oferecem condições de possibilidades a partir dos quais novos processos de singularização emergem. Nesse sentido, o que chamamos de utopia menor são pequenos territórios existenciais, locais de passagem, de troca e de habitação, a partir dos quais consumidores, produtores e universidades se encontram para produzir sentido em torno de sutis, delicadas, frágeis realidades em construção. A utopia é menor, portanto, à medida que não é determinada pelo maior, pelo padrão, pelo modelo; seja esse o modelo do grande capital ou da grande utopia.
Diante de tais espaços de concentração de poder, a utopia menor oferece uma desterritorialização da língua maior, uma ramificação do individual no imediato político e um agenciamento coletivo de enunciação (Deleuze & Guattari, 1977).
Método
Os registros foram produzidos tendo como base a história oral. Portelli (1997) aponta que na história oral o resultado de uma pesquisa é construído conjuntamente pelo entrevistador e os sujeitos participantes. Nesse sentido, a pesquisa é um processo de criação e é no viés cartográfico que buscamos inspiração para a composição aqui proposta.
A cartografia, como um caminho de pesquisa com inspiração nas ideias de Gilles Deleuze e Michel Foucault, se popularizou no Brasil a partir de Rolnik (1989), que entende que paisagens psicossociais, do mesmo modo que territórios na prática dos geógrafos, se tornam cartografáveis. Pesquisar dessa forma seria, portanto, dar língua aos afetos que pedem passagem no corpo, reconhecendo as limitações do processo de produção de conhecimento. Por isso, "[...] O cartógrafo é antes de tudo um antropófago". (Rolnik, 1989, p. 16). Trata-se de uma pesquisa que se alimenta das mais variadas formas, materiais de qualquer procedência, desde que permitam composições a partir do desejo.
Tendo em vista que "cartografar é acompanhar processos" (Pozzana & Kastrup, 2009, p. 52), cabe ressaltar que a primeira autora deste artigo trabalhou durante cerca de quatro anos no Tecsol, atuando no que se costuma chamar de "área relacional" dos processos de incubação de empreendimentos de economia solidária, a maioria integrantes da Associação Bem da Terra. Especificamente no trabalho da Feira Virtual, participou do "GT urbanos",3embora essa atuação acontecesse de forma bastante pontual. Participava da feira também como consumidora, assim como o segundo autor. Isso diz dos encontros que tivemos com os sujeitos que constroem a Feira Virtual, que foram fundamentais para a emergência do problema de pesquisa, que se deu a partir dos nossos afetos e implicações como pesquisadores, elementos que também compõem essa cartografia.
Para possibilitar o "antropofagizar" das histórias dos participantes da Feira Virtual, por meio da história oral, nos utilizamos da entrevista semiestruturada. Esse tipo de entrevista, segundo Boni e Quaresma (2005), combina questões abertas e fechadas e é conduzida em um clima informal.
Antes do início das entrevistas, o projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas. Todos os entrevistados assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Foram entrevistadas quatro pessoas de cada um dos três grupos que participam ativamente da feira: produtores, consumidores e equipe de incubação. Para identificar os participantes da pesquisa, preservando-lhes a identidade, a cada um deles foi dada uma letra, simbolizando a inicial do nome. Para situar cada entrevistado no grupo do qual participa, consumidor, produtor ou parte da equipe de incubação, eles receberam também sobrenomes. Os produtores foram chamados de "dos Desejos", a equipe de incubação, "da Criação", e os consumidores, "do Devir". As entrevistas serão citadas ao longo do texto, portanto, tendo como indicação de autoria a primeira letra do primeiro nome do entrevistado e ao lado o grupo do qual participa. Assim, o senhor João da Silva, que poderia participar do grupo de consumidores apareceria como J. do Devir. As palavras escolhidas para os sobrenomes estão relacionadas, de um modo amplo, com o território onde estamos situando a utopia: iniciativas como a Feira Bem da Terra. Não significando que desejo, criação e devir estejam mais presentes nesta ou naquela experiência dos participantes.
A Feira Virtual e as utopias
A feira funciona por intermédio de uma plataforma de compras hospedada no site cirandas.net.4Os consumidores cadastrados fazem seus pedidos de segunda a quinta-feira todas as semanas e retiram no sábado durante a tarde. No turno da manhã, chegam os produtos no centro de distribuição (normalmente chamado de CD) e são acomodados e separados em caixas, uma para cada consumidor. O trabalho de separação é feito por um representante de cada núcleo de consumo. Internamente os núcleos organizam sua escala de separação e facilitação5 e avaliam a dinâmica da feira.
Até esse momento, as tarefas de facilitação ainda não são completamente executadas pelos consumidores e produtores. Todos os sábados, integrantes das incubadoras auxiliam no processo. No início da experiência, a tarefa era de inteira responsabilidade das incubadoras, a mudança é gradual e faz parte da concretização do objetivo de transição da feira para um processo autogestionado (a gestão compartilhada por produtores e consumidores), por intermédio da desincubação,6que não tem um prazo determinado.
Assim como as tarefas práticas, a gestão da feira também está passando por um processo de transição. As decisões são tomadas em uma reunião semanal, reunindo os grupos de trabalho7que tratam das questões operacionais da feira. O processo de transição para a autogestão se dá com a incorporação dos consumidores aos grupos de trabalho e da formação de comissões que se propõem a tarefas que não estão na alçada de possibilidade de realização dos GTs. Neste momento, também está se formando uma associação de consumidores,8cujo objetivo é apoiar o desenvolvimento da Associação de produtores Bem da Terra e promover atividades de cunho educativo sobre temáticas relacionadas ao consumo responsável.
