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Psicologia para América Latina

On-line version ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  no.5 México Feb. 2006

 

ANÁLYSIS Y CONSTRUCCIONES TEÓRICAS EN PSICOLOGÍA

 

Reforma psiquiátrica e psicanálise: diálogos possíveis no campo da inserção social

 

 

Andréa Máris Campos Guerra; Pollyana Vieira e Souza

Fundação Mineira de Educação e Cultura - FUMEC

 

 


RESUMO

No trabalho de inserção social com usuários dos serviços abertos da rede de Saúde Mental, a estabilização psicótica favorece o aumento da contratualidade social. Assim, partindo de uma discussão em torno da aplicação da Psicanálise ao campo da Saúde Mental, iremos discutir a idéia de soluções na psicose a fim de articulá-la à prática nos Centros de Convivência. Aprendendo com o ‘auto-tratamento’ do psicótico, extrairemos daí preceitos que podem nos orientar no trabalho da reforma psiquiátrica. Ao final, articularemos os dois campos – Psicanálise e Saúde Mental – a partir de um caso no qual aprendemos a operar com o limite do saber diante da invenção do sujeito.

Palavras-chave: Petilipinnis, Freshwater sciaenidae, Petilipinnis grunniens.


ABSTRACT

In the work of social insertion at the open services of net Mental Health, the psychosis stabilization aids the increase of social net. So we will discuss the application of psychoanalysis in the mental health from the idea of solutions in the psychosis. After that we are going to articulate this point to the practice at the “Centros de Convivência”. Learning with the “auto-treatment” of the psychotic, we will pull out concepts for the orientation of psychiatric reform. At the end, we will link both areas – Psychoanalysis and Mental Health – from a case placed between the limits of the knowledge and the invention of the subject.


RESUMEN

En el trabajo de inserción social con usuarios de los servicios abiertos de la Salud Mental, la estabilidad psicótica favorece el aumento de la contratualidad social. Asi, partiendo de una discusión alrededor de la aplicación de la Psicanálise al campo de la Salud Mental, iremos a discutir la idea de soluciones en la pscicose a fin de articularla a la práctica en los Centros de Convivencia. Aprediendo con el ‘auto-tratamiento’ del psicótico, extrayendo de ahí preceptos que puedan orientarnos en el trabajo de la reforma psiquiátrica. Al final, articularemos los dos campos – Psicanálise y Salud Mental – a partir de un caso en lo cual aprendemos a operar con el límite del saber delante de la invención del sujeto.


 

 

INTRODUÇÃO

Esse texto nasce da interface entre a Psicanálise e o campo da Saúde Mental, partindo do pressuposto de que há entre esses dois saberes uma parceria possível de trabalho, que não se faz sem um certo estranhamento. Entendemos que o campo da Saúde Mental é epistemologicamente disperso e difuso, cooptando diferentes fundamentos para validarem sua episteme, sua práxis e sua ética. Ao romper com o paradigma da psiquiátria clássica, com a dicotomia tradicional entre mente-corpo, orgânico-psíquico, coletivo-particular, a reforma psiquiátrica inaugurou a possibilidade do diálogo entre diferentes saberes para sua orientação e consolidação. Dentre eles, o saber psicanalítico é mais um, dentre tantos, a trazer uma contribuição possível para se pensar a prática neste território discursivo. É nesse sentido que defendemos a aplicação da Psicanálise ao campo da Saúde Mental. Não como saber hegemônico, pois sabemos dos estragos históricos, assistenciais e subjetivos acarretados pela hegemonia do saber ‘psi’ no aprisionamento moral e material que circundou os manicômios. Mas antes como uma interlocução interessada nas questões sociais, políticas e clínicas de sua época.

Entretanto, a Saúde Mental apresenta hoje, no Brasil, objetivos claros e ideais ferrenhamente defendidos em relação à inclusão social do usuário e à desmontagem do aparato simbólico, discursivo e concreto que o manicômio representa. Por outro lado, sabemos que a Psicanálise não opera com um ideal de cura, de homem ou de sociedade. Isso contrariaria sua ética. Num movimento de torção1, entretanto, ambas colocam em xeque, cada qual a sua maneira, qualquer instrumento clínico, saber ou prática, que opere como agenciador de controle e normatização social, ou que traga como conseqüência a dessubjetivação e a alienação.

Nessa perspectiva, entendemos que a relação entre esses dois saberes (Psicanálise e Saúde Mental) é de extimidade. Do mesmo modo que as superfícies da Banda de Moebius não fazem interseção entre si, mas possuem uma relação íntima e distante, entendemos que princípios e conceitos da prática psicanalítica podem ser forjados como operadores na prática da Saúde Mental, quando úteis. O encontro com um analista interessará se ele for útil, seja para um sujeito ou para um contexto. Enquanto, por seu turno, o campo da Saúde Mental retorna ao da Psicanálise, confirmando para este seus pressupostos, fazendo avançar sua teorização.