Além da participação nos GTs e da formação de comissões (essas últimas são majoritariamente formadas por consumidores), a transição para a autogestão também se exercita nos encontros de produtores e consumidores e nos conselhos de núcleos.9O processo de desincubação é bastante desafiador, uma vez que demanda progressivo aumento da participação e implicação de consumidores e produtores nas atividades da feira. Sobre essa necessidade de participação, L. do Devir diz:
Eu acho que eu atuo talvez menos do que eu deveria, e mais do que são as minhas possibilidades, né? Mas eu gostaria de atuar mais, eu gostaria de ter um maior engajamento dentro da rede Bem da Terra, mas enfim o tempo e outros afazeres não nos deixam fazer isso, né? Mas, enfim, até onde eu posso, eu tento me engajar de uma maneira mais incisiva, mas às vezes é difícil e tal... eu queria tá mais por dentro, né? Participar mais ativamente da feira como um todo assim [...] Cara, eu nem lembro, participo de várias coisas, vários GTs, sei lá. (Comunicação pessoal, 16 de maio de 2016)
A importância da implicação dos consumidores, que não envolve apenas tempo, mas mais conhecimento das necessidades dos produtores, é uma característica dos grupos de consumo responsável. Eles têm emergência relacionada aos primeiros empreendimentos de economia solidária, que se tratavam de organizações coletivas de trabalhadores para compra dos itens necessários ao seu sustento. Mascarenhas, Gonçalves e Bensadon (2014) pontuam que os grupos de consumo responsável partem da crítica à forma como o mundo rural sofre pressões para incorporar em seus sistemas de produção a lógica empresarial, de forma que os agricultores perdem autonomia para os grandes monopólios do sistema agroalimentar. Além disso, esses grupos se embasam na crítica ao consumo massificado de produtos oriundos de cadeias produtivas que concentram poder e capital.
Ao analisar as práticas de consumo que produzem rupturas com a cultura hegemônica, tais como as experiências dos GCRs, Veronese (2008) escreve que, na sociedade atual, para o consumidor médio, produção e consumo são instâncias completamente separadas. Para a autora, a ampliação do consumo da economia solidária é uma forma de transformação do cotidiano e do senso comum. No entanto, aponta para a necessidade de, com a reflexão sobre o chamado consumo consciente, não nos reduzirmos à concepção de indivíduo de Descartes, cujas escolhas podem ser plenamente racionais, uma vez que o sujeito também tem uma vasta gama de conteúdos simbólicos inconscientes, além de constituir-se no mundo pelos modos de subjetivação da cultura hegemônica, dos quais pode diferenciar-se, mas não por completo.
A singularidade é fundamental para pensar a política e as relações sociais. Nessa perspectiva, o processo de individualização não está descolado de uma estrutura social hegemônica, com suas técnicas disciplinares, que se atualizam à medida que também se atualizam as políticas liberais e as estratégias do sistema capitalista (França & Zanetti, 2014). Em contraposição a essas políticas, encontram-se, historicamente, diversas propostas que têm como mote a comunidade. Uma parte significativa dessas propostas, no entanto, conforme aponta Ramos (s.d.), funcionou a partir de regimes totalitários que consideravam lícito o sacrifício da "individualidade" em nome de algo maior para o "povo".
Agamben (1993) propõe outra compreensão da experiência comunitária. Em sua abordagem, contrapõe tanto a estrutura que separa os indivíduos, como dotados de uma identidade única, e sobretudo aptos para perpetuar o sistema político-econômico, quanto a noção totalitária de comunidade que sufoca a experiência e as possibilidades de singularização. Essa perspectiva centra-se na desconstrução da dicotomia entre singular e universal.
A singularidade permite, para Agamben (1993), à produção de conhecimento, sair do conflito entre o inefável do individual e o inteligível do universal. Trata-se de questionar a pertença a conjuntos (e à identidade), estabelecer novos conjuntos e novas pertenças, ou mesmo afirmar uma ausência genérica de pertença. A singularidade está relacionada ao ser "qualquer", cuja origem vem do latim e se traduz comumente por "indiferente", mas que, segundo Agamben (1993), trata-se do contrário em sua forma mais correta, "o ser que seja como for, não é indiferente", ou ainda, "importa".
O ser qualquer, para Agamben (1993), é o amável, já que aquele que ama, não ama a pertença a conjuntos formados pela semelhança como as características singulares: loiro, baixo, magro, tampouco ama uma universalização, como uma ideia geral de amor. Não prescinde nem do singular nem do universal. Não se trata especificamente de nenhum dos dois, mas de uma singularidade que se faz por meio do qualquer. F. da Criação diz a respeito do trabalho com a Economia Solidária:
Quando eu vim pra cá, eu gostei muito do ideal daqui do núcleo, e também logo que eu vim a gente começou a trabalhar com o projeto da feira e eu adorei, amei, sabe? É lindo o projeto! São coisas que eu não conhecia, é uma coisa pra além do capitalismo, porque eu só conhecia o capitalismo em si, né? E não sabia que tinha outro tipo de economia que fosse possível na sociedade, e também a relação com a comunidade, que é uma relação assim… de amor! Pra mim, é como se fosse uma relação de amor tu trabalhar com o grupo. (Comunicação pessoal, 24 de maio de 2016)
Quando fala de amor, F. da Criação não se refere a uma premissa moral de amor ao próximo, oriunda da tradição cristã, como um amor universal, que deveria perpassar todas as relações humanas. Tampouco se refere a um amor por determinado produtor da economia solidária: suas técnicas, seu trabalho, sua história. Trata-se de um "amor" relacionado aos sistemas de pertença que se estabelecem entre os atores da Feira Virtual Bem da Terra, mas que extrapola a seara do individual ou do universal: é um amor qualquer que se dá no plano das relações, da comunidade.