Apresentado, pois, o enquadre teórico a partir do qual vamos funcionar, passemos ao texto em si. Nesse artigo partimos de um questionamento de fundo acerca da função dos Centros de Convivência e da questão sobre como a Psicanálise pode aí contribuir. Para isso, partimos de uma contextualização e reflexão sobre os Centros de Convivência. Em seguida, apresentamos os fundamentos psicanalíticos em torno da maneira como construimos soluções subjetivas aos nossos mal-estares, buscando extrair daí aportes teóricos que podem ser aplicados ao campo da Saúde Mental. Finalizamos com a apresentação de um caso clínico, articulando, então, os dois territórios discursivos, suas impossibilidades e aproximações.

 

CENTROS DE CONVIVÊNCIA: CONTEXTUALIZAÇÃO

Como é de conhecimento notório, com o movimento nacional de reforma psiquiátrica, iniciado em fins da década de 70, a política nacional assentou-se sobre o modelo substitutivo ao manicômio, estruturado em rede aberta de serviços de complexidade diversificada, visando acompanhar o usuário - portador de sofrimento mental - em sua trajetória histórica e clínica, com vistas a sua inserção sócio-familiar.

Em Belo Horizonte, a construção da rede antimanicomial data de 1993, tendo alcançado significativos resultados nesses mais de dez anos de existência. Segundo LOBOSQUE e ABOUYD (1998, p. 243-244), essa rede de serviços se orienta por alguns princípios que podem ser assim reunidos: a) trabalho guiado pelo resgate da cidadania do usuário, numa associação entre clínica e política; b) reflexões críticas sobre a dimensão pública da assistência e defesa do SUS; c) perspectiva de extinção do hospital psiquiátrico através da construção de rede substitutiva e transformação da lógica da assistência; d) interlocução constante com os movimentos sociais e, em particular, com o Movimento Antimanicomial; e e) intervenção no âmbito da cultura, possibilitando uma recriação das idéias sobre a figura do louco.

Sobretudo em sua concepção inicial, a assistência em Saúde Mental de Belo Horizonte encontrou na Psicanálise teorização sólida para a sustentação das ações clínicas, ao lado da Psiquiatria Democrática Italiana. Com o passar dos anos e a sedimentação de um saber construído a partir da prática, a clínica tem se estendido cada vez mais para uma interlocução com a cultura e com a cidade.

Nesse sentido, podemos trazer a idéia de clínica, na atual conjuntura da Saúde Mental, como prática que visa buscar um novo lugar e espaço para a loucura, com menos rigidez, e que retira a clínica da Saúde Mental de sua tradicional função de controle social, feita em nome de ditames técnicos e científicos, para colocá-la a trabalho da autonomia e independência das pessoas. As "ações e estratégias são de ordem diversa, levando-nos a intervir no âmbito da política, do direito, das legislações, da cultura, do trabalho”. (LOBOSQUE, 2003, p.18).

Orientada em grande parte por essa perspectiva, a rede municipal de Saúde Mental é hoje composta pelos seguintes serviços: Centros de Referência em Saúde Mental (CERSAM), Centros de Saúde com equipes de Saúde Mental, Centros de Convivência, Associação de Trabalho e Produção Solidária (Suricato), Programa "De volta para a casa" com serviços residenciais terapêuticos, assistência à criança e ao adolescente, e também ao alcoolista e ao drogadicto.

Deteremo-nos nos Centros de Convivência, objeto de nosso interesse. Eles foram originalmente foram concebidos, segundo LOBOSQUE e ABOUYD (1998), para desenvolverem

um trabalho de curiosa simplicidade [se podemos em algum momento chamar de simples o trabalho com a loucura!]: rompem com o tecnicismo presente em tantas concepções na área da saúde mental, ao mesmo tempo que recolocam em termos novos as relações entre arte e loucura. São espaços de produção cultural e artística – oficinas de música, artes plásticas, bijuterias, etc. – destinados aos usuários da saúde mental, que ali se encontram sem qualquer mediação psi; inclusive funcionam em espaços da Secretaria de Desenvolvimento Social denominados Centros de Apoio Comunitários (CACs) […] Os monitores são artistas plásticos, músicos, artesãos, e não-técnicos de saúde mental. Assim, os usuários fazem alhures, nos Cersams ou Centros de Saúde, seu tratamento strictu sensu, freqüentando os Centros de Convivência como um primeiro passo em direção à produção e ao trabalho (p. 255).