Nesse sentido, a constituição dos GCRs, ou mesmo dos empreendimentos de economia solidária, se faz a partir da emergência de singularidades e coletividades que se inventam e transformam mutuamente, como nos sugere L. do Devir:
Então pra mim parece muito óbvio que se tu trabalha dentro dessa lógica coletiva, se tu participa de experiências de locais onde essas experiências e esse tipo de relacionamento se dá, sei lá, mais assim tu vai agir, sei lá, no teu dia a dia, nas coisas que tu faz, nas relações com as pessoas, etc. O estar no coletivo te ensina a agir coletivamente e te molda, sei lá, nessa lógica de ação coletiva. É quase que um sistema autopoiético [...] (Comunicação pessoal, 16 de maio de 2016)
A constituição dessas configurações grupais se produz por meio de tensões entre as forças que pretendem conservar as condições vigentes e os processos de ruptura que tentam transformar a realidade (Mascarenhas, Gonçalves & Bensadon, 2014). Para que tal tensionamento seja possível e transformador, os processos de singularização são de fundamental importância, já que as experiências comunitárias se constroem em função daquilo que é da ordem do desejo e da subjetividade. Conforme propomos aqui, a ação de GCRs como a Feira Virtual é agenciada por uma utopia menor. Esse movimento utópico é minoritário no sentido de que não opera a partir de uma estrutura de poder e dominação padrão (Deleuze & Guattari, 2011). Ou seja, não se trata de pensar desejo como hegemonicamente se faz na sociedade liberal, como aquilo que move para a busca de uma satisfação individual. Trata-se, no entanto, de um desejo que move a potência da coletividade, que ao mesmo tempo envolve organização e confusão, uma vez que a autogestão é algo novo para boa parte dos envolvidos nessas iniciativas.
Bloch (2006) nos fala a respeito da importância das ideias de ordem e liberdade para as utopias sociais. Para ele, a noção de liberdade de autodeterminação depende da comunidade que a busca e das condições da sociedade a que esta pertence. Já a ordem, segundo o autor, pode ser de dois tipos, uma emergente do coletivo e com a finalidade de solidificar suas construções e outra de pura coação, que se dá de forma extrínseca. A ordem mais coerente com o desejo da comunidade tem, para Bloch (2006), um papel importante nos projetos utópicos, uma vez que ela é produzida coletivamente e dá concretude às iniciativas agenciadas pela utopia.
No caso da feira, a ordem pode ser pensada como esses elementos organizativos por meio dos quais surgem demandas de um maior envolvimento dos consumidores nas tarefas. Ou seja, existe, embora com uma carga horária baixa, uma rotina de tarefas a serem cumprida, em maior ou menor medida, por todos os consumidores.
F. do Devir, sobre essa questão, diz que inicialmente chegou a pensar se as tarefas do sábado seriam "mais um compromisso", mas passou a entendê-las como uma forma de comprometer-se, pois não implicam apenas ela, mas aos acordos que afetam outras pessoas. Atualmente, ela descreve essas tarefas como bastante "tranquilas", já que são combinadas com antecedência e, segundo sua perspectiva, fazem parte da experiência. T. da Criação, por sua vez, coloca as tarefas como uma problemática da feira, na medida em que, segundo sua compreensão, as pessoas têm dificuldade de se sentir importantes para a construção coletiva. Dificuldade de perceber, por exemplo, que caso elas faltem em um sábado em que estejam escaladas para a separação dos produtos, isso fará diferença para o grupo maior.
A liberdade e a ordem não estão dissociadas. B. da Criação acredita que uma das motivações da atuação dos consumidores é a possibilidade de participação efetiva. Dentre aquelas tarefas que não são comuns a todos, como a participação nos GTs, observa que, ao mesmo tempo que a ocupação dos consumidores desse espaço é cada vez mais necessária, têm participado aqueles que efetivamente desejam fazê-lo. B. da Criação coloca como sendo algo bastante simples, o consumidor diz: "quero participar da coordenação", então a ele será informado o horário da reunião e poderá participar. Há, mesmo nas questões de "ordem", ou organização, uma certa liberdade que norteia os processos, que nos parece relacionada com o fato de a feira ser uma estrutura sem um "proprietário". Nossa hipótese é que as três categorias em questão, consumidores, produtores e equipe de incubação, experimentam uma relação de uso comum em seus agenciamentos com a Feira Virtual Bem da Terra. Tais relações permitem, no nosso entendimento, a invenção de uma utopia menor.
Relações de posse e relações de uso
Em O Elogio da Profanação, Giorgio Agamben define profanar como a ação de devolver ao uso comum aquilo que foi sacralizado. Inspirado em Benjamin (2015), o autor italiano problematiza o capitalismo como religião planetária, uma vez que sua principal característica é a de promover separações e privatizar o uso.
Pode-se definir como religião aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfera separada. Não só não há religião sem separação, como toda separação contém ou conserva em si um núcleo genuinamente religioso [...]
O termo religio, segundo uma etimologia ao mesmo tempo insípida e inexata, não deriva de religare (o que liga e une o humano e o divino), mas de relegere, que indica a atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o "reler") perante as formas - e as fórmulas - que se devem observar a fim de respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Religio não é o que une homens e deuses, mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos. [...] (Agamben, 2007, pp. 58-59)
No caso da Feira Virtual Bem da Terra, a experiência da relação de uso transforma as relações de comercialização e de compra. Isso se evidencia, por exemplo, no processo de separação dos produtos, feito cooperativamente e incorporado como uma tarefa de todos os consumidores. Trata-se da atribuição de novos significados ao consumo e de uma profanação (Agamben, 2007) das relações de troca, que mantém em alguns aspectos as características e a lógica da economia capitalista (mantém-se a moeda, por exemplo), mas se transforma com a coletivização das atividades. L. do Devir diz:
Eu participo da construção da lógica, enfim, eu ajudo na separação. Eu conheço o produtor se eu quiser, tem uma relação mais íntima, e enfim, essa etapa aí da troca da mercadoria pela moeda, ela é só mais uma etapa, talvez, viajando um pouco, e sendo utópico, não é a finalidade, talvez. (Comunicação pessoal, 16 de maio de 2016)
A ideia do fator econômico não ser central nas relações que se estabelecem na Feira Virtual também aparece na fala de T. da Criação.
Mas quando tu vê as pessoas falando, tu vê que é bem mais do que o espaço pragmático "e aí é isso e ponto". Ela [a economia solidária] mexe nas pessoas de uma forma muito mais profunda, né? Então isso pra mim é um pouco conflituoso, assim, entender... Eu vejo as limitações da Feira Virtual como um espaço de transformação social, mas, ao mesmo tempo, eu vejo o quão ela mexe com aqueles consumidores e com aqueles produtores e com quem entra nas universidades pra fazer esse trabalho. Então eu acredito que sim, eu acho que sim [risos], apesar de ser algo que mexe bastante comigo. Tento dialogar comigo mesma muitas vezes essas questões, mas eu acho que sim, que é um espaço de resistência e de transformação. (Comunicação pessoal, 22 de maio de 2016)
Observamos que os interesses dos consumidores não estão tão diretamente relacionados ao processo pragmático de comercialização, mesmo que ele se dê de forma diferenciada, mas se trata de um interesse que é protagonizado por outros desejos. Nas quatro entrevistas feitas com os consumidores e também nas realizadas com membros da equipe de incubação (que também são consumidores), aparece a expectativa de construção de outras relações sociais, de outro modo de organização da sociedade. M. da Criação diz:
Eu particularmente me movo em função dessas questões, que elas são questões mais de fundo, mais de sonhos, mais de expectativas de vida. Quer dizer, eu penso que sempre que a gente desenvolve processos coletivos, e eu, particularmente, pelo menos até hoje, eu tive uma trajetória muito vinculada a essas questões coletivas [...] E eu entendo que os processos coletivos, eles são responsáveis por produzir nos indivíduos [...] Eu entendo que os coletivos são capazes de fazer isso, eu não entendo que individualmente, ou solitariamente, a gente consiga conceber um mundo diferente e pensar sobre esse mundo diferente. Porque esse mundo diferente ele é resultado de uma transformação, e essa transformação é uma transformação coletiva, até a transformação individual, ela é resultado de uma ação coletiva [...] Então, eu sempre entendi que essa coisa do processo de transformação, da utopia, dessa coisa de a gente enxergar à frente, ela tem a ver com isso, ela tem a ver com o mundo ao qual a gente pensa, a gente imagina, a gente luta, mas também aos grupos que a gente se vincula e que buscam esse lugar diferente, digamos assim. (Comunicação pessoal, 1º de junho de 2016)
Para os produtores, os interesses parecem ser um pouco diferentes. Embora haja também neles - a partir do que apareceu nas entrevistas - o desejo de construção de relações de trabalho outras, sobretudo implicadas na produção e consumo de alimentos, eles têm no fator econômico aquilo que é básico, a própria subsistência. Sonhar com uma outra economia, para os produtores, é sonhar também com condições de vida menos difíceis para eles mesmos.
O fator econômico como analisador do interesse dos produtores é bem explicitado nas entrevistas, uma vez que três dos produtores entrevistados são agricultores e uma é artesã. O artesanato, na Feira Virtual, representa uma porcentagem pequena das vendas. A artesã entrevistada, R. dos Desejos, quase não falou de sonhos ou utopias relacionados à Feira Virtual, mas demonstrou mais entusiasmo ao se referir às feiras itinerantes.
M. da Criação fala a respeito da feira pelo fator econômico fundamental para os produtores:
A questão da comercialização na feira era muito importante pra criar uma condição diferenciada pros produtores. Claro que pros consumidores era muito importante, é muito importante, tanto que é isso, a gente muda a nossa rotina, a gente muda o nosso cotidiano, a gente muda a nossa concepção, mas pros produtores isso passava a ser, porque afinal de contas, os produtores, eles não comercializando na feira virtual, eles deveriam se jogar pra dentro do mercado convencional, o mercado capitalista, e hoje a gente sabe que tem vários empreendimentos que têm uma produção equivalente a mais da metade da produção do empreendimento, vinculada à Feira Virtual. (Comunicação pessoal, 1º de junho de 2016)
M. da Criação refere-se à importância do fator econômico, relembrando como a feira inicialmente foi projetada, de maneira a priorizar mais sua viabilidade do ponto de vista econômico e de execução do que o acesso a um público maior de consumidores. A definição dessa prioridade se deu devido à necessidade da construção de espaços que remunerassem os produtores de forma justa e os incentivassem a continuar trabalhando com a produção agroecológica.