Para as autoras, a originalidade da proposta reside no fato de que o reconhecimento do portador de sofrimento mental como tradicionalmente apartado da circulação social não implica em ressocializá-lo, na conotação adaptativa do termo, mas em restituir-lhe as possibilidades de presença e participação na cultura.

Quando de sua criação, os Centros de Convivência foram concebidos como espaços de produção e arte. Essa concepção original vai se modificando à medida em que o projeto de reforma psiquiátrica caminha e a especificidade desse dispositivo na rede se consolida. No período inicial, pensava-se que seria possível aos Centros de Convivência oferecer aos usuários o aprendizado de atividades laborativas com geração de renda. Nesse texto de 1998, entretanto, vemos o impasse com que os trabalhadores da Saúde Mental já se depararam, diante dos limites encontrados no trabalho dos Centros de Convivência. Aquele tempo, as oficinas eram construídas a partir do chamado à participação e à produção na cultura, abrindo para o portador de saúde mental a possibilidade de reaprender o trabalho e o cotidiano. Isto apesar das dificuldades em se colocar em circulação no mercado a venda dos produtos das oficinas, cuja renda não chegava nem mesmo a assegurar ao usuário um mínimo de independência financeira.

As oficinas estruturadas nos moldes dos centros de convivência, segundo este chamado à participação e produção na cultura, são um passo indispensável na reconquista da cidadania: inauguram para o portador de sofrimento mental o reaprendizado do trabalho como processo constante, porém criativo; exigente, porém fértil. Todavia, ainda que o produto das oficinas tenha qualidade adequada para aceitação no mercado, não é fácil promover a sua venda; mesmo quando se consegue isso, a renda não é suficiente para assegurar ao usuário um mínimo de independência financeira, outro passo a ser dado quando se pretende uma reconquista da cidadania. Daí a necessidade inadiável de ir mais além, partindo também para algo diferente do mero assistencialismo dos “benefícios” e propiciando ao portador de sofrimento mental as condições e o respaldo necessário para trabalhar, em pleno uso de seu potencial, seja ele qual for (LOBOSQUE e ABOUYD, 1998, p. 262-263).

O otimismo inicial ganha, pois, maturidade com a própria experiência, percebendo-se que nos Centros de Convivência é possível provocar o interesse e o movimento do sujeito em relação ao trabalho. Entretanto, esses dispositivos não se caracterizam como espaço de produção em si, devendo as cooperativas e empresas sociais encamparem essa face de inserção laborativa. Essa construção favoreceu a consolidação da identidade desses serviços como espaços de socialização, e não de produção laborativa.

Além desse impasse, o lugar da arte nos Centros de Convivência também sofreu um deslocamento. Nos primeiros Centros de Convivência, podemos observar a priorização de sua utilização como forma de promover um diálogo entre a cultura e a loucura.

A arte é peculiar na cultura porque costuma nascer das brechas, do descontínuo, ali onde se estende a uniformidade. Todavia, esse rasgo no uniforme não a impede de fazer registrar-se no social, criando outros laços, formas e dizeres. Uma reconstrução pode seguir-se ao corte, que não consiste em cerzi-lo nem denegar seus traços: este não é um exercício de arte? O louco, que porta a marca de uma ruptura psíquica, encontra na produção artística novas manobras de produzir-se, ao mesmo tempo que inicia sua reinscrição na cultura (LOBOSQUE e ABOUYD, 1998, p. 255-256).

Hoje, a prática nos Centros de Convivência orienta-se muito mais em função da própria convivência entre os usuários e sua circulação social, que priorizando a arte. Idealizada nos primeiros tempos como forma privilegiada para a estabilização, hoje a arte participa desse cenário como uma estratégia de sociabilização, criação e expressão. Nessa perspectiva, as oficinas se oferecem como mais um instrumento para ampliação da rede de contratualidade social do usuário, demarcando individual e culturalmente a posição singular a partir da qual ele encontra meios de se apresentar à vida e nela circular.

É, portanto, no sentido da ampliação e diversificação do tratamento em Saúde Mental, que a rede de assistência em Belo Horizonte contempla, além do tratamento strictu sensu oferecido pelos Centros de Saúde ou pelos Cersams (para o atendimento de casos de urgência e acompanhamento intensivo de crises), uma face sócio-cultural de intervenção em prol da circulação do usuário pelo social através dos Centros de Convivência.

Em Belo Horizonte, os Centros de Convivência localizam-se em cada um dos nove Distritos Sanitários, possuindo uma diretriz política e gerencial comum, apesar de trazerem curiosidades e particularidades em função do estilo diferenciado que criam de acordo com o espaço geográfico, político e dinâmico que habitam. Todos possuem a mesma forma de financiamento, qual seja, o trabalho é terceirizado pelo SUS, através da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Eles são gerenciados por técnicos de nível superior, funcionários da Prefeitura, sejam Terapeutas Ocupacionais, Psicólogos ou Assistentes Sociais. Dos nove gerentes, hoje 08 são mulheres.