N. dos Desejos conta sua história na agricultura, enfatizando bastante o período de em que produziu fumo, atividade que ela considerava adoecedora, em contrapartida às mudanças que a produção agroecológica produziu. Ela diz que durante cinco anos plantou junto com seu marido, apenas para pagar a dívida que havia contraído com a empresa fumageira. Ela relata que as empresas sempre tinham uma "novidade" em agrotóxico para vender, que a justificativa era de que a produção seria melhor, mas em sua avaliação, a grande beneficiada era a própria indústria de agrotóxicos.
A gente trabalhava, trabalhava, colhia fumo. Às vezes era 8, 9 horas da noite a gente tava lá carregando [...] Aí depois eu tinha que tirar leite, né? Aí tu imagina se eu ia ter condição de fazer uma comida, de comer alguma coisa? Eu não tinha, porque a canseira era tanta, que não dava vontade nem de comer nem nada. Porque eu fiquei doente depois disso, agora eu tenho uma anemia que sempre renova, né? Mas foi dali, porque eu nunca tinha nada. (Comunicação pessoal, 22 de maio de 2016)
Os empreendimentos rurais da associação Bem da Terra priorizam mais a comercialização do que a produção conjunta na organização entre as famílias participantes. Esse é o caso do grupo do qual participa N. dos Desejos, formado atualmente por cinco famílias. Embora tal priorização, os laços de solidariedade extrapolam essa questão organizativa. Ela conta que produz adubo orgânico também para as outras famílias que participam do seu grupo, já que elas, muitas vezes, não têm tempo disponível para isso. Ela diz preferir produzir um pouco a mais e garantir que as demais famílias também tenham os produtos "limpos" e de qualidade. Hoje, ela e o marido, T. dos Desejos, fornecem para a Feira Virtual e para alguns consumidores que encomendam e compram diretamente com eles. Os dois se orgulham de falar da relação de confiança que conseguem construir nessas duas formas de comercialização, uma relação que entendem como sendo "muito mais humana".
Percebemos nos relatos de N. dos Desejos, que não se trata apenas de sonhar com uma maior qualidade de vida que pode ser obtida pela remuneração mais justa do agricultor. Trata-se de trabalhar de um modo que considera mais saudável, de relacionar-se de forma mais direta com as pessoas que consomem aquilo que ela produz e também com os outros produtores. Para além desses interesses, que dizem respeito a mudanças em sua vida, N. dos Desejos fala também acerca de suas utopias, de sua vontade de transformação. Sobre acreditar no potencial de mudança de iniciativas como a feira virtual, ela diz: "As pessoas têm que ficar mais juntas, eu acho. Pra poder mudar, porque eu acho que isso aí pode ser uma engrenagem que pode mudar o mundo".
T. dos Desejos diz que o tipo de trabalho que realiza hoje, com alimentos agroecológicos, é menos estressante e perigoso, por não lidar com produtos tóxicos. Também ressalta a diferença na remuneração ao vender sem atravessador. Ele afirma que a relação que estabelece com os consumidores é "como uma família", uma vez que ele vende há 28 anos para os mesmos clientes, levando os produtos em suas casas, e que eles acompanharam, inclusive, o processo de transição agroecológica. Apesar de terem outras fontes de comercialização, T. e N. dos Desejos reforçam a importância da Feira Virtual por ela permitir acesso de mais pessoas aos alimentos agroecológicos.
L. dos Desejos fala da importância do aspecto econômico para os produtores da Feira Virtual.
Eu acho que pra gente manter o jovem na agricultura, tem que ter um preço justo, não tem que ter atravessador pro colono ganhar mais e se manter no processo dele de agricultura, né? E eu acho assim, num termo geral, que eu vejo todos os nossos grupos, que hoje são 35, mas, mais ou menos uns 6, 7 na agricultura, todos tão muito contentes com o processo, todinhos. (Comunicação pessoal, 8 de junho de 2016)
Da mesma forma como observamos nos consumidores, para os produtores, os interesses que movem as mudanças mais cotidianas, no âmbito de suas vidas e relações familiares, caminham em conjunto com os desejos de uma outra economia, ou de uma "agricultura mais justa", como disse L. dos Desejos.
Para Bloch (2006), as utopias concretas formam-se a partir de sonhos diurnos. Uma das características desses sonhos é que os sujeitos não perdem contato com suas privações, suas limitações, advindas das condições sociais às quais estão submetidos. Talvez por essa condição, de uma consciência desperta, é que as utopias sociais presentes entre aqueles que constroem a Feira Virtual atuem na singularidade, conforme compreendida por Agamben (2013), nem individual, nem universal. Dizendo de outra forma, ao mesmo tempo em que os produtores encontram um espaço fértil para singularizar-se, para inventar-se de forma diferenciada daquelas instituídas pelos modos de subjetivação hegemônicos, eles encontram (e constroem) condições para realizar um futuro diferente daquele da ordem do capital imposta como mais eficiente ou inovadora.
Bloch (2006) diferencia os sonhos diurnos dos noturnos, e também se utiliza da psicanálise freudiana para compreender os sonhos diurnos. Diferentemente de Freud e seus discípulos, no entanto, ele não delega ao sonho diurno o papel de mero prelúdio ao sonho noturno (Machado, 2008). Para Bloch (2006), o sonho diurno se diferencia do noturno, na medida em que se pode imaginar e até delirar, mas sem deixar de ter a possibilidade de ponderar e planejar. No sonho noturno, também há elementos da consciência utópica, mas o diurno produz utopias situadas também em seus roteiros, no sentido de que para ele a utopia se faz possível em um determinado contexto histórico.
Os sonhos noturnos, na perspectiva psicanalítica, demandam ser interpretados, enquanto para Bloch, os sonhos diurnos não demandam interpretação, mas elaboração, criação. A partir da elaboração, torna-se possível o acesso a uma consciência utópica, que possibilita antever elementos futuros, elementos do que ainda-não-é, mas que também tem uma parte inconsciente, uma vez que vislumbra algo que ainda não foi manifestado no mundo (Costa, 2009). Esses sonhos, e mesmo esses elementos inconscientes, nessa perspectiva, não estão voltados para uma memória do passado, tal como se estrutura a Psicanálise, mas estão no plano do devir.
T. da Criação fala a respeito da relação da Feira Virtual com o sonho de um futuro diferente: "Essa busca por algo diferente... É uma perspectiva de futuro diferente do que a gente tem, de relações de trabalho diferentes das que a gente tem hoje, eu vejo como um sonho mesmo, e como algo que pode ser realizado. E acho que vem sendo realizado com pequenos passos" (Comunicação pessoal, 2 de junho de 2016).
A fala de T. da Criação, assim como a de outros participantes da feira que foram entrevistados, aponta para a relação do empreendimento com o que Bloch (2006) chama de utopia concreta. Ou seja, embora eles vejam na Feira Virtual um sonho, bem como na economia solidária, não a veem como algo distante ou abstrato, mas que tem concretude e possibilidade de realização. T. dos Desejos diz a respeito disso: "é um sonho assim que eu acho que tá se tornando realidade e tem que se sonhar, a vida toda é assim, tem que ter um sonho, se não as coisas não acontecem".
Em relação à crítica ao presente e capacidade de antecipação em relação ao futuro, os participantes da feira entrevistados demonstraram um forte desejo de ampliação da iniciativa, ou, se pensarmos com Agamben (2007), de profanação, uma vez que se preocupam com o fato de que algumas características da estrutura de organização, e mesmo o preço de alguns produtos, acabam restringindo o público de consumidores que participa, que está atualmente muito ligado às universidades de Pelotas. T. da Criação demonstra preocupação com isso, relatando a frustração que teve em alguns momentos ao apresentar a feira para pessoas que têm um poder aquisitivo um pouco menor, ou que têm famílias mais numerosas.
Eu digo que o alimento orgânico e de economia solidária, ele normalmente é mais caro, né? Realmente eu acho que pra nós, assim que consumimos dois quilos de arroz no mês, sei lá, eu digo por mim, mas, né? Ele até compensa porque tu tá comendo comida, por um preço bom, relativamente bom, porque é um pouco mais caro que outro, e muitas vezes ele é mais barato. Em épocas de safra, determinado alimento, ele sai mais barato e tudo, mas tu vai falar com famílias, que eu acabo conhecendo pela questão de envolvimento com movimentos sociais, que consomem 10 quilos de arroz, 10 quilos de feijão e cinco de farinha no mês, faz diferença. Ela não pode consumir na feira, porque faz diferença, aquela mulher e aquele homem normalmente têm famílias maiores, de quatro pessoas, o casal, dois filhos, normalmente são as pessoas que eu mais conversei sobre isso. (Comunicação pessoal, 2 de junho de 2016)
Entre os produtores essa preocupação também aparece. N. dos Desejos diz que ao estabelecer os preços de seus produtos, sempre pensa nos participantes da feira que têm um poder aquisitivo menor, porque "todo mundo tem direito de ter um produto bom pra comer", nas palavras dela. Assim como T. dos Desejos, que diz que "alimento é uma coisa sagrada", ela acredita que os produtos orgânicos deveriam estar disponíveis a todos. Brincando com Agamben (2007), talvez poderíamos dizer que, embora use a palavra "sagrada", T. dos Desejos gostaria que os produtos da agroecologia fossem profanos, não os alimentos em si, que ao serem consumidos acabam na seara individual, mas a agroecologia de uma forma mais ampla, como produtora de outras relações com o trabalho e o corpo.
M. da Criação acredita que para que seja possível a ampliação da feira, especialmente para que a população mais pobre tenha acesso a ela, é necessário que a organização da estrutura seja repensada para ir até essas pessoas. Ela coloca como sendo algo fundamental a planejar, sobretudo pelo fato de a feira nortear-se por um paradigma de transformação social. Mas tal como a feira está estruturada atualmente, restringe-se o acesso. Isso acontece, segundo M. da Criação, porque a população mais pobre está geograficamente localizada mais distante do centro da cidade - e do CD - e também porque não necessariamente tenha hábito ou conhecimento para o uso cotidiano de computadores e internet, como de forma geral acontece com o público atual da feira.