Todos os Centros de Convivência possuem oficinas variadas, sendo os responsáveis artesãos, artistas plásticos, pessoas da comunidade, terapeutas ocupacionais e, mais raramente, ex-usuários e psicólogos - contratados por sua habilidade artesã, e não por sua especificidade de conhecimento técnico superior. Todos funcionam em espaço físico próprio, que vai de uma sala a uma casa com vários cômodos, estando 03 deles dentro de Centros de Apoio Comunitário, 02 dentro de Centros de Saúde ou espaços destinados à Saúde Pública, e 04 com sede destinada especificamente para esse fim. Funcionam na parte da manhã e da tarde, das 08:00h às 18:00h, com oficinas em horários fixos, que se alteram à medida da necessidade e interesse do momento.

As oficinas reúnem ou já reuniram as seguintes modalidades: cerâmica, teatro, artesanato, tapeçaria, desenho, pintura, musicalização, letras, bordado, horta, futebol, marcenaria, bijouteria, papel marchê, modelagem, couro, expressão corporal, culinária, fotografia, alfabetização, redação de jornal, cartonagem, dança, educação física, encadernação, reciclagem, alongamento, teatro de bonecos e produção com garrafas pet.

O trabalho num Centro de Convivência no mais das vezes prescinde de um saber ‘psi’ que o oriente. As ações e intervenções pautam-se principalmente em estratégias sociabilizantes que surgem inventivamente junto aos acontecimentos próprios ao serviço e também à cidade. Apesar disso, entendemos que nenhuma prática se orienta sem um saber que a sustente. Se não é preciso saber porque um efeito opera – afinal ele opera apesar de qualquer saber -, é preciso um certo saber para dirigirmos uma ação, para fazermos um cálculo ao pensar uma estratégia dentro do projeto terapêutico de cada usuário.

Que não se pretenda exercer com esse saber um poder de assujeitamento, é a forma que, entendemos, permite a ele ser uma ferramenta ética no campo da Saúde Mental. É dessa maneira, pelo menos, que utilizaremos o saber psicanalítico aqui como subsídio para pensarmos o estatuto da estabilização na psicose, a partir do último tempo do ensino lacaniano. Essa compreensão nos permitirá articular, a partir de um caso clínico, na última parte do texto, a relação entre Psicanálise e Saúde Mental. Entre o “para todos” das políticas públicas de atenção à Saúde Mental e o “cada um” da Psicanálise, o que nos interessa apreender, portanto, é o movimento que o sujeito, usuário do serviço substitutivo, pode tecer como solução a partir do efeito da oferta assistencial sobre sua condição de sofrimento.

 

AS SOLUÇÕES SUBJETIVAS A PARTIR DA SEGUNDA CLÍNICA DE LACAN

Aqui, buscaremos elucidar alguns aspectos – interessantes ao nosso tema – das proposições lacanianas da década de 70, em contraposição a sua produção nos anos 50. Essa segunda clínica, dos anos 70, tem se tornado conhecida como a clínica do real ou da pulsão, em oposição à prevalência do simbólico como operador privilegiado na primeira clínica.

Com base na perspectiva estruturalista, Lacan empreendeu sua releitura de Freud no primeiro tempo de seu ensino. Nela, o sujeito, diferentemente da abordagem fenomonológica, só conhece os dados mediatizados pela estrutura. A percepção seria, de saída, organizada pela estrutura. O perceptível faz sistemas e o simbólico dominaria o perceptível da realidade. Numa reinterpretação desse determinismo, na segunda clínica, é o próprio estruturalismo psicanalítico que questiona o real da estrutura ao discutir sua dimensão de arbitrariedade. O que sobretudo a Antropologia Social, de base estruturalista com C. Lévi-Strauss, pôs em relevo foi o relativismo, a perspectiva de que o real pode ser estruturado de maneiras diversas. Donde se extrai que qualquer estrutura é, antes de mais nada, uma construção de leis que regem a realidade factual.

Mas, para Lacan, nesse segundo tempo, subjaz a esse sistema de leis um real de dados imediatos que não caberia decifrar. Haveria uma espécie de matéria bruta do fatos, sem nenhuma estrutura lógica, anterior a esse sistema de ordenação estrutural. Sobre ela se construiria a elucubração do sentido, um saber. Isso teria conduzido Lacan a uma nova fenomenologia, a ordenar um real fora do sentido, prévio aquele que a estrutura confere e que, por isso mesmo, não pode ser definido.

Daí poder se extrair uma duplicidade de leituras acerca do inconsciente. Ora, ele pode ser pensado como uma elucubração freudiana de saber, ora como real fora de sentido, apreendido pelo equívoco, pelo engano. "A base material do inconsciente como dados imediatos é o tropeço, o escorregão, o deslizamento de palavra à palavra. Aqui estamos no nível imediato a partir do qual se elucubra" (MILLER, 2003, p. 23). Qualquer construção que se faça sobre esse tropeço, já seria uma tentativa de apreendê-lo, um semblante, já seria uma debilidade do mental em lidar com o real. Essa debilidade aponta para a dificuldade em se lidar com o corpo e com o real. Nessa ótica, o inconsciente seria uma doença mental (LACAN, 1974-1975). Sob essa perspectiva, sofremos todos de uma debilidade do mental... Ora, essa afirmação recoloca a figura da loucura e revê a posição subjetiva do psicótico que esteve sempre atrelada a uma deficiência. Aqui padecemos todos da mesma deficiência. Subvertendo os critérios da saúde/doença mental, Lacan aloca à loucura, na figura da psicose, a normalidade! Falta a todos, em última instância, a capacidade de lidar com o real. E cada um de nós, a nossa maneira, criamos um sintoma pela linguagem para lidar com esse mal-estar.

Ao mesmo tempo, o inconsciente seria também o engano, o tropeço, aquilo que permitiria a produção no mental de sentidos diferentes, de novas configurações como forma de resposta ao mal-estar produzido por essa dificuldade. Essa seria a novidade do último ensino de Lacan, a invenção singular de soluções subjetivas ao impasse colocado pelo impossível de apreender, que, como se vê, faz escárnio do sentido e do saber.

Daí Lacan priorizar o saber-fazer, mais que o saber, em seu último ensino. A depreciação do saber como uma elucubração é correlata à discussão da topologia do nó borromeano2. Sobre ele, Lacan se absteve de fazer demonstrações e deduções lógicas. Seu esforço foi o de mostrar, a partir dos barbantes e seu enodamento, a debilidade de toda tentativa de compreensão.

O inconsciente e o pensamento são tomados no nível dessa relação difícil entre o corpo e o simbólico, que Lacan nomeia de mental. O inconsciente aparece mais como esse 'não saber fazer com', diante do qual as saídas subjetivas são sempre únicas e irredutíveis a um padrão, que como 'o saber que não se sabe' freudiano (FREUD, 1912/1976). Dito de outra forma, essas saídas não seriam standartizadas pelo Nome-do­Pai3 como um agenciador elementar e necessário, mas, antes, seriam efeito de invenções, de criações suplementares do sujeito diante do impossível real.

Na topologia borromeana, pois, não se trata mais de falta em torno da qual uma suplência deve ser elaborada, mas de furo. Quando se fala de falta, há a referência a lugares, como na leitura que parte da antropologia estruturalista. A falta implica em uma ausência que se inscreve num lugar. Pode-se faltar, mas há sempre termos que venham ali substituir-se. Daí a falta ser coerente com a idéia de combinatória e de permutação, de linearidade, de cadeia de significantes. O furo, ao contrário, comporta o desaparecimento da ordem dos lugares, da ordem da combinatória. Como no nó borromeano, o furo é posição própria ao resto, ao que resta da forma como a amarração do nó pode se fazer na sustentação da realidade psíquica.

Assim, a primeira clínica seria regida por um ponto central, simbólico, organizador da cadeia significante e da lógica do pensamento, inclusive inconsciente. Esse ponto, Nome-do-Pai, seria utilizado como balizador na formalização lacaniana das estruturas clínicas. Como ponto de capitonné, o Nome-do-Pai é utilizado numa topologia linear, de setas e traços, funcionando como ponto de basta, como ponto final, como ponto de corte. Ele faria a amarração dos três registros, regido por um fortalecimento do simbólico.

Mas, ao discutir o caso do escritor irlandês James Joyce no segundo tempo de sua clínica, Lacan (1973-1974) retoma seus estudos sobre a topologia borromeana, evidenciando que é possível uma escrita subjetiva que careça do Nome-do-Pai. Ele propõe a existência de um elemento suplementar aos três registros (real, simbólico e imaginário) que faria, para cada sujeito, uma amarração própria. Assim, ao propor esse quarto elemento – que ele chamou de sinthoma, com th -, Lacan operou uma subversão em seus próprios preceitos. E o que ele subverte, quanto à norma operada pela metáfora paterna, é a idéia de uma solução ‘para todos’, normativizada pelo Pai. Cada sujeito, a partir do real em jogo com seu gozo, irá operar uma forma de resposta ao impossível de nomear.