Observamos que o desejo dos participantes da feira, os do Devir, da Criação e dos Desejos, é de torná-la uma estrutura ainda mais profana. Ao mesmo tempo, já percebem nela essa característica de uso comum para aqueles que dela participam. Percebem que a feira - enquanto movida por um devir solidário da economia - é um sonho concreto. E por sabê-lo concreto, por vezes, são temerosos ao usar a palavra utopia. Vejamos a fala de C. do Devir:
Eu não queria que fosse tão utópico. Eu consigo relacionar isso com muitas outras coisas na vida, assim, de querer juntinho assim, cada um fazendo um papelzinho pra um bem muito maior, sei lá, pensando a educação também. E eu tava falando sobre isso esses dias, o quão utópico, o quão lindo é isso, se você analisar no micro, sabe? O quão legal é o quanto tudo isso funciona. Mas saber o quão difícil é aumentar isso e fazer ter alguma visibilidade mesmo, sabe? Pra tornar uma coisa maior. (Comunicação pessoal, 24 de maio de 2016)
A fala da consumidora mostra uma compreensão da utopia relacionada à abstração, a algo que talvez não alcancemos. Ao mesmo tempo que demonstra alguma angústia em relação ao futuro da economia solidária, será que ela pode crescer? Será que é mesmo tão difícil torná-la "maior", no sentido de mais ampla, mais profana, mais disponível e mais desafiadora ao sistema econômico vigente?
F. do Devir, sobre a utopia na feira diz:
Utopia no sentido de mover pruma coisa melhor, não que seja algo inatingível. Eu acho que a gente já atingiu bastante, a gente já avançou bastante. Mas eu acho que sim, e eu acho que esse é o fio que costura as pessoas, eu sou diferente, cada um é de um jeito, e quem me observa assim pode pensar "bom, nada a ver com a gente, nada a ver". A gente vai se descobrindo né? A gente tem formas diferentes de se expressar, de se mostrar, mas o fio que costura é essa utopia, é esse querer, esse desejo. (Comunicação pessoal, 12 de maio de 2016)
L. do Devir, sobre a utopia que move a construção da feira, diz que "estamos tendo êxito, eu acho, nesse processo aí. Mas também se a gente não conseguir, azar, a gente tentou e foi legal, né? A gente tenta de novo". A fala do consumidor demonstra a presença de uma utopia concreta na Feira Virtual, que pode transformar-se, atualizar-se de outras formas, uma vez que está calcada em ações, e não em devaneios.
Considerações sobre uma utopia menor
A partir das entrevistas que compõem esta cartografia, percebemos que as utopias presentes entre os participantes da Feira Virtual podem ser denominadas de utopias concretas. Ou seja, entendemos que as utopias da economia solidária são aquelas que emergem dos trabalhadores, dos consumidores, das incubadoras, dentre outros possíveis agentes na forma daquilo que os interessa e os torna interessantes ao coletivo.
Os atores que constroem a economia solidária vislumbram características de uma nova sociedade, aquela que se empenham em construir, mas suas utopias não parecem servir somente a esse fim, mas atuam como um meio: a utopia é aquilo que lhes renova o desejo de efetivar transformações no presente, nos espaços em que estão inseridos, em suas relações, na micropolítica do cotidiano. É um meio que mantém o entusiasmo e a vontade de criar, que potencializa a construção de um presente-futuro outro, sua imaginação e sua criação.
Essa utopia-meio não significa que não há sonhos de futuro na economia solidária. Os produtores imaginam um futuro em que todas as pessoas tenham acesso a alimentos produzidos sem agrotóxico, os consumidores imaginam um futuro em que as relações de produção e consumo aconteçam de forma menos alienada, enquanto a equipe de incubação trabalha para construir um futuro em que a Feira se autonomize.
No entanto, trata-se de pensar um futuro que não paralisa. A economia solidária pode construir seus projetos, mas a não imediata efetivação destes não diminui o entusiasmo, porque se trata do desejo que transforma a vida daqueles que participam dela. Ou, dizendo de outra forma, aqueles que se colocam à disposição da participação de coletivos, que constroem a economia solidária, fazem uso dessa experiência de uma forma que não planejam a priori, mas esse uso reinventa suas relações com o mundo e contribui para que novas utopias se criem e ganhem concretude.
A essa utopia que se faz nos meios, nos hábitos, nos processos de singularização, uma utopia que dá pequenos passos, a partir de encontros alegres, estamos chamando de utopia menor. Como mencionado, Deleuze e Guattari (1977) propõem uma literatura menor, revolucionária, que fala das condições do povo. A utopia menor, por sua vez, não é apenas um sonho para os proletários, é um sonho deles mesmos. Sobre a literatura, Deleuze e Guattari (1977, p. 42) escrevem: "Quantos estilos, ou gêneros, ou movimentos literários, mesmo bem pequenos, só tem um sonho: preencher uma função maior da linguagem, fazer ofertas de serviço como língua do Estado, língua oficial [...] Ter o sonho contrário: saber criar um tornar-se menor".
A economia solidária, como a literatura de Kafka, segundo a perspectiva de Deleuze e Guattari (1977), cria um torna-se menor. Uma utopia que não tem âncora nem no poder estatal nem na lógica do mercado, é feita por processos de singularização capazes de promover sonhos menores.