A radicalidade da segunda clínica lacaniana aparece em sua prática. Na primeira clínica, o final de análise apontaria para uma espécie de acréscimo de saber sobre o não sabido, o inconsciente e sua verdade lógica. Enquanto, por outro lado, nos anos 70, Lacan sustenta que aí se trataria de um limite ao saber. Contrariamente ao ‘fazer saber’ dos anos 50, estaríamos, como já trabalhado, no campo do ‘saber-fazer’ com o inconsciente e suas formações (FORBES, 2005, p. 09). Pelo menos duas conseqüências clínicas dessa reconsideração de Lacan podemos extrair. O lugar do analista (ou operador da Saúde Mental, nesse caso) é recolocado na medida em que ele passa a ser pensado como aprendiz das soluções que o sujeito inventa, devendo seguir seu estilo na construção de respostas, como orientação clínica. Além disso, muitas vezes o sujeito prescindirá de um analista (ou de um operador), na medida em que essas soluções advêm de seu próprio movimento, como veremos no caso apresentado a seguir.

E, no que toca em especial à aplicação da Psicanálise à Saúde Mental, podemos dizer que:

•cada solução psicótica, quanto à estabilização, dependerá do arranjo subjetivo ou, em outras palavras, da estrutura borromeana, sobre a qual o sujeito assenta sua relação entre Real, Simbólico e Imaginário, compondo sua realidade;

•assim, o que mais importa, na direção de um tratamento, é o ‘savoir-faire’ que o sujeito estabelece com seu sintoma, ou seja, a maneira como ele aprende a operar com seu gozo, com seus embaraços;

•portanto, a solução é sempre singular e opera a partir da história do sujeito, não podendo ser standartizada.

Essas contribuições são evidenciadas no caso de O. Seus percursos de vida e clínico evidenciam uma dificuldade do manicômio em promover processos de subjetivação, bem como a incidência do preconceito em relação à loucura como aniquilador de possibilidades de contratualidade social. Apesar dessa força contrária a sua estabilização, O. consegue construir uma solução que é acolhida pelos técnicos dos serviços abertos advindos com a reforma psiquiátrica, em especial, neste caso, de um Centro de Convivência em Betim4 (MG), permitindo-lhe uma sustentação dessa construção, sem novos desencadeamentos. Vamos ao caso.

 

CASO O.: OPERANDO COM A PSICANÁLISE NO CONTEXTO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA

O. tem 57 anos. Sua psicose – precisamente, paranóia – parece manifestar-se na infância, quando o menino vê monstros anunciados pela mãe e o terror representado pelo pai, domador de cobras e mestre de obras, em sua “imaginação”.

Aos dezesseis anos é internado pela primeira vez, segundo ele, por alcoolismo. É quando localizamos uma convocação simbólica a qual ele não consegue responder: sua namorada engravida. O encontro com a paternidade parece provocar o desencadeamento. Sai de casa e se torna andarilho durante um tempo, fugindo do amparo do (Pai) exército aos 18 anos. Leva uma vida errante e mendiga por alguns anos, até que resolve voltar a sua cidade em Minas Gerais. Reencontra sua namorada e constitui família com ela, tendo novos filhos.

Em torno dos trinta anos e já morando no estado de São Paulo, tem uma nova crise que, segundo ele, foi fruto de cansaço, de uma vida de intenso trabalho e stress. A partir de então, fora rotulado como louco e, qualquer passo em falso, as pessoas o internavam. Além disso, perdeu efetivamente o emprego de ascensorista e copeiro, apesar de sua relutância em ser afastado do mesmo. Essas internações, interrompidas por curtos períodos de liberdade, duraram em torno de dez anos. O., inclusive, tenta suicídio no prédio no qual trabalhava, sendo interpelado e salvo pela assistente social da empresa. Este apelo não pôde ser escutado pela lógica manicomial.

Um dia, encontra um anúncio no metrô que promete uma “alternativa ao tratamento psiquiátrico”. Nesta ocasião, por volta de 1980, envolve-se com a luta antimanicomial. Entretanto, depois de um tempo curto, o amigo e psicólogo, que parecia sustentar por identificação sua estabilização, através de um enlaçamento com o discurso da reforma psquiátrica então nascente, morre.

O. entra em crise novamente e, desorganizado, resolve se mudar de São Paulo, voltando para Minas Gerais. Por um período que durou dezesseis anos, ele não quer mais saber da Psiquiatria e se mantém sem medicação e sem qualquer forma de tratamento. Durante essa época tem novo envolvimento político, agora com uma associação de bairro da qual tornou-se presidente. No entanto, vai perdendo sua família e sua vida social, até que a ex-esposa resolve tirar-lhe uma última filha da qual ele cuidava.

Nova crise e, de repente, em uma unidade de saúde pública, ele vê um novo anúncio, desta vez sobre o Centro de Convivência, que começou, então, a frequentar, bem como sobre o tratamento em rede aberta da saúde mental. Resolveu buscar o serviço pois encontrou uma “idéia que batia com a minha idéia de quase vinte anos atrás”.

O. encontra um tratamento que o deixa seguir seu estilo. No Centro de Convivência, em Betim (MG), começa a participar da oficina de cerâmica e da associação de usuários, da qual é presidente. Desta forma, reinventa formas de lidar com o gozo do Outro, localizando-o. Retoma o antigo trabalho com cêramica, que relembra os tempos em que fazia objetos de argila na tenra infância. Sobre esses objetos repousa as imagens do pai terrível e de seus monstros de infância, tendo tido sucesso em se manter muitas vezes até sem medicação. No CERSAM5, ele é acompanhado por um psiquiatria, seu técnico de referência, que introduz a medicação em momentos pontuais nas quais ela se faz necessária, segundo seu entendimento com O.

O. sempre aparece com delírios de perseguição, característicos da paranóia, aos quais responde com querelância. Além disto, constrói “teses” – como costuma chamar – sobre a evolução do mundo e do homem. A idéia principal de sua tese se refere à concepção. Ele explica que qualquer coisa, antes de existir, existiu em outro lugar, na mente de alguém. O. nos dá um exemplo dos bebês: antes de serem gerados eles já existem na mente da mãe. Tal “tese” se aplica diretamente à sua criação artística uma vez que O. reproduz o seu “mundo de imaginação”, segundo suas palavras, no mundo real, através de suas peças. Encontramos nelas as figuras monstruosas e os significantes que não se inscreveram no simbólico, retornando no Real e ganhando, na obra de trezentas peças que pretende construir, um destino que pede testemunho. Desta forma, podemos inferir que a obra, ou mais especificamente, os objetos criados, funcionam como superfície de localização de gozo, contorno para o Real, para o impossível de nomear na medida em que são apresentados ao Outro que pode reconhecê-los. Além disto, podemos tomá-los como um corolário do delírio, tratando de reificar, sob o testemunho do Outro, uma “tese” construída pelo sujeito.

Lacan (1955-56/1992, p. 235) é claro ao tratar da função do analista, que aqui transpomos para a do operador da Saúde Mental, “vamos aparentemente nos contentar em passar por secretários do alienado. [...] Pois bem, não só nos passaremos por seus secretários, mas tomaremos ao pé da letra o que ele nos conta – o que até aqui foi considerado como coisa a ser evitada”. Além de oferecer uma direção ao tratamento possível da psicose, de quebra ainda realiza cortante crítica à psiquiatria tradicional, em sua função de dessubjetivação e alienação moral em relação à experiência da loucura, concebida então como alienação.

Podemos, enfim, considerar que O. tem duas estratégias básicas de solução: a obra, na figura das peças de cerâmica criadas, e a política. Com as peças, parece-nos que O. consegue delimitar um gozo, circunscrevendo o que retorna no Real rejeitado do Simbólico. Assim, ganham consistência, materialidade, aquilo que invade e acomete o sujeito, os monstros de sua infância. Tal estratégia aponta para uma retomada de sua história, interrompida em pelo menos dois momentos. Na infância, quando esculpia barro e o pai quebrava suas esculturas, pois “aquilo não era coisa de homem”. E, na adolescência, quando esculpiu um santo que usava uma arma como defesa, e foi criticado pelo padre. Desta forma, podemos inferir que há também uma recriação da relação com a figura paterna, reconstruída no real da obra, na busca, talvez, de uma consistência para esta função – o que se prolonga até hoje.

Com a política, O. conquista, por identificação, um ‘eu’ de defensor, de lutador, denunciando o Outro onipotente que o submete. É gritante sua relação com a vida política, nascida ainda nos anos 80, nos primórdios da luta antimanicomial, e fomentada com a presidência da associação de bairro em Minas Gerais, até chegar à presidência da associação de usuários da Saúde Mental na atualidade. Em todo esse percurso, destaca-se em sua fala a denúncia contra um Outro onipotente e ‘domador’ que subjuga e exclui a possibilidade da liberdade e da expressão. Esse Outro, que pode ser tanto o traficante do bairro, quanto a psiquiatria tradicional, aparecem como seqüestradores da manifestação subjetiva a serem denunciados e combatidos.

Assim, pela obra ele registra o gozo, enquanto pela política ele o denuncia. As duas soluções não se excluem, ao contrário, se complementam. Trata-se de pensarmos que enquanto a obra inaugura uma nominação Real, sustentáculo de um nó, a política lhe permite uma nominação imaginária, consolidando um percurso histórico na construção de um ‘saber-fazer’. Não falamos aqui de um sinthome, pois este só poderia ser inaugurado se houvesse uma nominação simbólica, permitindo a O. fazer-se um nome, ou seja, servir-se do pai, ser pai do nome, ao mesmo tempo que do pai prescindir.