É importante acentuar que nem só de utopias vive a economia solidária, mas de sobrevivências. Ela nasce como uma alternativa ao desemprego e ganha mais adeptos em tempos em que o capitalismo produz mais excluídos. É uma economia minoritária, por isso carrega consigo uma utopia menor: "Grande e revolucionário, somente o menor" (Deleuze & Guattari, 1977, p. 40).
A utopia menor, na economia solidária, se dá na experiência. Agamben, citado por Didi-Huberman (2008, p. 76), pontua que "o homem moderno volta para casa, à noitinha, extenuado por uma mixórdia de eventos - divertidos ou maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes, entretanto nenhum deles se tornou experiência." A economia solidária, como forma de organização do trabalho, e também nos coletivos de consumo responsável, para os consumidores, é uma forma de criticar essa lógica e permitir que seus participantes voltem para casa ao fim do dia elaborando experiências, elaborando sonhos diurnos.
A economia solidária acontece muito a partir de profanações, poderia inclusive ser chamada de uma economia profana, à medida que se diferencia do capitalismo em sua constituição "religiosa". No entanto, ainda existem espaços sagrados, sobretudo no que concerne às compras, uma vez que, como observado nas entrevistas, as classes mais desfavorecidas economicamente não acessam estruturas como a Feira Virtual. Como crítica a isso, uma cada vez maior profanação do acesso a essas estruturas parece ser o sonho daqueles que delas participam.
Na economia solidária, há uma utopia das políticas do cotidiano, que desconstrói na prática o paradigma individualizante, de uma forma acessível tanto àqueles que já têm experiências coletivas anteriores quanto aos que encontram na feira o coletivo como uma grande novidade como forma de organização. Uma utopia que traz a economia solidária para o plano da imagem, dos lampejos, dos vaga-lumes (Didi-Huberman, 2011), distante dos projetores do capitalismo.
Por fim, salientamos que o conceito de utopia e a formulação que construímos aqui, a respeito de uma utopia menor, sutil e mais próxima dos processos de singularização do que dos grandes projetos sociais, nos ajudaram a nos aproximar da experiência dos participantes da Feira Virtual. Os aspectos elencados por eles, a respeito dos aprendizados que têm na feira acerca do trabalho coletivo, dos grupos implicados com a economia solidária e com formas sustentáveis de produção participam dessa experiência que se constitui como uma utopia menor. Essa utopia efetua transformações individuais e coletivas nos processos de subjetivação. Permite, assim, a ampliação dos interesses dos participantes, que passam a se preocupar com outros integrantes da rede Bem da Terra - produtores e consumidores - e com as pessoas que ainda não participam desta.
A questão dos preços, evocada como uma problemática da feira no que se refere a alguns produtos, normalmente os que não têm possibilidade de abastecimento local, demandaria uma análise mais complexa que não é o objetivo deste artigo. Cabe apontar, no entanto, que a lógica do comércio justo, na qual se embasa a experiência da Feira Virtual, tem como princípio tanto a remuneração justa do produtor quanto condições adequadas de aquisição para o consumidor.
Referências
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Recebido em: 29/3/2017
Aprovado em: 13/5/2019
1 Grupos de consumidores que se organizam coletivamente para participar da feira, podendo agrupar-se por relações de trabalho, vizinhança, dentre outras.
2 Tomamos aqui a concepção de exemplo de Agamben (1993). Para o autor, o exemplo é capaz de destituir a dicotomia entre universal e singular, já que, ao mesmo tempo que é capaz de falar de um coletivo, de um contexto mais amplo, o exemplo é dotado de particularidades, de singularidades.
3 Grupo de trabalho voltado aos produtores urbanos. A nota 7 enumera os grupos de trabalho da gestão da feira.
4 A plataforma é uma iniciativa do Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES) e tem por objetivo, por meio das ferramentas da internet, promover a economia solidária.
5 Facilitadores são aquelas pessoas (podem ser produtores, membros das incubadoras ou consumidores) que auxiliam na distribuição de produtos no sábado.
6 A finalização do processo de incubação.
7 Os grupos de trabalho são: GT rurais (responsável pelo contato com os empreendimentos rurais, pela atualização dos produtos desses grupos na plataforma e pela assessoria técnica voltada a questões da agroecologia, além dos processos relacionais relativos à construção da autogestão; GT Rizoma (responsável pela prospecção de produtos externos e pela compra destes, que se dá por meio de uma outra plataforma, também abrigada no Cirandas, na qual está cadastrada a Feira Virtual e outros empreendimentos que escolhem adquirir seus insumos comprando da economia solidária e de produtores orgânicos); GT Educação (responsável pela comunicação com consumidores, divulgação de avisos e atividades de formação para consumidores ingressantes); GT Sede (realiza o trabalho de organização da sede, acomodação de produtos, fiscalização da limpeza, etc.); GTs Urbanos (responsável pelo contato com os empreendimentos urbanos, atualizações na plataforma dos produtos desses grupos, atividades de integração entre os empreendimentos produtores de artesanato e ações que permitam maior apropriação das produtoras do processo da Feira Virtual); e GT Financeiro (responsável por toda a contabilidade da feira, estudos relacionados ao ponto de equilíbrio e viabilidade econômica e pagamento dos produtores).
8 A associação foi formada após o término desta pesquisa e é denominada "Associação Educacional para o Consumo Responsável Rede Bem da Terra".
9 Os conselhos de núcleos contam com a presença de um representante de cada núcleo, podendo ser o articulador ou outro representante.