Porém o que aqui interessa, mais que sabermos se houve ou não sinthome, é a solução inventiva que O. cria diante dos impasses que encontra em sua história. Essa invenção encontra amparo na rede de saúde mental, no tratamento substitutivo ao manicômio. A partir da rede aí criada, O. pode seguir seu ‘auto-tratamento’ pelo caminho das soluções construídas com seu saber-fazer com o sintoma: ponto fundamental e essencial no caso, no qual faz toda a diferença a modalidade de estabilização encontrada pelo sujeito. No limite do saber, a invenção se instala como possibilidade de subjetivação. No tratamento, que se instala como alternativa em sua trajetória, O. encontra novo meio de sustentar suas estratégias.

 

CONCLUSÃO

O caso de O. nos evidencia que fazer clínica em Saúde Mental não quer dizer necessariamente criar um setting analítico ou um espaço ‘psi’ de escuta entre quatro paredes. Trata, antes, de se respeitar e acolher o movimento do sujeito na construção de suas soluções inventivas. E isso implica em aprender com o sujeito e não em submetê-lo a um saber prévio e generalizado. Também nos ensina que há uma contradição equívocada entre clínica e reabilitação que não se sustenta na prática. Se a concepção de reabilitação partir do pressuposto de que há uma dimensão particular, única e irredutível de inscrição do sujeito na linguagem e na cultura, com desdobramentos sobre seu modo de estar no mundo, será inevitável sua aposta na implicação do sujeito junto às respostas que constrói, seja por quais vias for. Trabalhará, pois, de um lado, com a singularidade do sujeito e consequentemente das intervenções e, de outro, com a responsabilização do sujeito pelas respostas que apresenta (VIGANÒ, 1997 e 1999). “Ora, seguir as estratégias do sujeito implica em conhecer as diferentes maneiras através das quais ele trabalha, ou seja, busca tratar os retornos no real que o assolam, numa tentativa de tornar o gozo suportável” (GUERRA, 2004, p. 91). Não se sustenta, portanto, essa contradição que acaba por se tornar uma falácia.

Em contraposição a um saber sobre o sujeito, que faz dele objeto a ser analisado – forma com que Pinel inaugurou a experiência da loucura como alienação e com que a psiquiatria biológica prossegue com suas pesquisas empíricas -, aqui se trata de fazer um sujeito, objetalizado pelo gozo do Outro, advir em sua mais íntima manifestação.

Nós, operadores da Saúde Mental? Podemos aprender com esses sujeitos e secretariar seu trajeto, localizando nele elementos que permitam certos cálculos na direção de seu tratamento, sinais, como que placas, na indicação de caminhos que podemos favorecer. No mais, nas palavras de O., manter o respeito a seu sofrimento: “O respeito que recebi aqui [Centro de Convivência Estação dos Sonhos, em Betim (MG)] me ajudou muito, foi como um abraço depois da solidão e da loucura”.

 

Referências bibliográficas

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Notas

1. Aqui fazemos uma alusão à Banda de Moebius. Nela, diferentemenete do círculo, há um torção cujo giro interno faz o dentro se tornar fora e o fora se tornar dentro à medida em que se caminha sobre sua superfície. Isso é possível, ainda que as duas superfícies da banda não se confundam uma com a outra em nenhum momento.

2. Lacan utiliza, na década de 70, a topologia dos nós para mostrar a realidade psíquica e os arranjos subjetivos que podem ser realizados a partir das relações entre Real, Simbólico e Imaginário (três dimensões da subjetividade humana). O nó borromeu é uma espécie de nó na qual os três aros se enlaçam de tal forma que, se se corta um deles, todos os três se liberam. Trata-se de um recorrência à Matemática a fim de elucidar idéias da Psicanálise.

3. O Nome-do-Pai é, para Lacan, o significante que funciona como operador, designando aquilo que rege toda a dinâmica subjetiva, ao inscrever o desejo no registro simbólico. Na década de 50, ele propôs a metáfora paterna como o arranjo significante responsável pela entrada do sujeito neurótico na linguagem. Nesse tempo, a ausência do Nome-do-Pai implicaria numa espécie de déficit simbólico, redundando na psicose.

4. Em Betim, o Centro de Convivência Estação dos Sonhos segue a mesma lógica de funcionamento apresentada no primeiro tópico desse texto em relação aos de Belo Horizonte.

5. CERSAM é o Centro de Referência em Saúde Mental que, em Minas Gerais, equivale aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), com a especificidade de serem voltados ao tratamento da crise.

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